Enfoque Vila Kédi 4

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Falta de asfalto incomoda moradores Página 8

LAIS ALBUQUERQUE

AMANDA BICCA

HENRIQUE KANITZ

Caminhos sem pedras

Família animal

Cães fazem parte do cotidiano local Página 6

O medo do mosquito

Água parada, preocupação de todos Página 6

ENFOQUE VILA KÉDI

EDIÇÃO

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LAIS ALBUQUERQUE

PORTO ALEGRE / rs MARÇO/ABRIL DE 2016

Personagens de um lugar SEGURO

Violência da capital gaúcha não chega à comunidade páginas 3, 4 e 5


2. CRÔNICA

| ENFOQUE VILA KÉDI | PORTO ALEGRE (RS) | MARÇO/ABRIL DE 2016

Não tem do que reclamar, mas é isso aí

C

uida onde tu pisa porque ontem choveu. Os cachorros não mordem, tem uns e outros que vão rosnar, mas não tem problema não. O pessoal ainda tá dormindo. Daqui a pouco começa a aparecer mais gente. São três Ângelas na família, a outra mora aqui na Kédi mesmo, logo aí na frente. Tu chegou a conhecer, eu acho. A terceira mora lá no Leopoldina. Ali mora uma prima minha, na casa do lado também é primo. Ali tem outra. Na verdade, daqui pra lá é tudo primo ou parente. E lá pra baixo? Lá também tem parente. Aquele ali não, ele não é daqui. Mas ele fica por aqui mesmo. É da rua, o Seu Gilberto. Vem aqui pedir prato de comida e vai ficando. Se a gente tem pra dar para os cachorros, não tem porque negar pra um ser humano. Mas tem umas e outras em que passamos trabalho. Lá na Nilo, a nossa parada de ônibus faz dois anos que não tem mais. Se tá chovendo, a gente fica na chuva esperando. Se tem

aquele sol de rachar, a gente fica torrando até passar ou T7 ou 429. Ah, tem o negócio dos mosquitos agora, né? Vem cá, deixa eu te mostrar

RECADO DA REDAÇÃO

S

Ao entrar na Vila, olhe para frente!

im! Se um dia você resolver ingressar na Vila Kédi, que está em meio a um dos bairros mais nobres de Porto Alegre, siga com o seu olhar frontal. Olhe para frente para ver como os moradores do local vivem felizes. Observe como eles ouvem música, conversam entre si, cumprimentam os visitantes. É uma prova de que, apesar da condição financeira, a felicidade não está baseada no que temos e sim no que somos. Portanto, se um dia decidir visitar o local, evite olhar para o chão. Se você fizer isso, verá um cenário triste que irrita até os próprios moradores: a falta de um piso decente (calçamento ou asfalto). A rua que atravessa a vila não possui condições ideais para o tráfego de pessoas. O barro, os desníveis e os entulhos que se acumulam atrapalham a

vida dos que, diariamente, precisam transitar em meio às casas e que se torna um prato cheio para o mosquito Aedes aegypti. Se um dia entrar na Vila Kédi, continue olhando para frente e conhecerá pessoas com grandes histórias. Uma sonha em ser um craque de futebol. Outra dedica sua vida a cuidar da irmã adoecida. Olhe para frente assim como dona Angela, líder da vila, que busca a resolução dos problemas na comunidade. Olhe para frente e veja o quão impactante é ingressar em uma vila que se apequena rodeada de prédios de luxo e grandes empreendimentos. Olhe para frente pois, se você olhar para trás, terá vontade de voltar! William Szulczewski Editor-chefe

uma coisa. Olha: esse terreno era do Zaffari, dizem. Agora, não é mais, parece que venderam. E tá assim, nesse estado. Tem como ir lá? Tem,

mas vamos pela casa do meu sobrinho que tem porta para os fundos. Licença, Lucas, vou ali mostrar o estado do matagal. Em um dia de tra-

ENTRE EM CONTATO

balho dava pra limpar isso tudo. Agora, além das valas e do barro na frente de casa tem esse monte de lixo com água parada aqui também. Antes eles pagavam aquela senhora lá para cuidar, agora não estão dando nada. Vim pra cá com 16, vou fazer 60 e não posso reclamar. Mas é isso aí, as coisas continuam isso aí. Dia desses não quiseram entregar um roupeiro meu porque não passa caminhão. Nem de entrega, nem de lixo. Mas os lixeiros vêm, eles estacionam lá na Nilo e vêm pegando o lixo até a metade. Depois voltam e estacionam lá na Anita e vem até a outra metade. Fazem uma correria. E o negócio do roupeiro como ficou? Disseram pra eu ir na loja pegar meu dinheiro de volta. Que não iam entregar mesmo. Fui buscar meus direitos. Ó, esse é o roupeiro, montado e tudo. Entregaram, claro que entregaram. Então, tá. Vai indo lá? Tá bom. Só cuida onde tu pisa porque ontem choveu. Sergio Trentini

DATAS DE CIRCULAÇÃO

(51) 3590 1122, ramal 3727

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09 / 04 / 2016

enfoquevilakedi@gmail.com

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30 / 04 / 2016

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27 / 05 / 2016

Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS Cep: 90470 280 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vila Kédi é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Kédi, em Porto Alegre (RS). Com tiragem de mil exemplares, são publicadas três edições a cada semestre e distribuídas gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre.

CONTEÚDO Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Luiz Antônio Nikão Duarte (texto) e Flávio Dutra (fotografia) Edição geral (chefia) William Szulczewski Edição de fotografia Laís Albuquerque Edição de texto Henrique Kanitz, Joaquim Oresko e Kalleb França Reportagem e fotografia Amanda Bicca, Érika Ferraz, Kalleb França, Henrique Kanitz, Joaquim Oresko, Laís Albuquerque, Lua Kliar, Maurício Trilha, Nathalia Amaral, Pedro Nunes, Sérgio Trentini e William Szulczewski ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização Marcelo Garcia

IMPRESSÃO Realização Grupo RBS Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Petrópolis – Porto Alegre – RS. Cep: 90470 280. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenadora do Curso de Jornalismo: Thaís Furtado.


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BAIRRO .3

Um local seguro escondido Comunidade vive clima familiar, em que todos se conhecem, se protegem e se ajudam

A

crise de segurança enfrentada pelos gaúchos não chega à Vila Kédi. Diferentemente de seu entorno, onde se observa diversos casos de violência e roubo diariamente, a comunidade, localizada em meio a arranha-céus da avenida Nilo Peçanha, no Bela Vista, um dos bairros mais nobres de Porto Alegre, não sofre com a insegurança. “Aqui é uma vila que não tem violência nenhuma”, define o andarilho Gilberto Antônio Luft, que apesar de não residir no local, aos 50 anos de idade, frequenta a comunidade há pelo menos três anos, trazendo doa-ções para os moradores. A explicação para a tranquilidade vivenciada na Kédi é resumida pela doméstica Lucimara Alano: “Todo mundo

se criou aqui, é um clima familiar”. Luci, como é conhecida pelos vizinhos, diz não ter nenhum tipo de preocupação com seus pertences. “Saio e deixo minhas coisas por aqui”, fala, na parte da frente de casa, e resume: “Aqui é tranquilo”. O outro lado da moeda O instrutor de golfe do Porto Alegre Country Club Maicon Pires Mendonça, uma referência para a vizinhança mesmo depois de ter se mudado para o bairro Restinga Velha, relata o impacto sofri-

Clima familiar faz com que a Vila seja um lugar seguro, mesmo com a violência nos arredores do bairro

do por ele ao se mudar para o novo endereço. “Com relação à violência doméstica: uma vizinha foi assassinada próximo à minha casa. Isso nunca aconteceu aqui”, narra, e complementa dizendo que estava viajando quando o fato ocorreu, e que ficou sabendo pela televisão. Aos 35 anos, Maicon, pai de três filhos, criado na Vila Kédi, vive o outro lado da moeda. Há três anos, quando se mudou, disse ter demorado em torno de três meses para que percebesse a diferença de ambiente. Visitando

a casa da mãe no intervalo do trabalho para o almoço, ele conta como é o clima no novo endereço: “Barulhos de tiro lá (Restinga Velha) são frequentes, isso não tem aqui”. A diferença é facilmente percebida pela movimentação de crianças na rua sem a supervisão de adultos, que desfrutam de um “oásis” em meio à falta de segurança vivenciada pelos porto-alegrenses. Joaquim Oresko Laís Albuquerque

A união fez a força O temporal do dia 29 de janeiro deste ano foi marcante para toda a cidade. Passados aproximadamente dois meses, as ruas, praças e parques municipais, ainda estão com muitos tron­cos de árvores, e fios soltos. São vários pontos onde a iluminação pública ainda não foi totalmente restabelecida, deixando evidente a força e a magnitude do que todos presenciaram naquela data. Porém, uma parte da cidade, que era para estar entre as mais afetadas, deu um exemplo de soli-dariedade, união e força. Cada um tem uma história, cada um estava em um lugar diferente e certamente vai lembrar de vários detalhes sobre o forte temporal. É o caso de Fabiano Oliveira da Silva, auxiliar de serviços gerais de 31 anos, morador da Vila Kédi. - Eu estava em casa. O tempo fechou. Aí eu comecei a trancar a casa e cuidar das crianças. Não queria que

ninguémsemachucasse.Voaramtelhas, caíram galhos das árvores sobre as nossas casas – conta Fabiano. O local, que já não possui uma estrutura adequada de urbanização, fica em uma situação mais precária em ocasiões de desastres como o do dia 29 de janeiro. Quando os moradores acordaram, no dia seguinte à tempestade, e viram a situação do lugar, rapidamente, o sentimento de união se alastrou e um grupo de 25 pessoas se uniu e começou a limpar. Fios, troncos, antenas, telhas e outros destroços, foram removidos. Mesmo sob forte calor, eles não pararam de trabalhar, a não ser para almoçar. - Nos juntamos e fomos tirando os galhos, arrumando as telhas. Todo mundo se ajudou, não contamos com nenhuma ajuda externa. Kalleb França Henrique Kanitz

Moradores se uniram e atenuaram os efeitos do temporal de 29 de janeiro


4. Gente

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Gustavo sonha ser jogador Sem muitas alternativas, o esporte acaba sendo o único caminho possível para muitos jovens da Vila Kédi

“O

nde tem futebol, eu tô junto”. É com esta frase, um sorriso de canto e um olhar tímido, que Gustavo Luiz Oliveira da Silva, ou simplesmente Gustavo, descreve sua paixão pelo esporte. Com 17 anos, vive o melhor momento de sua “carreira”. Ao final do mês de fevereiro havia sido selecionado, entre 30 candidatos, em uma peneira do Esporte Clube Novo Horizonte, de Esteio. Esta é sua primeira chance em um time que está em processo de profissionalização. Fundado em 2008, o clube luta para disputar a divisão de acesso do Gauchão, em 2017. Dividindo o sonho de jogar futebol com os estudos, o atleta se esforça para conciliar as duas atividades. Ser jogador e aluno lhe consome bastante tempo. Das 7h30 às 12h45 frequenta a Escola Dolores, no Jardim Ipiranga. De lá, precisa sair às pressas em direção ao centro, para pegar o trem e ir até Esteio, cidade que fica a 25km de Porto Alegre. O trajeto é feito às pressas. Pontualmente às 14h o treino começa e vai até 17h, atrasos não são permitidos. Almoço? Nem

pensar, no máximo um lanche rápido, quando dá tempo. “Eu guardo comida pra ele, ele só almoça de verdade mesmo as sete horas da noite, quando chega em casa, de dia come lanche” – conta Andreia Oliveira da Silva, mãe de Gustavo. A rotina se repete de segunda à sexta. Aos finais de semana nada de folga, é hora de colocar em prática os treinamentos da semana. Se não

há partidas pelo Novo Horizonte, Gustavo trata de marcar jogos por conta própria. “Se não tem nada no fim de semana eu armo um joguinho. Vila contra vila, chamo ‘uns amigo’, ‘os vizinho’, futebol tem sempre” – conta. Em 2016, a equipe do Novo Horizonte disputa o Estadual Júnior Amador, organizado pela Federação Gaúcha de Futebol. A competição é observada por

olheiros de Grêmio, Internacional, Caxias, Juventude e até por clubes tradicionais de outros estados. Esta é a grande oportunidade visada por Gustavo, aparecer para alguma instituição maior, para começar a ter retorno financeiro. No Novo Horizonte não há nenhum tipo de apoio. “Não dão nem as passagens”, explica. A história de Gustavo é semelhante à de milhares de garotos em

Perfil Nome: Gustavo Luiz Oliveira da Silva Idade: 17 Altura: 1,80 cm Peso: 76 kg Posição: Volante Pé Preferido: Canhoto

todo o Brasil. Ser jogador acaba atravessando a barreira do sonho e se torna a única ambição de quem não tem nenhuma perspectiva melhor na vida. Reprovado na escola em 2015, Gustavo está no primeiro ano do ensino médio. Pela idade, já poderia estar no terceiro ou até mesmo se formando. O sonho de ser jogador é apoiado pela mãe, desde que ele não largue os estudos. “A gente não é nada, mas no mundo, com fé, a gente consegue alguma coisa. Eu sempre tento dizer pra ele confiar em Deus. Deus vai ajudar ele”. A fala da mãe soa como um desabafo, o filho escuta atento. Descontraído, Gustavo não deixa de falar sobre suas características de jogo: “Sou volante mas vou pra frente também, armo o jogo, mas se precisar defender e ‘dar pau’ também faço”. Gustavo é canhoto, algo muito valorizado em jovens atletas. Além disso, volantes que atacam e defendem são raros, considerados “modernos”. Para o jovem, o futebol parece ser, no momento, a única maneira de construir um futuro melhor. De cabeça baixa, suspirando, ele diz não saber o que será de seu futuro caso a carreira de jogador não vingue. Mauricio Trilha Henrique Kanitz

A rotina de Maria é marcada pela doença Maria Marli da Souza de Orquis, chama uma de suas quatro filhas – além de outros dois filhos – para perguntar qual a sua a idade. Analfabeta funcional e com 64 anos, ela não sabe dizer quantos netos tem. Orgulhosa, Marli conta que seus filhos estão sempre na volta. Acompanhada de seu parceiro Jair, de 59 anos, moradora da Vila Kédi desde os 12 anos, Maria Marli, hoje como dona de casa, aparentemente leva a vida normal de uma senhora da terceira idade. O mal que a persegue há alguns anos não é perceptível à primeira vista. Espasmos musculares incontroláveis, perda de consciência seguida por confusão, queda repentina, mudança abrupta de humor, perda do controle da função da bexiga ou do intestino, são sintomas desencadeados pela epilepsia

sofrida por dona Marli. “Se eu não tomar os remédios controlados, posso ter mais de uma convulsão por dia”, explica. Em três horários diferentes, Marli faz uso de seus medicamentos controlados. Hidantal (fenitoína) é utilizado para o trato das convulsões, e o remédio Carbamazepina é para um antigo mal: a síndrome de abstinência alcóolica. Sim, no auge de sua meia idade, após três grandes perdas consecutivas, Maria Marli procurou consolo em garrafas de vinho e de cachaça. Alguns anos atrás, Marli estava muito feliz com Lucas, seu sétimo filho do primeiro casamento. Mas com apenas dois meses seu bebê acabou falecendo após algumas complicações de saúde. Logo após a morte de Lucas, seu marido teve um mal súbito do coração. “Diferente de mim, ele não bebia, não fumava e nem nada,

Maria Marli – com o companheiro Jair – conta com o apoio familiar para superar problemas e preservar a esperança

morreu de um infarto”. Meses mais tarde, Marli descobriu que estava grávida de seu falecido marido, porém perdeu o bebê em um aborto espontâneo. Com tantas perdas em tão pouco tempo, Marli, que já ingeria bebidas alcóolicas, aumentou

a dosagem da mesma forma que aumentou a tristeza. Se tornou dependente química, mal que lhe desencadeou as convulsões. “Um dia foi tão grave que dei baixa no hospital, até fraldas eu usei”, lembra. Depois de ter saído do hospital, prometeu a si mesma que iria parar de beber. Com o apoio da família, principalmente de seus filhos, Marli se mantém longe das bebidas, para não ter nenhuma recaída. Ainda com os olhos amarelados de quem já fora alcoólatra e com um sorriso leve no rosto, conta que sonha ter uma casa melhor na Vila Kédi ou em outro lugar. Mas devido as suas convulsões, não pode fazer o que mais gosta, trabalhar fora, que a ajudaria a realizar seu sonho. Érika Ferraz Nathalia Amaral


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gente .5

A segunda casa de Gilberto Morador da Eudoro Berlink, o Velho, assim apelidado pela criançada, dedica seus dias a arrecadar doações para a Vila que lhe recebe diariamente de portas abertas

O

trago já estava quase superado. A sobriedade já abatia o rosto torto do Velho. No intervalo entre um copo e outro, Gilberto Luft apontou para o vão entre duas casas: “Tá vendo aquele prédio? Bando de rico infeliz!” Para ele, alegria como a da Vila Kédi, não existe em prédio de A alegria burguês. A Kédi é a sua segunda de Gilberto casa, a primeira é na Eudoro é visitar a Kédi Berlink, onde ele só passa para dormir. Gilberto nasceu em Cerro Largo. Saiu de lá com 17 anos para trabalhar na capital. Durante esses anos trabalhou como cobrador de ônibus, casou-se, teve uma filha e separou-se. A menina, Larissa, tem 11 anos e vive com a mãe e a irmã de Gilberto, em Novo Hamburgo. Hoje a rotina está no caminho entre o sinal de trânsito e a Vila.

“Ajude-me a comprar comida”, é a frase que estampa a placa que sustenta o homem de olhos dessemelhantes. R$ 150,00 por dia e algumas doações de alimentos são o suficiente para sustentar o corpo, o trago e ajudar as famílias da Vila Kédi. Esse exercício - ajudar as famílias - se repete há três anos. Os outros dois, há muito mais tempo. Duas vezes por mês, Gilberto chega com as sacolas que carregam o famoso esquilo em sua estampa. Dentro delas vem o alimento que recheia algumas panelas na Vila. “O rancho é de boa qualidade” comenta Dona Ângela, a cozinheira mais famosa do bairro. Muito querido por todos, o Velho, apelido dado pelas crianças do local, perambula pelas casas que, segundo ele, estão sempre de portas abertas, com a certeza de que aquele é o seu lugar. “Não tenho vontade de sair daqui, conheço a Vila há 35 anos. Só queria que ela melhorasse, para a vida da minha grande família melhorar também”. LUA KLIAR SERGIO TRENTINI

A vida de Tânia é cuidar da irmã tuberculosa Na altura da primeira curva, para quem entra na Vila Kédi pela Avenida Nilo Peçanha, uma casa mista de alvenaria e cedrinho, à primeira vista não difere das outras, mas Tânia, 45 anos, vive o drama da busca por melhores condições de saúde para sua irmã, Saionara, de 43 anos. Com seis filhos, Tânia já é avó e cria a sobrinha de três anos. A irmã Saionara está sob seus cuidados intensos desde que contraiu tuberculose, há cerca de oito meses, desde então, não sai da cama e precisa de auxílio para alimentação, medicação e banho. “Ela não sai mais da cama, tem que trocar fralda, tem que tomar os remédios”, relata. Tânia tenta há meses auxílio para sua irmã, que precisa de uma cama

hospitalar devido à sua condição. Além disso, também sofre de problemas mentais. Saionara recebe pensão da previdência, mas é insuficiente, pelo alto custo dos medicamentos, fraldas descartáveis

e dos produtos de higiene ne- preciso cuidar dela”, ressalta. A cessários para seus cuidados. enferma ainda tem descontos “Ela recebe a pensão, mas não no benefício que recebe do INSS cobre o gasto que a gente tem. devido a empréstimos que fez Meus filhos me quando estava em A maior ajudam, eu não melhor situação dificuldade posso trabalhar, enfrentada pela física e mental. “Quando estava família é a falta de melhor e saía, ela uma cama hospitalar que acomode Saionara fez um monte de empréstimos. Ela não sabia bem o que estava fazendo, e agora é tudo descontado da pensão. O que recebe não dá para comprar o que ela precisa. Os remédios são muito caros”, conta. Tânia tenta desfazer os empréstimos feitos pela irmã, sem sucesso até o momento. A dona de casa enfrenta dificuldades em conseguir auxílio do poder público. O posto

de saúde próximo, onde fazem acompanhamento médico, não distribui de forma gratuita todos os medicamentos, o que dificulta a continuidade dos tratamentos de Saionara. “A tuberculose deixou ela na cama, mas ela tem o tratamento dos problemas mentais, e os remédios são muito caros, a gente não consegue no postinho”, relata. Mesmo doente, Saionara tem uma filha, Ester, que está sob os cuidados de Tânia desde que nasceu. “Eu busquei ela no hospital com dez dias de vida, vai fazer quatro anos no final de março”, conta. Mesmo com tantas dificuldades, Tânia não desiste de cuidar da irmã. “Ela precisa de mim, é difícil, mas eu cuido”, desabafa. Nathalia Amaral


6. AMBIENTE

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Atentos ao Aedes aegypti Mosquito é um dos causadores da microcefalia em recém-nascidos

U

ma doença vem assustando a população mundial nos últimos anos: o vírus zika, que é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo da dengue e chikungunya. Na Vila Kédi, o medo dessas doenças se acentua, por ser um local com esgoto a céu aberto e com muitos criadouros do mosquito, como baldes que guardam restos de água da chuva por exemplo. Jaqueline dos Santos Garcia afirma que procura fazer de tudo para evitar que o mosquito se prolifere em sua casa, que fica a poucos metros da entrada da vila. ‘’Eu não deixo água parada nas plantas’’, conta ela. Jaqueline afirma que militares estiveram na vila para conscientizar a população, como parte da campanha do Governo Federal“Dia Nacional de Mobilização Zika Zero”, ocorrida em fevereiro deste ano. O vírus zika é o principal causador da microcefalia, doença que provocou um surto de casos de bebês nascidos na região nordeste do Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, existem hoje 746 casos confirmados da doença no País. A moradora Maria Solange, de 49 anos, afirma que, com a visita da equipe de militares, pôde aprender a como se proteger do vírus, como não deixar água parada em locais que

provoquem seu acúmulo. Em outro ponto da Kédi, mais ao fundo, fica a casa de Claudina Martins, de 65 anos. Nos fundos da residência dela, há um terreno que é motivo de discussão no local. A moradora afirma que o local é de propriedade do Grupo Zaffari, o que já foi negado pela Embalagens empresa. Nesse abandonadas terreno estão vasie água acumulada lhas, pneus velhos geram preocupação, e lixo. Claudina porque atraem afirma que falou mosquitos com um guarda frequentador da região e ele lhe garantiu que uma equipe viria ao terreno em breve. “Eles dizem há mais de três meses que vem aqui, mas nunca ninguém aparece. A gente pediu novamente em janeiro e nada”, conta. O resto de embalagens e de baldes contendo água parada também é motivo de preocupação de sua nora, Ariane, de 24 anos. A jovem está no grupo de risco da doença, que são A doença: as grávidas. “A gente tem que n A febre por vírus zika é uma doença viral aguda, transmitida principalmente por mosquitos, como Aedes aegypti. Não há vacina contra o zika vírus colocar inseticida na casa todo dia e dormir de ventilador”, conSintomas: ta Claudina. Irovaldo Dutra de n 80% das pessoas infectadas não desenvolvem manifestações clínicas; Oliveira, de 43 anos, afirma que n Febre baixa; há outro ponto que preocupa: n Olhos vermelhos sem secreção e sem coceira; “É complicado porque nem os n Dores em articulação; próprios moradores se ajudam”. n Dores musculares, de cabeça e nas costas. Ele ainda afirma que uma equipe de limpeza visitava o local Como evitar: entre duas e três vezes ao ano, n Usar repelente; n Retirar pratinhos dos vasos das plantas; mas que não tem aparecido n Manter tampados caixas d’água, tonéis ou recipientes para armazenamento de água da chuva; mais, o que explica o acúmun Esvaziar piscinas plásticas para evitar acúmulo de água. lo de lixo no terreno.

Saiba mais

pedro nunes

Animais fazem parte do cotidiano na Vila Eles estão por todo lugar. Há o cacarejar de galinhas, o canto de calopsitas, o miado de gatos, assim como o latido dos cães que avisam quando algum desconhecido entra na estreita Kédi. Se os moradores se denominam com uma grande família, os seus animais não ficam de lado. A passadeira Ângela Maria Vargas conta que seu cachorro é um grande parceiro, pois a acompanha na ida e vinda do trabalho. “O Negão tem 13 anos e, mesmo assim, sempre vai comigo. Ele já sabe os horários, às 9h a gente sai e às 17h ele volta para me buscar, todos os dias”, afirma Ângela. Durante o verão, quando ela vai à praia trabalhar, os vizinhos alimentam o cachorro.

Ângela destaca que, mesmo com as crianças. Para não correr o a demora, o fiel companheiro mesmo risco de ter seus cães segue esperando pelo retorno atropelados, o funcionário púdela. “Teve uma vez que eu fi- blico aposentado Adão Valam quei 15 dias na praia, quando eu Soares, opta por deixá-los nas voltei, ele estava na parada me esperando”, diz orgulhosa. Na vila, há também a famosa Laika, a labradora que, por ter sido atropelada na Avenida Nilo Peçanha, tem as pernas tortas e Cães são maioria. caminha com um rebolado conheci- Mas também há do por todos. De gatos, galinhas e acordo com Maria até calopsitas de Solange Pacheco, estimação donadacadela,uma veterinária cuidou do animal que está bem, correndo por todos os lados da vila junto com

suas casinhas. “Aquela avenida é um perigo! Eu cuido dos meus aqui no meu pátio, dou comida, remédio e eles cuidam da casa para mim. Eles sempre avisam

quando vem alguém diferente”, explica Soares, que cuida de três cães e três gatos. Apesar dos cuidados de todos, alguns animais presentes no local não são castrados. Segundo os moradores, não existe nenhuma ONG que cuide dos animais da Kédi e ofereça um serviço de castração. Por isso, constantemente são vistos filhotes de cães e gatos perambulando pelas ruas da vila. Para resolver esse problema a Secretaria Especial dos Direitos dos Animais – SEDA oferece o telefone 156, onde é possível agendar a esterilização gratuita de gatos e cachorros, assim como atendimento clínico. amanda bicca


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Juventude .7

Trilha sonora dominante Funk é o estilo favorito do público, que organiza bailes e ouve sua música pela Vila

citando artistas”, brinca. A Vila tinha até um baile funk organizado pelos próprios jovens. Nos dias de movimento, chegavam a superar 100 pessoas se Nicolas divide o divertindo entre gosto e o estilo danças e bebida. musical com os jovens Os mais jovens, é de sua vizinhança claro, só podiam beber refrigerante, garante Leonardo Pacheco, 13 anos. Apesar de o estilo ser carregado de preconceito, os meninos dizem que era uma boa opção de diversão nas noites de sexta e sábado, mesmo para gente de fora da Vila que frequentavam o baile. - O pessoal dançava cada um na sua, na paz. Tinha alguns que “ficavam” com garotas, outros não. Os garotos só lembram um incidente mais grave, cerca de um mês atrás, quando uma briga terminou quando uma arma foi disparada. Ninguém ficou realmente ferido, apenas um raspão, sangue e o susto. Desde então, os bailes pararam, mas a trilha sonora continua a mesma.

A

o andar pela rua que dá forma à Vila Kédi, é i m p o s s í ve l n ã o notar a trilha sonora que acompanha o lugar. E a unanimidade quanto o estilo musical entre os jovens que ali residem é o funk. Os MC’s (Mestre de Cerimônias) em sua maioria são de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, mas cantam a realidade que os meninos porto-alegrenses percebem. Nicolas Oliveira da Silva, 20 anos, observa os movimentos dos futuros jornalistas com o celular na mão. De seu aparelho saía a batida característica da música típica das periferias. – Toda a galera menor aqui ouve funk. Se procurar outro estilo, não tem – afirma Nicolas, sorrindo. A lista de seus favoritos está na ponta da língua: MC Davi, Kevin, PP da VS, Juninho da 10, Felipinho. Ele diz ter muito mais, “porém ficaria o resto da entrevista

Henrique Kanitz

Educação, um desafio diário Estudar, trabalhar, cuidar da casa, criar os filhos. Essas tarefas fazem parte da realidade dos moradores da Vila Kédi e costumam ser um desafio administrá-las sem deixar nenhuma de lado. Entre os habitantes que possuem de 15 a 30 anos, essa conciliação fica mais difícil. A maioria dos jovens forma família cedo e por isso precisa conciliar as tarefas domésticas com escola e trabalho. Diante desse impasse, muitos acabam tendo que deixar os estudos de lado. A maioria deles conseguiu concluir até a oitava série e ainda sonha com a perspectiva de estudar e garantir um futuro melhor. É o caso do jardineiro Maicon William Quevedo Alexandre, de 22 anos. Aos 18, teve seu primeiro filho e logo constituiu família. Ele deixou a escola quando se formou no Ensino Fundamental. O trabalho e as responsabilidades como pai fizeram-no priorizar outros setores da vida. Mas ele ainda quer voltar a estudar e tem o sonho de fazer uma faculdade. Apesar de gostar muito de plantas e

da profissão de jardineiro, Maicon quer ir mais longe: sonha com medicina. “Quero seguir os passos da minha mãe, que fez técnico em enfermagem”. Se não conseguir ser médico, pensa em pelo menos seguir como enfermeiro. “Batalhando, a gente consegue”. No caso de alguns dos jovens, as razões pelas quais deixaram os estudos são ainda mais sérias. Everton*, de 32 anos, trabalhava desde os 10. Conseguiu concluir o fundamental, mas entrou para o mundo das drogas e isso o fez largar os estudos. Hoje, pai de dois filhos, está desempregado e não pensa em voltar a estudar. A auxiliar de limpeza Ariane Barbosa, de 24 anos, teve que interromper os estudos por que ao mesmo tempo em que engravidou aos 15 anos, perdeu sua mãe. A impossibilidade de conciliar tudo a fez parar também no ensino fundamental. “Eu me arrependo muito”, afirma ela. Ariane considera os estudos algo essencial. “Se eu tivesse seguido, tudo poderia ser diferente. Eu poderia ter uma profissão me-

lhor”, explica. Apesar de querer muito, ela está grávida de seis meses e por isso terá que esperar um pouco mais para voltar à escola. São os mais Maicon foi pai novos que ainda de Caio aos 18 estudam. Camila anos e, por isso, teve Cardoso, de 15 anos, que deixar de estudar. está na oitava série Mas ele ainda sonha em voltar à escola, do fundamental. para cursar Medicina A jovem sonha em ser jornalista e não pretende parar de estudar. Solteira e sem filhos, Camila quer focar nos estudos para depois ir para o mercado de trabalho. A estudante Flávia Oliveira, também com 15 anos, pensa da mesma forma. Ela está no 1º ano do ensino médio e acredita que os estudos facilitam para conseguir um bom emprego e por isso pretende se formar. Porém, ela não pensa em faculdade, quer apenas fazer um curso técnico. (*) O nome do entrevistado foi alterado para preservar sua identidade

LAÍS ALBUQUERQUE


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Asfalto é prioridade Moradores enfrentam, há anos, problema do barro e das poças acumuladas em meio às casas

P

ense em uma rua. Uma rua sem asfalto, tampouco calçamento, com apenas duas saídas e cercada por casas dos dois lados, sem contar que fica junto a um dos bairros mais nobres de Porto Alegre. Essa é a Vila Kédi. Um local tranquilo, acolhedor e com casas simples. “Um local bom de morar”, como diz Angela Maria Oliveira da Silva, a líder da vila. No entanto, como todo o lar, a Vila Kédi tem seus problemas e um dos que mais atinge a comunidade é a falta de condições na rua que atravessa o bairro. “O asfalto é a prioridade na Vila Kédi neste momento”, salienta Angela. Em dias de chuva – ou pós-chuva – ninguém consegue passar por lá sem sujar os sapatos com o barro e as poças que se acumulam em meio às casas. Para Angela, que mora no meio da vila, a situação é ainda pior. “Sempre me sujo. Por vezes, preciso levar um calçado reserva para colocar quando saio daqui”, destaca. Essa demanda é antiga e a líder afirma que os moradores já reivindicaram à prefeitura de

Porto Alegre a colocação de asfalto no local. Angela enfatiza que a luta para ter condições melhores na rua já dura oito anos. “Em época de eleição a vila enche de políticos que prometem, mas nada, até agora, foi feito”.

conscientizar os moradores a juntarem dinheiro para cada um construir um degrau de cimento na frente de sua casa. Segundo Adelaide, a ideia acabou não avançando. Ela destaca que gosta muito de morar no local e que a colocação de asfalto seria a cereja no bolo, o detalhe que faltava para transformar a Vila Kédi em um lugar melhor.

“É um sabão de tão liso” O carpinteiro José Lerino de Freitas Cabral, que vive há 30 anos no local, convive com esse problema sempre que sai ou chega em casa. O morador ressalta que não consegue sair de sua residência sem Vila se estende sujar seus sapatos. por uma única “Preciso sempre rua, sem calçamento, levar um pano para que impede o trânsito limpar meu calça- de veículos e, em dias do quando saio de de chuva, impõe riscos casa”, lamenta. No aos pedestres entanto, a sujeira não é o único problema do barro e das poças que se acumulam na rua da Vila Kédi. Idosos e crianças que passam diariamente pelo local chuva, demora em secar e se sofrem com o chão escorregadio recuperar. Em dias de inverno, e muitas vezes acabam tendo segundo José, o chão fica eslesões causadas por quedas. corregadio e molhado por cer“É um sabão de tão liso”, revela ca de duas semanas. “Faz tanta José Lerino, após quase escor- falta um asfalto aqui!”, lastima regar em um dos desníveis que o morador. Para evitar sujar a a rua possui. Uma das grandes casa toda ao chegarem da rua, dificuldades dos moradores é o José e a família construíram um tempo que o trecho, após uma degrau, feito de cimento, para

SMOV sugere solicitação via 156

que o barro possa “soltar” dos sapatos antes deles entrarem. Solução interna não avançou Quem também sofre é a doméstica Adelaide Garcia. Enquanto varria a sujeira acumulada na rua, ela conta que tentou, certa vez,

A Prefeitura de Porto Alegre, através da Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV), informa que a demanda para o serviço de asfalto em vias públicas passa, obrigatoriamente, pelo Orçamento Participativo. De acordo com a Assessoria de Comunicação do órgão, os pedidos de revitalização asfáltica – ou tapa-buracos – devem ser solicitados via 156 (número de atendimento telefônico de demandas da cidade). Como não foi encontrado nenhum protocolo de pedido oriundo da Vila Kédi, a sugestão da secretaria é que os moradores liguem para o telefone de atendimento solicitando a colocação de asfalto para que seja analisado pelo órgão competente. William Szulczewski


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