Enfoque Vicentina 12

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Lucas Nizzola

Gabriel Scopel

Victor Thiesen

Futebol

Casal fomenta esporte na comunidade. Página 3

Transformação

Rosaura, líder comunitária, busca deixar o bairro mais bonito. Página 12

Empreendedorismo

Reciclagem une consciência ambiental e geração de renda. Página 16

ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / rs SETEMBRO DE 2016

EDIÇÃO

12

Thiago Borba

OLHAR INFANTIL CONHECENDO O BAIRRO PELAS HISTÓRIAS DAS CRIANÇAS páginas 14 e 15


2. EDITORIAL

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A pluralidade de um bairro

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om o propósito de trazer um pouco das várias personalidades que compõem a comunidade, a edição nº 12 do Enfoque Vicentina quer evidenciar para aqueles que residem no bairro, os diversos e diferentes personagens que contribuem para tornar a localidade um verdadeiro lar. É comum nos acostumarmos a certas realidades e não pararmos para analisar suas profundidades e o real significado em nossas vidas. Entre os residentes, alguns têm orgulho de morar na região desde quando surgiu, há mais de 30 anos. Outros chegaram recentemente e pretendem construir ou dar continuidade a história da família. Naquele pedaço de terra existem muitas gerações, todas buscando algum espaço ou buscando uma vida melhor numa comunidade tão esquecida pela grande mídia. Na tentativa de dar um olhar humanizado ao Vicentina, reunimos relatos de seus moradores e demos destaque às iniciativas que colaboram para o desenvolvimento da região. Além do mais, cidadãos que precisam reinventar sua rotina devido a limitações físicas ou psicológicas figuram entre as páginas desta edição. Instituições e projetos sociais também foram abordados pelos repórteres. Entre eles o Flamenguinho, mantido por um casal visando fomentar o esporte na comunidade. São atividades que tentam dar melhor qualidade de vida a quem reside por lá. Além disso,

chamamos a atenção para o principal refúgio de lazer e interação do bairro: o Parque do Trabalhador - uma área verde de entretenimento pouco utilizada na região. Apontamos ainda mudanças necessárias para o crescimento da comunidade como a segurança nas ruas ou o acesso dificultado à saúde e à educação.

Essas questões estão presentes na realidade de milhares de pessoas, mas que não deixam de apreciar a vida local. Um jornal produzido para que as crianças opinem sobre o lugar onde moram, o que elas acham que está faltando e, também, de que forma elas ajudam a transformar a história da comunida-

de. Procuramos desmistificar as ideias de senso comum de quem não vive na região, mostrar que, sim, no Vicentina há pessoas com histórias de vida surpreendentes e que buscam, diariamente, melhores condições de vida e, ainda, se preocupam em contribuir para uma sociedade mais justa. Bom passeio!

Anderson Guerreiro, Cassiano Cardoso, Eduardo Zanotti, Elizangela Meert Basile, Ellen Renner, Fernanda Bierhals e Júlia Ramona

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(51) 3591 1122, ramal 1329

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Avenida Unisinos, 950 – Cristo Rei São Leopoldo – RS Cep: 93022 750 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

PRÓXIMAS EDIÇÕES 13 Outubro / 2016 14 Novembro / 2016

Muitas belas histórias se escondem no cotidiano do bairro e precisam ser narradas

THIAGO BORBA

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade do bairro Vicentina, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é publicado a cada dois meses e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

EDIÇÃO E REPORTAGEM

Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Sonia Montaño Edição de textos: Anderson Guerreiro, Cassiano Cardoso, Daniela Tremarin, Eduardo Zanotti, Elizangela Meert Basile, Ellen Renner, Fernanda Bierhals e Júlia Ramona. Repor tagem: Anderson Guerreiro, Ariane Laureano, Carolina Lima, Carolina Zeni, Cassiano Cardoso, Daniela Tremarin, Denis Machado, Eduardo Brandelli, Eduardo Zanotti, Elizangela Meert Basile, Ellen Renner, Fernanda Forner, Fernanda Bierhals, Franciele Gabriela Wenzel, Graziele Iaronka, Guilherme Chaves, Guilherme Rossini, Jéssica Zang, João Arthur Moraes, Júlia Ramona, Juliana da Silveira, Karine Dalla Valle, Laura Gallas, Leonardo Ozório, Marcella Lorandi,

Marco Pecker, Matheus Alves, Paola Rocha, Priscilla Mella e Tiago Assis.

FOTOGRAFIA

Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: André Luis Michel Júnior, Artur Cardoso Colombo, Bibiana Faleiro, Caroline de Souza Tidra, Eduarda Galarça da Silva Alves, Elias Ambieda de Vargas, Fernando dos Santos Campos, Gabriel Aita Ost, Gabriel Appelt Nunes, Gabriel Bickel Scopel, Grégori de Moraes Soranso, Guilherme Petry Rovadoschi, Isaías Roberto Rheinheimer, Jéssica Carina Mendes dos Santos, Kellen Guaragni Dalbosco, Lucas Nizzola de Souza, Lucas Rafael Alves, Lucas Rodrigues Américo, Lucas Weber Lanzoni, Marcela Juliane Vargas dos Santos, Marcelo

Janssen Neri da Silva, Milene dos Santos Magnus, Murilo Dannenberg Martins, Natan Magri Cauduro, Nicole Thaís Roth, Rafaela Silveira Trajano, Rodrigo da Rosa Pereira, Thiago Gomes Borba, Verônica Torres Luize Pestana, Victor Dias Thiesen, Victória Rambo de Lima e Vitorya da Cruz Paulo.

ARTE

Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia Diagramação: Mariana Matté

IMPRESSÃO

Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS Tiragem: 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


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O futebol amador persiste no Vicentina através da relação entre o Flamenguinho, o bairro e seus dirigentes

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coloração rubro-negra não mente, a inspiração veio de um dos maiores clubes do futebol brasileiro: o Flamengo. Mesmo sem toda a fama e estrutura do clube do Rio de Janeiro, o xará que é carinhosamente chamado de “Flamenguinho”, faz com que a comunidade do Vicentina compareça em peso aos arredores do gramado para torcer pela equipe. Em dias de amistosos, cerca de 100 pessoas observam o time jogar. Já em jogos de campeonatos, o público pode chegar a 500 pessoas. Um número bem expressivo, se considerarmos a história recente do clube. Fundado em 20 de agosto de 1972, o Flamengo Futebol Clube costuma disputar campeonatos amadores da região. Participante assíduo dos torneios da LIMFA (Liga Interna Municipal de Futebol Amador), de São Leopoldo, também percorre todo o Rio Grande do Sul para jogar copas de futebol amador. Por trás de todo projeto, sempre existem pessoas envolvidas. No caso do Flamengo Futebol Clube, um casal é quem toma conta da equipe. Norsa José Alves de Lima e Elisabete Soares de Lima cuidam do clube oficialmente há mais de 15 anos. Norsa José Alves de Lima, apelidado de “Norsa do Flamenguinho” pelos torcedores do clube, já ajudava na manutenção do clube mesmo antes de ser declarado presidente do Flamengo Futebol Clube. Sempre teve uma identificação com a equipe, que assiste jogar há décadas. Hoje com 55 anos, além de presidir o clube, Norsa ainda ajuda com funções básicas para uma equipe esportiva, desde manutenção do gramado, passando pela administração financeira da equipe e

COMPROMISSO .3

Futebol, comunidade e paixão ainda jogando com o time. Sua esposa, Elisabete, auxilia-o na gerência do clube e em um ponto que ele considera muito importante: desenhar o uniforme do time. Ela é quem ilustra a primeira, a segunda, a terceira e ainda a quarta farda da equipe, todas inspiradas no Clube de Regatas Flamengo, um dos maiores times do Brasil. A paixão de Norsa José Alves de Lima pelo Flamenguinho co-

meçou cedo, cresceu assistindo aos jogos do time onde seus tios jogavam, sempre esteve envolvido com o time e com um fanatismo sem igual. Tal fanatismo é provado por atitudes, ele, além de todas as funções já ditas, também mantém a equipe financeiramente, por meio de sua empresa de venda de basalto. Ele e sua esposa bancam os uniformes, conservação do gramado, cuidados com a sede e também o tradicional churrasco pós jogo para todo o elenco do clube. “Nasci colorado, mas aprendi a amar o Flamenguinho”, explica. Esse amor não poderia ser melhor repassado para a comunidade, já que o time leva centenas de pessoas do bairro a assistirem seus jogos. Quando o jogo é fora de casa, ele também banca uma van caso precise, dá carona para jogadores e ajuda a organizar todo deslocamento de quem faz o Flamengo Futebol Clube. Todas essas ações são retribuídas pela comunidade, quando alguma partida se aproxima os moradores da região já começam a especular. “O pessoal aqui por perto fala a semana toda sobre o jogo, é lindo de se ver”, lembra. O clube tem tanta importância para ele que, quando questionado sobre o tamanho desse amor, a resposta é precisa “O Flamenguinho é como um membro da família”, emociona-se ao replicar. O campo onde a equipe joga

O campo, onde o Flamenguinho manda os seus jogos, é cuidado por Norsa (acima), presidente do clube. Tiago, jogador do time há sete anos, cresceu nesse gramado

é bem cuidado, por Norsa e seus auxiliares. Com as mãos marcadas pelo cal, ele afirma que toma conta do gramado todos os dias, esperando pelo próximo jogo.“É um trabalho de uma vida”, completa. O ano marcante do clube foi 2004, quando conquistaram o troféu de disciplina com a escolinha da equipe, algo que é muito trabalhado pelo Flamenguinho.“A rivalidade tem que ficar no campo, fora dele todos são amigos”, esclarece Alves. Seu maior rival é o Grêmio Atlético Tricolor, equipe também de São Leopoldo. Apesar de ser um clube amador, o Flamengo Futebol Clube possui suas regras. Só joga quem está na lista de jogadores da equipe. Quando precisam de novos jogadores, os próprios membros do elenco indicam nomes que são estudados por Norsa e Elisabete.

PALAVRA DE QUEM VIVE O CLUBE

O time do Vicentina, que já revelou um atleta para o Novo Hamburgo, conta com jogadores que moram no bairro, em sua maioria. Um dos zagueiros do clube, Tiago Soares, de 24 anos, joga há sete anos no Flamengo e sempre foi torcedor do clube. Ele que buscava as bolas que saíam do campo desde pequeno, tem um carinho especial pelo time.“Falamos e nos preparamos para o jogo durante toda a semana”, explica. Tamanho envolvimento do bairro é visto a cada final de se-

mana, “No sábado é a diversão, todo mundo vem olhar os jogos”, cita. Ele que também joga de volante, depende da vinda dos zagueiros aos jogos para exercer essa função. Um dos torcedores mais fanáticos do Flamenguinho, Vitor Kainan, de 15 anos, se diz apaixonado pelo clube desde criança,“Eu buscava as bolas desde criança, sempre acompanhei o time”, cita. Apelidado de “Alemão” pelos torcedores da equipe, já jogou campeonatos pelas escolinhas do Flamengo como zagueiro. Sobre o futuro, Vitor deseja continuar vestindo a camisa do clube por um bom tempo, “Quero jogar no profissional do Flamengo, é uma paixão imensa”, esclarece. Durante a semana ocorrem os treinos do time, ele também costuma participar.

PROGRAMANDO O FUTURO

O presidente Norsa deixa claro que pensa no “amanhã” do clube. Ele, que já encomendou telhas vermelhas e pretas para a sede da equipe, trabalha durante toda a semana na melhoria do seu time do coração. O cuidado com o gramado, as escolinhas do clube e o investimento financeiro fazem parte da tentativa de manter a equipe em dia. Inclusive um novo uniforme está sendo desenhado por Elisabete. O comprometimento de quem faz o clube tem tudo para perdurar por gerações, isso é visto no dia a dia da comunidade. Crianças usam o campo para se divertirem, acompanham os jogos do time e aprendem com seus familiares a apoiar o futebol local. Com o engajamento do Vicentina a apoiar o Flamenguinho, essa relação cada vez mais se fortalece, através, principalmente, das atitudes feitas por quem comanda o clube e também, é claro, pela paixão natural que o brasileiro costuma ter quanto ao futebol. Tiago Assis Victor Thiesen


4. FOCO NO GOL

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Um golaço contra as drogas Referência para a garotada, Jairo considera-se orgulhoso pelo que faz

Jairo compartilha sua história voluntária no combate às drogas, movida pelo futebol

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e segunda a sexta-feira, motorista. Aos sábados, referência para os jovens do bairro Vicentina, apaixonados por jogar futebol. Tal rotina semanal é conduzida pelo morador local, Jairo Lima. Aos 45 anos, ele desempenha o trabalho de coordenar voluntariamente a escolinha de futebol da Sociedade Esportiva Recreativa Beneficente Cultural Alambique Leopoldense. As atividades têm início nas manhãs de sábado, às oito horas, estendendo-se até ao meio dia, no Arapuca da Baixada – conhecido também por ‘campo do Alambique’ – mobilizando a garotada de até 13 anos, categoria com a qual trabalha. Neste período, Jairo realiza diversos fundamentos de cunho físico e psicológico e que vão além dos princípios do espírito esportivo, visando também o combate a um dos grandes problemas sociais existentes: o tráfico de drogas. “O mundo, hoje em dia, está em uma situação bastante crítica, em que as crianças e os adolescentes acabam tendo muito contato com as drogas. Então, eu enxergo no campo de futebol uma grande alternativa para que eles não entrem nessa realidade e, consequentemente, não prejudiquem suas infâncias e seus futuros”, reflete Jairo. Outro aspecto que destaca são as histórias de superação. Pai de Rodrigo e Guilherme, Jairo lembra quando um de seus alunos precisou conviver com a perda do pai após um acidente. “Eu nunca vou me esquecer disso. O menino

estava se sentindo perdido. Foi quando o aconselhei a seguir conosco, jogando futebol, como forma de ajudá-lo, também, a tocar a vida. E, de fato, isso o ajudou bastante”, rememora. Nascido e criado no Vicentina, o motorista entrelaça seus caminhos com os do futebol há mais de três décadas, praticando o esporte desde os tempos de criança. Juntamente com familiares e amigos, fundou, há três anos, o Família Lima Futebol Clube, em que tem a oportunidade de jogar; ele é volante. Desde 2009, trabalha com as escolinhas, coordenando anteriormente as categorias do Grêmio Atlético Tricolor, considerada outra referência do futebol amador na região. Desde o início do ano, está à frente do Alambique Leopoldense, cujos recursos para a realização das atividades são escassos. Conforme o coordenador, maior parte da arrecadação de incentivos ocorre por meio do apoio prestado pela comunidade e familiares. “Felizmente, tenho amigos que me auxiliam. Costumo ligar para eles quando preciso de ajuda e estão sempre à disposição. No Vicentina, há um mercado que nos apoia com lanche. Minha própria esposa, Marinês, já nos ajudou a preparar a merenda. Eu me encarrego de levar os uniformes e coletes”, explica. Sem obter lucros ou qualquer compensação financeira pelo trabalho realizado, Jairo ressalta a maior recompensa extraída de seu esforço. “Eles estão comigo, jogando futebol, ao invés de estarem na rua. Isso por si só é gratificante”, conclui. Leonardo Ozório Verônica Luize


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VOZ DA COMUNIDADE .5

Atividades físicas são a diversão do bairro Moradores relatam ter apenas o Parque de Recreação do Trabalhador para relaxar e praticar esportes

“Q

Luciane e Camila, contaram que seria muito bom ter

80 e 90 em que o espaço era visto como modelo e trazia alegria aos moradores. Luciano Vallawer Martins, 33 anos, cunhado de João, reconhece as melhorias que o parque teve no último ano, mas conta que o problema está justamente em ele ser a única opção para quem busca um espaço de lazer em um bairro com mais de 13 mil moradores. Enquanto o chimarrão passa de um para outro, mais um ponto acerca do local sur-

ge: a questão da segurança. Luciano diz não se sentir seguro para frequentar o parque por conta de episódios de violência que aconteceram lá. Isso faz com que a única alternativa de lazer no bairro acabe deixando de ser uma opção. Não por motivos de estrutura, mas por razões que nos fazem voltar ao ponto de partida do que são necessidades básicas para se viver em qualquer lugar. Talvez seja esse um dos motivos que faça a roda do chimarrão na casa de João acontecer dentro do pátio, atrás das grades do portão e não em um local aberto como o Parque do Trabalhador.

MELHORIAS AINDA SÃO NECESSÁRIAS

Moradores contam que apesar da recente revitalização do parque, ainda é necessário mais. Durante a roda de chimarrão na casa de João outros temas surgem sobre opções de lazer no Vicentina: a segurança

JÉSSICA SANTOS

POR DIFERENTES ESPAÇOS PARA DIVERSÃO

dras”, explicou Camila. Na família de João Pe dro Delavi Martins, 56 anos, aposentado, o pensamento não é diferente. Além das necessidades básicas, como saúde e segurança, eles sentem falta de opções de lazer e espaços culturais. O papo flui na roda de chimarrão, que acontece no pátio da casa antes do almoço de sábado. As lembranças dos tempos de ouro do parque surgem e vêm à tona as memórias das décadas de

FERNANDO CAMPOS

uero ver coisas boas sobre o nosso bairro, notícias tristes já existem aos montes”. Essa foi a tímida resposta da moradora do bairro Tamires Andiele Santos de Oliveira, 18 anos, ao ser questionada sobre o que gostaria de ler nos jornais a respeito do lugar onde mora há 17 anos. Ela, que estava acompanhada da amiga Suelen Nascimento de Oliveira, de 19 anos, operadora de telemarketing, no momento da entrevista, garante que gostaria que outras pessoas tivessem a oportunidade de conhecer um pouco do que realmente é o Vicentina. No bairro, a prática de esportes é uma das principais atividades dos moradores nos horários de folga. Além disso, a comunidade possui uma das maiores áreas verdes do município, o Parque de Recreação do Trabalhador, um orgulho para a maioria dos que ali vivem. Em uma das centenas de ruas do Vicentina encontramos a família da Camila Lima dos Santos, 19 anos, nascida e criada no bairro. Ao entrar pelo portão nos deparamos com uma animada conversa sobre as competições de futebol que ocorreriam durante a tarde, no Flamengo Futebol Clube (Flamenguinho), no campo da sede a poucas quadras da casa de Camila. “Aqui a gente não tem muita opção de lazer, só o esporte mesmo, principalmente o futebol. Minha perna tá assim por causa dele”, contou a menina, apontando para a perna quebrada durante um jogo de futebol de salão. A mãe da garota, Luciane Lima, 38 anos, trabalha fazendo faxinas diariamente. Ela, assim como a filha, nasceu e foi criada no Vicentina e admite que essa sempre foi a realidade. A única opção de entretenimento são os jogos. “Temos vários campinhos por aqui, a criançada se reúne no fim do dia para jogar. É uma brincadeira que faz com que eles esquecem por um tempo a insegurança”, relata.

outras formas de entretenimento para os moradores, segundo elas, os campos não suprem a necessidade de toda a comunidade. “Quando queremos fazer algo diferente precisamos procurar outros lugares”, afirma Camila. Um dos espaços citados por elas foi o Parque do Trabalhador. “Lá temos muito espaço, além das pracinhas para as crianças. Nos finais de semanas, geralmente vamos para lá, tomamos chimarrão e jogamos nas qua-

Com 41 anos desde sua fundação, o Parque de Rec re a ç ã o d o Tr a b a l h a d o r, foi municipalizado no ano passado. Os mais de 80 hectares de área contam com quadras de futebol de campo e salão, basquete, vôlei, pista de caminhadas e corridas, praça com brinque dos e muita área verde para toda a comunidade. Moradora há 45 anos do Vicentina, Vera Lucia de Lima, viu o parque ser criado, abandonado e agora o vê se transformando novamente desde que a Prefeitura assumiu sua manutenção. “Eu moro bem na frente do parque e vou lá sempre que posso. Inclusive ajudo na manutenção. Às vezes planto umas flores ou faço a capina de alguma parte do lugar. Se a gente usa tem que ajudar a cuidar, né? ”, salienta a faxineira. Mesmo o Parque do Trabalhador sendo o único lugar de lazer do Vicentina, de acordo com os moradores, ainda é preciso melhorar a qualidade e a diversidade de opções para a comunidade. Em alusão à letra da música “Comida” dos Titãs, o Vicentina não quer só comida, quer diversão e arte, quer saída para qualquer parte. Eles querem opções culturais, de lazer e sentir segurança para viver tudo isso. DanielA Tremarin PAOLA ROCHA FERNANDO CAMPOS JÉSSICA SANTOS


6. OPERAÇÃO PET

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Estendendo a patinha Moradora do bairro Vicentina dedica seu tempo para cuidar dos cachorros de rua do bairro

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achorros abandonados pelas ruas, machucados e com fome é uma cena muito comum nas ruas do Vicentina. Contudo, eles não estão totalmente desatendidos, a iniciativa da dona de casa Rochele Tatiane Mendes, 31 anos, atende a demanda dos melhores amigos do homem. “Na calçada, eu deixo um pote de comida, que contém ração, um pouco de arroz e molho, às vezes é o que sobra da comida aqui de casa, e também deixo um balde velho com água para eles”, relata a moradora. Mas, a moradora, que está no bairro há 14 anos não está sozinha. Ela diz que quem começou a alimentar e cuidar dos cachorros foi a sogra, dona Maria Odina, há uns 3 anos. Mas foi a Rochele quem deu continuidade na ação e foi ideia dela a iniciativa de começar a levar os animais mais doentes e machucados no veterinário e a cuidar me-

lhor dos animais de rua. “Os cachorros que eu alimento já sabem o horário da comida e ficam aqui na frente de casa esperando. Mas tem vizinhos que se aproveitam disso e deixam de alimentar os animais deles, que também vem aqui comer, eu percebo os que têm dono, pois dá para ver que ao menos são bem tratados”. relata a moradora Quando consegue, Rochele leva alguns desses animais ao veterinário e conta com a ajuda do Centro Municipal de Proteção Animal de São Leopoldo (CEMPA) para castrar esses animais, evitando, assim, que não tenham filhotes e, consequentemente, também venham a ser maltratados ou passem fome. “Aparecem cachorros e gatos em situação precária por aqui, bem machucados, com sarna, alguns estão grávidos”, diz a dona de casa. Depois de tratados, os animais são novamente soltos na rua, pois Rochele não consegue abrigar todos. Mas não são apenas cachorros e gatos de rua que a Roche-

le ajuda. Ela conta que uma vez uma vizinha foi assaltada e que levaram todo o dinheiro que ela tinha para passar o mês e por causa disso o cachorro dela ia ficar sem ter o que comer também, então a moradora além de ajudar a vizinha com necessidade conseguiu arrecadar, na vizinhança, 30 quilos de ração para que o animal não ficasse sem comer. “Além de ajudar à vizinha, eu chamei o CEMPA e arrecadei jornais, papelão, potes de ração para ajudar também o Canil Municipal de São Leopoldo”, lembra Rochele. Sempre que consegue, a moradora tenta arrumar um lar para esses animais, levando para o CEMPA ou encontrando alguém que queira adotar. Ela conta que uma vez chegou até a comprar um poodle que julgava não ser muito bem tratado pelo dono original. O Homem não queria dar o animal, então a moradora ofereceu um dinheiro pelo pet e o levou para casa. Além desse poodle, ela conta a história de outros dois cachorros que ela resgatou e adotou, e que cuida como se fossem da família.

Yasmin Mendes, 6 anos, filha mais nova de Rochele ainda brinca dizendo que a Rochele é vó de um dos cachorros. Esses dois cachorros são o Bidu e a Belinha. “Uma noite, estávamos passeando de carro quando vimos duas senhoras largando a Belinha na rua, fiquei com pena e pedi pro meu marido parar o carro, na hora que eu abri a porta ela já foi entrando e começou a lamber a minha filha, então decidimos levar para casa”, lembra a dona de casa. “Outro que eu resgatei foi o Bidu. Fiquei sabendo que a CEMPA estava doando filhotes, fui direto busca-los. Ele tinha um irmão, mas outra família já tinha levado”, diz a moradora. Atualmente, Rochele tem cinco gatos e quatros cachorros adotados. Ela diz que, se pudesse, adotava mais, pois ama animais, não gosta de vê-los sofrendo abandonados e machucados. “Teve uma vez em que uns quatro cachorros aqui da rua foram envenenados, mas felizmente algum vizinho denunciou isso e a sociedade protetora dos

animais já resolveu esse problema, agora não se vê mais isso aqui”. Afirma a moradora. Quando estava terminando de conversar com a Rochele, o sogro dela, o Sr. Joel Mendes veio denunciar que tem um cachorro que fica o dia todo preso em uma casinha, mas que está abandonado e que ele só recebe alimento e água quando alguns vizinhos passam por lá e dão para ele. Abandonar e maltratar animais é crime, o artigo 32 prevê que, para quem maltrata animais, uma pena de três meses a um ano de prisão e multa, aumentada de 1/6 a 1/3 caso o animal morra. O artigo 164 do Código Penal prevê como crime o abandono de animais, ou quem coloca ou os deixa em propriedade alheia. Com pena de detenção de 15 dias a 6 meses de reclusão ou multa. Qualquer ato de maus-tratos aos animais deve ser denunciado na Delegacia de polícia mais próxima ou ligue para a polícia pelo 190 e deve aguardar no local até que a situação seja resolvida. Eduardo Zanotti Rafaela Trajano

Belinha, um dos cachorros adotados por Rochele

Yasmin segurando o Bidu, outro cachorro adotado por Rochele

Dona Maria Odina servindo os potes com comida para os cachorros


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RELACIONAMENTO .7

O coronel de São Leopoldo vai casar gabriel nunes

De casamento marcado, o casal acerta os últimos detalhes para a cerimônia

P

pouco esquecida, e eu com 90 anos tenho que lembrar as coisas pra ela”, disse rindo. O próprio Seu Delly também sofreu com alguns problemas nesses 17 anos, o principal deles foram os cálculos na bexiga. O aposentado diz que eles apareceram há alguns anos e quase o mataram. Nesse ano, ele foi internado no Hospital Centenário, e após passar mais de uma semana numa cama, ele acabou sendo transferido para um hospital particular, que realizou um procedimento cirúrgico, extraindo as pedras de sua bexiga. Ele diz que se não fosse a fala de Dona Celina com Deus, não teria se salvado. “A reza dessa mulher é forte”, comentou seu Delly.

A cerimônia religiosa acontecerá na Igreja Assembleia de Deus, em Sapucaia do Sul

Nos primeiros anos de relacionamento, seu Delly sentia muita falta de sair sozinho para os bailes. Num fim de semana que a companheira estava na praia de Mariluz, no litoral gaúcho, o aposentado resolveu que iria dar uma “escapadinha”. “Eu tentava sair, mas a dor na bexiga parece que só piorava, e quando resolvi sair, mesmo com dor, meu carro estragou. Só pode ter sido reza dela, só pode”, falou o aposentado, sendo complementado com um sorriso fácil da futura esposa. Após 23 anos de casada, Dona Celina teve dois rompimentos que marcaram a sua vida: o final de seu casamento com o seu antigo marido e o final do contato com a Igreja Católica. A

aposentada tomou a decisão de se separar por seu marido sempre estar alcoolizado, resultando também no afastamento da Igreja Católica. “Quando eu mais precisei, os representantes de Deus na Igreja não me deram o apoio que precisava”, explicou, se referindo aos padres. Já com mais de 50 anos, Dona Celina se viu sozinha. Foi quando surgiu o convite da cunhada para ir a um baile. Lá, viu um rosto conhecido e perguntou a ela: aquele não é o Delly da Feira Campina? Sua cunhada confirmou. Na hora, o que lhe veio à cabeça foi que agora poderia ter um amigo, e prontamente foi conversar com ele. Logo de cara, se deram muito bem. Nesse mesmo baile, conversaram, dançaram, e Marcelo Janssen

ara quem pensa que relacionamento a distância é coisa de gente jovem está muito enganado. Ou não? O jovem Delly da Feira Campina, de 90 anos e a jovem Celina Gonçalves de 69 estão de casamento marcado, mas os planos estão traçados: cada um continuará morando na própria casa: ele em São Leopoldo, ela em Sapucaia do Sul. Muito religiosa, a aposentada não falta a nenhum encontro na Igreja Assembleia de Deus, em Sapucaia do Sul. Com isso, em todas as quartas-feiras ela conta com a presença do companheiro nos encontros.“A palavra de Deus é muito importante para mim, e o Delly sempre me acompanha nesses momentos”, diz Dona Celina. O encontro seguinte da rotina dos dois acontece nos finais de semana, em São Leopoldo, na casa do aposentado. Segundo o casal, o tempo que passam longe um do outro é algo necessário, e que só faz eles se gostarem mais. “A nossa vida é uma maravilha. Cada um tem sua casinha, e quando estamos juntos é só passear e aproveitar”, comenta seu Delly. Nesses 17 anos, os dois passaram muitos momentos importantes juntos. Há 4 anos, alguns problemas de saúde começaram a surgir na vida do casal. Dona Celina foi acometida por câncer de mama e útero. “Não foi nada fácil, mas eu rezei muito e fui agraciada com a vida. Eu tinha certeza que ia conseguir me recuperar”, disse a aposentada. O tumor no útero foi retirado a partir de um procedimento cirúrgico. Já o tumor na parte inferior das mamas, que já estava ocasionando metástase, sumiu a partir da força de suas orações. “O médico me mandou passar o fim de ano em casa com a minha família, pra poder aproveitar os últimos momentos com eles. Mas quando eu voltei, o tumor tinha sumido e eu estava curada. Foi a oração que me salvou”, afirmou Dona Celina. No entanto, dois anos depois, voltou a sofrer, agora com um acidente vascular cerebral (AVC), que devido a gravidade, fez com que o médico que cuidava de seu caso falasse que ela deveria ir para casa “morrer tranquila”. Seu Delly conta que a família procurou um novo cardiologista, que reverteu o quadro clínico da companheira. “Ela só ficou um

se divertiram muito. Dias depois, se encontraram em outro baile, onde só não se pode dizer que foi amor à primeira vista, pois os dois já se conheciam da época em que Seu Delly era o proprietário da Feira Campina, no bairro do mesmo nome, próximo ao Vicentina. Na época, Dona Celina tinha 8 anos de idade - e ia até a feira ajudar os pais no trabalho . Ou seja, as voltas do destino realmente aconteceram, e como elas giram em torno do próprio eixo, voltaram para o mesmo lugar, fazendo os dois se encontrarem e ficarem juntos. A aposentada conta que quando o relacionamento começou, Seu Delly não era fácil.“Eu chamava ele de Coronel de São Leopoldo, por causa da pompa que ele carregava”. O aposentado em seguida comenta rindo que “já foi muito espertalhão, mas que agora é um anjinho”. No entanto, os anos foram se passando, e depois de passarem por tanta coisa juntos, Dona Celina viu que era necessário dar um passo a frente: era a hora de casar. “Estávamos muito felizes, mas queria firmar esse compromisso, para dar uma resposta a Deus e à minha família”, comentou. Porém, havia um problema: ela tinha medo de que o Delly da Feira Campina voltasse a ser o Coronel de São Leopoldo. Casal moderno como tal, que vive um relacionamento de 17 anos, mas não mora junto, ela fez o caminho inverso e pediu o Coronel em casamento. “Só Deus sabe como eu rezei, e fui abençoada com um Sim do amor da minha vida”, exclamou Dona Celina. Aos 22 dias do mês de agosto de 2016, Celina Gonçalves, 69 anos, casou-se com Delly Francisco de Oliveira, 90 anos. No entanto, essa foi a formalidade registrada para o casamento “no Civil”. Já a cerimônia religiosa acontecerá na Igreja Assembleia de Deus, frequentada pelos dois, em Sapucaia do Sul, no dia 10 de setembro. Após a cerimônia, acontecerá uma grande festa, com mais de 200 convidados entre amigos e familiares. No final de semana seguinte, a viagem de “Lua de Mel” será para a praia de Mariluz, onde vão continuar aproveitando suas vidas juntos, como já fazem há 17 anos. No fechamento desta edição, o casamento e a lua de mel já tinham acontecido. Felicidades ao casal. Guilherme Rossini GABRIEL NUNES Marcelo Janssen


8. JUVENTUDE

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Pequenos cidadãos O engajamento dos jovens por meio do escotismo demonstra que é possível acreditar em um futuro melhor

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o Vicentina, o brilho forte do sol motivou a família de Luciane de Melo Berghahn, 34 anos, a abrir as janelas para organizar e limpar a casa. Ela e o marido Fernando Edemar Berghahn, 38 anos, moradores da região há mais de duas décadas, são pais de Julia, 14 anos, e de Gabriel, 12. Os irmãos, estudantes do sétimo ano do Instituto Estadual Parque do Trabalhador, participam do grupo de Juniores e Adolescentes (JUAD), que tem como objetivo formar cidadãos engajados com a comunidade, segundo a organização Escoteiros do Brasil. A partir da necessidade de oferecer atividades atraentes a crianças, adolescentes e jovens, a iniciativa buscou referências nos princípios e nas propostas do Escotismo, que atua no desenvolvimento físico, moral e intelectual do jovem. De acordo com a organização Escoteiros do Brasil, o movimento educacional de escoteiros visa formar

Participantes do JUAD, os irmãos Julia e Gabriel são orgulho para a família. Eles colecionam aprendizados, experiências e medalhas conquistadas na Copa de Futsal

cidadãos comprometidos em construir um mundo melhor por meio de um sistema de valores, como honra, fraternidade, lealdade, responsabilidade, respeito e disciplina.

Formação de bem

Encorajada por uma amiga e vizinha que já participava do JUAD, Julia tem compromisso com o grupo aos sábados há seis anos, quando ingressou na classe Júnior 2, direcionada para as idades entre 10 e 13 anos. A menina, que já se considerou uma pessoa tímida, hoje tem a consciência de seu crescimento e desenvolvimento como pessoa. “No JUAD eu aprendi a me comunicar melhor com as pessoas. Antes de tinha medo de levantar a mão em sala de aula e tirar as minhas dúvidas com os professores. Se não entendia alguma coisa, me prejudicava por não perguntar. Hoje, não, eu pergunto tudo, qualquer coisa”, confessa a jovem. Para que o irmão Gabriel tivesse interesse pela a iniciativa não foi preciso muito esforço. O caçula participa do projeto desde os sete anos, idade mínima que pertence a classe Júnior 1 e reúne crianças com idade entre os 7 e os 10. O menino,

mais quieto que a irmã, destaca as diversas experiências que o grupo de Juniores e Adolescentes proporciona para a sua vida. “Os passeios, os acampamentos e as viagens que a gente faz são muito legais. A gente já viajou para várias cidades aqui no estado e também já foi até para Santa Catarina”, relembra o garoto que nunca tinha atravessado as fronteiras gaúchas e nem se hospedado em um hotel. Mas não são apenas os irmãos que se sentem felizes por fazer parte do JUAD. A mãe Luciane está realizada com a educação dos filhos e destaca o quanto acredita na iniciativa que não é aberta apenas para famílias frequentadoras da igreja Batista. “Sinto que eles estão no caminho certo. É ótimo ver os filhos participando do grupo porque lá eles ensinam, principalmente, a conviver com as diferenças e

isso é muito bom”, afirma a autônoma, que não deixa as crianças faltarem à iniciativa mesmo nos dias de chuva.

Família de ouro

Outra ferramenta social que o grupo de Juniores e Adolescentes utiliza para a formação das crianças e jovens é a prática do esporte. Anualmente, a iniciativa realiza a Copa de Futsal, proporcionando a interação entre jovens de diferentes idades e diversas localidades, como Novo Hamburgo, Ivoti e Sapucaia do Sul – cidades onde o JUAD possui base. Na sexta edição da copa, realizada em agosto deste ano no Parque do Trabalhador, Julia e Gabriel conquistaram algumas vitorias. Competindo contra outras bases, porém na mesma faixa etária, os irmãos se consagram campeões, garantido ainda mais orgulho

aos pais Luciane e Fernando, que além de se emocionar ao lembrar da consagração dos filhos, registaram tudo pela câmera de seus smartphones. Já a menina Julia, ao recordar do torneio, se sente finalmente satisfeita com seu desempenho ao longo das competições. “Eu e a mãe já estávamos ficando tristes, porque eu só ganhava segundo lugar. E agora eu ganhei o primeiro”, diz a jovem que coleciona medalhas. Com o uniforme, a cartilha e a bíblia em mãos, os irmãos Julia e Gabriel carregarem no peito o espírito de uma geração vitoriosa e o desejo de se tornarem cidadãos de bem, buscando transformar o futuro do Vicentina – e quem sabe do país – com a disciplina do escotismo. Júlia Ramona Guilherme Rovadoschi

Cidadania e fé por meio do escotismo Vitória Correa Pires tem 15 anos, é estudante do nono ano do ensino fundamental e desde os sete frequenta o JUAD, grupo de Juniores e Adolescentes. Para a jovem, participar do grupo de escotismo oferecido foi e continua sendo fundamental para o desenvolvimento pessoal. “Vejo muitos conhecidos que saíram do grupo e passaram a tomar caminhos errados. Vendo isso, percebo a importância que o escotismo tem para mim”. Nas reuniões, os jovens aprendem a se tornar adultos, como diz a própria Vitória. Isso porque eles têm lições de cidadania, saúde, aptidões domésticas e artísticas com oficinas de teatro e dança. Além disso, a religiosidade é levada a sério. “Os líderes de cada classe, são três no total, propõem desafios de leitura da Bíblia. Todos os dias temos que ler um versículo em vez de ficar conversando nas

redes sociais, por exemplo”, explica a adolescente. Além de frequentar as reuniões, os integrantes visitam asilos, orfanatos e vendem alimentos para arreVitória exibe cadar fundos a fim as medalhas de que o trabalho conquistadas ao continue.“Dessa forlongo das etapas ma a gente distribui pelas quais passou no o bem. É disso que grupo de escotismo mais gosto”, reforça a escoteira. Há quatro meses o pai de Vitória morreu vítima de um infarto. Ainda emocionada ao tocar no assunto, a adolescente afirma que o grupo lhe deu força para que ela conseguisse conviver com a perda.“Somos uma família. Todos conversam se apoiam. Essa é uma das partes mais bonitas”. Atualmente morando apenas com a mãe, que é massoterapeuta, a estudante dedica os sábados de tarde para as reuniões do escotismo. O grupo também viaja para encon-

tros e retiros e realiza passeios ciclísticos pela região. “É legal porque temos a oportunidade de fazer coisas úteis e que nos ensinam algo de bom. Dessa forma evitamos caminhos errados”, afirmaVitória.

Namoro só depois dos 17

O Juad prega valores cristãos que os jovens aprendem a seguir desde cedo. Tanto que, caso integrantes com menos de 17 anos formem casais, precisam ou esperar até completar a idade ou sair do grupo. “Não é que isso seja uma norma, mas é um consenso entre os integrantes”, diz Vitória. Quando questionada se ela concorda, afirma: “agora não penso nessas coisas. Tenho que pensar na escola e no meu futuro. Deus sabe à hora certa das coisas”, conclui. JÉSSICA ZANG ANDRÉ MICHEL


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016 |

DEDICAÇÃO .9

Lutar pela educação dos filhos Aulas em turno integral para alunos de 0 a 6 anos foram garantidas por Conselho de Pais do Juadi

A

s iniciativas são inúmeras quando pensadas para um bem comum, ou, então, para as pessoas que amamos. Para um grupo de pais do Centro de Educação Infantil Juadi, no bairro Vicentina, uma das atitudes foi lutar pela educação dos filhos. Após uma resolução da Prefeitura do município para retirar o ensino integral dos alunos de 0 a 6 anos, os responsáveis das crianças se uniram e tiveram a ideia de criar o Conselho de Pais. Iniciativa essa que movimenta o âmbito escolar não só pela inserção da família na rotina de estudo dos filhos, mas também auxilia com recursos para a instituição. Há 12 anos residindo na localidade, a secretária Vanice Nunes Campos, 33 anos, sempre se preocupou com a educação dos filhos. Pietro de 9 anos, teve sua educa-

ção básica baseada nos princípios metodológicos da instituição. Já o Renan, 4, frequenta desde os 11 meses o Juadi. O desenvolvimento intelectual dos filhos fez com que Vanice e mais três mães lutassem pela permanência do estudo integral das crianças. “Confiança é a palavra chave para esse envolvimento. Sabíamos que aqui eles estariam bem cuidados”, atesta, alegando que Renan seria transferido para um colégio no Centro de São Leopoldo que apresentava condições precárias. “Escolas sem estrutura para receber as crianças, banheiros precisariam ser reformados e sabíamos que a prefeitura não conseguiria arcar com todos os reparos a tempo. Além disso, a pracinha dos pequenos era junto com a quadra de esportes dos alunos grandes”, explica a secretária.

comUNIDADE E escola

Ter um local apropriado para o ensino das crianças no Vicentina movimentou moradores no

período de um ano. O Centro de Educação Infantil Juadi, inaugurado em 2010, foi construído de forma voluntária por moradores do Vicentina. Na linha da colaboração, o Conselho é formado por quatro pais que movimentam e criam

Ou seja, na primeira semana do mês os alunos levam nas agendas um envelope e os pais podem fazer contribuições espontâneas de dinheiro. Esse recurso é um apoio para o pagamento de algumas contas da escola”, frisa a mãe de Pietro e Renan. Ações dos pais como esta tornam o colégio um espaço atraente para o desenvolvimento das crianças. O jeito esperto de Renan reflete muito com aquilo que ele aprende de segunda a sexta no Juadi. “Lá na escola eu brinco no pátio, com os colegas no Bingo das Letras, porque lá não tem desenho”, conta ele com os olhos vidrados na televisão, enquanto assistia “O incrível Mundo de Gumball”. Para Vanice, ter a certeza de que seu filho está sendo bem acompanhado no colégio próximo de casa, é o que motiva ela a seguir no Conselho de Pais lutando pela educação das crianças Apesar de trabalhar do bairro e São Leopoldo. “Ali em consultório médico, Vanice se dedica sabemos que eles estão sena criação e educação guros e aprendos filhos sendo diversas ações, mas voluntária na escola d e n d o. E m também, segundo tudo que puVanice, cerca de 10 pessoas au- dermos ajudar estaremos junxiliam com as atividades. “Recen- tos”, atesta orgulhosa. temente criamos o‘envelope’, que Laura Gallas busca arrecadar valores para ajuCaroline TidRa dar na manutenção da instituição.

Projetos Sociais

Fé e educação de mãos dadas A humildade é uma virtude dela, mas não por viver em uma casa simples – com quatro filhas – e precisar contar cada centavo para pagar todas as contas no fim do mês. E sim, por considerar um valor essencial na vida das meninas. Com um sorriso tranquilo e de palavra sincera, a operadora de caixa Jéssica Fernandes de Borba, 23 anos, não hesita em afirmar que a educação das meninas é o princípio básico do dia a dia dentro da pequena casa do bairro Vicentina. . Desta forma, a progenitora acredita que o Centro de Educação Infantil Juadi, o qual oferece uma proposta pedagógica diferenciada, poderá ter papel fundamental na formação profissional e pessoal das meninas. Nicolly Beatriz de Borba Santana tem dois anos – Emilly, 6, Kamilly, 5, e Anielly, apenas 10 meses. Simpática, já esboça algumas palavras. “Ó tia, é um trabalhinho de peixe”, diz, com uma doce ingenuidade ao mostrar um. Segundo Jéssica, atualmente dedicando seu tempo integral para cuidar da casa e das meninas, a

pequena Nicolly começou a ser instruída quando passou a frequentar o Juadi. “Eu conheço o trabalho do Juadi desde os meus 8 anos, momento em que ajudava muito nos projetos”, relata Jéssica. “Eu vejo ali mais um modo da minha filha ter princípios religiosos e de vida. Sei que no Juadi ela está em boas mãos”, completa. A instituição utiliza alguns passos no processo de ensino e aprendizagem dos pequenos. Entre eles estão o raciocinar, o relacionar e o registrar. “Eu gosto de tudo lá, principalmente pelos valores trabalhados com a minha filha. Ela não sabia falar uma palavra, mas agora chega em casa e fala um monte”, conta Jéssica, afirmando que Nicolly vem se desenvolvendo cada vez mais e toda a semana aparece com um desenho, se comunicando por gestos também.“Esse é um trabalhinho de desenhar”, salienta a menina ao me entregar uma folha cheia de desenhos coloridos. O Juadi segue princípios bíblicos, como o caráter, a soberania, a união, o semear e colher, sem restrição de cor, raça ou credo

religioso para proporcionar educação às crianças. Nas palavras da coordenadora dos professores no Juadi, Cassiana dos Reis, o espaço quer fazer dos pequenos futuros cidadãos de bem e com valores fundamentais. “É importante lembrar que a escola e a família andam juntas, tanto que, uma vez por mês é trabalhado um tema em cima de um princípio bíblico, onde toda a família é convidada a participar com as crianças, seja através do teatro, leitura ou exposições”, explica.

Para a mamãe Jéssica, esses valores trabalhados em sala de aula só reforçam a importância da dedicação e da fé para trilhar um caminho melhor para suas pequenas. “O conselho de uma mãe é o mais importante na vida de uma menina. E é com as influências da igreja que eu vejo um futuro melhor pra ela”, finaliza Jéssica, recebendo um beijo de Nicolly. Carolina Zeni Victoria Lima

Conheça os projetos sociais desenvolvidos pela igreja Ministério Batista Cristo é Vida (MBCV): Grupo de Juniores e Adolescentes (JUAD): com o objetivo formar cidadãos, a iniciativa propõe gratuitamente diversas atividades com práticas escoteiras que contribuem para a humanização, a socialização e a educação de crianças e adolescentes. Centro de Educação Infantil Juadi: creche e pré-escola de período integral, a instituição oferece uma proposta de ensino diferenciada baseada nos princípios bíblicos, atendendo, hoje, 48 crianças, de 0 e 6 anos, entre ensino público e privado.

Jéssica acredita que instituto Juadi terá papel fundamental na educação das filhas


10. Serviços Comunitários

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ELIAS VARGAS

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NICOLE ROTH

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Moradores apelam por População que reside próximo ao Arroio Kruse relata que saúde e projetos sociais precisam ser revistos

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ara atender tamanha população, diversos serviços públicos e privados devem estar disponíveis para que os moradores tenham acesso a saúde, educação, assistência social, saneamento básico, cultura e lazer, e tantos outros que garantem uma vida digna e saudável. Nesta edição, conversamos com alguns moradores, próximos do Arroio Kruse, para saber um pouco mais sobre a história deles referentes aos serviços prestados na comunidade.

FALTA DE INFORMAÇÃO É GRANDE

Um dos principais problemas vistos pela população é a falta de divulgação dos projetos que são realizados no bairro. Muitos desconhecem, por exemplo, a existência do Instituto Lenon, que atua na Vicentina há mais de dez anos, mas está localizado no bairro São Miguel. Alguns moradores necessitam destes serviços, como é o caso de Delci Oliveira, 31 anos, que não conseguiu vaga na cre-

che para o seu filho e se obrigou a contratar um advogado para resolver seu problema. Segundo Delci, a situação está tramitando a mais de um ano, e ela desconhece a existência dos projetos que poderiam amenizar o seu problema.“É complicado né, eu não consegui vaga na creche, e tive que entrar com um advogado no Fórum para conseguir alguma coisa para meu filho. Já faz mais de um ano, enquanto isso o guri continua sem vaga”, desabafa. Outro caso é o Hermínio Loreto da Cunha, 64 anos, que acha importante a existência dos projetos sociais, especialmente os que cuidam de crianças. Porém, devido à falta de divulgação destes serviços, ele não conhece nem o Instituto Lenon, nem o JUAD. “Eu acho importante, principalmente para as crianças. É bom elas terem onde ficar enquanto não estão na escola e quando não têm os pais juntos, mas eu não conheço nenhum desses projetos aqui no Vicentina”, conta. A falta de informação de um serviço tão essencial para a comunidade é realmente um grande problema. Todos os entrevistados julgam de extrema importância a existência destas iniciativas e ainda reforçam que deveriam haver

mais projetos deste tipo. Os moradores que usufruem dos projetos sociais, relatam que eles tiveram parte importante em suas vidas, como os casos de Cleci Fátima dos Santos, 50 anos. Ela foi voluntária por 12 anos em um deles, e teve todos os filhos e netos participando quando crianças. Já Marli Braga, disse que o auxílio do JUAD a ajudou com seu filho quando a mesma ficou viúva. A servidora pública Cláudia Ferreira, propõe uma solução para o problema. Segundo ela, é difícil para a população ficar sabendo do que acontece nos bairros. Mesmo em ano eleitoral, estes projetos sociais e iniciativas não são divulgados. Para Cláudia, um simples gesto poderia mudar tudo. “É fácil resolver isso, é só distribuir panfleto ou colocar alguém para bater de casa em casa e divulgar a existência dos projetos, mas isso não acontece”, lamenta.

EDUCAÇÃO PARA A POPULAÇÃO

A educação é essencial para que as crianças do Vicentina tenham um futuro melhor. Além de frequentar a escola, muitos adolescentes e crianças participam do JUAD, um projeto realizado pelo Ministério Batista Cristo é

a Vida, o MBCV. A ação é focada para a faixa etária de 7 a 17 anos. Todos os dias, em turno contrário da escola, os jovens realizam atividades criativas e diferentes, como foi apresentado na página 9 desta edição do Enfoque. Segundo a moradora Clarice Alves Campos, 34 anos, as atividades ajudam muito o filho, Bryan Alves Vieira, 11 anos. “Ele está aprendendo bastante. De manhã ele vai para o JUAD e de tarde para a escola”. Clarice conta que conheceu a ação por meio de uma visita dos responsáveis da iniciativa e brinca que o JUAD ajudou o filho ater mais disciplina.“O projeto ajuda ele acordar e dormir cedo e a ocupar a mente”, explica. Para manter as crianças e adolescentes no projeto, o JUAD é rigoroso. “Eles cobram a presença. Uma vez meu filho não foi e eles vieram até aqui em casa para ver o porquê de ele não ter ido”, conta Clarice. A jovem Raquely Oliveira da Silva, 7 anos, é só elogios ao projeto do qual faz parte há dois. “É legal porque me divirto muito com as outras meninas, minhas amigas”, afirma. Sobre as atividades, ela conta que faz brincadeiras, vai ao parque, tem aulas de artesanato e até de inclusão

digital, além de lanchar. A vó de Raquely, Marlene Herpich, 51 anos, mora no Vicentina há 24 anos e acha que o projeto ajuda no desenvolvimento e aprendizado das crianças. “É muito bom. Em casa as crianças não aprendem muito, só querem ficar na frente da TV. Agora ela volta da escola, almoça e já fica perguntando se está na hora de ir para JUAD”, relata.

MAIOR ATENÇÃO PARA O FUTURO DOS JOVENS

Só projetos voltados para o dia a dia não bastam. A população da Vicentina quer mais ações que ajudem os jovens a não cair na violência e a construir uma carreira profissional. A moradora Noemi Claudete Alves, de 48 anos, conta que há alguns anos havia na comunidade, na escola Medianeira, um projeto que dava cursos de marcenaria, de elétrica, de informática e de embelezamento.“O projeto do Medianeira era muito bom, meu guri foi dos 12 aos 18 anos, fez todas as atividades que eles ofereciam. Agora não tem mais e não sabemos o porquê”, lamenta. Segundo Noemi, as atividades eram uma forma de preparar os jovens para o futuro, dando uma


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NICOLE ROTH

1 – Todos os filhos de Cleci participaram dos projetos sociais, e os netos que possuem idade estão participando 2 – Filho de Delir está a um ano aguardando vaga em alguma creche 3 – A servidora pública ressaltou o problema da falta de divulgação dos projetos 4 – Diante de tantas dificuldades, Lúcia Correa luta por uma vida melhor para a filha deficiente 5 – As netas de Marlene, Raquely e Evelyn, frequentam projeto voltado para educação há dois anos 6 – Sem ajuda suficiente do CRAS, Rose Mari tenta reconstruir sua casa depois da enchente 7 – Eliana se preocupou com a saúde dos filhos Arthur e Nicolas durante as enchentes que atingiu o bairro

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uma comunidade melhor base para quando eles fossem entrar para a vida adulta.“Eu conversei com um dos professores do Medianeira e ele disse que também gostaria que essa ação voltasse aqui para a Vila”, lamenta a morada em relação ao fim do projeto.

O CAOS DAS ENCHENTES

Tempos de chuva são um pesadelo para quem mora no Vicentina. Diante da falta de saneamento básico, quando chove muito, várias casas são invadidas pelas águas do córrego que está localizado no fim do bairro. Além dos órgãos públicos não consertarem o sistema de esgoto, falta auxílio para quem perde suas coisas na enchente. A merendeira Rose Mari Rodrigues relata que quando perdeu tudo que havia dentro de casa na última enchente teve que buscar ajuda em outros lugares, pois o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) não forneceu a ajuda que precisava. “A igreja foi quem nos ajudou fornecendo sopa”, conta. Já Lúcia Correa, 69 anos, uma senhora bem-humorada mesmo diante de tantas dificuldades, conta que em tempos chuvosos a Vicentina se torna um pesadelo. “Teve uma enchente que eu tive

que fugir para a casa da minha outra filha. Estava tudo tão alagado que fui levada no colo para fora de casa”, diz a aposentada. Na opinião de Eliana Morais, 28 anos, falta atenção para os moradores da região, não apenas em época de eleição. “Já veio vereadora aqui, mas a gente não vê proposta do Serviço Municipal de Água e Esgoto (SEMAE). Ano passado ficamos em baixo d’água. E nenhum tem proposta de arrumar as bombas que entopem ou de dar prioridade as famílias atingidas. É um bairro tão bom, tinha tudo para ser melhor, mas tá muito largado”, queixa-se. Para a mãe de três filhos, atualmente desempregada, uma solução para os alagamentos não devia ser algo exigido, pois trata-se de saneamento básico. “É saúde também. Pois no momento que entra água de esgoto na minha casa, meus filhos estão a mercê de pegar uma doença”, afirma Eliana.

SAÚDE DEBILITADA

A grande reclamação dos moradores também vem por parte da saúde. Desde que a Unidade Básica de Saúde (UBS) Vicentina foi fechada, os pacientes precisam enfrentar filas para conseguir uma ficha no Pronto Atendimento Mu-

nicipal (PAM) ou então se dirigir até o Hospital Centenário, no Centro de São Leopoldo. De acordo com os moradores da região, no PAM o atendimento ocorre apenas com horário marcado, o que dificulta quando o caso é uma emergência, pois só tem agenda disponível para o mês seguinte.“Para conseguir um atendimento com um médico, tem que ir de madrugada para fila”, diz Patrícia Torre Holler, 20 anos. Para a faxineira Elisabete da Silva Damasceno, 55 anos, a prioridade da população foi tirada junto com o posto de saúde. Moradora há 20 anos do bairro, ela conta que o atendimento está péssimo. “Outro dia a menina (bisneta) ficou doente e eu levei ela no médico. Eles disseram que ela não tinha nada, só que estava com uma infecção no ouvido e na garganta. Uma manhã inteira para receitar paracetamol”, reclama. Elisabete diz que antes era bem mais fácil com o posto perto de casa. “Tinha pediatra, clínico, précâncer. Tinha que ir cedo, mas pelo menos era atendido. Hoje, se precisar marcar um exame é só na Campina (Centro de Saúde). Faz cinco meses que estou esperando para fazer um exame de visão e eles ainda não chamaram”, relata.

Com quase o dobro de moradores do bairro vizinho, o São Miguel, que realiza atendimento domiciliar, a população acredita que teriam que ter uma assistência melhor.

O SERVIÇO DO CRAS

Um dos serviços mais utilizados pelos moradores do bairro Vicentina é o Centro de Referência de Assistência Social Oeste (CRAS Oeste). Algumas pessoas elogiam o atendimento prestado no local, enquanto outras relatam que não tiveram seus problemas solucionados, como o caso de Rose Mari, durante as cheias. “O problema não são as pessoas do CRAS, mas sim o órgão público”, afirma. Outro exemplo é o caso de Lúcia, citada anteriormente. Na opinião dela, às vezes eles acabam ajudando quem não precisa. “Eu tenho uma filha de 50 anos com deficiência e não ganho uma fralda se quer”, manifesta. “O CRAS veio aqui e me prometeu uma sacola econômica, fraldas e não me ajudaram até agora. Todo mundo promete e ninguém faz nada”, lamenta. Diferente delas, Noemi conta que gosta do atendimento, pois sempre que precisou foi bem recebida. “Na última en-

chente nós recorremos ao CRAS. Eu também utilizo o serviço de assistência social uma vez por mês e acho bom”. Mas tantos outros moradores têm dúvidas sobre como ter acesso aos serviços prestados, quais estão disponíveis, qual a documentação necessária e até mesmo onde, de fato, está o CRAS. Muitos não sabem que a sede mudou de local. Antigamente, o serviço estava localizado na Travessa Paulo Couto. Hoje, a sede fica situada no Parque do Trabalhador. Atualmente, o CRAS está associado a grandes projetos para ajudar a população leopoldense, como aliado ao Projeto RECRIA, que luta pela Prevenção da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (VDCA). Para tirar as dúvidas dos moradores do bairro Vicentina, entramos, durante uma semana, em contato para ouvir a posição do órgão. Entretanto, após várias tentativas, não tivemos um retorno. Eduardo Brandelli Ellen Renner Graziele Iaronka Guilherme Chaves Elias Vargas Kellen Guaragni Dalbosco Nicole Roth


12. LUTA

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A beleza como aliada para mudança Moradora do bairro luta por causas sociais e vê na beleza uma forma de transformar a realidade e combater o preconceito

Contrastando com o arroio poluído, Rosaura cuida do canteiro de flores, seu sonho desde pequena

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la mora no bairro Vicentina desde seus 8 anos. Hoje aos 54 anos, Eliane Rosaura de Souza é tida por vizinhos como uma representante das causas da comunidade. Luta muitas vezes sozinha, pois não depende de associações nem de políticos. Então, vai à Prefeitura, fala com vereadores e com o prefeito para cobrar providências. Em uma comunidade pobre, onde muitas são as carências como saneamento básico, educação e saúde, Rosaura traz consigo, desde pequena, uma preocupação a mais: levar a beleza às ruas da comunidade. Servindo de exemplo para boas práticas, como não jogar lixo no chão, ela mostrar para os outros, através do belo, que o Vicentina é muito mais do que violência. ENFOQUE – Quando começou o teu engajamento pelas causas do bairro? ROSAURA – Eu tinha 18 anos, morava na avenida, em frente ao “valão”. Como sempre gostei das coisas arrumadas e bonitas, e aquela cena do lixo naquele local me deixava muito triste. Comecei então a fazer canteiros na beira do valão, enfeitava com garrafas pets, mas não demorava muito tempo, pois os bichos destruíam tudo. Foi aí que comecei a ir na Prefeitura questionar como a gente podia fazer para ter uma calçada, um local para plantar flores, deixar o local mais bonito. ENFOQUE – O arroio ganhou no seu percurso calçada e canteiro de flores. O que mais podes citar como uma iniciativa tua de luta? ROSAURA – Quando a Prefeitura começou a construir casas populares na região, no projeto Minha Casa, Minha Vida, eu vi que meus vizinhos estavam assinando contratos sem ler. O novo projeto da Prefeitura previa que alguns terrenos deveriam ser reduzidos para construção de ruas. Os meus vizinhos vieram a mim para lutar por eles. Então, eu marcava reuniões com a Secretaria de Habitação e os moradores para resolver as situações, e resolvemos tudo. ENFOQUE – Porque a comunidade te vê como uma representante? ROSAURA – Porque eu não tenho medo de briga. Penso assim: ele

vista como uma representante do bairro, nunca pensaste em concorrer a um cargo político? ROSAURA – Já fui convidada várias vezes, mas nunca aceitei. Sendo vereadora não vou poder brigar com qualquer partido político. Quero continuar sendo neutra e lutar visando apenas o progresso do bairro onde moro. ENFOQUE – Estamos em um bairro que precisa de várias melhorias na questão de saneamento básico, saúde e educação. Essas questões têm relação com a beleza deste lugar? ROSAURA – O bairro já tem má fama, por ser um lugar pobre, com violência. Se tu fizer uma coisa bonita, ajeitada, as pessoas não tem mais aquela opinião de marginalidade. A beleza modifica a forma com que as pessoas pensam. Se tiver um canteiro bonito, isso sensibiliza os moradores a não jogar seu lixo ali, por exemplo. As pessoas que chegam aqui no Vicentina e veem aquele amontoado de lixo, coisa mais fedorenta e feia. Mas se tiver um pneu com uma arvorezinha, tu vai ter outra visão. Tu vai pensar: comunidade pobre, mas caprichado. Eu nasci e cresci em barraco, mas tudo sempre era bem limpo. Minha mãe sempre dizia: pobreza não é sinônimo de relaxamento.

é prefeito e eu sou a leiga, mas não quer dizer que eu não tenho a minha opinião, e ela precise ser respeitada, vamos debater. Então eu acabo me envolvendo, não é porque eu sou metida. Acho que não é porque tu está lá em cima que precisa ficar pisando no pessoal aqui debaixo. Não é porque tu tem a palavra, que a tua palavra é a única que vai bastar. Eu sou pobre, mas a minha opinião também tem que valer. ENFOQUE – A comunidade tem uma associação de moradores. Tu já participaste dela?Tem vontade de ser presidente? ROSAURA – Nunca participei da presidência e não quero participar. Muitos vêm a mim pedir para que eu tome a iniciativa de lutar sozinha porque não se veem representados pela associação, e eu não tenho culpa disso. Uma vez, procurei a associação para levar uma questão sobre saneamento básico aqui da rua, mas não fui

acolhida. Nesse caso, levei junto com outro vizinho as questões direto ao prefeito, não demorou muito e o problema das bocas de lobo foi resolvido. ENFOQUE – A comunidade possui projetos sociais, iniciativas de ONG. Tu tendo todo esse engajamento com a comunidade nunca trabalhaste como voluntária nessas ONGs? ROSAURA – Eu fui uma das primeiras oficineiras do Instituto Lenon Joel Pela Paz (localizado no bairro São Miguel, ao lado do Vicentina, e visa colaborar com a redução da violência afastando crianças e adolescentes da criminalidade através de atividades educativas, do esporte, da cultura e do lazer). Lá dava oficina de artesanato a partir de garrafas pets. Só sai de lá para cuidar do meu neto que nasceu. ENFOQUE –Tu fazes um trabalho com reaproveitamento do lixo,

transformando-o em artesanato. Qual a importância disso? ROSAURA – Não é aquela coisa de tu ir comprar o material para fazer um artesanato. É tu pegar uma coisa que ninguém mais quer e reaproveitar. Transformar algo sujo em algo belo. E isso faz toda a diferença quando a gente está em bairro com moradores com pouco recurso financeiro. ENFOQUE – Acreditas que tiveste mais sucessos ou derrotas nas tuas lutas? ROSAURA – Tudo que eu lutei pelos meus vizinhos eu consegui. Uma causa que era minha, foi de uma pequena rua que ligava minha casa até a outra comunidade, o que facilitava o meu deslocamento até lá. A Prefeitura fechou mesmo eu brigando muito para que isso não acontecesse. ENFOQUE – Com todo esse histórico de luta em prol das causas da comunidade e sendo

ENFOQUE – O que significa a beleza para ti? ROSAURA – É a gente lutar pelos outros. A beleza é a gente se preocupar com os outros. O caso do canteiro que eu lutei para ter é uma beleza aos olhos, mas não é só isso. Um canteiro bem cuidado, uma árvore bem bonita mostra que as pessoas estão tentando ser diferentes, querem mostrar que são boas, que na comunidade não tem só violência. ENFOQUE – Na questão de embelezar o bairro, qual a sua próxima luta? ROSAURA – Aqui no bairro nós não temos nenhuma praça. Quero lutar por este espaço. Acho importante dar a estas pessoas um lugar de lazer. Um local bem cuidado para as crianças brincarem, para as pessoas tomarem chimarrão. A maioria das casas aqui não tem pátio, não tem um lugar para as crianças brincarem, então eu acho que uma praça seria ideal. Hoje as crianças brincam na beirada da estrada, entre a rua e o valão, onde é muito perigoso. João Arthur Moraes gabriel scopel


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016 |

MEMÓRIA .13

Nostalgias do Parque Memórias contrastam com a nova realidade na Vicentina

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m visita na região próxima ao dique, nos fundos do bairro Vicentina, buscamos histórias inspiradoras para essa edição do Enfoque. No último final de semana de agosto, o sol e as altas temperaturas deixam o dia propício para passeios ao ar livre. Crianças, adultos e idosos transitam pelo bairro e compartilham histórias sobre as intermediações do Parque do Trabalhador e é notável a diferença entre sentimentos e relatos de uma década para outra. Ao chegar, a equipe do Enfoque pode facilmente ser confundida com militantes partidários. Uma confusão comum, visto que nessa época, a cada quatro anos, as comunidades mais carentes de todas as cidades do Brasil ganham uma atenção especial de personagens políticos. À nós, cabe uma boa conversa com os moradores para resolver esse mal-entendido. Alcemar Alves, 65 anos, avistou a câmera fotográfica e nos intimou. Ele queria saber qual era nossa intenção, se estamos representando algum candidato a vereador ou procurando histórias. Digo que é a segunda opção e não preciso dizer mais nada. Seu Alcemar aponta para uma pilha de lixo do outro lado da rua onde m o r a , no final

da Avenida Maria Vicentina Fidelis e, sem timidez, começa a narrar uma série de problemas para nos colocar a par da situação do bairro. A fala dele e de outros moradores soa como uma melodia diferente. São vozes carregadas de saudade; cansadas, ainda que esperançosas. São ritmos de nostalgia, também visível através dos olhos dos moradores mais antigos, que convivem com as lembranças de quando o Parque do Trabalhador representava mais do que descaso e abandono.

NO TEMPO DA CONFIANÇA

Morador da região desde o início da década de 80, seu Alcemar já presenciou diversas mudanças no Vicentina. Desde o asfaltamento à construção do dique e, mais recentemente, o aspecto cada vez mais decadente do Parque do Trabalhador. Seu Alves é comunicativo. Me conta da sua família, da mulher com quem divide o lar; do problema com a fossa na calçada; de quando ele mudou para aquela casa, quando tudo era mato. Desempregado e aguardando a aprovação da aposentadoria na Justiça, ele acredita que a vida é assim, e que assim se vai levando. “Não que antes fosse excelente, mas era melhor”. Encaramos o imenso terreno em frente sua casa, esse é nosso

assunto principal: o Parque do Trabalhador e seu reflexo mais profundo na memória dos moradores. A área total do lote corresponde a aproximadamente 80 campos de futebol (87 hectares). Com mais de 90% de predominância de área verde, os fundos do Parque caem em esquecimento. As cercas de arame arregaçadas são facilmente transpassadas por infratores que utilizam o espaço para três atividades, sumariamente: acumulo de lixo, desova de cadáveres e consumo de drogas. “Me dá uma vergonha porque esse não é o Parque que conheci”, lamenta Seu Alcemar, ao relembrar a utilização compartilhada da área verde entre os vizinhos.“No tempo da confiança tinha gente que guardava rede de pesca, guardava barco aí dentro. Isso não volta jamais”. Esse lamento vai além da memória. É uma questão concreta e atual. “Agora o problema já não é nem só lixo”, diz seu Alcemar “Mas sim os bichos mortos que eles jogam aí. Não dá nem pra passar perto, às vezes sobe um cheiro ruim”. Ele indica que ao longo da extensão do Parque é comum o abandono de restos de animais domésticos, o que atrapalha a circulação de pedestres e a qualidade de vida dos moradores

DESVIANDO O CAMINHO

Em outras ruas da comunidade, bairro adentro e não mais de frente para o terreno

do Parque, a questão do esquecimento da infraestrutura deste local continua sendo um dos principais assuntos a serem discutidos e, eventualmente, melhorados na cidade. O contraste de idade e das oportunidades de qualidade de vida que o Parque do Trabalhador oferecia e que oferece agora são notáveis. Percebo que a cultura de frequentar o local aos poucos vai se perdendo entre as gerações. Na rua Arlindo Bier encontro Suzana Cassol, 30 anos. As intermediações próximas ao dique também a preocupam: “Já aconteceu de ter que desviar o caminho ali, de bicicleta, porque tinha gente usando drogas”, relata a dona de casa. No seu colo e entre seus braços, Suzana segura Eduarda, a filha de nove anos. Como se fosse um assunto cotidiano, ela conta que evita de passar perto do matagal nos fundos do Parque. “Na semana passada, foi encontrado um corpo esquartejado. Entende? Como que eu vou passar com a minha filha por ali?” Sinceramente, eu também não soube responder. O direito de ir e vir de uma mãe e de uma criança estão sendo infringidos por um crime brutal. “Disputa entre traficante, acho que nem era daqui da Vila”, diz Suzana. A questão nem é essa. Não importa se a vítima é membro desta comunidade ou de outra. O que importa é que em algum lugar, uma família hoje conta um membro a menos. E aqui, no

Vicentina, outras famílias têm que desviar da cena de um crime para chegar em casa. Apesar do carinho que os moradores expressam pelo bairro, é triste pensar que grande parte das memórias criadas nessa comunidade são vinculadas ao medo e à insegurança. Em novembro de 2015 o Estado do Rio Grande do Sul cedeu o Parque do Trabalhador ao município de São Leopoldo por um período de 20 anos. Em busca de alternativas para revitalização da área, a prefeitura visa uma parceria com Serviço Social da Indústria (SESI) junto ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). O Acordo de Intenções desse projeto foi assinado em junho deste ano. A expectativa é da implementação de escolas técnicas e profissionalizantes. Para ambas as instituições, é destinada uma área de mais de 40 mil metros quadrados. Com isso, os moradores dos fundos do Vicentina voltam a ter esperança no monitoramento e na garantia de segurança e limpeza nas intermediações do Parque. Além das dessas mudanças pragmáticas, a comunidade do Vicentina também tem esperança de que o atual período de abandono possa em breve ser substituídos por dias melhores, com mais segurança e bem-estar; capaz de produzir nostalgias positivas nas futuras gerações. Fernanda Bierhals Eduarda Alves

Descasos como acúmulo de lixo e falta de segurança incomodam Seu Alcemar


14. OLHAR DE CRIANÇA

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016

Aqui é a Bruna e Cauã mostram os dois lados do bairro; do asfalto ao chão batido

C

onhecer o Vicentina pelas crianças é uma experiência que possibilita enxergar o bairro por uma perspectiva especial e espontânea, de quem vive naquele espaço como o seu primeiro modelo de mundo, e experimenta ali a vida e a convivência com as pessoas. Aprende a existir. Como as crianças enxergam esse espaço, as ruas, a ocupação, o campinho, o lixo e a violência? Quais são as histórias que nós não conseguimos ler quando olhamos para essa paisagem? Talvez o dia em que alguém aprendeu a andar de bicicleta em frente ao mercado 2000, a lenda da casa assombrada ou a caminhada para escola sempre na companhia dos vários cachorrinhos que vagam pelas ruas, mas estão sempre indo para algum lugar. Foi na busca por esse mini repórter, que pudesse me ensinar a ver esse mundo, que saí puxando conversa com a comunidade. Aos poucos percebi que as crianças que estavam na rua só podiam ficar perto de casa. “Eu até queria, mas a mãe não deixa”. “Ai, moça, desculpa, mas os pais deles saíram agora de casa e eu não posso liberar”. “Logo ali, ó, é cheio de criançada.” Já tinham se passado quatro ruas, várias casas e nada de encontrar. Até que avisto, no final da próxima rua asfaltada, duas mulheres e uma criança. Parecem estar se protegendo de alguma forma. A mais velha entre elas vem na frente, passos firmes e olhar sério. Mais atrás, cuidando os carros e o movimento da rua, está a segunda mulher, que me percebeu de longe, observando a cena. Agarrada na camisa da mãe vinha a pequena. Dirigi-me até elas, perguntei se podia acompanhar a caminhada e ir conversando com a minha mais nova candidata a ajudante, a Bruna. “Pode sim, nós vamos no mercado”, disse a mãe, Fátima de Souza, que além da Bruna também é mãe da outra mulher, aquela que antes me observava. Jéssika Cristina tem 25 anos e mora com a mãe e os irmãos, ao todo são oito. Bruna é a mais nova, tem 7 anos e estuda na Escola Rui Barbosa, perto de casa. Ela me conta que adora pintar e não costuma brincar na rua, “eu queria poder andar de bicicleta, a mãe me deixava andar, agora ela não deixa mais porque tem medo”, reclama a menina. Fátima conta que só

libera a brincadeira quando ela pode estar por perto. “Durante a semana não dá porque ali pra baixo tem um depósito de carga e descarga de caminhão, daí os carros passam muito rápido por ali e como ela ainda tá aprendendo a andar na rua, eu não deixo”, explica a mãe preocupada. Bruna interrompe a conversa: “Eu já aprendi, mãe!”, insiste. Fora os amigos da escola, Bruna não conhece muitas crianças da vizinhança já que não costuma sair de casa no contra turno. “A mãe falou que vai deixar eu fazer bastante amigos lá na escola pra ela deixar fazer uma festa do pijama”, comemora a menina entusiasmada. O cuidado com a segurança também está relacionado aos

Bianca quer ser professora, e Cauã, policial

casos de violência que acontecem no bairro em decorrência do tráfico de drogas. “Apareceu um morto, daí já começa a aparecer um atrás do outro, mataram mais de dez em uma semana”, relata Jéssika. O medo surge nos olhos, mas logo dobra a esquina. O luto aqui é verbo. No Vicentina não existe briga entre vizinhos, me garantem as mulheres, as mortes que estampam os jornais com o nome do bairro são em decorrência da disputa de poder e influência entre duas facções, os ‘bala na cara’ e os ‘mano’. O comércio ilegal de drogas tem seu próprio método para controlar a região, o medo imposto através da violência, que também impacta no dia a dia das

crianças. “Meu guri menor estuda à noite e ficou uma semana sem ir para a escola porque o toque de recolher era às dez da noite, e essa é a hora que ele sai da aula”, conta Fátima. “Eles mesmos deixaram a placa lá no dique, perto do valão, dizendo que quem eles pegassem na esquina depois das 10h da noite, eles iam matar”, garante Jéssika ao comentar sobre as ações dos traficantes no bairro. Bruna também já teve que faltar aula em função dos toques de recolher, “eles dão avisos, né, onde e quando não pode andar”, explica a irmã. Os acertos de contas que geram as vítimas do tráfico têm hora e local marcados, “aqui um passa pro outro, colocam na rede social, daí todo mundo se

avisa”, conclui Jéssika, que não possui celular próprio. Mesmo assim os casos de violência são um repertório cotidiano no bairro. As histórias vão surgindo no caminho, e são lembranças que elas encontram não muito longe de casa. A amiga que teve o corpo dilacerado e as pernas jogadas na frente da casa da própria mãe, uma criança de dois anos que morreu durante um acerto de contas, outra conhecida, um pai de família, uma vizinha que levou um tiro na boca por fazer fofoca demais.“Uma senhora de idade, mais velha que a minha mãe, deram um tiro na boca dela”, lembra Jéssika. Os casos vão sendo narrados com uma proximidade que impactam na forma como me situo no lugar. “Foi naquela rua ali.” “Ele era segurança daquele mercado que nós passamos.” Para os moradores existe uma convivência muito próxima com essa crueldade, mas ninguém se habitua a ficar com medo. As vidas perdidas se tornam lembranças na busca para se escapar das estatísticas, são consequências das regras injustas que escapam dos olhos vendados da lei. Continuamos a andar. Além dos casos de violência, o tráfico local também alicia menores de idade, que se são usados pelos traficantes para repassar as drogas. “Até dentro da escola do meu filho vendiam, ele viu um amigo repassando”. Fátima teve que trocar o filho de 15 anos de turno na escola para evitar a convivência com o colega. “Nós conhecemos ele desse tamanhinho, guria, acho que tem treze ou catorze anos agora, e está traficando nas esquinas, ‘brabão’, pensa num ‘brabão’”, frisa Jéssika. Bruna escuta tudo isso calada, de cabeça baixa. Pergunto o que ela pensa sobre essas coisas que a mãe a irmã estão me contando, e ela responde: “só queria que isso não acontecesse mais”. Uma passeata política cheia de gente uniformizada, bandeiras e carros de som nos tiram do caminho para o mercado. Mudamos de rua, mas a barulheira segue atrás de nós. Fátima propõe fugirmos do sol enquanto esperamos os candidatos passarem com seus sorrisos amarelos. Jéssika admite: “eu não conheço ninguém aí, eles vem essa época e depois nunca mais aparecem”. As promessas geram esperanças de que as coisas mudem, mas depois do falatório e da poluição de santinhos nas ruas, o que sobra é o descaso com a vida dos moradores do Vicentina. “Eu acho que eles nem dão bola mais, porque para eles é vagabundo


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minha casa matando vagabundo”, avalia Jéssika. Para ela, a solução seria mais policiamento nas ruas. A mãe não concorda, para ela os policiais ganham pouco e não teriam número para dar conta da situação. Na opinião de Fátima é o exército quem deveria fazer a ronda nas ruas do bairro. “Porque tem dois quartéis em São Leopoldo? O que eles tão treinando lá? Não é pra defender a gente? Não tem guerra, pelo menos não no Brasil, então eles que venham pra guerra das ruas, porque aqui a gente vive numa guerra.” O questionamento de Fátima é também a dúvida de outros moradores do Vicentina, “várias pessoas pensam isso, pode sair e perguntar, porque impõem mais respeito, pelo menos eles passando de vez em quando, eu acho que já é uma boa”. Apesar de existirem duas sedes do exército na cidade, os militares não recebem treinamento para realizar a segurança pública. Segundo a constituição brasileira de 1988, a Guarda Municipal é quem deve gerir as instituições de segurança e o poder de polícia do município. Bruna interrompe: “Vamos logo pro mercado, mãe!” Já tinha caminhado mais de uma hora ao lado das três mulheres da família Santos. Elas haviam saído de casa para buscar o café da manhã e já eram quase onze horas. Senti que aquela era a deixa para seguir, e pedi uma indicação de caminho. “Vocês tinham que entrar aqui,

ó, aqui nessa invasão, lá tem um monte de criança, não é perigoso de dia, entra aí que tu vai ver”, indica Jéssika apontando a rua seguinte. Mãe e filhas retornam para o caminho do mercado. De longe observo as cores de suas roupas, combinando, e uma árvore florida de Ipê rosa que aparece na calçada para compor a cena que deixo registrada na memória. Mais uma vez tenho o sentimento de que elas se protegem de alguma forma, se cuidam.

Dobrando a curva na baixada, pra lá do asfalto

Entrando para o lado da Ocupação da Praça Cerâmica Anita, o cenário é um pouco diferente, as estradas são de chão, as casas mais simples e mais gente transita

de 37 anos, é reciclador de resíduos e sempre explicou para os filhos o que significava morar na ocupação. “Eles sabem mais que nós, eles viveram junto, sabem que perdi o emprego Fátima é e que tivemos que referência vir pra cá. Antes nós de segurança da morávamos do outro pequena Bruna lado da Vicentina e pagávamos aluguel”, salienta Ari. “É aquela coisa que dizem: quando morar é um privilégio, ocupar é um direito”, finaliza o pai. Ari e Lucimara Soares Albuquerque, que também é recicladora, tem além de Cauã, mais três filhos. A família mora na ocupação há dois anos. na rua, mais crianças. Música com Bianca, de 12 anos, é uma das volume alto numa casa aqui e na filhas, e tem deficiência mental outra da esquina seguinte. Gente moderada. Ela possui um laudo queimando lixo e lixo invadindo médico de quando era criança, a rua. Uns meninos jogam fute- conquistado através do Conselho bol enquanto não passa carro. Tutelar, que lhe dava direito a beNo meio da ocupação um campo nefícios e tratamento, mas o laudo seco de terra batida e laranja que venceu. Agora Bianca precisa de poderia ser mais verde. Em fren- um novo parecer para poder ser te ao terreno abandonado mora atendida no Núcleo de Apoio e Cauã Soares Albuquerque, de 9 Pesquisa ao Processo de Incluanos. Ele e a bicicleta vermelha são (NAPPI) e receber o valor das me chamam atenção enquanto passagens. “Ela ia antes pro NAPPI escorregam nas pedrinhas de bri- lá no centro, mas depois venceu ta. Suor no rosto e altas manobras, o laudo médico e agora tem que parece dia de brincadeira. Nas ruas fazer de novo, e eu não consigo do lado de cá, uma coisa liga Cauã aqui pelo Conselho Tutelar”, conse Bruna: ele também não conhece tata a mãe. Para Lucimara, o caso muitas crianças da vizinhança. “Os de Bianca tem regredido sem o meus amigos são mais do colé- tratamento necessário, “ela tem gio”, confirma Cauã, que aos pou- 12 anos mas é como se tivesse cos se solta na conversa. 5, só tem tamanho”. Depois de O pai, Ari Manuel Becker Pires, muita luta conseguiram o direito

de ter uma professora auxiliar na escola, que acompanha as aulas de forma individual com a menina. “Eu quero ser professora”, afirma Bianca, que adora estudar e fazer as atividades da escola. Cauã quer ser policial, “pra lutar contra o mal e defender as pessoas”, explica. No pulso, uma pulseirinha da Copa de 2006, “é do ano que eu nasci”, exibe com orgulho o presente. Pergunto se ele gosta de esportes e se assistiu às Olimpíadas, “gosto sim, eu jogo mais é futebol, mas se pudesse faria salto com vara, mas aqui não dá e deve ser caro”. E música? “Eu gosto de sertanejo, aquela música, ai, como que é mesmo?”, pergunta ele para Bianca. “Não sei, eu gosto da Anitta”, decide a irmã. Ela me conta que queria ter ido ao show que a cantora fez na festa do município, a São Leopoldo Fest. “Meu irmão mais velho foi, mas não quis me levar junto porque eu sou menor, da próxima vez eu vou”, decide a menina. Cauã finaliza assunto, “qualquer uma que toca na 88.7 FM eu gosto”. O Vicentina reúne mundos diferentes como o de Bruna, Cauã e Bianca, e de todos os outros e outras que estão dentro de casa inventando seu caminho. Tem de tudo um pouco, lugar para tudo e para todos. Cada qual ocupando seu espaço e resistindo à sua maneira, criando sua história. Gabriela Wenzel THIAGO BORBA

Uma questão de percepção De pouco dinheiro, mas de muitos sorrisos. O Vicentina é assim, ele é pouco e escasso em alguns âmbitos, e cheio e transborda em tantos outros. Sobre o que ele está recheado, de crianças, de gente com vontade de viver, de trabalhar e de ser reconhecida. E sobre o que lhe falta? O olhar das autoridades, a segurança e a sensação de proteção. Rafael Figueiredo Bittencourt é Educador Social e trabalha com crianças e adolescentes do Vicentina e bairros mais próximos. Para ele, falar em violência no bairro exige mais cuidado. “O que queremos dizer ao falar em violência? Estatísticas? Números de mortos, de pessoas envolvidas em tráfico de drogas?”, questiona o educador. Ele acredita que essa visão é muito limitada e há outras formas de violência anteriores a estas que não estão sendo vistas. “Eu nasci em uma região de periferia e nunca vi chamar de violência quando a polícia invadia nossas casas. Assim como nunca vi chamarem o descaso do governo com a população

periférica de violência” desabafa. Para entender as estatísticas de violência no Vicentina é necessário compreender todo o ciclo que envolve a comunidade. Aliás, comunidade é um termo que Rafael não reconhece quando se refere ao bairro. Para o educador, o termo que tanto sai da boca de promessas e discursos políticos em um formato tão convencional não mais representa um povo que não tem acesso à saúde, educação e saneamento básico. Contudo, “desfruta” de igrejas aos montes e de visitas ilustres de candidatos a prefeito e vereador que veem ali muitos números e poucos seres humanos. O que é importante compreender é que nunca nenhuma morte justificará outra, e que não existe morte mais ou menos importante. Porém, as comoções sempre serão distintas. É sobre essas comoções que Rafael se refere quando afirma que “as mortes na periferia viram números nos jornais, enquanto um estudante de classe média morto em um assalto, em

um bairro nobre da cidade, gera inúmeros protestos contra essa ‘violência’”. O papel do educador social é servir de exemplo e visualizar com um olhar analista o meio social. E com esse olhar Rafael percebe que as soluções para os buracos da criminalidade são diferentes conforme a classe que clama por essa resolução. Aos mais privilegiados, os pedidos são de maior policiamento nas regiões centrais. Ao Rafael a solução começa com a compreensão que o sistema é opressor, que ele viola direitos, que esse ciclo permanece e os responsáveis nunca são devidamente vistos. “Quando temos uma sociedade de consumo que cada vez mais oprime a população, e digo população por que é ilusão acreditarmos que não somos todos oprimidos por ela, você tem uma educação voltada para o mercado de consumo, tem uma mídia capciosa que te induz diariamente ao mesmo consumo. Dessa forma o ser humano perde o valor e passa a ter preço”comenta Rafael.

Chama-se de violência apenas quando convém, pois por vezes a palavra é substituída por “truculência”, “confusão” ou até “mal entendido”. Mas na verdade todo mundo entende muito bem quem é o opressor e quem é oprimido. Rafael explica sobre a verdadeira violência, “na mídia você não vê a falta de políticas públicas que proporciona a constante falta de segurança nessas regiões, e a violência da polícia em relação aos moradores, tudo isso fica escondido”. O Vicentina é querido, seu povo também é. Vive, luta, trabalha, batalha, busca e persiste. Tem medo, tem pudores e tem receios. De fora não enxergamos o brilho no olhar de esperança cada morador, não enxergamos os pés descalços, que saudáveis, brincam na terra. De fora só se enxerga o que se veicula nos papéis que eles nem leem. De dentro só se quer alguém que os enxergue como o Vicentina merece. Marcella Lorandi


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Oportunidade que veio do lixo O

s guias de negócios indicam: empreender é identificar uma oportunidade dentro de uma necessidade. A Reciclagem do Luiz é uma empresa do bairro que ilustra muito bem esse conceito. Afetado por um problema de saúde que lhe impossibilitou seguir com a carreira antiga, o proprietário da Reciclagem, Luiz Carlos Corrêa, de 52 anos, descobriu na coleta de lixo não só o seu sustento, mas também um importante papel como cidadão preocupado com o meio ambiente. Seu Luiz, morador do bairro há mais de 25 anos, conta que era proprietário de uma ferraria no bairro, mas que foi obrigado a deixar o oficio após desenvolver a Síndrome do Túnel do Carpo.

Essa doença, comum em pessoas que realizam trabalhos manuais com movimentos repetidos, comprime os nervos do pulso, causando muita dor e impossibilitando o trabalho do ferreiro com a marreta. Com seus cinco filhos criados e morando fora, Seu Luiz ainda precisava sustentar sua casa, onde vive com a esposa. Tendo o auxilio doença negado duas vezes pelo INSS, que nega o benefício sem dar satisfações ao solicitante, o trabalhador identificou em um problema da comunidade, a oportunidade de se manter financeiramente. O acumulo de lixo nas ruas do bairro Vicentina é muito grande. São caixas, plásticos, vidros e até móveis que podemos encontrar jogados nas calçadas, nas ruas, nos terrenos baldios e até no valão. Tais atos parecem partir de pessoas com a ideia de que esses materiais deixam de ser seu problema no momento em que saem de seu campo de visão, o que não é bem assim. Lixo descartado irresponsavelmen-

te traz consequências a toda a comunidade. Com ele vem o mau cheiro, vêm os bichos, vêm os bueiros entupidos, vem mais sujeira e poluição. Atento a esta questão, Seu Luiz abriu sua empresa que, como ele orgulhosamente faz questão de pontuar, é devidamente registrada como Micro Empreendimento Individual. A Reciclagem do Luiz faz o recolhimento de todos estes materiais que já não tem mais uso aos seus donos originais, os separa e vende a empresas de reciclagem do município. Todo esse processo de coleta se dá por conta unicamente do empresário, que corta as ruas do Vicentina - na companhia somente de sua égua, a Boneca - em busca de sua renda e da limpeza do bairro. É evidente o orgulho que ele tem do papel que cumpre: “Eu acho (a coleta) essencial” - conta - “o que eu trago é aquilo que fica atirado na rua e que depois vai pra boca de lobo, vai pro valão [...] além de tirar o teu sustento,

LUCAS ALVES

Necessidade e preocupação com o meio ambiente impulsionam empreendimento de morador do bairro

LUCAS NIZZOLA

16. INICIATIVA

Completando um ano e meio neste mês, a Reciclagem do Luiz desempenha importante papel na comunidade

tu também tá limpando”. Ele revela arrecadar cerca de mil reais por mês com o seu negócio atualmente, mas já prevê dobrar esse faturamento no próximo ano. Isso porque ele vem notando uma gradativa mudança de pensamento da população do bairro, que, cada vez mais, lhe telefona diretamente solicitando uma coleta de material que, em outros tempos, acabaria jogado nas ruas. É a consciência da

correta destinação começando a acontecer. Esperança para o Seu Luiz, com o menor custo dessas coletas diretas, e esperança para o restante dos moradores que, cada vez mais, tem a chance de viver num lugar mais limpo devido a pensamentos e iniciativas como essa. DENIS MACHADO LUCAS ALVES LUCAS NIZZOLA

Os desafios de uma vida com desigualdade Aos 63 anos, Enilda Mallete de Mello é um exemplo de superação. A recicladora de materiais, mãe de dois filhos e moradora do bairro Vicentina traz consigo uma triste história de vida que lhe ensinou ter solidariedade com os que mais precisam. Após um longo tratamento em função de um câncer de mama descoberto aos 42 anos que, felizmente, teve diagnóstico precoce, Dona Enilda foi surpreendida ainda por dois AVCs; o segundo aos 58 anos de idade, ano em que também ficou viúva. Apesar de sua vitalidade e disposição, está hoje numa cadeira de rodas, com os movimentos do braço esquerdo comprometidos. “Minha mãe estava desenganada, o médico disse que ela iria morrer em questão de dias”, relata Fabiano Mallete de Mello, filho de Dona Enilda, que está impossibilitado de trabalhar devido a um problema de saúde. Todos da família acreditam que a matriarca foi salva graças ao apego à religião umbandista, da qual o filho é adepto.

Atualmente, a moradora se desdobra trabalhando como catadora de materiais para ajudar no sustento da casa juntamente com a nora Cristiane Soares Peres. Enquanto as duas trabalham recolhendo pequenos objetos e guardando em um carrinho A precariedade da casa de três cômodos não inibe a família de Enilda de ir à luta

de ferro, Dona Enilda demonstra vigor. “Somos chamados de lixeiros na rua, mas eu não me importo” salienta a recicladora que traz as marcas do tempo estampadas em seu rosto. Em uma pequena rua de chão batido e com poucos recursos, Dona Enilda mora numa casa de três cômodos com o filho, a nora e um inquilino. A família vive com uma renda mensal que chega a 200 reais, resultado da reciclagem, e com doações de vizinhos e amigos.

Seu filho Fabiano sofre de diabetes e já passou por um procedimento cirúrgico para amputação de um dedo do pé esquerdo, enquanto o direito está em processo de degeneração devido a um prego enferrujado que o rapaz pisou há alguns anos. Em virtude dessa situação, Fabiano não pode caminhar e precisa de cuidados especiais, como substituir os curativos pelo menos uma vez ao dia. Dona Enilda se emociona e conta que quando vai ao posto de saúde do bairro para buscar pomadas, muitas vezes volta pra casa sem nada. “O posto não tem recurso, eles não têm os curativos que o meu filho precisa”, relata com os olhos marejados. Apesar da vida precária e de todos os problemas, a família demonstrou solidariedade ao abrigar em sua casa um rapaz que estava ao relento. O homem, que hoje também ajuda nas despesas da casa, dormia sob uma marquise quando foi encontrado por Fabiano. O filho de Dona Enilda diz que a atitude de

ajudar alguém que não conhece, lhe dando abrigo e condições de recomeçar a vida foi resultado da criação que recebeu dos pais. “Como vou deixar uma pessoa passando dificuldade na rua e não ajudar? Sempre fui criado pela minha mãe com amor!”, explica Fabiano. Enilda admira a iniciativa do filho de ajudar uma pessoa, mesmo sendo desconhecida, proporcionando-lhe um lar e diz com orgulho que apesar de passarem dificuldade nunca deixariam de prestar auxílio a alguém. Com expressão séria, poucas vezes Dona Enilda esboça um sorriso. As dificuldades da vida a tornaram uma mulher forte, que mesmo com muitas dores e sequelas deixadas por seus problemas de saúde, acorda às sete horas da manhã para correr atrás do sustento da família, que é claramente sua razão de viver. “Família tem que ter união, família é tudo”, finaliza. Juliana Silveira Isaías Rheinheimer


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RESISTÊNCIA .17

Apesar das limitações físicas em decorrência de uma doença degenerativa, moradora superou dificuldades e é exemplo de mãe e mulher

Q

uase no final da rua C, na Ocupação Cerâmica Anita, no bairro Vicentina, duas meninas brincam com suas pequenas bonecas, sentadas no chão da entrada da casa em alvenaria. Quem olha da rua pode não perceber, mas ali dentro se encontra Juliana dos Santos Ferraz. Uma mulher ativa, no auge dos seus 30 anos, que cuida da casa, dos quatro filhos e que, apesar de ser cadeirante, sua maior limitação não está na paralisia dos membros inferiores, mas na falta de acessibilidade da comunidade onde mora desde que nasceu. Juliana, aos 16 anos, começou a sentir dores nas pernas e foi diagnosticada com uma doença degenerativa hereditária. Porém, até hoje, os médicos não descobriram as causas da perda de movimentos. Mesmo com dores e problemas para caminhar, na época, a jovem ainda conseguia fazer todas as suas atividades normalmente. Porém, três anos após a descoberta da doença, perdeu completamente os movimentos dos membros inferiores e então, passou a depender de uma cadeira de rodas para se locomover. A doença, que também já reduziu, drasticamente, a visão do olho direito de Juliana, está começando a se desenvolver em outros familiares. Sua mãe, Nilza dos Santos Ferraz, 64 anos, já caminha com dificuldade e comenta que seu filho também está aparentando sinais semelhantes aos da irmã, reforçando a teoria de especialista de que a doença está associada a um fator genético.

A força de uma mulher cadeirante

Família unida

Com um vestido florido tomara que caia, Juliana conta que é casada com Jocemar dos Santos Alves há 14 anos, que, aliás, é a idade da filha mais velha do casal, a Dienifer Amanda. Por ordem de idade, os outros três filhos do casal são Alan Kauã, 10, a sorridente Mirela, 6, e a pequena Lorrana, 2. Para aumentar a família e encher a casa, cinco cachorros completam o lar: a Tobi, a Princesa, o Gordo, o Fred e um recentemente agregado que, apesar de não ter nome oficial, foi carinhosamente apelidado de Toquinho pela jovem Mirela. Vaidosa, Juliana solta do coque alto seus longos cabelos negros e prende em um rabo de cavalo baixo, na lateral do rosto para tirar as fotos. Enquanto a caçula Lorrana, mama em seu peito, uma declaração de Juliana chama a atenção. “Não saio de casa, só para ir no médico”, explicando que desde que perdeu os movimentos das pernas, nunca saiu para dar uma volta na rua,

para tomar sol ou, mesmo, para levar as crianças na escola. O fato não se deve as suas limitações físicas, mas a pavimentação da rua. A rua C, assim como outras ruas do entorno, são de paralelepípedo, com muito mais terra e buracos que propriamente pedras de calçamento. O nítido descaso com a pavimentação prejudica a acessibilidade de pessoas com deficiência e, por consequência, faz com que o mais longe que Juliana possa ir seja à entrada de sua casa.

Sustento familiar

Muito ativa, Juliana faz todas as atividades do lar sozinha, como qualquer dona do lar. Sua casa

tem uma barra de segurança no banheiro e uma rampa de acesso na entrada, o que facilita muito as atividades e a segurança da cadeirante. Mesmo não tendo toda a adaptação necessária na moradia, como cozinha e móveis adaptados e largura das portas maiores, nada interfere em sua locomoção e em sua disposição. Explica que ela mesma limpa a casa de quatro cômodos, arruma os quartos e faz as refeições. O marido também colabora.“A roupa ele ajuda a estender pra secar”, cita Juliana. Para fazer a comida, por exemplo, Juliana precisa de auxílio extra. Em frente ao fogão há uma cadeira de rodinhas, estilo escritório, mas já sem en-

Limitada a se locomover pelo bairro, Juliana observa o movimento em frente a sua casa

que ganhou e me deu, há quatro anos, a outra que eu tive, ganhei de doação também”.

costo e com assento bem desgastado. É essa cadeira, que se assemelha mais a um banco com rodinhas, que Juliana usa para fazer as refeições diárias. Toda essa força de vontade de Juliana, se mostra presente no cotidiano. A família de seis pessoas, ou onze se contar com os animais de estimação, se sustenta, basicamente, além dos bicos feitos pelo pai de família, dos auxílios recebidos pelo governo como o Bolsa Família, programa do governo Federal desenvolvido para auxiliar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, e o Benefício de Prestação Continuada (BPS), auxílio prescrito na constituição para pessoas com 65 anos de idade ou mais e para pessoas com deficiência incapacitante para a vida independente e para o trabalho. A dona de casa explica que, como não consegue se locomover nas ruas do bairro ou, mesmo, sair de casa, depende do marido para levar os filhos à escola, prestar socorro em caso de urgência ou fazer as compras do lar. Por isso, Jocemar não pode ter um vínculo empregatício formal, visto que, precisa estar disponível a qualquer momento do dia. Inclusive, no dia em que esta matéria foi feita, ele não conseguiu participar da entrevista porque estava finalizando um trabalho. Visivelmente frágil, Juliana sobre uma cadeira de rodas muito usada, com suportes enferrujados, braço praticamente sem estofados e rodas murchas, ao ser questionada se não precisaria trocar seu meio de condução, a resposta foi surpreendente. “Tá na hora (de trocar), mas eu não sei onde conseguir outra. Essa (cadeira de rodas) meu irmão

Segunda pesquisa domiciliar realizada em 2013, divulgada em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,2% da população brasileira tem algum tipo de deficiência. Considerando apenas os deficientes físicos, a parcela é 1,3% da população nacional e, desse número, cerca 46,8% possuem grau intenso ou muito intenso de limitações. Assim como Juliana, existem outras pessoas com deficiência, ou que necessitam de assistência social, mas que não sabem a quem recorrer para solicitar a ajuda. O Centro de Assistência Social (CRAS) de São Leopoldo é uma unidade pública estatal destinada ao atendimento socioassistencial de famílias. Ou seja, é o lugar que, na maioria dos casos, presta o primeiro auxílio socioassistencial às famílias, por exemplo, informando sobre direitos e programas sociais. Dessa forma, o CRAS serve como uma porta de entrada de famílias em situação de desamparo social à rede de Proteção Básica e referência para encaminhamentos à Proteção Especial. O CRAS Oeste fica na rua Vicentina Maria Fidélis, número 350, no Parque do Trabalhador, no próprio bairro Vicentina. A responsável pela unidade é a Josiane Gehling e o número para contato é (51) 3592 8467*.

Onde encontrar ajuda?

(*) Até o término desta edição, a repórter tentou diversas vezes obter contato com o Centro para confirmar os contatos e quais outros atendimentos o Centro de Assistência Social acolhe e não obteve êxito. As informações aqui indicadas estão disponibilizadas nos endereços eletrônicos da Prefeitura de São Leopoldo e da Previdência Social. Priscilla Mella Gabriel Aita Ost


18. PROTEÇÃO

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016

Junior toma três tipos de remédios. Nem sempre a medicação está disponível nos postos de saúde

Aos 26 anos, Junior supera diariamente os desafios que a epilepsia traz com a ajuda e o carinho da família

O

dia parece de verão, 30 graus marca a temperatura, apesar de estarmos no último sábado do mês de agosto. Na frente da casa de cor cinza, com portão também cinza, está um menino de bicicleta. Eu pergunto para ele se é ali que mora o Junior, ele responde que sim. Eu agradeço e bato palmas para que alguém possa me atender. Quem sai da casa cinza é a Maria, olhar meio desconfiado, achando que é algum político que bate à porta, já que naquele dia havia uma trupe de engajados militantes perambulando pelo bairro, com carro de som, bandinha e um candidato que abraçava todos os que pudesse encontrar pela rua. Eu me identifico como estudante de jornalismo e peço para Maria me contar a história do Junior. Ela abre o portão, puxa uma cadeira e pede para eu me sentar. Ao meu redor, várias gaiolas com pássaros que cantam cada um sua própria melodia, enquanto Maria, com um simpático sorriso no rosto, senta-se ao meu lado e começa a falar. Maria Luiza Brum Bianchi tem 48 anos, é do lar, mora há quatro anos no bairro Vicentina e cuida da casa onde ela e mais três pessoas vivem. Lucas Bianchi Ferreira, 15 anos, é o filho mais novo. Envergonhado, ele me espia pelo canto da janela, foge das fotos e diz que vai “queimar o filme” se registrar alguma imagem dele, mesmo eu brincando ao falar que a câmera é digital, não tem

O silêncio que acalma a mente como queimar. Juarez Ferreira, o marido, tem a mesma idade que Maria, trabalha como vigilante noturno e faz bicos de pedreiro durante o dia para ajudar na renda da família, que é de mais ou menos um salário mínimo. O último integrante e protagonista da família a aparecer na porta é o Junior, ou Juarez Renato Ferreira Junior, de 26 anos. O passatempo preferido de Junior é assistir filmes e futebol na TV. Na noite anterior, Maria revela que ele ficou até tarde olhando filme, atividade que repete com frequência. Apesar da dificuldade na fala e na cognição, Junior afirma que é colorado, adora comer qualquer tipo de comida e gostaria de sair para passear na rua e jogar bola, mas que a mãe nunca deixa. Mesmo com seus 26 anos, Junior tem um olhar de menino, quase infantil, e sorri constantemente com a alegria de quem não sabe que fora do portão de casa o mundo é bem mais perigoso do que ele imagina. “Várias vezes a gente já pegou ele na rua, andando por aí, não podemos deixar o portão aberto que ele sai. Certa vez o conselho tutelar encontrou ele em Porto Alegre”, diz Maria. A mãe explica que Junior tem problemas psicológicos, revelados desde os dois meses de idade, quando teve o primeiro

ataque epilético. “Ele estava no carrinho, enquanto eu preparava a mamadeira. Naquele momento, começou a tremer, tossir e a revirar os olhos. Nós corremos para o hospital e ele ficou imediatamente internado. Por três anos ele praticamente viveu dentro de um hospital”, descreve. Após esse período de internação, Junior retornou para casa, mas as crises continuaram acontecendo constantemente, mesmo com o uso de três tipos de remédios: Depakene, Carbamazepina e Fenobarbital, também conhecido como Gardenal. Os medicamentos são usados para tratar ataques epiléticos, servindo como anticonvulsivantes e sedativos. Esse último está em falta na farmácia popular onde Maria retira mensalmente as doses, obrigando a família a comprar as caixas que custam, em média, R$90,00. “Ele não pode ficar sem os remédios, senão as crises ficam mais fortes, esse mês eu consegui comprar dois, mas ainda faltou uma caixa”, alega Maria. Mesmo com as limitações decorrentes da doença, o jovem estudava em uma escola para pessoas com necessidades especiais até poucos meses. “Quando ele estava na escolinha ficava mais calmo, tinha mais disposição e parecia mais alegre”expõe Maria. De acordo com a família, Junior não conseguiu mais vaga, pois seria

necessário ficar em turno integral. “Eu queria arrumar alguma atividade para ele fazer, para que pudesse passar o tempo e se entreter”, relata a dona de casa.

OS PROBLEMAS QUE SURGEM COM O BARULHO

Os ataques de Junior acontecem, principalmente, quando ele ouve algum barulho alto e repentino. Uma buzina de carro, um grito, uma porta que bate ou o latido de cachorro faz com que ele comece a ter convulsões, que podem demorar de 3 a 15 minutos. “Quando isso acontece, ele vira os alimentos que tem na mão, então nunca podemos dar café quente, um copo de vidro ou algo que possa queimar ou machucá-lo”, diz Maria. O silêncio é essencial e todos na casa sabem que precisam lidar com isso para evitar as crises do jovem. Os médicos afirmaram que com 18 anos, Junior melhoraria e os ataques epiléticos cessariam. “Hoje, ele tem 26, e continua do mesmo jeito, a gente viu que não melhorou. Reduziu, mas não acabou. Mesmo assim, todos cuidamos bem dele, como sempre fizemos”, explica a mãe. Junior também sente fortes dores de cabeça, devido as grandes dosagens de medicamentos que utiliza para restringir as crises.

DOENÇA QUE NÃO DEIXA RASTROS

Apesar dos exames que seguem sendo realizados com frequência, nada foi encontrado no cérebro de Junior que possa explicar as crises epiléticas que sofre. Algumas pessoas podem desenvolver a doença após lesões ou tumores cerebrais. A causa também pode ser uma lesão que ocorreu antes ou durante o parto, ou adquirida no cérebro, decorrente de infecções como meningite, encefalite, neurocisticercose, além do abuso de bebidas alcoólicas ou de drogas. Mesmo assim, muitas vezes não é possível conhecer os motivos que deram origem à epilepsia. A dona de casa Maria, mãe de Junior, relata que teve ataques epiléticos até os sete anos de idade, mas nunca mais voltou a sofrer crises. De acordo com a Associação Brasileira de Epilepsia, entre cada cem pessoas, uma a duas tem epilepsia. Estima-se que ao redor do mundo existam 50 milhões de pessoas com epilepsia ativa, ou seja, estejam em tratamento ou tenham tido crises no último ano. Nem todos os casos de epilepsia se prolongam durante toda a vida e há um número significativo de pessoas que melhoram até ao ponto de não ser necessária qualquer medicação, como é o caso da mãe de Junior. Embora não exista cura, as crises podem ser controladas com medicação em cerca de 70% dos casos. Somente no Brasil, são registrados cerca de 150 mil casos de epilepsia por ano. Marco Pecker Bibiana Faleiro


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016 |

TRAJETÓRIA .19

Por complicações do sarampo, Celso é deficiente auditivo e a mãe Natália serve de porta-voz

Com força de vontade, Celso superou todas adversidades que a vida lhe impôs

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Quando a voz da luta é a única a ser ouvida

ma casa pequena nos fundos de um terreno em uma das ruas do Bairro Vicentina. Em um dos quatro cômodos da casa, em uma pequena mesa redonda com um arranjo de flor no centro, está Celso Luiz Aires, de 50 anos. Morando junto com seus dois filhos mais novos, Eduardo e Milena, em um terreno que divide com a mãe, ele toca sua vida simples trabalhando em uma fábrica de sabão. A história de Celso quem conta é Natália Maria Aires, a mãe dele, de 68 anos. Quando tinha apenas um ano de vida, Celso contraiu sarampo, a mãe lembra que a febre era muito alta e,em virtude da doença, hoje ele é deficiente auditivo. Logo no início da conversa, ainda no portão de casa, Natália faz uma espécie de desabafo. “Conviver é bem difícil. Complicado mesmo”. Depois de um tempo de conversa, esta declaração faz mais sentido. Quando criança, já com deficiência auditiva, foi impedido de estudar pelo padrasto dele. “Ele [padrasto] era

muito ruim pra gente. Tinha problema com bebida. Sempre que bebia batia em mim e nas crianças”, relembra com tristeza dona Natália. Com isso, a comunicação de Celso com outras pessoas é restrita a alguns gestos e sons que ainda é capaz de emitir. Mesmo sem poder se comunicar como gostaria, Celso aparenta ser uma pessoa muito amigável e receptiva, e recebe as visitas com um aperto forte de mão e um largo sorriso no rosto. “Às vezes ele fica brabo comigo que eu não entendo o que ele quer dizer”, fala Natália sobre o temperamento do filho. Enquanto a mãe nos conta a história dele, Celso tem um olhar curioso e um sorriso simpático, que nunca abandona o rosto. A história da família Aires está longe de ser um contos de fadas, mas daria um ótimo livro ou filme. Com a separação de seus pais, ele mal conheceu o pai biológico. Cansada de apanhar, e ver seus filhos apanharem do marido, dona Natália pega seus dois filhos, Celso e Marco, coloca embaixo dos braços e vai morar com uma das irmãs, em Canoas. Quando achava estar em terreno amigo, Natália se enganou. Após algum tempo, a irmã a expulsa de casa. Com isso, os três vão

morar então com uma outra irmã, em Porto Alegre. Com o tempo, Natália lembra que a convivência se tornou mais difícil. A tia dos meninos ameaça colocar fogo na casa caso a família não saísse de la. “Gente que nem é da família nos trata melhor do que isso”, desabafa Natália. Na pequena casa, que hoje mora com seus filhos, Celso tem um olhar inquieto, como se quisesse participar da conversa ou pelo menos entender o que estava sendo falado. “É muito difícil pra eu conseguir entender o que ele quer dizer exatamente”, comenta mais uma vez dona Natália ao ser perguntada se poderia fazer algum tipo de tradução para que o filho pudesse participar da conversa. Embora o dia seja ensolarado, a casa está escura por causa das janelas e portas fechadas. “Se eu abrir a casa, os patos vão entrar sujar tudo”, explica a mãe. Os patos foram doados a eles há algum tempo, e Natália fala, deixando aparecer um certo sorriso, que qualquer dia desses vai servi-los de janta. Em meados de 1994, a família Aires encontra um lugar no Bairro Vicentina, em São Leopoldo. A vida começa a se ajeitar. Celso conhece uma mulher, com quem namora, casa e tem quatro filhos,

os dois que moram com ele, e mais dois que casaram e saíram de casa. O relacionamento era aparentemente saudável, mas dona Natália lembra do começo do fim. “Ele dava o cartão pra ela ir receber o salário dele. Ela pegava o dinheiro e gastava com coisas pras irmãs e pra ela, e trazia pra casa o que sobrava”, relembra. Um dia, Celso deveria receber uma indenização de um antigo emprego, e a esposa se encarregou de pegar. A mulher, assim como o dinheiro, nunca mais foi vista. Nesta parte da conversa, os filhos mais novos, que acompanham a conversa do sofá, logo atrás da mesinha, ficam aparentemente inquietos e um pouco sem jeito. A vó das crianças, sempre bem-humorada, encara a história da família de um jeito saudável. “Se eu for te contar toda a nossa história, vamos ficar ate amanhã conversando”. Como, infelizmente, o tempo não é tão elástico assim, ela resume a história. Sem a esposa, e com os quatro filhos, Celso contou com a ajuda de parentes e amigos, que construíram uma casa no mesmo terreno onde mora hoje, para que ele e as crianças pudessem morar. Todo o sofrimento só parece ter aumentado o amor e orgulho

entre mãe e filho. O tempo todo, apesar do assunto triste, o tom de orgulho e alegria de ainda ter o filho por perto é presente na fala de dona Natália, mesmo quando fala sobre o temperamento forte do filho. “Ele era muito brigão. Estava sempre arranjando confusão com o irmão e com os amigos”, lembra a mãe. Trabalhador desde jovem, Celso não deixou se abater pela dificuldade de se comunicar com outras pessoas. Hoje, na fábrica de sabão, dona Natália diz que sempre ouve elogios direcionados ao filho. “Sempre me dizem que ele é um ótimo funcionário”, revela com o ar de orgulho. Numa caminhada breve entre a casa até o portão, Celso se despede com o mesmo sorriso bondoso e o aperto de mão. No cumprimento final, ele parece querer dizer “tchau” ou “até logo”. Mesmo não conseguindo dizer com palavras, a mão abanando e a expressão alegre conseguem transmitir a mensagem de alguém que foi privado da capacidade da fala e da audição, mas mesmo assim não se abate e segue sua vida da melhor maneira possível. Matheus Alves Marcela Vargas dos Santos


20. RECOMEÇO

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016

Sonhos que não são amputados Apesar de perder uma perna após acidente, Volmi cuida da mãe e tem planos de ter um sítio no interior

to é excelente. Ele caminha tranquilamente com a prótese. Vai ao centro de São Leopoldo ou a Porto Alegre sozinho. Ou até a mais longe. É natural de Cachoeira do Sul, na região olmi da Rosa Widenhoft Central do estado. Mas a família é um sujeito tranquilo, de Widenhoft está mais concentrada fala calma e olhar que pa- entre Arroio dos Ratos e São Jerôrece focar em várias coi- nimo, na região Carbonífera.“Uma sas ao mesmo tempo, mas sem vez por mês eu vou para Arroio dos descuidar do que está dizendo. Ratos cuidar da minha mãe”, diz orSentado em uma cadeira de praia gulhoso. Dona Eva tem 87 anos e já em frente à sua casa, no outro lado não tem mais a mesma disposição da rua, tinha como companheiro de antes. Precisa de ajuda para o o chimarrão e os acenos e cumpri- banho, para ir ao banheiro e tomar mentos dos vizinhos que por ali seus medicamentos. Durante a passavam. Aos 62 anos de idade, semana é cuidada por uma pessoa é conhecido na região e hoje leva contratada para isso. Os finais de uma vida muito próxima da que semana são divididos entre ele e levava antes do acidente, quan- os cinco irmãos e duas irmãs. “No do perdeu uma perna. final de semana de 17 e 18 de seHoje viúvo, pai de quatro filhos tembro não vou estar em casa, vou (três mulheres e um homem) e lá cuidar da mãe”, adianta ele quanavô de sete netos, Volmi perdeu a do soube que este jornal com sua esposa um mês antes da cirurgia da história sairia em setembro. retirada da perna direita. Disse que Quando questionado sobre os a causa oficial de sua morte foi um sonhos que ainda almeja alcançar, Acidente Vascular Cerebral (AVC), Volmi diz querer ter um pequeno mas que, na época, ela também sítio no Interior onde possa criar fazia tratamento porcos e ter cavalos contra a Gripe para os netos andaSeu Volmi fala H1N1. Daí a suscom tranquilidade rem. Vai aguardar peita de que não sobre a amputação da fosse apenas o AVC perna direita e mostra a causa da morte. imagens dela logo “Juntou tudo. Tive após o acidente um princípio de depressão, mas me recuperei, aceitei e hoje estou bem”, afirma.Teve apoio da família e vizinhos durante essa recuperação.Três dos filhos moram no Vicentina, dois no mesmo terreno onde ele tem uma casa simples de dois cômodos: um é sua sala e cozinha e o outro, o quarto. Ele ficou cerca de três anos e meio afastado do trabalho pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o popular “encostado”, até conseguir se aposentar. Atualmente, vive com cerca de R$ 1,4 mil por mês, mas diz ser suficiente para suas despesas. Os remédios que precisa são, geralmente, para a dor fantasma por sentir dores na perna e formigamento no pé que já não têm mais. A própria medicina reconhece que esta dor fantasma é sentida por pacientes que tiveram algum membro do corpo amputado. Ora sentem dor, ora formigamento em uma parte do corpo que já não mais lhe pertence. Os medicamentos são retirados na farmácia da rede pública de saúde, bem como a prótese que necessita de revisões periódicas e deve ser trocada a cada dois anos. O tratamento é feito no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde, segundo ele, o atendimen-

V

que eles cresçam mais, juntar um “dinheiro”e tentar adquirir uma pequena propriedade talvez perto do restante da família. Sua rotina hoje se divide entre sentar em frente à casa nos dias mais quentes, ora no outro lado da rua, ora no puxadinho da frente da residência; ir ao bar para tomar um refrigerante ou uma cerveja quanto não está tomando remédio, frisa bem; ir à missa às vezes; e idas eventuais a Gravataí, onde mora uma filha. Seu dia a dia não sofre fortes mudanças por conta de ter uma prótese no lugar de uma das pernas. Também não tem obstáculos para falar do que já passou. Mostra, inclusive, raios-x da perna direita quando decepada pelo acidente, com imagens de ossos retorcidos. O andar é mais lento, mas não se torna um obstáculo intransponível. A fácil adaptação às exigências da vida é algo ressaltado por ele mesmo como uma de suas qualidades. Disse que fumou dos 13 aos 39 anos e, por não conseguir andar poucos metros sem que tivesse uma falta de ar, resolvera parar – pura e simplesmente, sem o auxílio de medicamentos

ou outros mecanismos. Apesar da meta de ter um sítio no Interior, ele ressalta o quão bom é viver no Vicentina. Afirma que pode sair por semanas ou meses e que os próprios vizinhos vigiam as casas. “Tem umas coisas por acontecer aqui ainda, mas já tá melhor do que era”, afirma se referindo, também, ao tráfico de drogas da região que teria diminuído. A prótese substituindo a perna direita já faz parte de si. Foi incorporada, ao longo dos últimos três anos, à sua identidade. Hoje, o Seu Volmi Widenhoft pode dizer que tem uma vida normal e que nada se coloca a sua frente como um grande empecilho por não ter um membro do corpo.

O DIA QUE MUDOU A VIDA DE VOLMI

Mais uma semana de trabalho se encerrava naquela sexta-feira, 16 de julho de 2010, para o Seu Volmi. Há alguns dias a Espanha havia ganhado a Copa do Mundo da África e o Brasil entrava em um período eleitoral que culminaria com a eleição da primeira presidente mulher da história do país. Para Volmi, trabalhador da construção civil, era uma sexta como as demais. Saiu cedo de sua casa na Rua Alberto Link, no Bairro Vicentina, em São Leopoldo. Com sua bicicleta motorizada, percorreu a BR116 até a Base Aérea de Canoas, onde trabalhava fazendo reparos em casas e demais estruturas do local. Sua jornada se encerrava às 17h30 quando, então, o trajeto de volta começava a ser feito. Mas um acidente fez com que aquela sexta-feira não fosse igual às outras. Na Avenida Getúlio Vargas, paralela à BR, em Canoas, nas proximidades do viaduto da Rua Boqueirão, um caminhão encontrou o morador e sua bicicleta. Ao chão com a perna esquerda quebrada e a direita completamente esfacelada, ele foi socorrido pelos ocupantes de um carro que vinha logo atrás. Não sabe, porém, se o motorista do caminhão viu que o atropelara ou se ignorá-lo foi algo proposital. Este dia passou a ser um divisor de águas na vida de Volmi. Ele foi levado pelo SAMU para o Hospital de Pronto Socorro de Canoas onde ficara internado por oito dias. Consciente, sabia tudo o que estava acontecendo.“Não pensei que a gente pudesse aguentar uma dor tão forte”, diz. Apesar do grande trauma, havia a esperança de que as duas pernas pudessem ser recuperadas. Mas tão forte foi o impacto na direita que, após três

anos e quatro meses, em novembro de 2013, ela teve de ser amputada. Ele passou, então, a usar uma prótese. Diz que os primeiros meses foram de difícil adaptação a algo novo em seu corpo. Com o tempo, veio a aceitação.

BICICLETAS COMO PATINHO FEIO DO TRÂNSITO

A cultura do uso da bicicleta como principal meio de transporte está novamente voltando ao Brasil. Coletivos se espalharam pelo país principalmente na última década defendendo espaços no trânsito para quem deseja se locomover pedalando ao invés de tomar um ônibus ou mesmo ir de carro. Em Porto Alegre, São Paulo e até em cidades menores, ciclovias passaram a ser construídas em ritmo mais acelerado, embora ainda insuficientes. Mas nem todos os ambientes das cidades ofertam essas faixas que devem ser exclusivas dos ciclistas. Nas periferias, principalmente, ciclovia é tão raro quanto saneamento básico. Os desentendimentos no trânsito são constantes entre todos os modais de transporte. Cada qual acha que merece mais espaço que o outro. E a bicicleta, talvez o meio mais frágil entre os utilizados (só atrás dos pedestres), sofre constantes derrotas quando o que está em xeque é a luta pelo direito de espaço no trânsito. Segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), as mortes de ciclistas representaram 5,2% do total de acidentes fatais no trânsito em todo Rio Grande do Sul em 2015. Foram 91 vítimas que usavam a bicicleta como meio de transporte quando se acidentaram. No entanto, não se sabe em que dimensões esses acidentes ocorreram. Em 2014, o número de ciclistas mortos foi um pouco maior, 126, representando 6,2% das pessoas vitimadas no trânsito gaúcho. Cidades como Bogotá, na Colômbia, reformularam seus espaços públicos nos últimos anos dando atenção ao transporte dos cidadãos com suas bicicletas. Foram implantados mais de 400 quilômetros (Porto Alegre tem menos de 50 km) de ciclovias e ciclofaixas, além de estações de transbordo e também disponibilização de bicicletas públicas à população. O modelo foi copiado de cidades como Paris, Amsterdã e Roma. ANDERSON GUERREIRO ARTUR COLOMBO


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016 |

VITÓRIA .21

A vida da família Motta mudou com a chegada desse menininho

A batalha de um pequeno-grande guerreiro Desde recémnascido, Deivid vem mostrando que nunca é cedo para lutar

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choro na maternidade anuncia a vinda de um novo ser. O ambiente passa de expectativa para de muita euforia. O tão sonhado primeiro filho, primeiro neto e primeiro bisneto, chegou. Junto com ele, vieram os sonhos e a responsabilidade de cuidar de uma nova vida. Um recém-nascido, que inspira cuidados e muita atenção. O xodó da casa de Fernanda Coelho da Motta, Deivid Bernardo da Motta Franco, é um menino de um ano e um mês, que já caminha com extrema habilidade, ensaia as primeiras palavras, é decido – sabe o que quer e a hora que quer – durante a entrevista, sua mãe precisou interromper a conversa para amamentá-lo diversas vezes. Além de ser o caçulinha da família, Deivid é também o mais agitado. O menino está sempre aprontando alguma arte. Mas, sua mãe não se importa de cuidar de um menino tão especial, tão espoleta. Uma gravidez tão tranquila

assim, não foi o prenúncio de um bebê calmo da mesma maneira. Entre a décima segunda e décima quarta semanas de gestação é indicado realizar uma ecografia morfológica, exame indicado para detectar eventuais problemas de má-formação com o feto. A jovem só realizou esse exame quando completara 28 semanas. E o resultado foi um só – estava tudo bem com o menino. Deivid nasceu e Fernanda pôde então se sentir completa: realizara seu sonho de ser mãe. Lá pelos seis meses, época onde o nenê começa a adquirir os primeiros dentinhos, Deivid começou a ter muita febre. Para cuidá-lo, Fernanda se viu obrigada a largar seu emprego em uma farmácia. No começo, ela não estava muito contente com as visitas diárias a médicos e postinhos de saúde do bairro. Mas, foi por insistência da sogra, Silvana Leite de Oliveira, que a mãe decidiu investigar as noites em claro, os choros e a febre do menino. Foi em uma consulta de rotina com a pediatra que foi solicitada uma ecografia de emergência no menino. O atendimento era via SUS, Sistema

Único de Saúde, e por meio dele, o procedimento demoraria muito tempo, Fernanda decidiu pagar para realizar esse exame. Em poucos dias, veio o diagnóstico. “A médica do postinho falou que meu filho estava com um tumor no rim. Que o rim dele era maior que o rim de um adulto. Ela mandou nós procurarmos atendimento especializado imediatamente, senão teríamos riscos de perder meu filho. ”, exclamou Fernanda. No começo, ninguém acreditava que era um tumor. “Eu achava que era uma bolinha de água, uma coisa simples”, lamentou a avó. “Eu não conseguia acreditar que era um tumor”, completou a mãe. Depois do diagnóstico, a vida de Fernanda mudou completamente. Mesmo com o processo de depressão que ela precisou encarar e superar, a dona de casa conta que o câncer mudou completamente a vida da família. “O câncer nos ensinou a viver. Era uma conta e a gente ficava louco, hoje a gente vê que isso daí não era nada. Dinheiro não é nada. O que importa é a vida”, explicou a jovem mãe.

O valor da vida foi ensinado de uma maneira bem dura para essa família. Deivid precisou passar por uma cirurgia para retirar o rim. Feito isso, a mãe do menino possuía duas opções: ir para a casa, com o menino sem tumor, mas com chances dele retornar em algum momento da vida, ou, realizar 30 sessões de quimioterapia e combater de vez o câncer. A batalha iniciou em fevereiro. Até agora já se passaram 25 sessões. O pequeno guerreiro leva apenas uma cicatriz na sua barriga. Marcas que fazem a família de Fernanda lembrar o verdadeiro valor da vida. E de muitas histórias também. O menino, que é bem arteiro, não deixou de ser nem na UTI, Unidade de Terapia Intensiva. Fernanda conta que saiu para almoçar e deixou Deivid sob os cuidados de uma enfermeira. “Quando eu voltei, ele tinha acordado e começou a arrancar os fios que estavam nele. Fora que os médicos falaram que ele estava incomodando as outras crianças que estavam ali junto com ele. E ele foi expulso da UTI. Não passou nem dois dias lá”, relembra com um sorriso enorme no

rosto e dando gargalhada. Nem só de risos é a vida de quem convive com a incerteza do amanhã. Ainda faltam 5 sessões para saber se houve remissão do câncer. Enquanto isso, a família e os amigos de Deivid só rezam e torcem para que tudo termine logo. “Uma vez, uma mãe lá no hospital falou para mim que eu tinha que agradecer a Deus porque ele era pequeno e não vai lembrar de nada disso quando for grande. E é isso que tem me mantido forte”, desabafou Fernanda. Ainda mais forte, o menino é quem dá forças para a mãe. Mesmo com as inúmeras sessões de quimioterapia, o cabelo de Deivid não caiu. “Eu acho que Deus me poupou disso. Deve ser muito sofrimento pra uma mãe ver seu filho carequinha, sem sobrancelhas”, lamentou a jovem. Fernanda falou durante várias vezes na entrevista que os filhos são como uma caixinha de surpresa. Se realmente os são, ela só espera e luta, diariamente para que a surpresa seja um câncer em remissão. Ariane Laureano Milene Magnus


22. GERAÇÕES

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016

Uma forma de redescobrir a vida Aos 69 anos, sem a perna direita, Seu Pedro usa o plantio como terapia

A

pósumalongacaminhada de conversas de repórteres na manhã ensolarada do Bairro Vicentina, o destino quis que Pedro Jesus Teles, 69 anos, morador da comunidade há 27 anos, levantasse da cama para contar-nos um pouco da vida dele. Atualmente, o morador de longas barbas brancas passa o dia em casa, mas não deixou de lado a alegria de viver, mesmo nas pequenas coisas. Com a infância no interior de Gravataí, em Fazenda Fialho, ele cresceu trabalhando nas lavouras com os pais, onde aprendeu e, hoje, revive um pedacinho dessa historia ao cuidar de uma pequena horta no quintal de casa. Solteiro e sem filhos, Teles mora com o sobrinho, com quem ascendeu uma proximidade que não estava acostumado. “Quando um precisa do outro. Estamos sempre à disposição”, afirma o aposentado, com o olhar contente. Apesar da idade e do cansaço visível do idoso, a vida segue. Em casa, a horta do seu Pedro é

repleta de verduras e chás, cultivadas e cuidadas por ele. “Tem de tudo um pouquinho. Cebolinha, alface, manjerona, salsinha e até chá. Dá bastante coisa”, aponta ele sorridente, também lembrando da infância, quando ajudava o pai na lavoura de mandioca. Além da manutenção da horta, a janta e as novelas fazem parte da rotina dele. “Assisto todas as novelas da Globo. A janta a gente faz com o que tem, né?”, relata. A vida de Seu Pedro parece costumeira e simples, se não lhe faltasse uma perna. Os problemas iniciaram em 2007, quando sentiu uma dor muito forte na perna esquerda e acabou tendo que ir ao Hospital Centenário. Lá, descobriu que o problema era o colesterol alto e, segundo ele, por sorte, um cirurgião cardiovascular estava no hospital naquela ocasião e realizou o procedimento. “Dei sorte e três dias depois eu já estava em casa de novo”, relembra JesusTeles. Após a correria, o senhor de fala calma e tranquila teve de tomar diariamente o remédio Sinvastatina, para pessoas com colesterol alto. Medicamento que muito devia ter passado nas mãos dele, já

que trabalhou em farmácia por quase vinte anos. Entretanto, em 2010 ele parou com o tratamento. “Achei que não precisaria mais tomar. Apesar dos Já estava curado problemas, Teles mesmo”, diz como mantém uma horta no pensava na época. quintal de casa Porém, as consequências surgiram três anos mais tarde, enquanto ainda trabalhava na farmácia.“Senti uma dor muito forte na mesma perna.Tiveram que me levar de táxi ao hospital de novo. Eles me disseram que teria que amputar. Fiquei 20 dias internado esperando a cirurgia”, conta. Depois, tentou adquirir uma prótese, mas, dias, vai conduzindo uma rotina segundo a Associação de Assistên- tranquila. Sem grandes problemas cia à Criança Deficiente (AACD), a e sem o diabetes, que o tirou uma perna dele foi cortada muito acima parte do corpo, mas não a felicidapara que pudesse ser utilizada. O de para seguir em frente. homem que andava quilômetros para ir à escola na infância, agora Colesterol: um mal caminha apenas entre um cô- a ser enfrentado Segundo o Portal Brasil, o colesmodo e outro pela casa. Hoje, um amigo da vizinhan- terol é uma das principais causas de ça, conhecido como Nico, o ajuda problemas cardíacos no país. Cerca nas atividades fora de casa. Os dois de 40% da população brasileira tem vão juntos ao centro, onde pagam alto índice do lipídio. O índice da contas, fazem rancho e compras. substância deve ser combatida tamPedro JesusTeles leva a vida mesmo bém por diabéticos, que corresponcom todos os problemas que a vida dem a 9% dos brasileiros. Para se evitar o distúrbio, indilhe apresentou. Em casa todos os

ca-se uma dieta saudável, rica em verduras, legumes, frutas e carnes magras. A realização de exercícios físicos diariamente também é considerada uma das formas de combater o colesterol. Por exemplo, alimentos que ajudam a diminuir o lipídio são couve-flor, ervilha, pão integral, feijão, figo e mandioca. Já as iguarias a serem evitadas por quem sofre o distúrbio são queijos amarelos, carne vermelha, gema de ovos, sorvetes cremosos e camarão. Cassiano Cardoso Vitorya da Cruz

Infância restrita, desejo gigante por amizades Os olhos azuis destoando da pele bronzeada, rosto emoldurado pelos cabelos escuros, roubam a atenção. Só depois de uma observação mais atenta é possível notar que a menina Ingrid Rhaylani de Siqueira Melo, 10 anos, tem algo além da beleza: uma imperfeição. A mão direita de Ingrid é torta, e o braço permanece quase imóvel ao lado do corpo. A perna direita também não se movimenta com destreza, e para andar ela mantém o calcanhar erguido e se apoia com cuidado na ponta do pé, enquanto a perna esquerda garante sustentação. Resultado de uma malformação congênita, os membros do lado direito do corpo não têm desembaraço, mas a fama dentro de casa é que Ingrid, apesar da limitação, tem energia de sobra. “O médico disse que ela não é uma criança que tem paciência”, conta a mãe Rita de Cássia Homem, 41 anos, dedurando a filha: “Ela tá sempre brigando”.

Na escola Paulo Beck, no bairro São Miguel, região vizinha ao Vicentina, a menina cheia de vigor se retrai. É que as crianças debocham de seu problema. Quando questionada se não tem sequer um amigo entre os colegas, mãe e filha respondem que não. “Só aquelas amizades de oi e tchau”, acrescenta Rita. Foi fora da sala de aula, numa aluna três anos mais velha e com síndrome de down, que Ingrid encontrou amizade. Na opinião de Rita, o fato de as duas meninas não serem como as outras crianças é algo que as aproxima.“Acho que os problemáticos se tratam mais bem que os outros”, observa. Rita percebeu que Ingrid tinha algo diferente dos filhos logo após o parto da caçula. O tom roxo na pele da criança causou apreensão.

A pediatra, porém, dizia que o temor era coisa da cabeça da mãe. De tanto insistir, Rita conseguiu que a médica encaminhasse a recémnascida a um neurologista. A intuição materna se confirmou. O que não ficou claro foi o diagnóstico dos médicos. Informa-

Limitação motora impede que Ingrid se arrisque nas brincadeiras, mas não abala vontade de fazer amigos

ções de que Ingrid tem um cisto no lado esquerdo do cérebro, que acabaria atingindo o lado direito do corpo, e de que o parto da menina demorou a se realizar se misturam com exames e mais exames que Rita tira do armário para tentar explicar o problema da filha. Ingrid não se incomoda em falar sobre a limitação no braço e na perna. Acostumada a uma infância sem pular nem correr, restrições impostas pelo médico, ela sabe que, quando for mulher crescida, não poderá usar salto. “Quando meu marido pedir pra eu usar salto, eu não vou usar”, diz. A proibição não é razão para que desista de ser vaidosa. Batons cor de rosa se espalham pelos cômodos da casa, e um par de tênis convencional estampado com a bandeira dos Estados Unidos virou o calçado preferido da menina. Embora consiga superar a proibição do salto alto e das brincadeiras arriscadas, o que

Ingrid deseja é que as crianças da escola parem de implicar. E que virem suas amigas. Vez ou outra ela até tenta esticar a mão direita para deixá-la reta, normal como a dos colegas, mas o esforço termina em dor. “Quando eu deixo a mão certa, dói. Mas eles falam ‘ai, tu não tem a mão torta’”, diz. Na visão de Ingrid, mostrar às outras crianças que seu problema é sério – tão sério que passa os dias engolindo capsulas e comprimidos – fará com que a aceitem do jeito que é. “Vou pedir pra tu tirar uma foto dos meus remédios também”, pede ao fotógrafo, puxando para perto duas caixas de anticonvulsivo e uma de antipsicótico, para controle da bipolaridade. “Daí meus colegas ficam sabendo que eu tomo remédio. Quero que eles gostem de mim”. KARINE DALLA VALLE NATAN CAUDURO


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO DE 2016 |

DIREITOS BÁSICOS .23

A demanda por creches públicas Moradoras da comunidade apontam a falta de vagas na educação infantil como um problema do bairro

E

m meio uma rua de paralelepípedos, vinha uma senhora de cabelos loiros com uma criança em cima dos ombros. O modo descontraído como carregava a menina de dois anos não denunciava nenhum tipo de preocupação. Ao ser abordada sobre assuntos que deveriam estar no Enfoque, Romilda Dejania fez um desabafo. “Eu acho que uma questão importante é sobre as creches. Está uma loucura. Esse mês minha filha teve que começar a trabalhar. A mensalidade está em torno de R$ 600. Não há vagas para creches públicas”, afirmou a avô que cuidava da neta no momento. Romilda ainda contou que as vagas que são oferecidas são selecionadas por sorteio e que demoram até um ano para serem preenchidas. Fiquei refletindo. Já tinha morado no Vicentina e frequentemente visito meus familiares por lá. Por mais que o local me fosse familiar, eu não lembrava se existia uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) pela região.

Fazendo uma pesquisa, descobri que existe a EMEI Brinco de Princesa. Ela foi inaugurada no ano de 2014 e atende cerca de 120 crianças em turno integral. Segundo o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, São Leopoldo tem uma população de mais de 17 mil crianças de 0 a 5 anos. Dessas, um pouco mais de seis mil frequentam escolas de educação infantil. Não foi possível chegar a um número que apresentasse a demanda do bairro Vicentina, porém, a quantidade de vezes que o assunto foi sugerido demonstra uma realidade a ser considerada. Indo atrás de mais perspectivas sobre esse tema dentro do bairro, encontrei Carla da Rosa, professora da rede municipal de ensino e moradora do Vicentina. Para ela, a falta de vagas interfere na organização pessoal e familiar. “Há muitas mulheres que dependem da creche para trabalhar. E dependem do trabalho para sustentar os filhos. Mas só podem trabalhar tranquilamente se tiverem um lugar para deixar os filhos e assim em diante, é um ciclo”, aponta a professora. Além disso, Carla afirma que o município não tem acompanhado a demanda de vagas públicas. Entre as caminhadas do

bairro, encontrei uma amiga antiga. Em um outro dia, não consideraria a menina que fazia bolinhos de terra comigo na infância uma fonte. Mas agora eu falava com uma professora. “As escolas daqui do Vicentina têm convênio com a Prefeitura. As que eu trabalhei sempre estavam lotadas. Não tinham mais vagas”, explicou Tainã Oliveira, formada em Magistério. Na minha infância, lembro que meu pai me levava na garupa, do bairro Vicentina até o bairro Fião, para me deixar na creche. Deviam ser uns 20 minutos de caminhada. Também lembro quando minha irmã mais velha me buscava na escola infantil e nós voltávamos de ônibus sozinhas. Duas meninas, uma de 5 e outra de 10 anos. Para mim essas eram só mais umas lembranças de infância que me deixavam nostálgica. Mas, confrontada com a realidade narrada por Romilda, Tainã, Carla e sentida por tantas outras, mulheres que deixam de trabalhar para cuidar dos filhos, as lembranças de repente suspiravam um problema que suplica solução há anos, sem muitas perspectivas à frente. carolina lima JÉSSICA SANTOS

Aposentada, Romilda cuida da neta para que a filha possa trabalhar fora de casa

Saúde em foco Andando pelas ruas do bairro Vicentina e conversando com alguns moradores sobre problemas enfrentados pela comunidade, o assunto que ganha maior voz da população continua sendo a saúde. Ou melhor, a falta de um atendimento adequado. Em janeiro de 2015, a Secretaria Municipal de Saúde resolveu desativar o Centro de Atendimento que funcionava na sede da Associação de Moradores do Bairro Vicentina (Ambavi). Desde então, segundo moradores, não existe plantão ou atendimento de urgência no bairro. Conforme Geneci Flores, autônoma, 50 anos, o Centro de Atendimento era composto por um pediatra, um ginecologista e um clínico geral, além de enfermeiras que verificavam a pressão arterial. No local também eram realizadas vacinas durante as campanhas. “Naquela época havia dois locais de atendimento no bairro, o Cen-

tro de Atendimento, que ficava na associação e atendia por meio de consultas agendadas com especialistas, e o posto, que atendia plantão e emergências”, explica. “Tudo funcionava muito bem. Não precisávamos sair do bairro para receber atendimento. Agora não conseguimos nem verificar a

Aposentada pede melhora no atendimento às emergências

pressão porque no posto não tem mais emergência”, afirma. O posto que a dona Geneci se refere é a Unidade Básica de Saúde (UBS) Vicentina, localizada na Rua Frederico Guilherme Schmidt, esquina Thomas Edson. Na época do fechamento do Centro na Ambavi, a proposta

da Prefeitura de São Leopoldo foi concentrar os atendimentos apenas em um local, ou seja, na UBS. Porém, a população não foi orientada de que o serviço de emergência não iria mais existir na unidade. Hoje, o local realiza apenas consultas por agendamento, com horário de atendimento das 8h às 12h e 13h às 17h, de segunda-feira à sexta-feira. O que mais chateia os moradores é que, durante cerca de 20 anos o atendimento à população funcionou muito bem na Ambavi. “O atendimento à saúde está precário. Nós temos a UBAM (Centro de Saúde), mas não é suficiente para atender toda a comunidade. O serviço que tinha na associação faz muita falta”, insiste. “Tinham ótimos médicos, um atendimento muito bom e uma estrutura boa, que conseguia atender a todos”, complementa a aposentada, Leontina

Maria Grasel, de 69 anos, moradora do bairro há 12 anos. Além da questão da falta do atendimento emergencial no bairro, os moradores também questionam sobre a falta de um posto 24 horas na comunidade. “A doença não tem hora para chegar e, na maioria das vezes, precisamos de atendimento à noite. Hoje, precisamos ir para outros bairros, o que acaba dificultando, principalmente aqueles que não tem carro e dependem de ônibus”, ressalta a dona de casa Roselaine Nascimento, 45 de anos. Entramos em contato com a Secretaria de Saúde de São Leopoldo solicitando uma posição em relação aos pedidos da comunidade, porém, até o fechamento dessa matéria não obtivemos retorno. Luana Cunha Jéssica Santos


ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO (RS) SETEMBRO DE 2016

EDIÇÃO

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Da terra ao asfalto Claudio dos Santos destaca as mudanças do bairro Vicentina

“N

asci e me criei aqui”, conta orgulhoso Claudio dos Santos, 66 anos, morador da região desde a década de 1950. O motorista aposentado, criado no bairro, recorda como foi a sua infância no Vicentina.“Aqui era tudo banhado, ao longo dos anos as ruas foram tomando forma. Quando eu era criança havia poucas casas na região”relembra. Após casar-se com Eva Maria dos Santos, Claudio mudou-se para a Rua Manoel dos Passos, número 738. “Mesmo casado decidi que continuaria morando no bairro. Apenas saí da casa dos meus pais para comprar a minha casa própria”, enfatiza. Segundo Claudio, o bairro foi ganhando forma quando empresas foram se instalando na região. “Para ter uma ideia, onde hoje fica localizada a Gedore também era um banhado”. Segundo ele, o Vicentina começou a mostrar um crescimento a partir do primeiro mandato do prefeito Waldir Schmidt (1983 a 1988) quando algumas ruas começaram a ser asfaltadas. “Antes, as ruas eram todas de chão batido.

Lembro-me que o prefeito ajudou muito no crescimento do bairro”, recorda o aposentado. Falando em político, Claudio comenta que os moradores do Vicentina têm que melhorar muito sua visão conjuntural. “Muitos vereadores vêm aqui fazer campanha, prometem melhorias e depois esquecem da gente. O que, também, nos torna culpados porque a maioria da população vota em quem não é do bairro”. Os vereadores eleitos são pessoas que não moram no Vicentina e que pouco sabem dos problemas da comunidade.

A atual Ocupação Cerâmica Anita, também era um banhado. “As pessoas começaram a invadir a área e a prefeitura teve que intervir, transformando-a em um loteamento”, relata Claudio. O morador acredita que essa modificação do ambiente natural não é positiva, pois o rio teve seu caminho alterado.“O banhado era a vazão do rio, com a invasão cortou o seu fluxo”, completa. Conforme o aposentado, o principal problema doVicentina é a segurança.“Muitas pessoas vêm de outros bairros fazer bagunça aqui”. Porém, Claudio destaca que não foi

Claudio dos Santos: “Foi aqui que eu me criei e será aqui que vou ficar até o fim dos meus dias” por causa da ocupação Anita que o índice de assaltos aumentou.“As violências aqui do bairro são de vândalos de outros locais”. Para ele, a saúde no Vicentina também tem que melhorar. No bairro só tem um posto de saúde que atende de segunda a sexta-feira e não têm especialistas. “Em situações de emer-

gência, de noite ou nos finais de semana nós temos que procurar o hospital mais próximo”. Mesmo com alguns problemas como segurança e saúde, Claudio reforça que não pretende se mudar do bairro. “Foi aqui que eu me criei e será aqui que vou ficar até o fim dos meus dias. Problemas todo lugar tem. No Vicentina tem muitos moradores bons que viram o bairro crescer e que lutam por dias melhores”. ElizAngela Meert BASILE Fernanda Forner Murilo Dannenberg

OLHAR DE REPÓRTER

A arte de escutar histórias Ao chegar no Vicetina, entendi claramente o que era Jornalismo Cidadão. Em uma das primeiras casas em que passei, me chamou a atenção a simplicidade no rosto da moradora Rose Mari Rodrigues. Entreguei um jornal e nisso ela me disse “Entra moça, senta um pouco”. Não neguei, chamei a fotógrafa Kellen Dalbosco, que deu um toque especial em cada foto, nos convidou a entrar e sentarmos para conversar com ela. Vi que Rose demorou um pouco para buscar as cadeiras e quando voltou nos disse, um pouco encabulada, “Desculpa, mas são essas as minhas cadeiras, fiquem a vontade”. Ela não tinha cadeiras, mas improvisou um local para sentarmos. Com cuidado, eu e a fotógrafa sentamos. Na minha cabeça eu pensava como poderia

escrever algo que ajudasse aquela mulher, escutando atentamente a história dela. Ela chorou e nós estudantes de jornalismo, com gana de histórias boas, seguramos

o choro diante do relato daquela simples e grande mulher. A enchente levou tudo o que ela tinha, mas deixou uma força imensurável para vencer os obstáculos.

Como repórter pude sentir ali que o Jornalismo Cidadão era uma forma de ajudar quem tem tão pouco, mas que faz de tudo para lutar e ter uma vida melhor. Mas as emoções da saída para o Vicentina não pararam por ai. Algumas quadras a diante, a aposentada risonha Lúcia Correa (foto) – um poço de humor – nos abanou na janela. Cumprimentamos ela e perguntamos se podíamos entrar. Faceira, ela não nos negou uma boa conversa e dezenas de risadas. E mais uma vez o Jornalismo me presentou com uma história de luta, de quem faz de tudo para superar as dificuldades em meio a tantos obstáculos. Lúcia contou para nós os problemas com a filha deficiente, os problemas das inundações, e, no final de cada relato, dava um jeito de fazer

uma brincadeira conosco. Saindo da casa dela – a verdadeira rainha do bom humor – senti que ser repórter de Jornalismo Cidadão é uma arte. A arte de ouvir histórias e fazer com que elas não fiquem guardadas, mas que sejam lidas para que a população, órgãos maiores vejam que há muitas pessoas que precisam de ajuda e que mesmo diante de tantos problemas procuram não desistir de lutar. No final da saída percebi que o Jornalismo Cidadão é se colocar no lugar do outro, é contar suas existências da maneira mais sensível possível. Porque as histórias não são apenas um texto, mas uma vida expressa em uma folha de jornal. Graziele Iaronka Kellen Dalbosco


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