Enfoque Vicentina 1

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PRISCILA BOEIRA

JÚLIA LINCK

LAURA PAVESSI

MORADIA

COMUNIDADE

TRANSPORTE

Geci se recupera de transplante, realizando sonho da casa própria

Parque do Trabalhador é pouco explorado por falta de segurança

Bicicleta é alternativa a longos trajetos de ônibus entre os bairros

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Páginas Centrais

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ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / RS

SETEMBRO DE 2014

EDIÇÃO

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LAURA PAVESSI

CHUVAS ASSUSTAM MORADORES DO VICENTINA

CONSTRUÍDO NUMA ÁREA BAIXA DA CIDADE, O BAIRRO FOI LIBERADO INDEVIDAMENTE PARA LOTEAMENTO PÁGINA 8


2. OLHAR DE FOTÓGRAFO de à Relatos esperança e

Tristeza e riso no Vicentina

drama convivem a poucos metros de distância e são capturados por cliques fotográficos

Q

ENFOQUE VICENTINA O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Vicentina, de São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

sido frieza de minha parte. Descaso mesmo. Mas o que poderia fazer? Farei o mesmo questionamento durante toda minha futura trajetória como repórter: o que eu posso fazer, além de contar? Talvez a distância que mantive nessa experiência foi resultado de meu compromisso com a fotografia da matéria, sem o dever de ouvir a história em todos os detalhes para que se transformasse num relato jornalístico fiel. Não olhei no olho de seu Joca e não ouvi de perto sua infelicidade, como a Diovana. Me preocupei com cliques e ângulos e aberturas da câmera. Preocupada com a máquina, eu, que gosto de

gente, me poupei de sofrer. Seguimos pelas ruas do Vicentina e encontramos outra pauta. Uma mulher natural do Piauí, que veio morar no Rio Grande do Sul por causa do companheiro, que é gaúcho. Apesar das dificuldades que sempre deram contornos à sua vida, Marcelina não sofreu nenhuma desgraça. Quando saíra do Piauí, onde levava vida difícil, foi a São Paulo com vontade de ganhar dinheiro e lá fez de tudo: lavou chão, foi manicure, atendente de comércio. Conheceu o homem com que mora hoje e com quem tem o filho. Ela conta, entre uma risada e outra, que ele tem outros filhos, cada um com

uma mulher diferente. Confessa que, apesar de estar contente com o companheiro, se fosse financeiramente independente ficaria sozinha. O sonho de Marcelina é fazer um curso profissionalizante para atuar como segurança. Disse que não tem medo da profissão, pelo contrário: como mulher, é muito valente. Enquanto nos contava sua história, gesticulava, ria alto e olhava para os lados, dando expressão a cada detalhe. Diferente de seu Joca, Marcelina tinha vivacidade no corpo. Havia esperança - talvez fosse essa a diferença.

- KARINE DALLA VALLE

Dramas e alegrias costuram as histórias dos moradores do bairro Vicentina

à

uando a Diovana Dorneles falou que gostaria de contar a história de mães cujos filhos morreram ao se envolver com o mundo das drogas, imediatamente levantei o dedo e me candidatei para fazer as fotos: a pauta era delicada e eu queria dar close nesse sofrimento. Gosto de narrativas que retratam a vida das pessoas. Como repórter, tudo o que é impessoal, como números e gráficos e porcentagens, admito, pouco me interessa. Chegamos na Vila Vicentina e a pauta da Diovana era ainda pré-pauta até conseguirmos um case que confessasse para nós sua dor. Nosso caso morava numa casinha pequena e humilde, a alguns passos dali. Estava sentado na frente da casa, numa cadeira de praia, debaixo do sol das dez horas da manhã. Mirava o nada. Tinha o cabelo ensebado e o rosto bronzeado marcado por rugas. Olhou pra gente sem levantar os olhos. - Oi, seu Joca - disse a Diovana, e começou a explicar o que fazíamos ali. Nossa história não seria a de uma mãe que vira o filho morrer, mas a de um pai que presenciara a morte de não um, mas dois filhos: um menino e uma menina. O mais velho, o homem, tornara-se usuário quando foi parar na cadeia. Quando saiu, continuou se drogando após deixar o presídio. Morreu, parece, porque era muito briguento. Algo a ver com vingança. A mais nova, uma jovem mulher, envolvera-se com drogas durante a vida normal mesmo. Era viciada em crack e, pelo que entendi, foi assassinada porque ficou devendo para os traficantes. Os dois deixaram filhos. Seu Joca não chorava enquanto nos contava

sobre suas perdas. E eu procurava, insistente, os melhores ângulos de sua dor. Ele não se emocionava a ponto de descompor sua postura já tristonha, mas mantinha o rosto caído no meio dos ombros, como quem já estivesse acostumado com a vida marcada pelas dificuldades e desgraças. Terminou sua história e abriu algo parecido com um sorriso. Disse que era bom desabafar um pouco. Quando nos afastamos, a Diovana, delicadíssima ouvinte, disse estar chocada com a história de vida sofrida. Eu assenti, mas na verdade não senti o mesmo choque. Me pergunto agora se não teria PRISCILA BOEIRA

REDAÇÃO – Jornalismo Cidadão – Orientação: Sonia Montaño. Edição e reportagem: Diovana Dorneles e Vitória Santos. Reportagem: Ana Lersch, Bárbara Müller, Cíntia Richter, Francine Maless, Guilherme Rovadoschi, Jacson Dantas, Júlia Soares, Júnior Melo da Luz, Leonardo Vieceli, Pedro de Brito, Sabrina Stieler, Thaciane de Moura e Thiago Santos. FOTOGRAFIA – Fotojornalismo – Orientação: Marina Chiapinotto. Fotos: Camila Moraes, Carolina Teixeira Lima, Cassiano Cardoso da Silva, Jéssica Luana Zang, Julia Ramona Michel Linck, Karine Dalla Valle da Silva, Laura Hahn Pavessi, Luiza Marques Veber, Michelle Santos de Oliveira, Priscila Boeira, Renata Cardoso de Almeida e Vitória Padilha Roxo. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) – Projeto gráfico e finalização: Marcelo Garcia. Diagramação: Gabriele Menezes. IMPRESSÃO – Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

FALE CONOSCO (51) 3591 1122, ramal 1329 enfoquevicentina@gmail.com

LEGENDAS - REPÓRTER

FOTÓGRAFO

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Bairro Três Figueiras – Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@ unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Próreitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Próreitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Gustavo Fischer. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


MEMÓRIAS .3

O banhado que virou bairro

história do Vicentina

V

icentina acorda às 9h. Pouco a pouco ouve os cães que começam a latir para quem passa na rua. Janelas começam a ser abertas e vizinhos começam a se cumprimentar. Alguns poucos carros buzinam pedindo lugar para as carroças, que também passam por ali. Tudo isso Vicentina ouve simultaneamente, sem distinguir espaços, afinal ele é o lar de todos que ali vivem. Ele é a comunidade. Ele é o bairro. Em 1983, Rubem Aguiar, 60 anos, membro da Associação de Moradores do Vicentina, se mudou para o bairro. Nos 31 anos como morador, não apenas viu o lugar crescer como também ajudou a moldá-lo. Sua casa foi uma das primeiras construídas ali, quando o local ainda era chamado de Vila Maria. “Quando cheguei aqui, na minha rua só passava carroça de boi. Apenas em 1985 o aterro começou a ser realizado”, explica. A proximidade com o rio faz do Vicentina um dos bairros mais prejudicados pelas enchentes do Rio dos Sinos. Até hoje, chuvas muito fortes fazem o local relembrar os tempos de banhadão. Seu Rubem construiu sua casa sobre 50 caçambas de terra e, ainda assim, deixou um espaço entre o chão e o imóvel que era suficiente para sua filha de três anos caminhar sob o assoalho. Nos arredores da moradia, havia apenas banhado, que foi sendo substituído por aterros comunitários cerca de 10 anos após seu estabelecimento no bairro. Naquele tempo, também eram jogados móveis velhos (como sofás, mesas e cadeiras) nas imediações do dique para conter a água e iniciar uma espécie de “fundação” para as casas que viriam a ser construídas. O bairro cresceu. De cerca de 6 mil moradores da Vila Sapo passou-se para 13 mil habitantes no bairro Vicentina, divididos entre Vila Maria, Vila Paulo Couto e loteamento Cerâmica Anita. As noites do antigo bairro tinham como trilha sonora uma sinfonia de coaxadas. Essa é a lembrança mais vívida de Elaine Lerner, 52 anos. Moradora do Vicentina há 22 anos, ela criou os filhos por ali. “Quando vim mo-

rar aqui, os mosquitos me carregavam toda semana para o centro médico por causa da alergia da minha filha”, lembra a moradora. O local era infestado de insetos e maricás (árvore espinhenta onde os famosos sapos se escondiam durante o dia). A Vila Sapo era uma orquestra de anfíbios há 20 anos, mas hoje os aterros, loteamentos e o próprio dique acabaram com o barulho. Luiza Tereza Brito, de 67 anos, casada há 51 com Pedro Brito, 70, foi uma das primeiras moradoras da Rua Capitão Armindo Bier, uma das principais da Vila Maria. O casal lembra-se de como a vida mudou. “A gente não percebe bem como o tempo passa, mas o barulho dos sapos era enorme e hoje não se ouve”, explica Dona Tereza. Desde 1995, o que continua preocupando o casal é consumo e tráfico de drogas. Para eles, o local é conturbado, embora a cena de ambos sentados tomando seu chimarrão na manhã de sábado reflita um lado pacato do bairro. Mas, nem tudo é preocupação na vida do casal, que tem uma família numerosa e já está no quarto bisneto. Entre as datas preferidas por Seu Pedro está a Semana Farroupilha, que acontece no Parque do Trabalhador. “É um dos eventos que mais mobiliza o bairro. Eu gosto muito de participar, inclusive cheguei a tocar num conjunto quando era guri”, lembra o morador. São 13.140 habitantes segundo o Censo 2010. No Vicentina, homens e mulheres são populações praticamente equivalentes (6607 pessoas do sexo feminino e 6533 do masculino). Cerca de 3200 jovens vivem no bairro, que é o 6º mais populoso de São Leopoldo. No entanto, a nova geração precisa de mais perspectivas. A criminalidade assusta. O que se vê sobre o bairro nos jornais são notícias respectivas ao tráfico e homicídios. Além disso, as enchentes são constantes. Os moradores reclamam por melhoras de infraestrutura e maior zelo por parte da polícia. Esse não é exatamente o bairro que queriam. Esse é o Vicentina que, mesmo sendo seu lar, é também alvo de crimes e descaso. Vicentina quer descansar, mas não consegue. Sem dúvida, muitos moradores preferem o barulho dos sapos ao ruído da violência que cerca as ruas.

- JÚNIOR MELO DA LUZ

RENATA CARDOSO

Seu Rubem (no alto) é membro da associação que representa os moradores do Vicentina. Aposentados, Luiza (no meio, à esquerda) e Pedro (no meio, à direita) veem o Vicentina crescer há cerca de 15 anos. Elaine Lerner (ao lado) gosta de estar envolvida com projetos sociais em prol da comunidade

à

à Moradores reconstroem uma


4. TRANSPORTE

A

parada coberta por telhas protege os moradores do sol na manhã de sábado. O ônibus da empresa Sinoscap, com letreiro luminoso indicando o destino Unisinos - Trensurb demorava mais que o habitual. Já havia se passado quarenta e cinco minutos, entretanto, Laíra Matos, moradora do bairro Vicentina há 18 anos, não perdia a esperança. “Não costuma demorar tanto. Esse ônibus vem de meia em meia hora. Quem reclama não tem paciência”, afirma. Quando o ônibus chegou, entretanto, uma expressão triunfante surge da moradora: “aleluia”, repetia. A realidade de quem mora na Vicentina e utiliza o transporte público é contraditória. Quem usa, critica. Quem não usa, elogia. Um exemplo é Pedro Paulo Guimarães. “Quando tenho pressa, prefiro pegar minha bicicleta. Faço o trajeto até o centro em 20 minutos”, calcula. Porém, o desgosto aparece na fala áspera de Solange Regina Corrêa, uma das líderes comuni-

tárias do bairro Vicentina. Quando perguntada sobre o transporte público no local, ela afirma de forma econômica: “É horrível”. Segundo a moradora, existem apenas dois ônibus que fazem o trajeto bairro/centro. “A gente só tem o Unisinos/ Trem e o Scharlau, e eles costumam demorar entre meia hora e quarenta e cinco minutos”, explica. No final de semana, a realidade para os moradores é ainda pior. No domingo, os ônibus podem demorar até uma hora para passar no bairro. O ônibus não é o único meio de transporte utilizado pelos moradores do bairro. Carros, de todos os tipos, dos populares aos de cabine estendida com tração nas quatro rodas, fazem parte da paisagem visual das ruas. Entretanto, o que mais chama atenção é o elevado número de bicicletas. Com o pedalar seguro e calmo, Amadeu dos Reis, vive há 35 anos no bairro. Optou por usar a bicicleta pela praticidade que as duas rodas proporcionam. “Quando não estou na bicicleta, estou numa moto. Nunca uso o ônibus. A bicicleta me leva mais rápido para os lugares. Levo quinze minutos até o centro, é uma maravilha”, disse. A passagem, que anteriormente custava R$ 2,70, passou a custar R$

2,85. Sofreu, no mês de setembro, reajuste de 5,56%. A cidade de São Leopoldo conta com aproximadamente 1,7 milhão de passageiros que utilizam o transporte coletivo por mês. Ainda assim, de ônibus ou de bicicleta, a cada dia são construídos rumos e caminhos que vão além de horários e itinerários. Estes expressam as vivências e as escolhas de cada viagem dos moradores do Vicentina.

JÚLIA LINCK

Alguns moradores trocam os longos e demorados trajetos de ônibus pela flexibilidade da bicicleta

à

à Transporte público é problema para os moradores do Vicentina, que reclamam da demora dos trajetos

Vida passageira

- GUILHERME ROVADOSCHI

ESPORTE

Paixão de três cores e sete décadas 69 anos, e às defesas de Jairo Lima, um ano mais velho do que o ex-companheiro de time. No Tricolor, atuaram como meio-campo e goleiro, respectivamente. Além disso, ambos já presidiram a instituição. “Fomos multicampeões juntos”, relembra Lima, com um sorriso. Ao contrário de atletas profissionais, eles dizem que nunca receberam um tostão no período em que jogaram. Amaral trabalhou em uma empresa do setor de alumínio antes da aposentadoria. Lima, por sua vez, foi mecânico e hoje é motorista de caminhão. “Às vezes, quando as partidas eram fora de casa, até tirávamos dinheiro do bolso para a passagem de ônibus”, conta o ex-goleiro, que, apesar da baixa estatura – 1m65cm –, vestiu a camiseta do clube entre 1964 e 1975. Amaral, por sua vez,

foi atleta do Tricolor por 25 anos. Apesar de não precisar as datas, um clássico disputado contra o Obras e Viação no campo do adversário é inesquecível para ele. Sentado no banco de reservas, Amaral assistiu à derrota de seu time, por 4 a 1, no primeiro tempo. Quando entrou no jogo, o placar mudou. “Fiz três gols. Ganhamos por 6 a 5”, recorda, sem disfarçar a felicidade pela atuação de outrora. MENINOS SÃO FUTURO DO CLUBE Embora faça parte do desenvolvimento histórico local, o Tricolor vive outro momento atualmente. Segundo o diretor de esportes da equipe, Mário Trindade, 40 anos, é difícil montar um time com atletas que atuem de forma voluntária. “A maior parte dos jogadores

é daqui. Mas temos que investir”, pondera o dirigente. O futuro tricolor depende principalmente do trabalho realizado com garotos do Vicentina. João Vitor da Silva, 13 anos, participa da escolinha de futebol do clube e, caso seja possível, quer brilhar em um clube profissional. “Sou asmático. Meus problemas estão diminuindo aos poucos graças ao Tricolor”, elogia João. Quando jogava futebol, Jairo Lima posicionava-se à frente das traves para evitar os gols dos adversários. Hoje, o vigilante Anderson Fabricio Diogo, 45 anos, desempenha função semelhante. Porém, ao contrário de Lima, atrás de uma das goleiras do campo do clube, onde ele vive em sua casa. Da moradia, separada do gramado pela cerca do alambrado, o segurança cuida da estrutura tricolor. Diogo é responsável pela

CASSIANO CARDOSO

conservação do campo em que jovens como João se divertem e dão os primeiros chutes na bola. Chutes que poderão levá-los para longe da Vicentina. Ou, quem sabe, torná-los ídolos do futebol de várzea, no qual o Tricolor escreveu a sua história de sete décadas em azul, branco e vermelho.

- LEONARDO VIECELI

Lima (à esquerda) e Amaral (à direita) mostram troféu que o ex-meio-campo guarda em sua casa

à

O futebol não vive somente de clubes com grandes torcidas ou de atletas com salários astronômicos. Em campos onde o gramado é irregular e repleto de buracos, há times que se sustentam graças à paixão dos torcedores. No Vicentina, o Grêmio Atlético Tricolor prova que o futebol de várzea está presente no bairro e é sinônimo de emoção. Para compreender sua trajetória, é preciso voltar sete décadas no tempo. Em 1944, a Seleção Brasileira ainda não havia vencido nenhuma Copa do Mundo. E, em 27 de outubro daquele ano, era criado um dos clubes mais antigos da várzea de São Leopoldo: o Tricolor do Vicentina. De lá para cá, a equipe venceu campeonatos municipais e intermunicipais. Parte dessa história deve-se aos gols de Sérgio Amaral,


DESAFIOS .5 à Associação de Moradores

N

o local há dois cadeados trancando a porta de ferro. São nove e 30 da manhã de sábado e o militar aposentado Pedro Flores está em busca de chaves para liberar a passagem. Enquanto isso, a entrada da Associação de Moradores do Bairro Vicentina em São Leopoldo (AMBAVI) continua fechada. O tempo passa, e Rubem Aguiar, ex-conselheiro fiscal e administrativo da associação chega ao local e conta um pouco de sua história. “Nós começamos aqui na associação em 2010, era uma bagunça, nada funcionava direito. Quando começamos reformamos tudo, cavaletes, mesas, pintamos a sede”, explica Rubem que mora no bairro há mais de 30 anos. De fato, a pintura externa do prédio está bem conservada. Alguns minutos se passam e Pedro Flores, eleito em 2010 como Presidente da Associação de Moradores, reaparece. Conseguiu a chave de um dos cadeados, mas a chave do outro cadeado está

na posse de uma secretária ligada à prefeitura. A dificuldade para entrar na Associação é reveladora das disputas pelo espaço dentro da própria AMBAVI. A participação dos moradores na Associação não é das mais ativas. No início do ano Pedro e Rubem, junto com outros vizinhos tentaram organizar eleições para uma nova presidência da associação, mas os moradores não compareceram. “Ninguém apareceu no dia, dai não saiu eleição, e o Pedro teve que continuar na presidência”, explica o ex-conselheiro . Um veículo estaciona em frente ao local. “Vão abrir o prédio”, avisa o presidente. Ao entrar na associação é possível ver um espaço em disputa para múltiplos serviços. De um lado há mesas sendo enfeitadas para uma festa infantil, o rosa com roxo contrastam com o azul das portas das salas de atendimento do Posto de Saúde. No mesmo local, divididos por algumas portas estão o Posto de Saúde do Bairro Vicentina e o Salão de Festas dos moradores. Serviços de Pediatria, Ginecologia, Clínico Geral e vacinação são oferecidos durante a semana. Nos finais de semana é a vez do salão acolher as festas de aniversário. Além disso, nas segundas

e quartas a noite, o local se transforma em tatami, onde os jovens da comunidade recebem aulas de Taekwondo. Muitas vezes os próprios moradores confundem os espaços. “Sábado colocaram o carro de ré na porta da associação, e ligaram o som ao máximo, eu tive que vir pedi pra desligarem. Além do barulho, há também alguns

problemas de passagem. A saída de emergência do prédio está obstruída por bancos e mesas, retirados de dentro do salão principal, que está sendo preparado hoje para festa”, aponta Rubem. O presidente da Associação de Moradores, Pedro Flores, percebe as dificuldades que a falta de espaço provoca. “A prefeitura tem um proje-

to pra instalar um novo posto no bairro, só que é um processo lento, então vamos usando como dá”, explica. As atividades realizadas na AMBAVI a tornam um lugar de soluções, mas a sobreposição do espaço para necessidades tão diferentes cria novos problemas.

- THIAGO SANTOS

No mesmo local, dividido por algumas portas, estão o Posto de Saúde do Bairro Vicentina e o Salão de Festas dos moradores

à

do Vicentina abre as portas e mostra serviços, ambiente e problemas de falta de espaço para uso público

Saúde ou recreação?

JÉSSICA ZANG

COMUNICAÇÃO

O som da comunidade CAMILA MORAES

do à Anatel ainda em 2002, sendo concedido apenas em 2010. “A comunidade precisava de uma rádio que tocasse o que gostamos de ouvir aqui. Eu aproveitei minha paixão para deixar o lugar onde vivo mais feliz”, declara o radialista. Com foco

No ar há oito anos, a Studio FM é dirigida por Júlio Ubiratan de Almeida (à frente), e conta com uma programação voltada ao gosto do Vicentina

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As rádios comunitárias cumprem importante papel social em diversas comunidades espalhadas pelo Brasil. No bairro Vicentina não é diferente. Aqui, eles contam com a programação da rádio comunitária Studio FM 87,7. Criada em 2006 pelo mecânico e radialista Julio Ubiratan de Almeida, 56 anos, a emissora esperou quatro anos por sua regularização. Iniciou suas operações na sede da Associação de Moradores do Parque Vicentina (ASVIPAVI), onde funciona até hoje, vizinha da casa e da oficina mecânica de Julio. Para conciliar o seu negócio com a rádio, ele conta com a ajuda de seis locutores com registro da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), que trabalham na rádio de Segunda a Domingo, das 17h às 9h. O pedido para concessão de frequência para a rádio comunitária foi protocola-

quase exclusivamente sertanejo, a programação tem também bandinhas alemãs, além do programa “Flashback”, que toca o melhor dos anos 70, 80 e 90. Com 25 watts de potência e alcance de 6 km, a rádio se mantém com o apoio da comunidade, que paga por serviços de utilidade para os moradores do bairro, como, por exemplo, a divulgação de vagas de emprego. Porém, a maior parte dos gastos ainda sai do bolso de Julio, radialista durante os anos 80 em diversas rádios comerciais da região metropolitana. Entre os anos 1990 e 2002, Julio participou de um grupo de estudos em rádio difusão, também conhecido como radioamadorismo, no município de São Leopoldo. Proprietário de uma empresa de assessoria fonográfica, Rafael Batista é locutor na emissora há apenas três

meses, mas já carrega 12 anos de experiência no ramo. Para ele, as rádios comunitárias de hoje têm a mesma importância dada às AM nos primórdios da radiodifusão. “A Studio FM funciona como

um porta-voz desta comunidade, divulgando desde informações de utilidade pública até recados entre os moradores”, reflete.

- JÚLIA SOARES

SAIBA MAIS SOBRE AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS As rádios comunitárias são regulamentadas pela lei 9.621 de 1998, que criou o Serviço de Radiodifusão Comunitária. Somente associações comunitárias sem fins lucrativos podem explorar este serviço. Devem estar legalmente constituídas e registradas, com sede na comunidade em que pretendem prestar serviço,

com dirigentes brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Além disso, precisam ser maiores de 18 anos, residentes e domiciliados no local. Apenas pessoas e entidades da comunidade podem compor a rádio comunitária. Na programação, não é permitido proselitismo político e religioso.


6. COMUNIDADE

Lazer e insegurança: Parque do T

com à Contando apenas dois agentes

de segurança particular, espaço tem sido cenário da violência no bairro Vicentina

L

Moradores que utilizam o parque para atividades físicas têm que enfrentar a grama alta

à

ogo que se passa pelo pórtico com a placa do Parque de Recreação do Trabalhador, é possível ouvir o som dos pássaros e a batida dos passos na terra. A extensa abrangência de 87 hectares de área verde poderia servir como um espaço de lazer, recreação, diversão e convívio comunitário. Afinal, o local conta com uma escola, um ginásio, o Centro Medianeira, uma ampla área verde, quadras de esporte e trilhas para a prática de atividades esportivas. O parque também serve como um dos espaços onde acontece o Acampamento Farroupilha de São Leopoldo. No entanto, a conjugação certa do verbo é exatamente “poderia”. O que aos ouvidos parece belo, aos olhos não agrada. O descaso é uma presença constante em um parque vazio. O motivo para a evasão? A insegurança que a comunidade sente. A grama está alta e as quadras precárias. Os únicos espaços que são realmente utilizáveis no Parque do Trabalhador são justamente onde a comunidade está envolvida. “Já vi duas mortes aqui. Só venho acompanhada. Antes vinha correr, mas agora nem durante o dia me arrisco”, comentou a estudante Ana Caroline Leal. O clima inseguro começou há cerca de dois anos, depois que a cavalaria da Brigada Militar (BM) saiu do parque. Atualmente, o policiamento é feito por dois guardas, contratados por uma empresa particular. “Cuidamos até a parte onde está o colégio. Lá para o fundo, a empresa nos proibiu de ir. Só entra a Brigada e a Guarda (Municipal). Quando há uma ocorrência, é para eles que nós ligamos”, informou um dos agentes, Ronei Gomes. O seu colega, Carlos Eloi Aguiar Fontoura, comentou que por já conhecerem os frequentadores do parque, eles ficam em alerta quando há um movimento suspeito. Apesar do clima de insegurança, a dona de casa Vera Lopes, moradora há dez anos no bairro Vicentina, conta que utiliza o espaço para descanso e que seus filhos levam os netos para brincar na pracinha. Ainda assim, ela afirma: “era melhor quando a polícia estava aqui”. O coordenador do parque, Luís Fernando Bittencourt explicou que a Prefeitura de São Leopoldo está buscando convênios com empresas e entidades para que elas adotem algumas áreas, auxiliando na manutenção do espaço. “Também estamos no início das tratativas com uma ONG que trabalhe com as crianças no turno contrário ao ensino regular, além de disponibilizar Professores de Educação Física


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Trabalhador é pouco aproveitado que atendam a comunidade que vem aqui fazer atividades físicas. Queremos desenvolver projetos que possibilitem os moradores utilizarem o parque durante os finais de semana”, disse. Quanto à segurança, o tenentecoronel Ari José Cassanta Chaves, do 25° batalhão da Brigada Militar disse que quando chegou à São Leopoldo a cavalaria já havia sido retirada do parque. Segundo a assessoria de comunicação da entidade, o fato ocorreu por falta de recursos financeiros para manter o efetivo e os animais. “Nós temos um mapa da violência da cidade inteira. Fazemos patrulhamento e operações no entorno. Mas temos outros pontos para atender e estamos fazendo o nosso serviço com o que tem. Temos consciência do que está ocorrendo, mas é normal que os ambientes quando não são utilizados, se tornem locais para o uso e tráfico de drogas, além de outros atos ilícitos. Acredito que o Estado e o município devem cercar ou fazer algo para aproveitar melhor a área do parque”, declarou. Apesar do subaproveitamento do local, o Parque do Trabalhador ainda abriga parte da comunidade. Sejam os alunos do Instituto

Estadual Parque do Trabalhador, os tradicionalistas ou aqueles que aproveitam o dia, quando o clima permite uma corrida. No entanto, as quadras não apresentam condições para a prática de esportes, e as edificações antigas – o restaurante e o vestiário – apresentam apenas resquícios do que um dia foi usado pelos moradores do Vicentina. No mês de setembro, o Parque do Trabalhador fica mais animado que no restante do ano. A Semana Farroupilha ocupa parte dos 87 hectares com 38 piquetes e seis Centros de Tradição Gaúcha (CTGs), formando um dos maiores Acampamentos do Estado. Conforme o patrão do CTG Tapera Velha, Paulo Leite, a manutenção deste espaço é feita pelos acampados. No entanto, alguns participantes do evento não mantêm o local limpo após os festejos farroupilhas. “O governo está trabalhando com o Ibama para fazer o corte das árvores que apresentam risco. Recentemente, uma delas caiu e causou um grande estrago”, explicou. Junto com a inauguração do parque, ocorrida no dia 8 de março 1975, foi inaugurado um

restaurante para 600 pessoas e canchas de bolão, além de várias quadras a céu aberto, para a prática de esportes múltiplos, área de churrasqueiras e área verde. Infelizmente, com o passar dos anos, sobrou apenas as paredes de pedra. O guarda Carlos Fontoura contou que o espaço era bem aproveitado. “Eu fiz a festa da minha filha ali”, lembra. UMA ESCOLA NO PARQUE No meio da riqueza de flora e fauna, mas também do descaso e insegurança, o Parque abriga uma escola estadual. “Temos o canto dos passarinhos. É um lugar diferente. Há um braço do Rio dos Sinos, os alunos fazem caminhadas nas atividades da escola. É uma pena que realmente não valorizam o parque”, comentou a Coordenadora Pedagógica do Instituto Estadual Parque do Trabalhador, Rejane Margo Lucas Garcia. O instituto foi fundado em 2000 e funcionava como um anexo da Escola Estadual Caldre Fião. Atualmente, a escola, a única que tem Ensino Médio no outro lado da BR-116, conta

com 330 alunos, que frequentam o espaço em dois turnos. O instituto foi instalado no prédio que havia sido construído inicialmente para a Universidade do Trabalhador, que nunca entrou em atividade. A professora de Educação Física, Hildegard Hamester, disse que logo que a escola começou a funcionar, o prédio apresentava uma estrutura precária. Não havia cercamento e contava com poucas salas. “Nós chegávamos na segunda-feira e o pessoal havia levado a janela inteira, pois era de alumínio, que provavelmente eles vendiam para comprar droga”, lembra a docente. Com o tempo, a escola foi crescendo, a cerca foi feita e, hoje, um dos maiores problemas enfrentados pela direção são as pichações. Entretanto, um dos destaques da escola é o projeto coordenado pela Professora Camila Oliveira Tremarin que envolve os alunos e a comunidade. O “Jornal na sala de aula” é feito duas vezes por ano, contando sobre as atividades do colégio, sendo distribuído para os moradores.

- FRANCINE MALESSA

O recanto gaúcho do Parque LAURA PAVESSI

à

LAURA PAVESSI

Eleito pela quinta vez, Paulo Cezar Leite (à esquerda) é o Patrão do CTG Tapera Velha As marcas do tradicionalismo estão em todos os detalhes do CTG Tapera Velha cuja sede está no Parque do Trabalhador, no Bairro Vicentina. O ambiente é aquecido pelo fogão a lenha, que cozinha o prato campeiro, e pela boa conversa. O CTG vive de doações de empresas e movimenta cerca de 130 associados. Paulo Cezar Leite, 52 anos, frequentador há 17 anos, é o patrão do Tapera Velha. Natural de Encruzilhada do

Sul, vive há 28 anos no Vicentina. Desde que se mudou para São Leopoldo em 1986, se associou ao Tapera Velha e é patrão do CTG, eleito pela quinta vez. Vendedor em uma loja de aços, o patrão se orgulha do trabalho feito no Tapera, usa trajes gaudérios no dia a dia e dedica boa parte do seu tempo ao tradicionalismo. O Centro realiza diversas atividades como cavalgadas, rodeios, além de participar de eventos

como o Encontro de Arte e Tradição (Enart) e o Concurso Estadual de Danças Tradicionais, categoria juvenil (JuvEnart). Há atividades diferenciadas como a cavalgada ecológica, durante a Semana do Meio Ambiente, quando é feita a distribuição de mudas nativas, para o reflorestamento, costeando o Rio dos Sinos. O trabalho do CTG busca atingir também crianças e jovens vítimas de violência familiar ou

em situação de vulnerabilidade com riscos de se envolver no consumo ou tráfico de drogas. Estimulados a participar do tradicionalismo, esses jovens, vão evoluindo com o apoio dos próprios associados que fazem o trabalho social na sede do Centro. Há ainda as invernadas, encontros de dança tradicionalista nas categorias adulta, juvenil e mirim.

- CÍNTIA RICHTER


8. EMERGÊNCIA

problema de planejamento em toda a cidade

D

ona Ana não consegue manter a casa limpa. Envergonhada, ela mostra o banheiro coberto por lama preta que parece estar parada ali há muito tempo. As paredes da casa, mesmo pintadas, estão cobertas de limo e mofo e os móveis, que eram novos, estufam por causa da umidade e se desmancham a cada movimento mais brusco. Nada disso, no entanto, é por descuido ou falta de cuidado. Para Ana Izabel Oliveira, assim como para grande parte dos moradores do bairro Vicentina, a água é o problema. As enchentes são uma constante na região. Na realidade, as enchentes são um desafio antigo da cidade. Em 2013 São Leopoldo teve a pior cheia desde 1965. A administração pública apresenta dificuldades em oferecer soluções. Os alagamentos são consequência da falta de planejamento urbano e da redução das áreas de banhados, que auxiliam no amortecimento das cheias. O bairro Vicentina é um dos exemplos mais claros deste problema. Moradora do bairro há dois anos, Ana vendeu um terreno que tinha no bairro São Miguel para comprar a casa onde mora com a filha e dois netos. A esperança de um lugar onde pudesse viver sem pagar aluguel e dar conforto para as crianças virou um pesadelo logo na primeira chuva intensa que atingiu o local. Ana mostrou que o esgoto não tem vasão para a rua e, por isso, não conseguem puxar a descarga do vaso sanitário ou manter o box limpo. Sem condições de corrigir o problema, ela já buscou ajuda com entidades competentes, mas só ouviu promessas. Não é só dentro da casa, no entanto, que a água transborda. A rua, que fica um nível acima da construção, enche quando chove intensamente, e a inundação invade a residência. “Quando começa a chover, eu já me apavoro e deixo a minha irmã de sobreaviso. Se vejo que vai inundar, alguém vem buscar as crianças e ajudar a salvar as coisas”, relata a moradora. Nem sempre a ajuda da família e dos amigos é suficiente. Em março, a última vez que o local encheu de água, só deu para salvar a televisão e a geladeira. Além disso, Ana precisou ficar um mês morando na

casa da irmã, esperando a água baixar. Até hoje, nunca recebeu nenhuma visita ou orientação da Defesa Civil sobre essa situação. O sol e o calor têm sido os melhores amigos dessa população. “Temos medo da chuva”, diz Diovana Cassol Araújo, que já precisou sair de casa com o filho mais novo, quando a água estava chegando no joelho. Mãe de três filhos, Diovana afirma ter medo das doenças que a água suja pode trazer. O marido, que tem artrose, sofre para sair de casa nos dias de chuva, já que a umidade piora as dores e dificulta a caminhada. Moradora do Vicentina há 15 anos, ela teme pelas enchentes, que vem piorando. “Antes a água ficava na rua. Na última, faltou muito pouco para entrar em casa”, lembra Diovana.

LAURA PAVESSI

ESGOTO E ALAGAMENTOS CRIAM CÍRCULO VICIOSO Próximo ao arroio que corta o bairro os alagamentos tem outra origem. Recém-criado e não concluído, um duto frequentemente transborda e enche as casas mais humildes do Vicentina. No ano passado, a água invadiu duas vezes as residências que ficam em frente ao valo. Nos últimos anos, no entanto, a situação dos alagamentos parece piorar. João Luiz Cazulo, dono de uma estofaria no Vicentina, viu sua casa ser invadida pela primeira vez há oito meses. Ele conta que o problema é o sistema de esgoto que foi feito da forma errada. “Eu não trabalho na Prefeitura, mas não sou burro. Isso aqui tudo foi mal planejado, porque se tivessem feito o projeto certo, não enchia assim aqui”, desabafa João. O morador Jesus da Silva Damasceno explica que, com a construção do canal, as tubulações que escoavam a chuva ficaram sem vasão, o que faz com que a água volte e encha as casas. De acordo com os moradores, uma casa de bombas construída para ajudar com a pressão da água não parece colaborar. Quando alguém percebe que a água começa a encher, avisa os guardas para abrirem as comportas. Depois da chuva, o que fica é a lama preta dentro das casas e um cheiro forte misturado ao sentimento de revolta, impotência e tristeza. A água que baixou e deixou suas marcas nas paredes e na vida de Ana e sua família é a mesma que indigna João e que assusta Diovana e outros moradores do Vicentina. A única

coisa que esperam, agora, é que não chova tão cedo, ao menos não antes de conseguirem solucionar tantos problemas. ENTENDA AS ENCHENTES DO BAIRRO VICENTINA “O Vicentina foi construído em uma parte muito baixa da cidade. Era uma área de alagamento que indevidamente começou a ser liberada para loteamento. O bairro teria que ser construído, no mínimo, um metro mais alto, o que é inviável de se fazer”. A explicação é do Engenheiro Civil Nilson Karam, diretor de drenagem urbana do Serviço Municipal de Água e Esgoto (SEMAE). Ele afirma que o problema das enchentes no Vicentina nasceu com o bairro e que a manutenção nas redes de escoamento fluvial já foi realizada. Sobre as soluções e os pedidos para aumentar o número das proteções chamadas de bocas de lobo nas ruas, Karam não ilude. “As bocas de lobo não resolveriam o problema. Podem ajudar quando for pouca chuva, mas se o volume de água for muito, vai inundar”, ressalva ele. Para o engenheiro o ideal seria um novo canal para escoamento da água da chuva. O atual deságua na via da Avenida João Correa, que recebe um volume muito grande, quando enche, as comportas são fechadas e a água acaba voltando para o lugar de origem e alaga as ruas.

Sobre as bombas que parecem não ajudar, Karam tem outra versão. Ele aponta o lixo como principal vilão. “Não podemos ligar as bombas se tem lixo que impede a passagem de água pelas grades de contenção. Primeiro tiramos os entulhos que atrapalham para depois ligá-las, o que demora um certo tempo”. O engenheiro ainda afirma que o problema do lixo só aumentou nos últimos tempos e diz que estão buscando formas mecanizadas para melhorar essa situação, mas o orçamento é pouco.

Segundo o Engenheiro, já está confirmado o valor de R$ 76 milhões para a construção de uma estação de tratamento de esgoto no Vicentina. O investimento viria do Governo Federal e estaria previsto para 2015. “Vai mudar a cara do Vicentina tratando-se de esgoto”, afirmou Karam. Com a obra, a água tratada poderá ser devolvida diretamente para o Rio dos Sinos, tendo maior vasão e amenizando os problemas que sofrem os moradores.

- ANA LERSCH - SABRINA STIELER

Os moradores do Vicentina temem quando chove. A água inunda ruas e casas, deixando marcas em paredes e móveis

à

à Drenagem urbana é

A vila que vira mar


MORADIA .9

Um teto para chamar de meu

à Vizinhança do conjunto

PRISCILA BOEIRA

habitacional cresce a cada ano, trazendo moradores de diferentes partes da cidade

S

e histórias fossem tecido, o conjunto de moradias populares do bairro Vicentina poderia ser definido como uma colcha de retalhos. As habitações que vêm sendo entregues há cerca de cinco anos pelo programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida reúnem moradores de diferentes áreas e até de outros bairros. As residencias, todas padronizadas, se diferenciam na medida em que seus habitantes vão dando seus toques pessoais, tornandoas únicas. No final da Rua Arno Schuch, vivem o polidor de metais José Krin, 54 anos, sua esposa Nelci, 45, dona de casa, com os filhos Heitor e João Inácio, 24 e 22 anos respectivamente. Após quase dez anos morando na Rua do Carmo, onde há de ser concluído o acesso à BR 448, chegaram à nova residência em fevereiro, depois de cinco anos de espera. “Aqui não tinha água nem energia elétrica, esperei até que a luz fosse instalada e me mudei”, diz Nelci. O casal ainda luta por melhores condições den-

à

José (acima) e Nelci Krin (esquerda) se mudaram após cinco anos de espera

tro do conjunto de habitações. “Primeiro precisam resolver o problema da iluminação pública aqui. De noite o pessoal chega a ligar o celular para poder enxergar alguma coisa”, explica José. Outras reclamações são sobre a qualidade de algumas moradias e o terreno dos fundos de algumas casas, que ainda não foi terminado. Perto dali, vive a recém-chegada Geci Maria da Silva, de 57 anos. Ela conseguiu moradia após oito anos de espera. Geci se recupera de um transplante de fígado, resultado de sua luta contra o câncer, e conseguiu terreno e moradia devido a esta condição. “Acordo às quatro da manhã duas vezes por semana para ir à Santa Casa consultar” explica, mostrando as caixas de remédio custeadas pelo governo. “Só uma dessas caixas custaria mil reais”, aponta. Caprichosa, ela se enche de orgulho ao mostrar a casa que mantém sempre limpa e conta seus planos: começar a vender cuca e nega maluca pela comunidade. Entre os moradores, vindos cada um de um canto, surgem diversas histórias e caminhos que convergem em algumas quadras. Mas uma coisa é consenso: o orgulho em chamar aquela casa de sua.

- PEDRO DE BRITO

FILANTROPIA

Projeto responde à vulnerabilidade social RENATA CARDOSO

do dentro do Ministério. O local que iniciou com uma única casa hoje conta com duas sedes – uma onde funciona a Escola Particular de Educação Infantil Instituto Terapêutico JUAD que atende crianças de 0 a 5anos e

11 meses – e no outro está o MBCV, onde as atividades com as crianças e os adolescentes são desenvolvidas. As propostas estão relacionadas a áreas como informática, reforço escolar, dança, música, teatro e arte-

Salão do Ministério Batista pronto para jantar beneficente

à

“A vulnerabilidade social em que as crianças se encontram é muito mais carência emocional do que financeira”. É com essa frase que a coordenadora do projeto filantrópico Visão para o Futuro, mantido pelo Ministério Batista Cristo é a Vida (MBCV), Cassia Pires, define as necessidades das crianças beneficiadas pelo projeto. Com o lema “a visão que alcança a família”, o Ministério localizado no bairro Vicentina há 18 anos procura ajudar a comunidade trabalhando com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Começando com gincanas que envolviam a população infanto-juvenil hoje são cerca de 90 crianças e adolescentes atendidas nos turnos da manhã e da tarde. O Ministério Juniores e Adolescentes (JUAD), que é a entidade a qual o projeto está vinculado, fica localiza-

sanato. Crianças e adolescentes de 6 a 19 anos participam complementando, assim, as atividades escolares. A instituição oferece educação integral que vai além de um local de acolhimento físico e de estudos: conforto emocional e carinho. O filho de Elaine Lerner, voluntária do projeto, é um dos beneficiados do JUAD. Nicolas, hoje com 18 anos, praticamente nasceu dentro do ministério. Cursando o ensino médio, o jovem é hoje motivo de orgulho para a mãe. “Ele já terminou dois cursos técnicos e atualmente está estudando no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) na cidade de Novo Hamburgo, fazendo o curso de Tornearia Mecânica”, orgulha-se a mãe. No entanto, a instituição criada para dar continuidade à Educação Infantil, também passou por momentos difíceis. No último mês, um fre-

quentador do projeto foi retirado da família e levado a uma casa de acolhimento. Filho de mãe usuária de drogas, o menino de 11 anos estava sendo iniciado no vício. A instituição que conta com uma equipe, formada por uma pedagoga, uma assistente social e Educadores Sociais, em parceria com o Conselho Tutelar e com o Centro de Assistência de Referencia Social (CRAS) acionou o ministério público para a tomada de decisões. A instituição propõe diversas maneiras de auxiliar a comunidade. Dois lanches são servidos por turno (manhã e tarde), são doadas cestas básicas para famílias carentes e, principalmente, acontecem grupos de conversa para auxilio emocional das crianças e adolescentes que frequentam o projeto.

- VITÓRIA SANTOS


10. SUPERAÇÃO

Uma luta diária contra o álcool

três décadas à Há sem ingerir

VITÓRIA PADILHA

bebida alcoólica, morador do Vicentina compartilha experiência com dependentes na Pastoral da Sobriedade

O

Porto Alegre no mesmo ano. Foram 28 dias de tratamento para reeducar uma vida diária de contato com o álcool. “Não foi fácil”, lembra Alfeu. “Casei com 18 anos sem saber do vício dele, mas

Durante 12 anos, Alfeu viveu escravo do álcool, recuperado, ajuda outros dependentes a mudar de vida

à

ano era 1986. O metalúrgico Alfeu Antônio Rosa tinha 31 anos. Casado há cerca de uma década, na época, e com uma filha de seis anos para criar, o jovem rapaz vivia sem esperanças. O motivo: 12 anos de dependência alcoólica e nenhuma estimativa de futuro. “Eu não queria aquilo, mas não tinha força para sair”, relata. Amigos e familiares já não acreditavam mais em sua recuperação. Somente o apoio da esposa, Nely Santos Paula, na ocasião com 28 anos, persistia. “Jamais desisti dele. Não aceitava aquela situação. Meu marido não era um vagabundo. Ele era um doente que precisava de ajuda”, lembra emocionada. O cuidado da jovem senhora demonstrado para com o esposo foi de fundamental importância para a decisão que ele tomou. Alfeu ingressou na Clínica Pinel de reabilitação em

o amor que eu sinto por ele me fazia acreditar que a gente ia dar a volta por cima”, comenta Nely. O ano é 2014. Mês de agosto.Vinte oito anos se passaram. Alfeu, hoje com 59 anos, é aposen-

tado. Nely, com seus 56 anos, continua ao lado do esposo. Desde 1986, ele não ingere bebida alcoólica. Há 11 anos, os dois trabalham lado a lado na coordenação da Pastoral da Sobriedade da Paróquia

Nossa Senhora da Medianeira no bairro Vicentina, em São Leopoldo. A experiência de vida adquirida há cerca de três décadas atrás, é compartilhada com aproximadamente 20 pessoas, entre dependentes químicos, alcoólatras e familiares, que frequentam as reuniões de grupo realizadas todas as quartas-feiras, às 20h, em uma das salas de reuniões da igreja. Para vencer o vício, Alfeu conta que o apoio da família é fundamental, pois a luta é diária. Ele acredita que a falta de valores familiares é o que contribui para que jovens entrem no mundo da dependência química. “Certos jovens são criados sem limites. Fala-se muito em amor, mas o amor verdadeiro tem muito não, muita disciplina, valores que hoje são esquecidos”. Interligada a este trabalho de autoajuda, está a Comunidade Terapêutica Bom Pastor, em Gravataí. O centro de recuperação para dependentes químicos e de álcool atende no momento oito homens. Nos 11 anos de existência, que vão se completar no dia 28 de outubro, aproximadamente três mil pessoas já realizaram tratamento no local.

- JACSON DANTAS

CRENÇA

A fé como profissão gens e estátuas de santos – algumas já suas, outras doadas por amigos e parentes – . Em pouco tempo, havia montado o cenário de suas preces. Maria Marlene, umas das filhas, relata que pessoas de outras cidades procuravam sua mãe em busca de uma saúde plena, principalmente para as crianças. Como a espera era grande, a família construiu bancos de madeira no pátio da casa para que houvesse mais conforto. Ainda assim, muitas pessoas ficavam de pé. De acordo com a neta Giane, sua avó atendia mais de vinte pessoas por dia, sempre de graça. Esse número chegou a ser de aproximadamente cinquenta logo que Dona Mariquinha iniciou seus atendimentos. Com o avanço da idade, ela diminuiu a frequência de atividades. Contudo, isso não a impediu de levar uma vida plena até os últimos dias. Segundo sua família, ela sempre foi muito ativa e con-

PRISCILA BOEIRA

tinuou assim até o momento em que foi para o hospital. Autodeclarada “católica kardecista”, acreditava nos ensinamentos do catolicismo, mas também frequentava o Centro Espírita Alan Kardec. Em decorrência de uma forte anemia, a benzedeira passou

pouco mais de uma semana internada e sempre deixou claro para os parentes que não voltaria para casa. A neta diz que, dentre as pessoas que perdeu, aquela de que mais sente saudade e que gostaria de rever é sua avó. A filha, por sua vez, gosta

de relembrar o passado ao ver fotografias antigas de quando a mãe era viva. Essa é a forma encontrada para manter a memória de uma das figuras mais conhecidas da Vicentina.

- THACIANE DE MOURA

Uma das filhas de Dona Mariquinha, Maria Marlene, abre as portas para as lembranças de quando sua mãe benzia os moradores do Vicentina

à

Chegar na comunidade Vicentina com a missão de construir perfis das pessoas mais proativas da comunidade não é tarefa fácil. A pergunta dirigida aos líderes da comunidade foi muito direta: “quais são os ‘ícones’ do Vicentina, – aquelas pessoas conhecidas ou lembradas por todos?” – . O nome de Dona Mariquinha foi uma resposta unânime. Uma senhora que morou no bairro até falecer, em 1996. Segundo os moradores, ela tinha um dom como poucos. Maria Angelica dos Reis fez fama no bairro durante anos, sendo responsável pela cura das mais diversas enfermidades. A benzedeira viveu durante toda sua vida no mesmo lugar, fazendo sua casa de altar para a cura daqueles que a procuravam. Pouco depois dos quarenta anos, ela começou a usar sua crença em prol dos outros. Em uma mesa pequena nos fundos de sua casa, reuniu as mais variadas ima-


DRAMA .11

seus dois filhos vítimas da violência após envolvimento com drogas

S

entado ali, na frente da sua oficina, João Ubirajara Cardoso – também conhecido como Seu Joca -, de 57 anos, vê o movimento da rua. Ele vive em uma casa simples e ao lado, tem sua oficina, local em que presta pequenos reparos a carros. Joca cumprimenta um e outro conhecido, mas não é de muitos sorrisos, também pudera, teve os dois filhos levados pelas drogas. O filho, Leonardo Ubirajara Cardoso, faleceu aos 26 anos. Conheceu as drogas durante o período em que ficou detido no Presídio Central. Tinha sido preso após matar um homem na Rua Independência, no centro da cidade. “Ele não levava desaforo pra casa”, conta Jussara Soares, tia de Leonardo. A sentença determinava 19 anos de prisão. Porém, ele cumpriu apenas seis. “Eu tinha uma casa bonita e outra na praia, mas me desfiz de tudo. Vendi para pagar advogado e livrar o meu filho”, relata Seu Joca. Quando Leonardo foi solto, procurou a boca de fumo do bairro para sustentar o vício. O jovem morreu há oito anos e deixou dois filhos pequenos, que hoje estão com a ex-esposa de Joca. A perda mais recente foi a da filha Sabrina. Ela morreu

aos 34 anos e deixou um filho de três meses. “Ela estudava, seria advogada. Mais um ano e ela exerceria a profissão”, explica o pai. Sabrina nunca foi usuária de drogas, até chegar uma primeira vez que não teve volta. Ela é lembrada pela família como uma moça linda e dedicada. Seu Joca não sabe explicar como a filha se tornou usuária de entorpecentes. Quando Sabrina entrou nas drogas começou com furtos em casa. O primeiro objeto furtado por Sabrina foi a carteira com os documentos de Joca. Ele lembra do dia em que comprou uma televisão nova para a casa. A aquisição foi entregue durante a manhã. À tarde, a filha já havia trocado a tv por pedras de crack. “Ela levou tudo o que eu tinha de bom na minha casa”, lamenta Seu Joca. O corpo de Sabrina foi encontrado há menos de quatro quadras da casa de Joca. Ele não foi ao velório, nem ao enterro. Sentado em frente à sua oficina, Seu Joca vê o movimento da rua. Ele vive em uma casa simples e ao lado, tem sua oficina, local em que presta pequenos reparos a carros. Joca leva uma vida calma e solitária após a morte dos dois filhos. Cumprimenta um e outro conhecido, mas não é de muitos sorrisos. Quando questionado se ele guardou algum pertence dos filhos, os olhos de Joca ficam marejados e com a voz embargada ele responde “não fiquei com nada deles, eu não guardo para não lembrar”.

KARINE DALLA VALLE

Essa foi a maneira que ele encontrou para seguir a vida e diminuir a dor da perda dos dois filhos. O Brasil, país do futebol e do carnaval, está em sétimo lugar na lista dos países com maior número

de homicídios, conforme o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela). No ano de 2012, 56.337 pessoas foram assassinadas. Esses dados fazem parte do Mapa da Violência 2014 que mostra o índice de 100

Morador tenta apagar lembranças para seguir a vida

à

Joca relata à Seu como perdeu

A dor da perda

países. Segundo dados da mesma pesquisa , na cidade de São Leopoldo, entre os anos de 2008 e 2012, foram assassinadas 420 pessoas. Destas, 51% eram jovens.

- DIOVANA DORNELES

HISTÓRIA DE VIDA

Tem sotaque nordestino entre a gauchada Marcela atravessa a rua empurrando o carrinho de bebê. Ela é mais uma das moradoras do bairro Vicentina, mas, diferente de muitos ali, não nasceu em São Leopoldo. Natural do Piauí, Marcelina Januário da Silva – ela prefere ser chamada de Marcela – mora no Sul há um ano. Veio para cá junto com o marido Airton Apolinário de Azevedo, que é caminhoneiro. Eles se conheceram em São Paulo durante um baile em um CTG. Logo no início do namoro, ela engravidou e teve seu primeiro filho, o pequeno Artur. Marcela tem 30 anos. Quando criança, ela e os cinco irmãos trabalhavam na roça, ajudando os pais Sebastião e Maria do Socorro. Mesmo com o trabalho de gente grande, ela nunca deixou de estudar.

saiu do à Marcela, Piauí com R$ 500

rumo a São Paulo. Hoje, vive no Vicentina com o marido e o filho Artur

KARINE DALLA VALLE

Cursou até o último ano do ensino fundamental. Aos 18 anos, saiu de casa para trabalhar como vendedora. Porém, ela queria ir para São Paulo. E foi. Chegou lá com apenas R$ 500,00, alugou um quarto e começou a trabalhar na copa do Clube Pinheiros. Ela passou cinco anos em São Paulo, saiu de lá com 28 anos, casada e com o filho Artur. Marcela lembra que a sua gestação foi difícil. “O Airton viajava muito. Passei minha gestação sozinha. Quando o Artur nasceu, ele demorou quase 15 dias para vê-lo”, explica. Além da apertada rotina de Airton, outro motivo também complicava a relação entre ele e Marcela: o caminhoneiro mantinha uma família no Rio Grande do Sul. A piauiense não se deixou

abalar por isso e também não desistiu do amor. Airton separou-se da outra esposa e trouxe Marcela para ser sua mulher. Marcela agora procura emprego, mas no bairro não conseguiu uma escola para deixar o filho. “Uma escolinha particular me cobrou R$ 480 para ficar com ele. Não tenho condições”, afirma. A escola de educação infantil só terá vagas ano que vem. Enquanto isso, a vizinha se dispôs a cuidar de Arthur para que Marcela possa trabalhar de faxineira. Mas ela quer um trabalho como vendedora para continuar estudando. “Um dia eu termino meus estudos e desejo fazer curso para ser segurança, esse é meu sonho”, conclui.

- DIOVANA DORNELES


ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / RS SETEMBRO DE 2014

EDIÇÃO

1

INSPIRAÇÃO

A perseverança que faz enxergar que desafiou seus limites, tornou-se multiparaatleta e iluminou a escuridão de seus dias

O

filósofo alemão Arthur Schopenhauer, certa vez disse que “todas as pessoas tomam os limites de seu próprio campo de visão, pelos limites do mundo”. Léverson Líbio Lehn tem 43 anos, há 21 ficou cego. A perda da visão mudou completamente o mundo de Lehn, mas não limitou sua vida. Pelo contrário. Segundo ele, mesmo com os obstáculos que enfrentou, passou a viver muito melhor. O sorriso estampado no rosto e sua expressão amistosa confirmam isso. Natural de Porto Alegre morou em Taquara até os cinco anos. Após o divórcio de seus pais, ele, suas duas irmãs e sua mãe foram para Sapiranga. Ficou lá até os 12 anos e depois foi para Gramado viver com o pai. “Sempre tive uma vida cheia de alegrias, amigos, e desde cedo eu era muito estudioso”, recorda. Com 22 anos, foi vítima de um assalto em Gramado. “Fiquei cego com um tiro. E por um erro médico, em uma cirurgia, perdi o olfato e o paladar”, conta Lehn. Na época, sua companheira o deixou. “Parecia que o mundo havia parado, foi complicado, não foi fácil. Mas percebi que não poderia parar de viver, de continuar buscando tudo o que sonhei pra mim”, completa. Decidido a não se deixar vencer pela dificuldade de viver em um mundo sem cores,

começou uma nova vida em Porto Alegre. A determinação e a perseverança foram suas melhores amigas. Aprendeu braile, fez curso de informática, de massoterapia e, também, de locutor. “Desde pequeno sonho em trabalhar com rádio”, confessa com empolgação e diz que suas inspirações no ramo são Cândido Norberto e Ruy Carlos Ostermann. Em 1995, Léverson voltou a morar com a mãe, dessa vez em São Leopoldo, na Feitoria. Está no bairro Vicentina há oito anos. “Sou muito grato a minha mãe, ela me ensinou tudo o que alguém deve saber sobre a vida. É uma pessoa maravilhosa” enaltece. Resolveu prestar vestibular para Educação Física, na Universidade Feevale em Novo Hamburgo. Classificou-se em quarto lugar. Na Feevale teve a ideia do projeto – aprovado pela coordenação do curso – de atividades físicas e esporte inclusivo para pessoas com necessidades especiais. Deu aulas de natação para integrantes da Associação de Deficientes Visuais de Novo Hamburgo. “Busco me aperfeiçoar no trabalho com pessoas com necessidades especiais, pois noto que há uma grande demanda e falta de Professores de Educação Física com conhecimento na área da inclusão”, destaca Lehn, que trancou o curso no quinto semestre, mas pretende conclui-lo em 2015. Léverson já gostava de esportes antes de perder a visão e por isso não foi tão difícil praticá-los após o incidente. Tornou-se multiparaatleta. Fez judô, natação, corrida de 100 metros, arremesso de dardos e discos. Participou de competi-

ARQUIVO PESSOAL

ções de natação em São Paulo, de judô, dos Jogos Escolares do Rio Grande do Sul (JERGS). Em sua estante coleciona 25 medalhas, entre ouro e bronze, que representam a conclusão de mais uma etapa vencida. Atuou como voluntário na Associação Leopoldense de Deficientes Físicos, e lá conheceu Rosemari Peres, ou a “paixão”, como ele prefere chamar. “Nos conhecemos há 14 anos e desde então sempre fomos parceiros no voluntariado. Há oito anos estamos

juntos, e o fruto desse amor é o Kassyus, nosso filho”, ressalta com carinho. Para ele, acompanhar a evolução da gravidez de sua parceira e o nascimento do filho foi um dos melhores momentos de sua vida. “Eu estive ao lado dela durante o parto e fiquei 40 minutos com o meu filho no colo, logo que ele nasceu. Nunca vou me esquecer disso”, lembra emocionado. Kassyus tem sete anos e sempre foi apegado ao pai. “Não contei pra

ele que eu era cego, deixei que descobrisse por conta. E ele me ajuda muito, é meu companheiro”, disse o atleta. Lehn pretende, um dia, morar na praia. E de tudo o que viveu até agora, leva consigo um lema: “Eu quero sempre mais. Nunca me contento com o que tenho. Sempre busco melhorar, me superar. Não perco o meu foco diante de qualquer tipo de preconceito”.

Com sua história de vida, Léverson serve de inspiração para a comunidade

à

de à Aumhistória homem

- BÁRBARA MÜLLER

EM PRIMEIRA PESSOA

Impressões de uma repórter

Sempre gostei de histórias que emocionam, que despertam sentimentos e, principalmente, que ensinam algo. Larguei o curso de Direito e fui me aventurar no Jornalismo para ir atrás desse tipo de narrativa. Talvez até por ser sentimental demais. Adquiri conhecimento (por mínimo que fosse) em todas as matérias que já fiz, nestes dois anos de curso. Mas conversar com o Léverson foi diferente. Cheguei na casa dele às duas horas da tarde, de um sábado ensolarado. Todas as perguntas anotadas, caneta, bloquinho e gravador a postos. Confesso que estava meio sem jeito e muito preocupada em deixa-lo à vontade. No entanto, ele foi tão receptivo e amistoso – sorte a minha –

ARQUIVO PESSOAL

que essas preocupações desapareceram nos primeiros minutos de conversa. Ambos estávamos confortáveis, o papo foi fluindo naturalmente. Ouvir a história do Levérson, saber que ele perdeu a visão jovem, não se deixou abater, foi atrás de todos os seus sonhos e hoje leva em sua bagagem uma série de conquistas, me fez perceber o quão capaz o ser humano é de alcançar aquilo que almeja. Não importa se é difícil, ou demorado. O que conta é o resultado final, a realização pessoal. Desistir é uma palavra que não existe no vocabulário dele, e, a partir de agora, nem no meu.

- BÁRBARA MÜLLER


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