Enfoque Vicentina 13

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Médiuns umbandistas trabalham em prol da caridade no bairro. Página 8

Grégori Soranso

Natan Cauduro

Isaías Rheinheimer

Religião

DIVERSIDADE

A história de amor entre duas mulheres. Página 21

PROMESSA

O voto em troca de uma cirurgia. Página 22

ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / rs OUTUBRO DE 2016

EDIÇÃO

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LUCAS ALVES

Práticas populares moradores dão um jeito de reinventar suas vidas para enfrentar criativamente as necessidades do cotidiano. páginas 3 a 8


2. EDITORIAL

A

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | OUTUBRO DE 2016

Um bairro sob diferentes olhares

ções, costumes, negócios, curiosidades. São inúmeras as possibilidades que o bairro Vicentina nos oferece. Nesta edição do Enfoque você vai conferir um pouco dessas práticas que estão às margens do que a sociedade reconhece. Fomos às ruas do Vicentina na procura dessa capacidade humana de se reinventar, de se ajudar enquanto comunidade e de ser criativa diante das dificuldades apre-

sentadas pela vida. Diante dessa luta, as poucas promessas políticas e a carência de representantes da comunidade são pontos relatados pelos moradores do bairro. Isso nos mostra que as pessoas querem e precisam falar sobre assuntos básicos para o bem estar da região. Enquanto isso, promessas e barganhas são feitas em troca de votos. Nossos repórteres percorrem o Vicentina com um olhar mais apurado e abordam assuntos

que mostram as necessidades e problemas enfrentados pela população. O saneamento básico – tema da matéria central desta edição – é bastante criticado pelos moradores da nova Ocupação Cerâmica Anita. A realidade contraditória do arroio João Corrêa, a infinidade de lixo que se mistura com uma paisagem paradisíaca, o projeto “Que lixo é esse?” e os problemas com as queimadas, entre outros, mostram tanto os desafios quanto as belezas do lugar.

Histórias de mulheres do Vicentina que refletem uma realidade de dificuldades e de muita superação, coragem e energia, também serão destaque. Jovens ou idosas, elas não se deixaram abater por uma realidade nem tão satisfatória assim. São mulheres que prezam pela independência e pelos prazeres da vida. O movimento feminista, com mulheres cada vez mais fortes e unidas, reflete na sociedade, no dia a dia, na economia e na política. E se

ainda não for possível desconstruir o machismo diário, que seja possível expor essas atitudes e que mulheres como as do Vicentina sirvam cada vez mais de exemplo e inspiração. Embora sabemos que ainda há no bairro mais vida, movimento, intensidade da que conseguimos narrar, tentamos, nesta edição, pincelar alguns traços do Vicentina. Convidamos a leitora e o leitor a nos acompanhar neste percurso pelo próprio bairro.

Ariane Laureano e Matheus Alves

IMAGEM

VERÔNICA lUIZE

Apesar de degradado pelo homem, o Rio dos Sinos ainda permite que a vida aconteça entre muitas espécieis

ENTRE EM CONTATO

(51) 3591 1122, ramal 1329

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Avenida Unisinos, 950 – Cristo Rei São Leopoldo – RS Cep: 93022 750 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

PRÓXIMA EDIÇÃO 14 Novembro / 2016

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade do bairro Vicentina, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é publicado a cada dois meses e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

EDIÇÃO E REPORTAGEM

Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Sonia Montaño. Edição geral: Ariane Laureano e Matheus Alves. Edição de textos: Ariane Laureano, Denis Machado, Fernanda Forner, Graziele Iaronka, Guilherme Chaves, Jéssica Zang, Juliana da Silveira, Marcella Lorandi, Matheus Alves e Tiago Assis. Reportagem: Anderson Guerreiro, Ariane Laureano, Carolina Lima, Carolina Zeni, Cassiano Cardoso, Daniela Tremarin, Denis Machado, Eduardo Brandelli, Eduardo Zanotti, Elizangela Meert Basile, Ellen Renner, Fernanda Forner, Fernanda Bierhals, Franciele Gabriela Wenzel, Graziele Iaronka, Guilherme Chaves, Guilherme Rossini, Jéssica Zang, João Arthur Moraes, Júlia Ramona, Juliana da Silveira, Karine Dalla Valle, Laura Gallas, Leonardo Ozório, Luana Cunha, Marcella Lorandi,

Marco Pecker, Matheus Alves, Paola Rocha, Priscilla Mella e Tiago Assis.

FOTOGRAFIA

Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: André Luis Michel Júnior, Artur Cardoso Colombo, Bibiana Faleiro, Caroline de Souza Tidra, Eduarda Galarça da Silva Alves, Elias Ambieda de Vargas, Fernando dos Santos Campos, Gabriel Aita Ost, Gabriel Appelt Nunes, Gabriel Bickel Scopel, Grégori de Moraes Soranso, Guilherme Petry Rovadoschi, Isaías Roberto Rheinheimer, Jéssica Carina Mendes dos Santos, Kellen Guaragni Dalbosco, Lucas Nizzola de Souza, Lucas Rafael Alves, Lucas Rodrigues Américo, Lucas Weber Lanzoni, Marcela Juliane Vargas dos Santos, Marcelo Janssen Neri da Silva, Milene dos

Santos Magnus, Murilo Dannenberg Martins, Natan Magri Cauduro, Nicole Thaís Roth, Rafaela Silveira Trajano, Rodrigo da Rosa Pereira, Thiago Gomes Borba, Verônica Torres Luize Pestana, Victor Dias Thiesen, Victória Rambo de Lima e Vitorya da Cruz Paulo.

ARTE Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia Diagramação: Mariana Matté

IMPRESSÃO Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS Tiragem: 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 750. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


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PRÁTICAS POPULARES .3

Um reduto do esporte no Vicentina

Conheça os times de rugby e futebol americano que atuam no Parque do Trabalhador

A

lém de um espaço para a livre prática de atividades físicas, que é de conhecimento de todos os moradores, o Parque do Trabalhador também abriga três equipes esportivas que treinam em suas dependências. O São Leopoldo Coyotes, equipe de futebol americano, que treina todos os sábados pela manhã, o Pampas, equipe de rugby, que também treina aos sábados pela manhã e o São Leopoldo Mustangs, outra equipe de futebol americano, que utiliza o parque nos sábados à tarde. Os treinos de algumas destas equipes são abertos ao público, e alguns moradores do bairro já fazem parte dos times, como é o caso de Emerson da Silva, o Canela, de 15 anos, que faz parte do time juvenil do Pampas, e de William de Oliveira Severo, de 24 anos, que joga como safety no São Le o p o l d o C o y o t e s .

TREINOS DE RUGBY NAS ESCOLAS

Emerson, conta que conheceu o Pampas após o vice-presidente e capitão do time ter visitado sua escola e feito um

exercício de rugby para convidar os alunos a participarem da equipe. “O Israel veio lá no meu colégio, o Castro Alves, e passou um treino, daí eu gostei e comecei a treinar”. Canela está treinando a um mês no juvenil do Pampas, mas está gostando muito e não pretende parar. “Agora eu treino no juvenil, mas quero seguir praticando e quando ficar mais velho entrar no time adulto”. O vice-presidente do Pampas, Israel Quadros disse que o time busca ter presença na comunidade e divulgar o esporte, fazendo cada vez mais visitas em escolas e trazendo as pessoas desde cedo para o rugby. “Temos um projeto em parceria com as federações, para capacitar os professores de educação física do município a ministrar aulas de rugby nas escolas, com objetivo social e de desenvolvimento do esporte”. Além dos treinos, os jogos de rugby do Pampas acontecem no Parque, e segundo o capitão da equipe, era comum ter bastante público nas partidas. “A aceitação do bairro é boa” completou Israel. Existe ainda um projeto para tornar um dos campos de futebol do parque em um campo oficial de rugby, para que possam ser sediados treinos e jogos da seleção gaúcha, mas, se-

Elieslen (abaixo, centro), William (direita, de boné) e Emerson (abaixo) apostam no esporte e aproveitam os treinos no Parque do Trabalhador

gundo Israel, esse projeto ainda está em andamento.

A CURIOSIDADE É A PORTA DE ENTRADA PARA O FUTEBOL AMERICANO

O Coyotes também tem sua participação no dia-a-dia do bairro, a equipe é nova, fundada ainda este ano, mas já cresceu bastante e conta com alguns moradores do bairro no elenco, como é o caso de William. O jovem tem 24 anos e afirma que o esporte sempre fez parte de sua rotina, ele conta que conheceu o Coyotes pelo Facebook, ficou curioso para aprender um esporte novo e resolveu vir treinar junto com a equipe. “Agora eu assisto os jogos na TV e já consigo entender o que está acontecendo, antes eu não entendia nada, mas sempre tive curiosidade, e essa curiosidade e vontade de aprender um esporte novo foram os principais motivos que me levaram a treinar com os Coyotes”, explica o jogador. O presidente do time, Gabriel Fernandes explica que normalmente a curiosidade é a principal porta de entrada. “A gente nota que os moradores passam aqui perto durante o treino e ficam olhando, é algo diferentee desperta o interes-

se pela curiosidade”. Gabriel também afirma que a equipe possui a intenção de fazer um projeto social na comunidade, mas ainda não conseguiu executar nada do gênero, “Não possuímos nenhum tipo de trabalho social ainda, mas sempre que possível buscamos integrar pessoas da sociedade com o time”, terminou Gabriel.

UM ESPAÇO LIVRE PARA QUALQUER ATIVIDADE

Além das equipes que treinam, muitas pessoas se reúnem para vir ao parque praticar esportes de forma independente, como é o caso de Elieslen Ricardo da Silva, de 18 anos, que vem ao parque jogar futebol de segunda a sexta e quando possível também vem aos finais de semana. “A gente se reúne aqui há mais de quatro anos pra jogar futebol, quase todo dia, as vezes têm mais gente, as vezes menos, normalmente tem uns 10”. Segundo Elieslen, a ideia surgiu entre amigos, um dia eles resolveram vir jogar e virou um costume que já dura 10 anos. “A gente gosta de jogar futebol, faz bem pra saúde, e o campo aqui é um bom lugar”. Ele completou falando que existe agora um projeto de se fazer um time amador para treinar no parque, “Um

amigo nosso, que é vereador da cidade, deu a ideia de patrocinar um time amador com as pessoas que jogam aqui no parque”. Ao ser perguntado sobre a importância dos esportes e de ter um lugar para praticá-los, ele disse: “O esporte sempre faz bem, e ter um lugar assim aberto é bom, é só chegar e jogar. Tem um pessoal que joga aqui, naquele campo, que se reúne a mais de 50 anos pra jogar, é um pessoal mais velho, jogam todo o domingo de tarde”, respondeu Elieslen apontando para o campo onde joga o outro grupo. A grande influência das práticas esportivas do Parque do Trabalhador na vida dos moradores da Vicentina é tanta, que você anda na rua e, às vezes encontra um grupo de crianças que, em vez de estarem jogando futebol, estavam trocando passes com uma bola de futebol americano, Influência direta das equipes que treinam no bairro. O Parque é aberto a todos e, no caso das equipes esportivas, os responsáveis por ambas as que treinam nos sábados pela manhã afirmaram que os treinos são abertos, é só aparecer no horário e pedir para participar. Eduardo BRANDELLI ELIAS VARGAS


4. PRÁTICAS POPULARES

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Pães que transformam vidas Quando o dinheiro fica escasso, a troca de serviços e a doação reforçam a solidariedade na comunidade

O

cheiro de pão quentinho já circula pelas casas da avenida João Alberto, mais precisamente naquelas que ficam próximas do nº 2095, onde está localizada a Padaria das Gurias. É lá que trabalha a padeira Élida Roseli Martins, 46 anos, também conhecida como Lilica ou Lili. Roseli, como prefere ser chamada, é casada com o também padeiro Felipe Dias Oliveira, 36 anos. A família se completa com as filhas Caroline Stefano, 27 anos, e Rafaela Oliveira, 10 anos. Roseli conta que a ideia da padaria surgiu da irmã mais velha, Ellen Rosieri Martins, há 4 anos. Elis Rosana Martins reuniu-se ao trio das irmãs empreendedoras e juntas fundaram a Padaria das Gurias. Com o pouco do dinheiro que cada uma tinha guardado e com a ajuda do pai, a padaria foi tomando forma, cresceu e ganhou clientes. Segundo Roseli, no início elas não davam conta da demanda, tamanha foi a aceitação do comércio na região. “Eu e minhas irmãs trabalhávamos sem parar. Meu marido, que era padeiro em outro lugar, saia no fim do expediente e vinha para cá para nos ajudar. Era um tempo bom para

os negócios”, comenta. Mas a crise chegou, levando os clientes e o bom momento que passava a padaria. As irmãs Ellen e Elis decidiram sair da sociedade, deixando apenas Roseli como proprietária. Com a falta de dinheiro, os clientes começaram a comprar fiado e, para não perder as vendas que já estavam fracas, Roseli aceitou, mesmo sentindo no bolso a redução das receitas. “Antes, eu comprava R$500,00 de fornecedor e pagava na hora. Agora, eles deixam na confiança para eu pagar assim que der. Como eu confio nos clientes que compram fiado, os fornecedores confiam em mim”. Foi nessa troca de confiança que certo dia, o rapaz que corta a grama da casa de Roseli se ofereceu para realizar o trabalho em troca dos pães da padaria. “Ele fez umas compras e não podia pagar. Aí disse que cortaria a grama para quitar a dívida. Eu aceitei”, explica a padeira. Mas essa forma de negócio que não envolve dinheiro, apenas trabalho, acabou se tornando mais comum do que a comerciante imaginava. “A gente troca serviço. Um rapaz corta a grama para mim e leva pães. Uma menina traz produtos de limpeza, aí ela pega cuca, pega pão. A gente acaba se ajudando”, declara. A padeira lembra a história do técnico em refrigeração que arrumou o freezer estragado, cujo valor do concerto foi de R$80,00.

A primeira fornada de pães já está pronta no início da manhã

“Ele pediu para deixar esse valor na conta. Assim, a esposa dele leva alimentos quando precisa e vai descontando. Infelizmente não é muito vantajoso, nem para mim nem para eles. Parece que voltamos lá para os primórdios, quando não existia dinheiro e era só troca de serviços. Mas me sinto bem por saber que estou ajudando alguém”, explica.

Da troca para a doação

A corrente de trocas vai muito além da ação de dar e receber. A padeira Roseli já realizou di-

versas doações, principalmente quando a padaria estava em boa fase. “Nas festas de Dia das Crianças, eu sempre ajudava com um pacote de salsicha, com pães ou o que precisassem. Nas épocas boas, a gente chegou a doar a produção de um dia inteiro”. Com emoção, Roseli conta que todos os dias uma criança do bairro vai pedir pães, chega na porta e grita “ô tia da padaria”. “E eu sempre dou uns dois cacetinhos para ela. Só quando eu não tenho mesmo para não doar. Eu não tenho coragem de negar pão para

uma criança”, confessa. Quando perguntada sobre a palavra que define sua vida de trabalho, Roseli não demora para responder. “Esforço. Embora eu tenha vontade de desistir, eu não posso desistir. Eu não vou desistir. Eu queria ter uma padaria cheia de coisas para vender, mas não tenho como. Mas eu tenho esperança de que vai melhorar”. Certamente, Roseli não está sozinha com esse desejo. Marco Pecker Bibiana Faleiro

Espaço de todos Na esquina movimentada da Av. João Alberto, o Mercado 2000 traz mais que mercadorias e promoções, narradas em alto e bom tom pelo Gaudério Simão, que fica sentado em sua banqueta, ao lado do balcão de entrada do comércio. O Mercado, há mais de dez anos, traz uma forma singular de promover a comunicação de todo o bairro, disponibilizando um espaço onde qualquer um possa ofertar e também encontrar produtos, eventos e serviços, uma espécie de mural da comunidade. O fluxo de papéis, que lembra muito os classificados de um jornal, no mural é tão intenso que o Mercado precisa fazer uma renovação de ofertas mensalmente. Grande e de fácil acesso, em frente aos caixas de pagamento do Mercado, ao lado esquerdo de quem entra e direito de quem

sai. Essa é a posição do amplo mural do mercado, com bordas de madeira e fundo coberto por um feltro verde bandeira, o quadro aceita todo o tipo de oferecimento. O gerente administrativo Dionata Cruz dos Reis, 26 anos, conta que o quadro é mais antigo que sua chegada: “Esse mural está aí há mais de dez anos, chegou antes de mim no Mercado”. Enfatiza ainda que o espaço é uma forma que o bairro tem de expor os eventos que acontecem na região, bem como promover mais a economia local.

MOVIMENTAÇÃO

Como dito, o mural é algo muito usado e, por isso, há uma grande movimentação e troca de papéis. Dionata explica que, por serem inúmeros anúncios, o Mercado estipulou (com um recado centralizado no quadro)

No mural, ao lado do gerente administrativo Dionata, é possível desde trocar sua residência por outra até garantir a “galinha assadinha” para o final de semana

que todos deveriam ter uma data de expedição, ou seja, quem alfinetar seu papel a fim de divulgar algo deve colocar a data em que está fazendo isso. Cada aviso tem uma “validade” de 30 dias para ficar pregado no mural e disponível para todos os usuários do comércio.

Dessa forma, o quadro passa a ter uma rotatividade grande de comunicados, além de manter o espaço sempre atualizado. Afirma ainda, depois de se certificar com um outro funcionário local, que mensalmente são recolhidos mais de 50 informativos, o que confirma a importância

dessa prática popular para os moradores. Considerando que o mercado existe há 16 anos e mais da metade dele o mural fica aberto ao público, o gerente reconhece que existe um valor forte do painel para os residentes locais. Inclusive se surpreende ao ser questionado a respeito, pois explica que para ele a popularidade do quadro é normal, talvez por vê-lo todos os dias.

O MURAL

Infelizmente, no dia em que os repórteres chegaram ao local, o quadro não continha muitos avisos. “Pena que vocês só vieram hoje, se tivessem chego há dois dias esse mural ia estar cheio, lotado de papéis”, lamenta o gerente do Mercado 2000. Priscilla Mella Gabriel Aita Ost


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PRÁTICAS POPULARES .5

Morro de roupas e de amor Dona Santina e Seu Adão reúnem mais de uma tonelada de mudas para venda na comunidade

O

sábado havia amanhecido bastante cinzento, mas quando o ônibus estacionou naquele grande terreno de chão batido, o sol já começava a aparecer entre as nuvens. E foi junto com ele que o sorriso cativante de Santina Machado, 68 anos, surgiu enquanto dobrava uma muda de roupa entre centenas sobre uma mesa. Enquanto isso, do lado de dentro da casa, Seu Adão Machado já começava a preparar o almoço. Ela parecia estar bastante atarefada, mas assim como o sol apareceu para iluminar o dia, a moradora também chegou para nos contar um pouco sobre o comércio têxtil no Vicentina. Ao abordá-la, numa casa de dois pisos, alugada, sem muros para a rua e com o dono morando na parte de cima, já notamos uma pessoa receptiva.“Vou pegar uma cadeira para vocês”, disse, pouco antes de retirar um morro de calças de cima de um banco. Dali do lado de fora, bastava dar uma espiadela na porta que se via um sofá lotado de roupas em frente à TV. Todas à venda. Ela mora no Vicentina há oito meses, mas realiza a prática há mais de 50 anos. “Sempre gostei muito de roupa. Recebo

doações de muitas pessoas e compro também”, conta. Tudo começou quando ainda trabalhava como doméstica, aos 18 anos. “Eu ganhava roupas das minhas patroas e vendia no bairro em que eu morava, em Alvorada”, relembra. De lá para cá, Santina passou a levar a revenda de roupas como uma segunda renda. Porém, atualmente a crise parece ter dado as caras no bairro. “Acabei acumulando este monte de roupa de uns tempos pra cá. Tô vendendo muito pouco. É

o amor um do outro. Entretanto, em um certo momento da entrevista, ele apareceu com um antigo quadro. “É do tempo em que nós casamos. As fotos ainda eram pintadas”, aponta o morador. “Ele cuida muito desse quadro”, completou a esposa. Com sete filhos e 29 netos, Santina é aposentada e Adão está encostado, mas caminhando à aposentadoria. O dinheiro que recebem ajuda no aluguel e nas contas. Quando perguntada se a renda pagava todas as contas,

Há nove meses morando no Vicentina, Dona Santina acumula roupas pela falta de venda em seu brechó

ela foi sucinta: “Nem que não dê. Tem que dar. Se eu pudesse, comprava uma casinha, mas vai tudo no aluguel, nos remédios e em comida. A venda das roupas ajuda a colocar um saco de pão na mesa, né?”, conta a moradora. Em meio à dificuldade, a aposentada tem asma e, há três anos, teve derrame e quebrou um braço, ficando totalmente impossibilitada de fazer esforço. Após uma longa conversa, finalmente conhecemos a casa de Santina. O local possuía roupas em todos os cômodos. De acordo com ela, quem chegar com R$ 500 leva tudo.“Quem pagar, vai lucrar uns R$ 2 mil aqui”, destaca. Sobre os preços separados, ela enumera. “Tem essas calças de brim. 10 pila cada uma. Tudo coisa boa. Às vezes a gente vende umas roupas fiado e parcelado”explica. Segundo ela, não tem como abrir um brechó, pois a garagem é ocupada pelo dono da casa. Porém, ainda assim, sem espaço, Santina recebe doações de roupas de outros moradores do bairro para revender. Para o futuro, o sonho da casa própria flutua sobre a mente deles.“Quero comprar meu cantinho e sair daqui. Já sofri muito. Tem tanta coisa faltando, que hoje vou receber R$ 50 e não sei no que gastar primeiro”, desabafou Santina. Cassiano Cardoso Vitorya da Cruz

Pequenas trocas Quando a necessidade aperta, a solidariedade aparece e a troca vira uma solução. Berenice Flores, 59 anos, é um vivo exemplo disso. A moradora faz salgadinhos, doces e tortas para vender e pagar as despesas de casa onde mora com o marido e a mãe, e bancar a faculdade de gastronomia, que cursa na Uninter, em Porto Alegre. Mas o modo de cobrança chama atenção: ela é bem flexível com a forma de pagamento. O trato é o seguinte. Caso algum cliente não tenha dinheiro suficiente para pagar o preço total do produto, ela aceita ingredientes na troca. “Uma vez me ofereceram um quilo de farinha e na permuta eu assava um pão”, afirmou Berenice que, na época, morava em apartamento no bairro vizinho. Quando se mudou para

muito difícil quem compre”, conta a vendedora que, antes de morar no Vicentina, passou por outros bairros de São Leopoldo, mas é natural de Rodeio Bonito. Entre uma pergunta e outra, ouvia-se alguns murmúrios. Ela respondia: “ô, metido, deixa eu falar”. E naquele momento, um homem alto, de boné e bigode bastante característicos, aparecia na porta. Era seu marido Adão. Como um bom casal, às vezes eles se retrucavam entre uma pergunta e outra, na tentativa de esconder

o Vicentina, notou a falta que os moradores sentiam de um lugar onde comprar pão e farinhas em geral. Sem condições financeiras, a moradora resolveu transformar sua casa numa espécie de mercado e oferecer os produtos na janela.

A negociação dos ingredientes acontecia mensalmente, quando os clientes dela recebiam as cestas básicas das empresas onde trabalhavam. Além de trocar, ela também fornecia um desconto no preço final. “Uma vez tive uma cliente que fez uma encomenda que custou 40 reais, mas ela só tinha 20, então acei-

tei e fiz por assim mesmo”, recorda Berenice. Certo dia chegou uma mulher dizendo que precisava de pão, mas não estava com dinheiro, só tinha farinha e açúcar. Então sugeriu entregar os ingredientes em troca do pão. “Achei interessante e, além disso, eu estaria ajudando uma mãe a alimentar seus filhos. E a partir daí sempre que vem alguém querendo trocar uma matéria prima por algum produto meu eu aceito”, afirma a confeiteira. Às vezes, a vida acaba recompensando as pessoas pela gentileza ou pela boa ação que fazem. A confeiteira Berenice explica De tanto aceitar como funciona a ingredientes como troca de produtos moeda de troca pelos produtos a moradora foi “presenteada” com uma situação inusitada. “Um dia chegou um cliente aqui no portão de casa e me encomendou um bolo. Ele pa-

gou pelo serviço, mas nunca veio buscar, não sei quem é, não o conheço. Cheguei até a congelar o bolo por uma semana, mas ele não apareceu. No dia que ele encomendou eu esqueci de pegar seu telefone, cheguei até a perguntar para os vizinhos se alguém o conhecia, mas ninguém sabia quem era”, lembra Berenice que além de ganhar um dinheiro extra acabou comendo o bolo. O escambo é uma troca em que duas ou mais pessoas entregam um bem ou prestam algum serviço para receber algo em forma de crédito, sem que envolva dinheiro. Este ato já é praticado há muitos anos, inclusive durante a colonização portuguesa no Brasil. Os índios que aqui viviam não conheciam qualquer forma de moeda, então eles trocavam coisas entre si e com os portugueses. Eduardo Zanotti Lucas Américo


6. PRÁTICAS POPULARES

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O cultivo da confiança Para além dos produtos, o importante está nas relações

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casa de grades azuis e paredes brancas parecia ser apenas mais um bar como tantos outros localizados no bairro. Porém, a intuição que me levou até o local vinha de um desejo de contar mais sobre os lugares que marcaram meus primeiros anos de vida, quando fui moradora do Vicentina. O Bar da Dona Olívia, localizado na rua João Alberto, diariamente cumpre o papel de socorrer os moradores em seus problemas. A primeira razão para entender o diferencial do local vem do motivo de o bar não ser apenas um bar, mas também de não se limitar a ser apenas um armazém. O comércio é diverso e vende desde materiais escolares, meiascalças, desodorantes até doses de cachaça, cervejas, refrigerantes, além frutas, verduras entre tantos outros produtos. A segunda razão vem da forma como os negócios são feitos. São muitos os clientes que fazem suas compras através do caderno de armazém. Cada um tem seu caderno e toda vez que vão comprar,

anotam o que compraram para fazerem o pagamento depois. O acerto é por mês, mas segundo Olívia Engel, ou dona Olívia como prefere ser chamada, os proprietários já tiveram bastante prejuízo. “Já perdemos muito por fazermos o negócio desse jeito. E ainda perdemos”, lamenta. Para Amanda Segóbio, 25

Passatempo em forma de arte Na garagem, dividindo espaço com um carro, da rua é possível ver artigos de artesanato. São diversas casinhas de passarinhos, mateiras e outros artefatos em madeira que chamam a atenção pela delicadeza dos acabamentos. O responsável pelas artes se apresenta como Joventino. Joventino Frederico Vicente, de 59 anos. Com um moletom da seleção de Portugal de futebol abre o portão e assume a autoria dos materiais. Logo atrás dele aparece sua esposa, uma senhora simpática que se apresenta como Zeldenir Vicente, também de 59 anos. Logo no começo da conversa, Zeldenir pede licença. “Meu irmão acordou. Vou ali ver ele e já volto”. Enquanto a senhora entra em casa, Juventino explica a situação. “Meu cunhado sofreu um acidente de moto, e a gente cuida dele agora”. Seu cunhado é

anos, o Bar da Dona Olívia é um ambiente familiar, sempre presente no seu dia a dia. A relação entre Amanda e Olívia ultrapassa os limites de freguês e dono. Foi possível perceber, durante uma compra da menina, a relação de amizade quando a estudante de enfermagem brincou com dona Olívia sobre ela estar ficando fa-

dos anfitriões. A história de Zelenir parece não ter ligação com o artesanato descrito no início. Mas ao longo da conversa, descobrimos que a verdade é diferente. Joventino sempre trabalhou como pedreiro, fazia um pouco de tudo em trabalhos manuais. Zelenir Escoto. Aos 18 anos, subiu A casa, que hoje divide com a esna moto de um amigo e, por inex- posa, o cunhado e o filho, que é periência com o veículo, acabou militar, foi toda construída por ele. atravessando a rua e colidindo “Demorei mais de 30 anos para com um muro, onde bateu a ca- construir essa casa. Ainda tem basbeça. Na batida, Zelenir perdeu tante coisa pra fazer, mas aos poumassa cefálica e hoje está per- quinhos vamos ajeitando”, explica manentemente acamado. O aci- com orgulho. Como não pode sair dente ocorreu há 32 anos. muito de casa, já que toma conta O casal conta que a mãe de de Zelenir, Joventino, que não Zeldenir, que cuidava de Zelenir chegou a se aposentar, começou ali mesmo na casa a fazer trabalhos com Seu Joventino deles, faleceu há dois madeira. Comprou e dona Zeldenir diversas ferramentas anos e deixou seu fitransformaram o lho sob os cuidados tempo em casa em e equipamentos e foi artesanato

aqui”, conta a freguesa. Na volta da relação familiar de dona Olívia com essa e tantas outras famílias, relaOs caderninhos ção que passa de geexpostos ração para geração, apresentam os é possível perceber gastos feitos no Bar que, além de facilitar da Dona Olívia e contam uma história a vida das pessoas com seus produtos, sobre a tradição o comércio também oferece o cultivo da confiança. Olívia afirma já estar “velhinha”, com seus 70 anos de idade, mas procura trabalhar incansavelmente das oito horas da manhã às nove horas da noite para oferecer mercadorias e relações de confiança com os moradores locais. Para ela, o bar vende “pouquinho” e não faz muita diferença na vida da comunidade. Mas os olhares de Sandra e Amanda anunciam que o bar gera mudanças. Dessa forma, o Bar da Dona mosa, por estar sendo entrevista- Olívia oferta soluções que não da, arrancando risadas da comer- estão na prateleira, nem podem ciante. Além da própria Amanda, ser compradas. A única coisa a comerciante tem como clientes que pode explicar a prática, Sandra e Sueli, respectivamente mesmo depois de tantos prejusua mãe e avó. Para Sandra Segó- ízos, é a convicção e confiança bio, 52 anos, a facilidade de “ficar de que aquilo é o certo. devendo”ajuda. “Ela vende assim Carolina Lima para os moradores mais antigos, Lucas Lanzoni para as pessoas que moram por

construindo sua oficina.“Os filhos também ajudam. Em datas comemorativas como natal e aniversário, ele sempre ganha ferramentas. A última foi aquele grampeador elétrico”, diz Zeldenir apontando para um equipamento com cara de novo em cima da bancada. Passatempo. Assim que eles definem sua arte. Zeldenir, telefonista aposentada, também procurando algo para fazer nas horas vagas, fez um curso de artesanato em EVA, e hoje fabrica suas próprias flores. Na cozinha, ela exibe um verdadeiro jardim de flores dos mais variados tipos, todas feitas em EVA. “Olha, tem que gostar de fazer essas coisas, porque é muito trabalhoso. Eu esquento o EVA na torradeira, depois coloco nas formas de ferro e

depois monto tudo e pinto”, explica a aposentada. Embora muito caprichosos e orgulhosos do trabalho desenvolvido, o retorno financeiro é uma questão que deixa a desejar. Os dois participaram recentemente da Semana Farroupilha com uma banquinha vendendo seus artesanatos, mas não conseguiram tirar um bom lucro. “As pessoas não valorizam muito o trabalho. Elas olham, acham bonito, mas nunca compram. Muitas vezes reclamam que está muito caro”, desabafa Joventino. A renda da casa vem, basicamente da aposentadoria de dona Zeldenir. Zelenir, o irmão, conseguiu se aposentar por invalidez, mas todo o dinheiro é investido em remédios. O casal se mostra orgulhoso do trabalho, feliz e unido em frente às adversidades impostas pela vida. Apesar de afirmar que o artesanato seja só para passar o tempo, seu Joventino, no final da conversa deixa escapar um desejo em forma de brincadeira:“Tomara que agora que vai sair no jornal as vendas aumentem um pouco”. Matheus Alves Marcela Santos


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PRÁTICAS POPULARES .7

A cura pela benção Ato do benzimento parece ter perdido espaço no bairro, mas ainda tem praticantes

C

om tantos avanços no conhecimento do homem, parece que, hoje em dia, tudo precisa de uma explicação lógica e já não há mais espaço para o místico e a fé. Nessa realidade, a prática popular da benzedura acaba por ser vista como uma bobagem, e seus praticantes, como charlatões. Isso ficou claro durante minha busca por um benzedor no bairro Vicentina. Muitos narizes virados e até caras de espanto. “Eu não mexo com essas coisas não, moço”, me diz um senhor. “Eu não conheço ninguém, pra mim isso não pode ser certo [...] eu acho que eles benzem e fica tudo como tá”, me conta outra moradora. Fato é que a busca por um benzedor – ou benzedeiro, chame como quiser – se mostrou mais difícil do que eu imaginava, mesmo em um bairro tão rico em diversidade cultural como é o Vicentina. Foram muitas ruas e “quebradas” percorridas em busca dessa figura. Já estava quase no fim de minha manhã de caminhada quando passo na frente desse

senhor, parado no pátio de sua casa, e o abordo para perguntar como fiz em tantas outras residências anteriores - onde encontrar algum benzedor na região. Seu Neri Machado da Silveira, 74 anos e muito atencioso, me responde que não conhece ninguém, e que ele mesmo, há tempos, procura algum para lhe atender. Agradeço

Colorado do Oeste - próximo da fronteira com a Bolívia. Ele narra que, ao final de um longo dia de trabalho, sentou-se com um colega, em cima de uma piHá 28 anos, Seu lha de sacas de arroz. Ambos estavam em seu último dia Neri guarda com zelo esse de serviço no local e voltaconhecimento riam para sua terra natal: ele, da cura o Rio Grande do Sul, e o colega, o Ceará. Nesse momento, o colega disse ao Seu Neri uma frase que este lembra até hoje. Ele disse: “amigo, agora que tá indo cada um pro seu lado e a gente não vai se ver mais, eu vô te ensinar uma coisa [...] vô te ensinar a curar uma pessoa”, e então o conhecimento foi transmitido. Seu Neri não me revela como se dá a parte espiritual da benzedura que ele aprendeu naquele dia. Segundo ele, sou jovem demais para poder conhecer esse lado. Ele apenas me explica o processo mecânico da cura do reumatismo, que pela ajuda de qualquer forma e, consiste em cortar três pontas de quando me viro para continuar batatas cruas e enrolá-las com um a caminhada, ouço ele comen- pano em volta da área afetada por tar: “a única coisa que eu mes- 24 horas. “Aí tu tem que ter fé no mo sei benzer é o reumatismo”. pai velho”, completa ele, sem poder Ali estava meu benzedeiro para dar mais detalhes. Ele revela que, compartilhar sua história. dois anos depois de seu retorno de Um jovem Seu Neri, no ano de Rondônia, quando foi morar naVila 1988, trabalhava em um moinho, Brás, teve a chance de curar pela em Rondônia, no município de primeira vez. Era uma menininha

Um bairro antenado Uma das coisas que mais me opoldo, segue uma tendência chamou atenção desde a primei- nacional: o aumento das vendas ra vez que pisei no Vicentina foi de televisão por assinatura. Seo grande número de antenas gundo a ANATEL, o Brasil fechou de TV por assinatura. Indepen- o ano passado com 29,8% dos dentemente do tamanho da domicílios brasileiros contando casa, da mais simples, feita com com acesso a televisão fechada. madeiras reaproveitadas, até as Os moradores do Vicentina não fifeitas de tijolos, bem pintadas, cam fora destes números. Para Andrade, hoje em dia ostentam em seus telhados antenas para acesso a rede fe- televisão por assinatura não é luxo, e sim uma chada de televisão. necessidade. Traz Em uma casa Independente da renda, um pouco mais de humilde, uma placa chama atenção: Uma moradores placa mostrando que priorizam TV por ali se vende TV por assinatura assinatura. É lá onde mora Antônio Marcos Andrade, que instala antenas há um ano. Trabalhando para uma empresa de Esteio, ele conta que só este ano já instalou mais de 100 antenas de TV fechada no Vicentina. Mas assegura que a localidade tem muito mais casas com acesso a este tipo de serviço. Parece que o bairro, que apresenta um dos maiores índices de pobreza da cidade de São Le-

conforto para as pessoas.“Porque ali você tem esporte e cultura. Os canais de desenhos é um motivo para manter os filhos dentro de casa. Assim eles não saem pra rua, não tem perigo de perder nossas crianças para criminalidade. Porque aqui as crianças têm apenas a rua para brincar. A qualquer momento pode dar uma guerra pelo tráfico de drogas, tiroteio, como já aconteceu”, explica ele quando perguntado por qual motivo seus vizinhos

viraram seus clientes. O instalador explica que a grande maioria dos que compraram sua antena no bairro assinam o pacote básico, mais de 100 canais por R$69,00 por mês. É o caso de Viviane Peres, moradora da ocupação Cerâmica Anita. Ela é assinante há três meses. Viúva, mãe de quatro filhos, vive hoje apenas com a renda do Bolsa Família. Mesmo com a baixa renda, ela acha importante o aparelho para divertir os filhos. Outro morador da ocupação, Gilberto da Rosa, quis levar um pouco mais de diversão para dentro de casa que o fez virar cliente do seu Andrade. Mas sua alegria durou apenas nove 9 meses, Gilberto está sem sinal há três meses por falta de pagamento.“Fui demitido da empresa em que trabalhava e não tinha como eu pagar, daí foi acumulando mensalidades e cortaram o sinal”. Embora sem ter acesso aos mais de 100 canais, a casa de madeira de Gilberto ainda mantém a antena no alto do telhado. A família, tem esperança que as coisas melhorem para poderem pagar o que devem e a televisão voltar a ter sinal.

de cinco anos de idade, filha de um vizinho. A menina chegou até ele sem conseguir mover a perna de tão inchada que estava devido a inflamação do reumatismo e ficou curada passada as 24 horas da benzedura. Ele lembra com orgulho da gratidão do pai da menina após o benzimento. O benzedor, muito católico, se mudou para o Vicentina no ano 2000 e já curou alguns vizinhos. Questiono a ele sobre as pessoas que não creem nesse poder de cura – muitas das quais eu encontrei durante minha caminhada – e ele é categórico: “Deus existe e ele faz as coisas pela gente [...] eu não posso trocar nada, deixa eles pra lá”. Curar alguém com uma benção pode ser, de fato, difícil de aceitar como verdade. A lição que Seu Neri nos dá é que a fé ainda carrega os seus mistérios e que, mesmo sem um entendimento, devemos apenas aceitar que, se algo está sendo feito para o bem, que simplesmente seja feito. Quanto ao benzimento do reumatismo, o conhecimento ainda está guardado com o morador, aguardando o próximo individuo digno de tal conhecimento. DENIS MACHADO LUCAS ALVES

Junto com o crescimento do número de assinantes, as empresas de televisão fechada no Brasil enfrentam o crescente número de aparelhos “piratas” - que oferecem acesso a grade de canais sem pagamento de mensalidade. Ao ser questionado se no bairro existia muito destes aparelhos, Andrade foi enfático dizendo que não, que embora seja um bairro pobre, os moradores podem pagar a pequena mensalidade de R$69 por mês. Legalizadas ou não, o grande número de antenas de televisão por assinatura já faz parte do cenário do Vicentina, tão desprovido de saneamento básico, onde sua população pouco acesso tem a educação e saúde de qualidade. Isso mostra que seus moradores, mesmo com todas as dificuldades da vida, buscam se inserir na realidade tecnológica do país. Para eles, quem sabe, ter acesso a mais de 100 canais é um bom começo para ter acesso à cultura, entretenimento e tudo mais que a TV lhes pode proporcionar. João Arthur Moraes RAFAELA TRAJANO


8. PRÁTICAS POPULARES

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Quebrando paradigmas religiosos

A médium Gislaine recebe os frequentadores do terreiro com respeito, aceitando as diversidades religiosas

graça de que sua família pudesse estar completa novamente. Hoje, o rapaz está livre, física e espiritualmente, largou as drogas, conseguiu um emprego e teve uma filha, que tem Gislaine e Leonardo como padrinhos. “Ficamos honrados com o convite para apadrinhar a menina, isso nos dá uma alegria enorme por saber que conseguimos ajudar as pessoas”, finaliza Leonardo, que vem de uma família católica e aos 25 anos percebeu que tinha o dom da mediunidade ao ir pela primeira vez em uma casa de umbanda.

A UMBANDA VISTA COM MAUS OLHOS

Entre igrejas católicas e evangélicas no bairro, casa de umbanda atrai a curiosidade dos moradores

L

ogo no portão, a dona da casa já deixa claro: “Aqui praticamos a Umbanda linha branca, não fazemos maldades nem sacrificamos animais, como pensam por aí”. Todas as sextas-feiras na garagem da professora de artes aposentada de 57 anos, Gislaine Maria Flores de Moraes, acontecem sessões de umbanda. Gislaine e o companheiro Leonardo Silveira, 41 anos, metalúrgico, abrem as portas de casa para receber os adeptos da religião. A umbanda é uma religião brasileira que começou a ser praticada no início do século XX e sintetiza elementos das religiões africanas e cristãs. Durante as reuniões acontecem práticas mediúnicas, incorporações de entidades espirituais e outros rituais. Os moradores do bairro Vicentina são acolhidos pelo casal médium, que recebe uma entidade diferente a cada sextafeira. As pessoas frequentam a casa de umbanda pelos mais diversos motivos. Alguns desejam conseguir um emprego, outros vão agradecer por alguma graça alcançada, pedir por saúde e tem quem vá solicitar que seja feito o chamado “trabalho” para ter a pessoa amada de volta. A religião praticada por Gislaine não supre necessidades amorosas ou pedidos que leve o mal para outras pessoas. A umbanda linha branca deriva do espiritismo, sendo uma maneira de confortar os necessitados com boas ações de benzedura. “Hoje em

dia, existe muitos charlatões que tiram dinheiro das pessoas, que cobram por uma consulta. Nós aqui não cobramos, fazemos por caridade”, explica a médium, que recebeu o primeiro oxum aos 16 anos, quando costumava frequentar centros de umbanda com o pai e, desde então, utiliza seu corpo físico como transmissor de mensagens dos espíritos desencarnados. Imagens e pequenas estátuas de santos misturam-se com as obras de arte pintadas pela professora. O capricho da decoração do terreiro de umbanda demonstra o amor e a dedicação que o casal deposita no exercício. Gislaine e Leonardo são a matéria dos oxuns. Ambos dispõem de seu corpo físico para receber as entidades e transmitir as mensagens necessárias para quem busca auxílio. Não só moradores do Vicentina frequentam o local. Hoje, pessoas de todas as partes do Estado procuram pelos dons mediúnicos do casal. “Aqui nós recebemos ricos e pobres, pretos e brancos, gays, dependentes químicos e todos são tratados da mesma forma, todos são bem recebidos no nosso lar”, conta Leonardo. No local são feitas festas para as entidades, como homenagens aos pretos velhos e aos oxuns. Nestas ocasiões, os médiuns contam com a colaboração voluntária dos frequentadores do terreiro, que trazem algum prato de comida ou doces para serem distribuídos entre os praticantes como ato de caridade. Durante as sessões de umbanda, os médiuns vestem-se de branco e colocam-se sentados em duas

pequenas poltronas ao fundo da sala, enquanto os frequentadores se alocam em vários bancos logo à frente. Gislaine conta com três moças que trabalham voluntariamente na organização das sessões, entregando fichas para quem chega e dando apoio a quem tem dificuldades físicas, por exemplo. Os donos da casa não sabem especificar quantas pessoas frequentam as sessões, mas dizem que a pequena garagem fica sempre lotada.

A RELIGIÃO PROPORCIONANDO NOVAS OPORTUNIDADES

O terreiro de Umbanda da casa de Gislaine e Leonardo foi local de recomeço para um dependente químico. O rapaz, que esteve preso, conseguiu refazer a sua vida longe das drogas graças à religião. A esposa dele começou a frequentar a casa quando ele ainda estava na cadeia, levando roupas do homem para benzer e pedindo a

O dia 21 de janeiro é conhecido como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. De acordo com dados publicados pelo site da BBC em janeiro de 2016, o Disque 100, criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, registrou 697 casos de intolerância religiosa no Brasil entre 2011 e 2015, sendo 71% deles contra adeptos de religiões de matrizes africanas. Na casa de umbanda do Vicentina não tem placas nem anúncios indicando o terreiro. Justamente porque o casal não é comerciante e não ganha nada com a prática. Em relação ao preconceito, Gislaine conta que as pessoas são gananciosas e hoje em dia ninguém quer trabalhar em prol da caridade. “90% da religião umbanda deixou de ser como era antigamente, pois não vê mais a parte da caridade. Ela está vendo as pessoas como uma fonte de ganhar dinheiro”, frisa a professora aposentada, que trabalha há quase 40 anos com a religião. Prática corriqueira para a família de Gislaine, a umbanda tem o poder de ajudar a todos nos mais diversos aspectos. Com a comercialização da religião, as pessoas estão cada vez mais temerosas, pois sempre esperam o mal vindo de um terreiro. Porém, Gislaine e Leonardo mostram com satisfação a alegria ao concluírem uma sessão vendo que os adeptos da religião foram confortados e irão para a casa com paz no coração. “Cada um cultua aquilo que acha. Deus é um só e aqui todos sempre serão bem recebidos”, conclui Gislaine. Juliana Silveira Isaias Rheinheimer


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AMBIENTALISMO .9

Um paraíso escondido Apesar dos problemas de saneamento e poluição, pescadores enxergam o Rio dos Sinos como sinônimo de lazer e alimentação

Mesmo com os problemas de poluição, o Rio dos Sinos serve de inspiração e pescaria para moradores do Vicentina

A

lguns possuem nome de gente, outros de bicho, uns são batizadas com nome de santo, mas cada região os identifica por um apelido. Outros são denominados por características próprias, como é o caso do Rio dos Sinos. Ele tem esse nome pois é sinuoso e possui diversos meandros com curvas que passam ao longo de 32 municípios gaúchos. Quem está localizado na cidade de São Leopoldo, não imagina a nascente cristalina que ele possui. A cidade tem o maior nível de poluição do rio. Isso, porque o arroio João Corrêa - o popular “dique” que cruza o Vicentina -, é utilizado como forma de escoamento do esgoto urbano residencial. Quem mora nos arredores do Arroio convive com uma paisagem não muito inspiradora. Mas, conforme contam, a situação já foi pior. Almir Faleiro de Lima, 78 anos, relembra que criou os seus três filhos na beira do “dique”. O aposentado, que trabalhava como ferreiro, conta que o volume de chuva era tanto que ele fixava um prego na parede, onde acompanhava o recuo ou não das águas. “Naquela época, minha mulher ia de caico trabalhar. A água batia pela cintura. Hoje ainda dá enchente, mas não como era antes”, explica seu Almir. Essa melhoria se dá porque em 2015 foram realizadas obras de revitalização no bairro, como a retirada de lixo do Arroio e a revitalização do seu entorno. Quem não teve essa sobrevida, foi o Rio dos Sinos, que continua com os mesmos problemas de poluição. Pequenos detalhes podem passar despercebidos em um mundo tão veloz, como é o que vivemos. Para moradores distraídos, acostumados com a rotina diária - de casa para o trabalho e do trabalho para casa - as incríveis paisagem se tornam invisíveis. Um paraíso está escondido no Vicentina em meio a sofás, sacolas, animais mortos, lixo e mais lixo. No entanto, se você seguir em direção ao final do Arroio, a paisagem pode ser recompensadora: uma imensidão de árvores, pássaros e um só protagonista - o Rio! Esse oásis foi descoberto pelo Seu Almir e por seu filho, o Rogério Faleiro de Lima, de 45

sa e foi informado que as duas eram a mesma. Porém, o CNPJ da Depósito de Areia Rio do Vale continua ativo e funcionando normalmente. Assim como a extração de areia realizada pela empresa Gama Mineradora, que não possui licença da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de São Leopoldo, mas quem mantém suas atividades de segunda à sexta-feira.

ENTENDA COMO FUNCIONA

anos. Ele e o pai aproveitam o tempo livre para pescar. Já dizia o ditado, filho de peixe, peixinho é…, mas, nesse caso, o que os dois compartilham é a paixão por pescar e não por nadar… Seu Almir conta que Rogério é o único que compactua desse mesmo hobby. “ Eu tenho certeza que o Rogério é o meu filho. Ele e eu somos iguais. Os outros, não. Só gostam de ficar em casa. O Rogério pesca, caça, tá sempre inventando alguma coisa. Eu também sou assim”, brinca o aposentado. Quando pergunto ao Seu Almir como era o Rio dos Sinos antigamente, ele dá um breve suspiro, olha pro chão, volta a olhar pra mim e responde com o desejo de voltar no tempo. “Antigamente tinha um monte de peixe no rio. Vinha um monte de branca. Dava gosto de ver. Hoje a gente fica o dia inteiro aqui pra pegar um pocadinho de nada”, lamenta o pescador” Do Rio dos Sinos eles não tiram lucro, apenas o suficiente para consumo próprio. Isso porque a felicidade não é vender, mas sim pescar. “O prazer é arrumar a isca, lançar o anzol e ficar esperando surgir algum peixe. Me acalma, eu descanso, eu penso na vida”, comenta Rogério. Quando pergunto sobre a qualidade dos peixes, eles não titubeiam em me responder que o “peixe nunca deu pro-

blema”. Mas, não é de hoje que o consumo das espécies que habitam o Rio dos Sinos não é recomendado. As pesquisas do Comitesinos, o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, nunca tiveram como foco central a questão do consumo. No entanto, os estudos sobre a condição da água do rio, já demonstram que os peixes se encontram impróprios para alimentação.

UM RIO QUE PEDE SOCORRO

Para a infelicidade dos pescadores, mas não só deles, o Rio dos Sinos ocupa lugar nos noticiários por histórias de mortandade de peixes que se repetem desde 2006. O rio mais poluído do Rio Grande do Sul tem importância vital para a região do Vale do Sinos. A garantia da vida dessa população depende desse rio. Entre os culpados pela degradação do rio, Viviane Nabinger, secretária executiva do Comitesinos identifica a falta de tratamento de esgotos domésticos no município. Segundo informações do Comitê, apenas 5% são tratados. “ A situação do Rio dos Sinos e formadores é muito preocupante. A indústria, historicamente apontada como a grande causadora de poluição, há muito melhorou seus sistemas de tratamento de efluentes. Os municípios, não. Nem a população, nem os gestores públicos

colocam a coleta e o tratamento dos esgotos como prioridade.”, explicou a secretária. A maior preocupação dos pescadores do Vicentina não é a poluição, mas sim a degradação provocada por uma extração irregular de areia. “O rio ainda nem se recuperou daquela tragédia com os peixes e essa barca Gessiane já está desbarrancando o Rio”, lamentou Rogério. A draga Gessiane pertence a empresa Gama Mineradora, localizada no Vicentina. Na frente da empresa uma enorme placa anuncia que a licença venceu em fevereiro deste ano. No entanto, com a possibilidade da placa não ter sido trocada ainda, foi verificada essa situação junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental, a FEPAM. De fato, a empresa possui licença ambiental para trabalhar normalmente, o problema é que na hora de apurar informações, foi encontrada uma outra empresa nesse mesmo lugar, a Depósito de Areia Rio do Vale, que não possui licença para operar. Conforme consta no DOU, Diário Oficial da União, a empresa em questão passou a se chamar Gama Mineradora, apenas em 2008, que está disponível nos registros do documento: 810.235/92, podendo ser consultado através do site: jusbrasil.com.br/diarios. No entanto, em um telefonema à Gama Mineradora, questionei sobre a outra empre-

As dragas puxam a areia do rio por meio de um cano de sucção. No entanto, quando não há mais areia para sugar, a opção da maioria dos mineradores é a aproximação da margem. Essa extração próxima da costa é considerada ilegal, porque tira a sustentação do solo, fazendo com que ocorra o chamado solapamento do rio - que é quando a margem e tudo que está sob ela vem abaixo, causando um severo dano ambiental. As dragas que podem ser fixas ou auto carregáveis e móveis são as responsáveis por escavar e remover a areia submersa, transportando-a através de tubulações acopladas ou balsas que estocam, temporariamente, a carga. Depois vem o içamento de areia ao curso d’água que é feito por meio de uma retroescavadeira. Feito isso, a areia é estocada, drenada e só depois peneirada. É necessário uma licença para extrair, outra para armazenar e outra licença para embarcação, é por isso que a maioria das empresas de extração não possuem licença, informa Eduardo Mattes, fiscal da Semmam.

SONHO X REALIDADE

A extração de areia nos rios provoca graves danos - a turbidez da água, assoreamento e até mesmo o desvio do leito. Já a exploração de areia nas margens dos rios passa, em médio prazo, a provocar inundações e águas paradas, causando a proliferação de insetos e doenças. A compreensão de que a natureza e todos os seres vivos fazem parte de uma mesma realidade é determinante para a sobrevivência tanto da nossa espécie, quanto das que estão ao nosso redor. Enquanto o sonho de seu Rogério – que é pescar um dourado – não se realiza, ele espera que algum dia o Rio dos Sinos se recupere. ARIANE LAUREANO MILENE MAGNUS


10. AMBIENTALISMO

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Arroio recebeu em seu entorno o plantio de árvores e a cobertura de grama, entretanto, a beleza natural que ganha destaque na Primavera quase não pode ser percebida devido ao lixo

A obra da discórdia Moradores divergem sobre a revitalização no Arroio João Corrêa. Apesar de mais bonito, os alagamentos – e o cheiro forte – continuam

O

primeiro sábado de primavera não decepcionou. A temperatura amena aliada à presença do sol, características da estação das flores, permitiram que o mau cheiro ao longo da extensão de 1,5 quilômetros do arroio João Corrêa fosse o fator que despertasse a maior atenção na movimentada avenida, de mesmo nome, no bairro Vicentina. Sutil em determinados pontos e intenso próximo ao local onde está a Casa de Bombas, o odor obriga os moradores a levarem suas mãos ao nariz para tentar bloquear o cheiro desagradável, que já faz parte da rotina da comunidade. Há 30 anos residindo na região, o casal de comerciantes Elbio de Lima Cabrera, 43 anos, e Gleuci Languiné, 40, afirmam que em dias de chuva o mau cheiro é ainda mais forte. Donos do estabelecimento Nenê Lanches Bar, localizado junto à sua casa em frente ao valão, os moradores, que há cerca de oito anos possuem a lancheria, dizem que sentem seu negócio prejudicado. “O mau cheiro é ruim para o bar. Imagina fazer um lanche sentindo esse cheiro?”, questiona Elbio. Além do mau cheiro por conta da poluição das águas do arroio, a grande quantidade de

lixo depositada no entorno e, até mesmo, no valão, contribui para a criação de um cenário indigno para a população. “Já jogaram muito mais lixo, até geladeira e fogão tinha gente que vinha jogar aqui. Mas parou um pouco depois da obra do valão, porque os moradores daqui estão ajudando a cuidar”, comenta o Elbio, que apesar de ter o arroio como vizinho, não deixa de ficar na calçada de sua casa tomando chimarrão com a esposa.

REVITALIZAÇÃO DIVIDE OPINIÕES

Em junho deste ano, a Prefeitura de São Leopoldo inaugurou a revitalização do entorno do arroio João Corrêa. A obra, que teve início há mais de cinco anos, de acordo com a Prefeitura, tem como objetivo a contenção das cheias e a valorização do bairro com as reformas das vias e passarelas que receberam o plantio de árvores. O investimento, que ultrapassou os R$ 30 milhões, segundo o portal da Prefeitura de São Leopoldo, divide a opinião dos moradores, como é o caso de Itamaitá Israel de Souza, 57 anos, proprietário de uma ferragem e comércio de gás. “O visual do arroio melhorou, mas agora com as chuvas fortes que tivemos em junho a água entrou no nosso pátio”, conta o comerciante que reside há mais de 30 anos na comunidade. Com suas águas desembocando no Rio dos Sinos, o arroio João Corrêa é reconhecido como a área que registra o maior nível de poluição na cidade. O descarte

inadequado de todo e qualquer tipo de lixo por parte de pessoas que residem em outras regiões do município, além do mau cheiro, incomodam a família de Israel. No entanto, estes fatores não preocupam mais do que os prejuízos dos alagamentos que deixaram marcas nas paredes do seu estabelecimento e só não causaram mais danos devido ao terreno ser mais baixo que o nível da rua. “Sempre largaram lixo, pessoas do centro, de outros bairros vem largar lixo aqui”, relata a esposa de Israel, Mareci Fátima Moraes de Souza, 57 anos. Outra vítima das cheias do arroio, João Pedro dos Santos, 70, comenta que a obra foi boa para o bairro, mas que as bombas do valão não têm a capacidade necessária de escoamento de água. “O arroio incomoda quando transborda porque as bombas não vencem. Com as chuvas, a gente perdeu geladeira e sofá e depois ficou um cheiro ruim dentro de casa”, relembra João, morador do Vicentina há 24 anos e mesmo com idade avançada ainda trabalha na área de serviços gerais. Com opiniões diversas, a população do bairro só espera que a obra de revitalização do arroio João Corrêa, de início comemorada pelos moradores, possa trazer a tão esperada qualidade de vida aos cidadãos. No sol primaveril, o único cheiro forte que a comunidade quer sentir é o das flores. Júlia Ramona Guilherme Rovadoschi

Como funciona a Casa de Bombas As Casas de Bombas são estruturas mantidas pelo Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae), que formam o Sistema de Proteção Contra as Cheias da cidade a partir do bombeamento e drenagem das águas da chuva. Em dias chuvosos, as sete bombas que compõem a Casa de Bombas da João Corrêa são acionadas para manter o nível das águas do valão. Responsáveis por monitorar o arroio, os operadores do Semae também realizam a limpeza dos lixos presos nas grades, acionando equipes de apoio com retroescavadeira para auxiliar na retirada dos resíduos quando a quantidade de resíduos é alta.

O maior vilão: lixo Vários são os fatores que colaboram para a situação das enchentes, como chuvas intensas, áreas irregulares de moradias, além do descarte inadequado de lixo, que de acordo com o Semae, é o principal problema. Todo e qualquer resíduo jogado nas ruas e arroios pode impedir o bom funcionamento das bombas.


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AMBIENTALISMO .11

Saúde em risco com as queimadas Moradores que ocupam antigo lixão se veem prejudicados pelo descarte e queima irregular de resíduos

A

poucos metros do Arroio João Corrêa, uma extensa faixa de lixo se estende pela rua Affonso Linck. Além dos resíduos que tomam a via, de longe é possível avistar a fumaça proveniente da queima de parte desse lixo. O que poucos sabem é que a fumaça e a fuligem não só poluem o ar como também estão cheias de substâncias cancerígenas, causadoras do efeito estufa e de doenças respiratórias, como asma, bronquite e rinite alérgica. Antigamente, o local que era usado pela comunidade para descarte de lixo hoje recebe casas de novos moradores da Cerâmica Anita que se veem prejudicados, todos os dias, pelas substâncias tóxicas soltas no ar.

PROBLEMAS EM COMUM

Doenças respiratórias, principalmente nas crianças, são um dos problemas ocasionados pela fumaça que atinge as casas próximas ao antigo lixão. Leanderson de Moraes, 25 anos, é pai de dois filhos e já se viu inúmeras vezes precisando recorrer ao hospital. A filha mais nova, de 9 meses, tem bronquite asmática. “Ela precisa ficar na casa da minha sogra à tarde, por conta da fumaça que é tóxica. Eu trago ela só de noite para casa”, revela. Morador há quatro meses da região, ele se diz prejudicado tanto pelo lixo como pela queima dos resíduos, pois toda fumaça vai, geralmente, em direção as residências. Trabalhando como carroceiro, Moraes conta que tentou conscientizar os colegas de profissão e os vizinhos a não jogarem mais lixo nas margens da rua. “Aqui é uma comunidade organizada. Eu conversei com os vizinhos, disse para tocarem no buraco que abriram atrás das bombas (do Serviço Municipal de Água e Esgoto de São Leopoldo – SEMAE), porque lá não tem casa, e eles me ouviram”, relata. “Se eu moro aqui, porque eu vou largar lixo aqui se me prejudica?”, questiona. No entanto, de acordo com o morador, muitas pessoas de fora do bairro e empresas continuam realizando o descarte

indevido ao longo da via, que fica comprometida com a tamanha quantidade de entulho. São restos orgânicos, móveis velhos, madeiras, pneus e até mesmo animais mortos. Para acessar a via, dois carros não passam juntos no mesmo momento. “Esses dias deu um acidente feio aqui com uma moto e um caminhão. O motoqueiro não teve tempo de desviar e bateu”, conta a dona de casa, Rita de Cássia Homem, 41 anos. Com acesso por uma via improvisada, as casas mais próximas da rua Affonso Linck são as mais afetadas. O casal Beatriz Santos, 33 anos, do lar, e Jeferson da Luz, 23, gesseiro, relatam que as circunstâncias já foram piores, quando se mudaram há cinco meses. “A situação atual é péssima, mas quando nos mudamos o lixo chegava na frente de casa, sem contar que a comunidade depende Comunidade dessa estradinha para também chegar nas suas casas, enfrenta problemas pois é o único aces- de infraestrutura so”, afirma Beatriz. causados pelo lixo que Segundo Luz, o toma conta do local acúmulo dos resíduos também ajuda na proliferação de mosquito e no surgimento de bichos, como ratos. “Nossa, eles aparecem toda hora. Dão bom dia, boa queimar não tem mais estrada; tarde e boa noite; estão sem- o lixo vai se alastrando e aí não pre presentes”, ironiza. passa ninguém”, explica. Conforme o gesseiro, os resíduos já foram recolhidos por FALTA DE cooperativas, mas o descarte CONSCIENTIZAÇÃO “Eles não respeitam nem a e queima dos lixos continuam acontecendo. Uma das alternati- estrada”, afirma Elisio Possomoni, vas vista pelo casal para diminuir 70 anos. O reciclador acredita o problema foi entrar em conta- que o problema vem da falta to com autoridades locais. “Fui de conscientização dos próprios uma vez na Guarda Municipal moradores locais e também de e falaram para eu ligar para o quem vem de outras regiões 156. Eu disse para eles que es- e bairros. “O pessoal de fora tava com a prova na mão, de um vem e põe lixo aqui. O pessocarro largando lixo, perguntei al daqui também joga lixo; o se eles não poderiam multar já material que eles não reciclam que eu tinha a placa do veículo, eles tocam ali”, reclama. Ele que trabalhou muitos mas eles pediram para eu ligar quando estivessem largando anos com carretas de coleta de lixo. Até eu ligar e vir alguém já lixo sabe o quão prejudicial à saúde e ao meio ambiente é o foram embora”, reclama. Diferente de Jeferson, o car- descarte irregular. “As pessoas roceiro João Carlos Correa, 44 teriam que se conscientizar e anos, conta que nunca entrou achar um local apropriado, e não em contato com órgãos públicos terminar com a estrada”, manipara reparar a situação. “Eu sozi- festa. Para Possomoni, parte da nho não vou fazer a diferença, culpa também é de responsaprecisaria de toda a comunida- bilidade da Prefeitura que não de. Se eu parar lá na frente com disponibiliza um local propício a minha carroça eles não vão para os resíduos ou até mesmo uma carreta que faça o recolhime receber”, esclarece. Na opinião dele, a queima mento com frequência. do lixo só ocorre porque é uma Ellen Renner saída para a quantidade de Nicole Roth lixo acumulado na rua. “Se não

Você sabia? O que muitas vezes pode ser entendido como uma alternativa pode se transformar em diversos transtornos, como os citados pelos moradores do Vicentina. O descarte inadequado de materiais e a queima dos resíduos, sem a devida preparação do solo, são capazes de gerar diversos problemas às comunidades Se o lixo for jogado constantemente em rios ou córregos vão se acumulando a ponto de não permitir o fluxo da água, resultando em enchentes; O lixo exposto no ar atrai inúmeros animais, como bactérias, baratas e ratos, que são causadores de muitas doenças (febre, cólera, diarreia, disenteria, entre outras); Quando o lixo permanece muito tempo no solo, ele começa a se decompor resultando na produção de chorume, que é dez vezes mais poluente que esgoto; Quando chove, o solo se torna mais permeável e os líquidos que saem do lixo podem chegar aos lençóis freáticos e águas subterrâneas, poluindo águas e rios; A queima dos resíduos libera gás carbônico na atmosfera e quando ocorre à céu aberto libera outros gases altamente tóxicos no ar; Mesmo que os resíduos sólidos não sejam queimados, o material orgânico em decomposição também gera gases metano e sulfídrico, que causam odores, escurecimento da pintura de prédios e casas, além de desenvolver doenças respiratórias; Os resíduos das queimas (escórias e cinzas) também oferecem potencial risco ao meio ambiente, principalmente se plásticos, como o PVC, forem queimados juntos. Fonte: Reciclando o Planeta reciclandooplaneta.webnode.com.br


12. AMBIENTALISMO

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RODRIGO PEREIRA

A espera de u

Por meio de enjambrações, moradores encontram uma solução provisória para a falta de saneamento básico

Sem o apoio do governo, moradores da Ocupação Cerâmica Anita improvisam saneamento básico

U

m dos problemas mais graves da Ocupação Cerâmica Anita é a falta de saneamento. A precariedade do serviço pode ser percebido claramente em menos de dez minutos de caminhada pelo local. Casas simples de madeira foram construídas em uma quadra no bairro Vicentina. Pelo chão, mangueiras azuis ligam uma casa a outra com água tratada. O encanamento fica encoberto por terra e por pedaços de madeira espalhados pelo chão entre uma moradia e outra. Olhando mais acima, fios de energia soltos entre os telhados das casas, colocam em risco a vida das pessoas. Por ser uma ocupação não legalizada todas os serviços foram enjambrados pelos moradores. O saneamento básico é precário e não tem previsão da Prefeitura legalizar a Ocupação. No meio deste cenário cheio de histórias de vida, nos deparamos com Valdomiro Matias, 61

anos, desempregado e morador da Ocupação há um ano. Valdomiro estava sentado em frente a sua casa em um vaso sanitário desinstalado tomando chimarrão. Ele nos relatou as condições precárias da ocupação. “Na verdade, os canos de água são mangueiras finas, aquelas azuis que a gente utiliza para regar as plantas e como são improvisadas, tem horas do dia em que a água é muito fraca, chegando até a faltar”. É essa falta de estrutura e de certeza que aflige Perci Rodrigues da Silva, 62 anos, também desempregado e morador da Ocupação há um ano. “O mais triste é a falta de certeza. Não sabemos até quando vamos ficar aqui”, relata. “De repente tu emprega um dinheirinho aqui, amanhã, depois tu tem que sair e perde tudo”, completa. O mesmo acontece com Marcela Otero Machado, 30 anos, dona de casa, e Indiara Otero Fagundes, 20 anos, desempregada, ambas moradoras da ocupação há dois anos e sete meses. “Até pouco tempo eu não tinha banheiro. Agora já tenho até chuveiro”, comemora Marcela. A moradora relembra quando não

tinha tratamento de esgoto.“A gente lavava a roupa e ficava cheio de água na frente de casa. Todo mundo reclamando, daí meu marido foi e comprou os canos pra encanar tudo direitinho”, conta. Assim como os outros moradores, Indiara também reclama da falta de água, pois as mangueiras que eles mesmos colocaram para abastecer as casas são muito finas para suprir a necessidade de todos. “Dependendo da hora do dia não tem água. Quando o pessoal está em casa e tomam banho ao mesmo tempo as mangueiras não dão conta de abastecer todo mundo. As vezes nem água pra dar banho na minha neném eu tenho. É uma triste realidade que enfrentamos por não saber se vamos ficar aqui ou não", lamenta Indiara.

A LUTA DOS MORADORES POR UMA MORADIA DIGNA

Para um país ser chamado de desenvolvido o mínimo que tem que proporcionar aos seus habitantes é o saneamento básico. Serviços como água potável e tratamento de esgoto são essenciais para ga-

rantir uma boa qualidade de vida. O estudo do Instituto Trata Brasil, por exemplo, mostra que o Brasil convive com milhares de casos de internação por diarreias e que a maior causa disso é a falta de saneamento básico. Segundo a organização, 35 milhões de brasileiros ainda não tem esse acesso, e destes, 4 milhões não tem banheiro em casa. Luciana dos Santos Quevedo, 31 anos, manicure, que mora na Ocupação Cerâmica Anita desde o começo, há dois anos e sete meses, relata a luta que está sendo negociar a terra com o governo e como os moradores fazem para conseguir água potável. “A água chega na ocupação através de três mangueiras que nós mesmos fizemos. Uma vêm da casa do pastor, uma da Vanuza e a outra das casas do Minha Casa, Minha Vida que foram construídas pelo governo”, explica. Porém, a enjambração feita pelos moradores é precária. Ainda existem pessoas com esgoto a céu aberto e sem acesso a água. Isso é um dos motivos pelos quais os habitantes da ocupação estão negociando com a Prefeitura de

São Leopoldo sua permanência no local, com melhores condições ou sua saída para algum lugar melhor. O problema da ocupação é que os moradores estão em uma área verde de São Leopoldo, não podendo investir em melhorias, porque não sabem se amanhã ou depois, não serão retirados. Até o momento a Prefeitura não deu a atenção necessária ao problema. Segundo Luciana, os moradores ocuparam a área no dia 3 de março e no dia 6 já havia saído a reintegração de posse. “A Prefeitura alega que neste local que ocupamos será construída uma praça. Só que o projeto não existe. A verba que inclusive já havia sido repassada, sumiu. O próprio Jornal VS fez uma matéria contando isso”. A moradora também alega que em nenhum momento eles estão se negando em sair do local. Luciana, que mora em uma casa simples e bem cuidada conta que muitas vezes, assim como alguns de seus vizinhos, ficou com medo e pensou em desistir. “Pensei muitas vezes em sair daqui por medo, medo do descaso”. Porém, não desistiu. Conversou com os


.13 RODRIGO PEREIRA

MURILO DANNENBERG

uma certeza

MURILO DANNENBERG

OLHAR DE REPÓRTER moradores e decidiu colocar um cartaz em frente a sua casa - Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito - e mobilizar os moradores para continuarem lutando pelos seus direitos. “Conversamos com os vizinhos do Vicentina se estávamos incomodando e eles falaram que não, que iam apoiar a nossa causa. Foi aí que decidimos fazer o cartaz”, relata. Uma das propostas que foi levantada pelos moradores é pagar outra área para a Prefeitura e permanecerem ali. Eles não aceitaram, alegam que o terreno faz parte dos 30% de área verde, pertencente ao local, e que todo bairro precisa ter esta porcentagem para ter uma praça e um posto de saúde. “É muita política, antes da Dilma sair ela tinha liberado uma verba de 18 milhões para construção do Minha Casa Minha Vida, o Temer foi lá e trancou 11 milhões. Queríamos que acontecesse como na Vila Dique, em Porto Alegre, onde os moradores foram reassentados em apartamentos no Porto Seco”, segundo a moradora. Luciana relata que a Prefeitura está muito resistente em fazer

um acordo com os ocupantes da Anita. “Vamos nas audiências, mas eles alegam que não tem acordo. A gente diz que não quer nem a casa, a gente quer pagar, não queremos nada dado”. As casas do Minha Casa, Minha Vida que estão próximas ao terreno onde Luciana mora, pertencem a antiga Ocupação Cerâmica Anita, onde residem moradores que já foram realocados. “Nosso medo é investir em melhorias aqui e a Prefeitura nos tirar. Eles nunca nos garantiram um terreno e muito menos uma casa”, lamenta Luciana. A moradora também alega que em nenhum momento eles estão se negando em sair do local. Ela conta que recentemente fizeram a última proposta para a secretaria de habitação. Eles proporam para o governo uma negociação com as terras no Carioca, atrás do Parque do Trabalhador, que custa 400 mil e que seria pago pelos moradores. A Prefeitura disse que não, que haviam muitos produtores rurais no local e que não seria possível construir um loteamento lá. Hoje, na nova Ocupação Cerâmica Anita, moram 68 famílias com medo

do amanhã. Medo de acordar e não ter mais onde morar. Sobre a rede elétrica e os encanamentos, a Prefeitura alega que outras pessoas pagam por estes serviços, por seres redes clandestinas. Os moradores sabem que essa prática é ilegal, mas devido a falta de recursos eles se veem obrigados a permanecerem nessas condições. As mangueiras de água, o encanamento com canos de PVCs e a rede elétrica enjambrada foi a maneira encontrada pelos ocupantes para terem o mínimo de condições para permanecerem no local. Dentre todas as histórias de luta dos moradores e toda a bagagem carregada por ambos uma certeza é comum: todos lutam por seus direitos. Todos querem ter a certeza de que podem investir em suas casas, abrir a torneira e ter uma água limpa e potável, energia elétrica e saneamento básico digno. Oportunidade e igualdade é o que todos desejam. Elizangela Meert Basile Fernanda Forner Murilo Dannenberg Rodrigo Pereira

Ao chegar no Vicentina percebi um grande contraste. De um lado, casas de classe média e do outro, casas que não tinham as condições essenciais como o saneamento básico. É difícil acreditar, mas essa realidade existe e é vivida por muitos moradores da Ocupação Cerâmica Anita. Para quem está do lado de fora, dizer algo sobre esse assunto não é fácil. Conversei com várias pessoas, a reclamação de todos é a mesma: um serviço de água e esgoto decente, uma rede elétrica que não ofereça riscos e a certeza de poder permanecer morando ali. O medo, a insegurança, a dificuldade são constantes na vida de todos que vivem na Ocupação. Aprendi muito ouvindo os relatos dos moradores, principalmente aprendi a reconhecer as necessidades dos outros. (Elizangela Meert Basile) Falar sobre a falta de saneamento realmente foi desafiador. Ver a luta das pessoas por serviços que para nós são tão básicos foi um choque de realidade. Abrir a torneira para lavar o rosto, escovar os dentes na pia ou até mesmo dar descarga no banheiro parecem coisas simples, porém, para os moradores da nova Ocupação Cerâmica Anita são vitórias. Caminhando com os moradores entre as casas pude perceber as mangueiras azuis, muito finas, que eles mesmos enjambraram para receberem água potável. Fui atrás dos canos de PVC e em alguns deles vi o esgoto saindo. Encanamento que também os próprios moradores fizeram. No meio deste cenário, entre casas simples feitas de madeira e mangueiras e canos pelo chão, crianças brincando inocentemente, sem saber que estão correndo riscos de pegarem uma doença. Além disso, um dos fatos que mais me fez pensar foi a angústia com que estes moradores vivem. O medo de serem retirados do pouco que tem. A tristeza do descaso e a garra em não desistir me fizeram enxergar aquele lugar de outra forma. Não como uma ocupação, mas como uma forma de se manifestar para conquistar o que se é de direito de todos: um lar! (Fernanda Forner)


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Conscientizar brincando Atividades desenvolvidas a partir do recolhimento e reciclagem de lixo educam e divertem as crianças

40 da região leste (núcleo bairros Cohab e Feitoria). Segundo o educador social da entidade, Rafael Figueiredo, as atividades são criadas pela equipe de professores da CCA e desenvolvidas durante a semana pelos frequentadores. “O projeto ‘Que lixo é esse?’ partiu de uma iniciativa dos adolescentes da CCA, tendo em vista a quantidade de lixo depositado de forma indevida nos espaços públicos do bairro”, frisa Figueiredo. Com essa intenção, o grupo tem como objetivo principal conscientizar desde cedo os alunos para uma vida mais comprometida com o meio ambiente.

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uas de paralelepípedo, chão batido e pessoas por todas as partes. Em frente à nova Ocupação Cerâmica Anita, local conglomerado de casas no bairro Vicentina, está a residência das irmãs Ariana Magali dos Anjos Ramires, 11 anos, e Gisele Aparecida, 9. Elas moram com a mãe, Bibiana Aparecida dos Anjos, 38, e mais cinco irmãos. As meninas estudam no 5º e 3º ano na Escola Municipal de Ensino Fundamental Paulo Beck, próximo dali. No turno inverso aos estudos, elas frequentam a Casa da Criança e do Adolescente, localizada no bairro ao lado, o São Miguel. Ao serem questionadas sobre suas atitudes ao encontrar lixos e resíduos de construção civil pelas ruas próximas à casa delas, Ariana revela sobre o projeto que participam “Que lixo é esse?”. “Lá é bem legal, a gente recicla o lixo que jogam no bairro e fazemos brinquedos e instrumentos musicais”, explica. Com sua fala tímida, Gisele acrescenta que os bonecos confeccionados com lixo por eles são objetos de esquetes teatrais. Bibiana lembra sorrindo que Ariana chega em casa e“puxa a orelha” dos irmãos quando eles descar-

Filhos em segurança

Ariana e Gisele aprendem a cuidar do meio ambiente transformando o lixo em brinquedos e ensinam a irmã Amanda

Que lixo é esse? O projeto se divide em cinco práticas didáticas: Fio Condutor: adolescentes coletam material e ajudam as crianças dos outros grupos em suas práticas; n Retrato: grupo trabalha com artes visuais em geral; n Quando o lixo é lúdico: transforma lixo em brinquedos, questionando a necessidade de n

consumo; Coração de mãe: grupo de expressão corporal monta esquetes e coreografias com assuntos como: bullying, violência doméstica, machismo, questões de gênero, entre outros. n O som do lixo: alunos confeccionam instrumentos e escrevem suas próprias músicas, voltadas com a temática do grupo Coração de Mãe. n

tam o lixo de maneira incorreta. “É, ela nos xinga se colocamos papel de bala no chão”, aponta a mãe que é pensionista.

Realidade virou distração

A Casa da Criança e do Adolescente (CCA) é um dos programas desenvolvidos pelo Círculo Operário Leopoldense (COL) e, atualmente, possui nove funcionários e recebe diariamente cerca de 80 crianças e adolescente da região oeste (núcleo bairro São Miguel) e

Muito além da sala de aula Não há dúvidas que a infância é uma das fases mais importantes da nossa vida. É nela que aprendemos as principais lições, como por exemplo, respeitar as diferenças, tratar as pessoas com respeito e cuidar do meio ambiente. Só que, infelizmente, algumas crianças não aprendem isso em casa. Nem todas as famílias têm o hábito de separar o lixo e a ensinar educação ambiental para os filhos. Seja porque falta de tempo ou por falta de conhecimento. Entretanto, no Vicentina, há famílias que ensinam a importância da separação do lixo para as crianças. Esse é o caso de Cheron Manoela Ferreira, 12 anos, estudante da 6ª série da escola Municipal de Ensino Fundamental Rui Barbosa. Ela possui a consciência de que precisa ajudar o meio ambiente dentro da pró-

pria casa. O pensamento de sustentabilidade é resultado do que aprende com Cristina Bianchi Ferreira, 28 anos, que trabalha há três meses reciclando o lixo para vender. Moradora há dois anos e meio do Vicentina, Cristina sai todas as segundas, quartas e sextas-feiras em busca de materiais recicláveis. “Começamos a fazer isso primeiramente por causa da necessidade financeira, pois eu e meu marido estamos desempregados. Mas sabemos que o nosso trabalho também ajuda o meio ambiente, porque separamos tudo aquilo que é possível reciclar”, explica Cristina. Diante de todos os ensinamentos em casa, a pequena estudante relata as carências escolares. “Não temos projetos ambientais na escola, mas cuidamos sim do lixo. Na escola, colocaram lixeiras novas para nós

separarmos”, enfatiza. O mesmo acontece com Adrian Gabriel Brito da Silva, 11 anos, estudante do 5º ano na escola Municipal de Ensino Fundamental Paulo Beck. Um pouco tímido, ele conta que não tem projetos em aula que zelem pelo planeta. “Quando tinha projeto, minha irmã participava. Eles faziam coisas com garrafas, pneu com areia e colocavam plantas dentro. Mas eu nunca tive aulas assim”, explica o pequeno. Apesar de achar bacana a ideia de ter aulas sobre educação ambiental, o menino relata que não possui nenhuma atividade sobre cuidados com o lixo. “Não temos aula sobre isso, pois falta muito professor na escola”, lamenta. Graziele Iaronka Kellen Dalbosco

Falta de incentivo sobre a educação ambiental prejudica o futuro do bairro

A mãe de Brenda, Artur e Yuri, Viviane Meneguetti, 42 anos, cria os três filhos com a ajuda do pai dela. A cozinheira salienta que o fato das crianças estarem inseridas nas atividades do projeto “Que lixo é esse?” contribui no comportamento dos pequenos, além de estarem em um lugar seguro. “Essas ações auxiliam muito com a nossa criação. Eles estudam e no turno inverso vão para a Casa da Criança e aprendem coisas novas para a vida deles. Me sinto tranquila porque sei que não estão na rua correndo perigo”, aponta Viviane. Laura Gallas CAROLINE TIDRA


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AMBIENTALISMO .15

Uma área a ser preservada Problemas ambientais são apontados em loteamento da Cooperativa Habitacional São Miguel

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arli Beatriz Menegais, 56 anos, é moradora do Vicentina desde 2009. A costureira possui um pequeno atelier em casa, onde produz fardas para o quartel. Na sua residência, enfrenta diversas dificuldades, principalmente em relação à coleta de lixo e saneamento básico, deficiência comum no Brasil. Além desse problema, Marli convive com um agravante: ela reside em frente a uma Área de Preservação Permanente (APP), que não vêm sendo preservada. Além disto, os moradores não sabem de quem é a responsabilidade pela manutenção dessa área, que no momento está desbastada, repleta de lixo, entulho e água parada. Conforme a Lei N° 12.651, de 25 de maio de 2012, o espaço deveria ser preservado. Marli aponta que com a quantidade de lixo acumulado que o local já teve, diversos animais já entraram em sua casa. “Tinha uma época que era fácil encontrar dentro de casa ratos e sapos.Teve uma vez que eu cheguei e tinha uma cobra me esperando, dá um medo, um desespero”, relembra. Além disso, insetos também são um grande problema para o bairro. “A gente não sabe se só tem pernilongo, ou mosquito da dengue. Só sei que, à noite é difícil ficar fora de casa ”, reclama. Problemas semelhantes também afetam o conjunto de casas, onde está localizada a cooperativa que dá nome ao loteamento, Cooperativa Habitacional São Miguel.

Lixo, entulho e água parada estão presentes em espaço que deveria ser conservado limpo

Desde 2006, a costureira Ivanir Teresinha Garzon Feldmann, 44 anos, convive com essas dificuldades. “Na rua Afonso Linck, que passa em frente a APP e vai até a rua João Correia, de encontro com o Valão, já foi encontrado de animal morto, lixo, até corpo humano queimado”, explica Ivanir. Há dois meses, houve uma ocupação por parte de diversas pessoas na área, com o intuito de tomar posse e firmar moradia.“Era uma loucura. O pessoal invadiu, na intenção de morar ali, só que houveram denúncias, que fizeram com que a polícia tirasse eles. A quadra ficou cheia de carros de polícia, bombeiros e tinha até 3 oficiais de justiça”, relata. Ela conta que após a desapropriação, a área está limpa, em comparação

Após a tragédia O maior desastre ambiental que o Rio dos Sinos sofreu, ainda é memória presente para os moradores do bairro Vicentina. Em outubro de 2006, mais de 100 toneladas de peixes foram recolhidas da extensão do Rio e do Arroio João Corrêa causando um desequilíbrio para todo o ecossistema do local. Após dez anos, a bacia hidrográfica continua em recuperação, mas a comunidade já percebe a diferença no ambiente em que vive. Mais de um milhão de peixes foram recolhidos na época. O empresário que causou o desastre Luiz Ruppenthal, ex-

diretor da Utresa da cidade de Estância Velha, foi condenado 30 anos de prisão por crime ambiental. Um ecossistema totalmente abalado foi deixado para os moradores, além das tristes memórias da situação. A capilé de 38 anos, Patrícia Rodrigues, é dona de casa e viveu sua vida toda no Vicentina. Assim como ela, muitos outros moradores não conseguem esquecer as imagens do número de animais mortos na época. “Tinha peixe boiando de uma ponta a outra, foi horrível. Eles tiraram caminhões e caminhões de peixes, uma retroescavadeira trabalhava o dia todo.

a outras épocas. No entanto, ainda há lixo e água acumulados, além de entulhos e pouquíssima vegetação nativa, que é a principal intenção de uma APP. A moradora já tentou resolver o problema, em meados de 2014, quando entrou com uma Ação Civil Pública contra a detentora dos direitos do loteamento onde reside. Apesar do processo ter tramitado no Ministério Público (MP), nada foi resolvido. “Eu não sabia mais o que fazer, então entrei com uma ação contra a Cooperativa, que me vendeu esse terreno, na rua Visconde de São Leopoldo, onde moro atualmente. Só que não adiantou nada, continua a mesma coisa”, disse. Desde a criação do Loteamento, em 2004, a Cooperativa enfrenta

processos quanto a organização e distribuição das terras. Segundo o Inquérito Civil: “a responsável não vem promovendo de forma adequada a implantação de casas em uma área de terras na Avenida Visconde de São Leopoldo. Faltam itens pertinentes à infraestrutura e a aprovação do projeto definitivo na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb), com liberação da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan)”. Esses problemas ainda são visíveis no loteamento, representados por ruas inacabadas, terrenos ocupados, repletos de lixo e falta de saneamento. Muitos moradores que compraram lotes da Coopera-

Muitas famílias na época pescavam no Rio e isso ajudava na renda familiar, foi uma tristeza, não podíamos usar ele para nada”. O chefe do Departamento de Educação Ambiental da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Semmam), Hoeslen Mauzer, explicou como o ecossistema do Rio dos Sinos foi afetado com a morte dos peixes. Foram encontrados dentro dos animais metal pesados como mercúrio e cobre utilizados para lavagem do couro. “Não apenas peixes morreram, mas toda a cadeia alimentar deles foi afetada. Os animais foram recolhidos e levados para aterros sanitários, pois se entrassem em decomposição o metal dentro dos seus corpos voltaria

para o Rio”. Com uma fauna estimada em mais de 200 espécies, dessas 110 são tipos de peixes, o Rio dos Sinos possui uma biodiversidade invejável.

REVITALIZAÇÃO DO ARROIO

A revitalização do Arroio João Corrêa foi fundamental para os moradores. Além de tornar a paisagem mais bonita, e adequada para comunidade, as obras realizadas pela Prefeitura foram fundamentais para evitar que as águas das chuvas continuassem a invadir as casas, por mais que alguns moradores reclamem do não funcionamento da Casa de Bombas. A doméstica, Janete Batista de

tiva de forma parcelada, deixaram de pagar as parcelas, e acabaram sendo despejados do local .“Eu mesma não estou pagando as prestações desde que processei a Cooperativa, em 2014. Não me preocupo, pois tenho todos os papéis da compra do terreno e do descumprimento do acordo por parte deles”, relata a costureira. Fatima Sirlei Flores Viana, 56 anos, mora no loteamento da Cooperativa desde 2007, e diz que enfrenta os mesmos problemas com a Cooperativa Habitacional São Miguel, ocasionando desencontro de informações entre os moradores e a entidade. “Não fui a única a reclamar com a Cooperativa, e eles sempre desconversam dizendo que é nossa obrigação manter a limpeza e manutenção do bairro”, explica. Marli e Fatima têm a seguinte dúvida: de quem é a responsabilidade do loteamento? E da APP? O setor de fiscalização do meio ambiente da Prefeitura de São Leopoldo diz que a complicação se deu porque esse loteamento ainda não foi regularizado no município. “Legalmente, o município não tem responsabilidades sobre o que ainda está em nome da Cooperativa Habitacional São Miguel. No entanto, é claro que tentamos resolver os problemas que acontecem lá, dentro das nossas possibilidades”, explicou Eduardo Mattes, diretor da fiscalização ambiental no município. Até o fechamento desta edição, a Cooperativa Habitacional São Miguel não atendeu as ligações telefônicas. Guilherme Rossini MARCELO JANSSEN

Araújo, 43 anos, mora em frente ao Arroio João Corrêa há 20 anos e presenciou as mudanças não apenas dele, mas do Rio dos Sinos. “Mesmo com a poluição, que ainda existe, a gente vê muito bicho. No arroio tem até tartaruga, as crianças adoram. Além disso, quando a obra ficou pronta a Prefeitura plantou árvores e flores e isso ajudou que os animais fossem aparecendo”, relatou Janete. Além das melhorias estruturais, o arroio agora é utilizado para práticas de esportes. Uma pista de 1,5 quilômetros pode ser utilizada para caminhadas, passeios de bicicletas ou tomar um chimarrão com amigos e familiares. Daniela Tremarin


16. MULHER

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A casa das 4 mulheres A mãe e as três filhas superaram a falta do pai e construíram o próprio lar

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onversamos no portão da sua casa. De esquina, em tons de amarelo, com portas e janela brancas e um tapete na entrada, o que demonstra o cuidado com o lar. O olhar é feliz, de olhos que já tanto lacrimejaram. A pele é bem cuidada, num rosto que já tanto sofreu. Um esteio de mulheres, numa casa que já padeceu com atitudes machistas. Iara Hendges Dias, de 41 anos, é mulher, forte e de cabeça erguida. Dona de uma história semelhante à realidade de tantas mulheres, mas que por força de vontade dela, foi escrita diferente. Trabalhadora, presta serviços de limpeza na Unisinos. Também é filha, mãe das três meninas Dias dos Santos, e logo será avó. Maiara é a filha mais velha, tem 17 anos, Nayara é a do meio, 13, e a caçula é a Gabriele,11. A casa das quatro mulheres está distante de travar batalhas semelhantes às que a Casa das Sete Mulheres travou na Revolução Farroupilha, na minissérie da Rede Globo, mas luta, diariamente, com conflitos de violência, puberdade, mercado de trabalho, gravidez na ado-

lescência e superação. Um casamento de treze anos, o abandono e uma mulher muito apaixonada pelo ex-marido precisando se virar com três meninas e nenhum emprego. Foi assim que Iara começou a vida longe do ex-marido. Natural do município de Roque Gonzales, na fronteira com a Argentina, cerca de 525km de Porto Alegre.Com ensino médio completo, mas sem nenhuma experiência no mercado de trabalho, ela passou a fazer faxina para manter as filhas e a casinha que ela tinha na

Ocupação, no Vicentina. Revezava-se entre dar amor às filhas e receber amor da mãe, que faleceu no início de setembro, aos 81 anos, vítima das consequências de um infarto. Na mesma época o ex-marido retornou para exercer o papel de pai na vida das filhas. Iara acredita que a descoberta da gravidez de Maiara e a vinda de um neto amoleceu o coração do futuro vovô. Bernardo é o nome do filho que Maiara espera. O primeiro menino da família já é tratado

mim” afirma Iara pensativa sobre seu passado. Ela lembra, sem vergonha, mas com resquícios de mágoas, tudo que passou. A dolorosa separação foi em 2001. A filha do meio precisou aprender a dormir sem o pai, e a mais nova precisou deixar os mimos de lado. Cada uma abriu Iara e a filha caçula mostram mão de uma coisio porta-retratos com nha para viver. Anos a foto da família depois, elas vivem uma nova realidade, agora com a figura materna fazendo os dois papéis. “Me tornei outra pessoa, hoje sou dona do meu nariz, sou livre”, desabafa Iara ao lembrar que não se entregou, não se deixou abater e nem perdeu para a depressão, quando se recorda de memórias que prefere esquecer. como “reizinho” antes mesmo Mas mesmo símbolo de força, de reinar fora da barriga da mãe. ela reforça a importância de sua A filha mais velha e o namorado mãe. “Eu gostaria de ser para receberam todo o apoio de Iara, as minhas filhas a metade do que disse jamais deixar a filha que minha mãe foi para mim”, desamparada. Agora o casal terá diz ela, emocionada. seu próprio cantinho, pois irão Os cabelos loiros, e as unhas construir nos fundos do terreno bem-feitas e decoradas mostram de Iara. Desta forma, Bernardo sua vaidade. Hoje Iara vive para crescerá bem pertinho da avó. ela, completamente indepenIara, está contando os dias para dente e dona de si. Ela é uma dezembro, mês que Bernardo vencedora. Jovem, bonita, mãe, virá ao mundo e que ela tirará seu quase avó e namorada. período de férias para ajudar nos Marcella Lorandi cuidados do “reizinho”. EDUARDA ALVES “Eu tenho muito orgulho de

A protagonista da própria história Era o ano de 1986 e no interior de Santa Cruz ao completar 15 anos, cada filho recebia alguns terneiros e as mulheres uma novilha. Mas, para aquela menina que sonhava em morar na cidade grande e continuar os estudos não era o bastante. “Eu vendi a minha novilha, disse para o meu pai: pode vender, vou botar o dinheiro no banco e voltar a estudar. Eu fiz isso para buscar algo maior”, lembra. E foi assim que Loreni Catarina Rodrigues da Silva, 45 anos, conhecida como Neca no Vicentina, iniciou sua trajetória de protagonista da própria vida. A mais velha entre os sete irmãos conta que casou aos 19 anos, saiu do interior com mais de 20 e se separou aos 28. “Eu sofri preconceito ao me separar, mas nem por isso eu deixei de tomar a decisão de ser feliz, né?” expõe Neca. Na época, a filha, Joice Katiuze Fernandes tinha apenas sete anos

e foi nesse momento em que o desafio de criar a filha sozinha começou. “Eu trabalhei em casa de família, mercado, empresas. Eduquei minha filha, dei estudo e botei no mercado de trabalho”, conta orgulhosa.

Novo começo

Em 2006, um novo ciclo se iniciou na vida da moradora do bairro. Ela abriu o seu negócio próprio no Vicentina: o Xis da Neca, empreendimento que comandou por 11 anos até conhecer o seu atual marido, Alexandre. Ele era seu cliente no xis e a união já dura cinco anos. “Gosto daqui e não Exemplo e orgulho traduzem a relação de Neca com a filha Joice

pretendo me mudar. Eu me sinto bem, conheço todo mundo e todo mundo me conhece”, relata ela ao ser questionada sobre a sua relação com o bairro.

Junto com o marido criou a empresa AL Plásticos que funciona no bairro e trabalha com reciclagem. Além disso, a venda de produtos da Natura complementa a renda há 15 anos. “Eu acho que as mulheres não podem ficar dependentes dos homens, elas tem que ser independentes, sem medo de ir à luta”, conta Neca. Pensativa, a empreendedora diz que acha que nenhuma mulher a inspirou a ser assim, pois ela sempre foi diferente das com que convivia. Ela foi a primeira a abrir as portas de casa, vir embora para a cidade, ser mãe e se separar. Mas, para a filha Joice, 24 anos, formada em Gestão Empresarial, Neca é a mulher que se tornou referência para sua vida. “Ela é o exemplo vivo de mulher batalhado-

ra, se eu trabalho, estudei, me formei, foi por ela”, relata a filha que diz se encher de orgulho ao falar da mãe e ouvir sua história.

Relação mãe e filha

Ao se referir à filha, Neca conta que foi uma mãe rígida, mas que nunca deixou faltar nada a ela e tudo o que fez foi para o bem de Joice. “Sonho em ver a minha filha concursada, por isso sempre incentivei os estudos”. Estudos esses que impulsionaram Neca, natural do interior de Santa Cruz, a buscar uma vida diferente na cidade, a cavar as próprias oportunidades e não desistir nos primeiros obstáculos. Pelo contrário, ela aprendeu com eles e os usou para traçar a sua história se tornando a protagonista dela. PAOLA ROCHA GABRIEL SCOPEL


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MULHER .17

As viúvas do Vicentina Guilhermina e Anair são mulheres que já perderam os maridos, mas não se deixaram a abater e hoje são símbolos de força e independência

Guilhermina mostra, com orgulho, fotos das netas

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ma casa que ecoa risos e histórias de superação. O lar de dona Guilhermina da Silva Pinho, de 81 anos e viúva há 45, constantemente é local de encontros entre amigas que, assim como ela, também já perderam os maridos. Com o chimarrão passeando pela roda de conversa, as senhoras que hoje sorriem e esbanjam simpatia nem parecem ter passado por dificuldades no passado. De estatura baixa, ombros estreitos, cabelos curtos e o rosto tomado por algumas rugas e por olhos vívidos, dona Guilhermina faz questão de receber visitas em casa e mostrar o quanto se preocupa com a limpeza do lar, que sempre fica arrumado de forma impecável. Ela mora sozinha, mas divide o terreno com a casa de um dos filhos. Ela teve seis, ao todo, sendo quatro mulheres e dois homens, mas duas morreram ainda recémnascidas. A força desta mulher encontra-se no fato de que, aos 37 anos e com seis filhos pequenos, ficou viúva, pois o marido foi atropelado na BR116. “Foi difícil. Durante esse tempo vivemos com a pensão deixada por ele e pelo dinheiro que meus filhos mais velhos começaram a trazer para casa”, conta Guilhermina. Ela optou por não trabalhar fora e se virava como dava. Decidiu que era mais importante dedicarse aos filhos. Dona Guilhermina nunca mais quis outro homem. “Acho que nunca encontrarei um homem como ele foi pra mim”, afirma. O aniversário de 80 anos da idosa foi comemorado no hospital, em função de pedras na vesícula, mas com muitas flores e um bolo. E mesmo com um probleminha de saúde aqui e ali, ela não perde o sorriso no rosto. Já a história de Anair Helena Wagner, de 71 anos e viúva há três, é diferente. A aposentada é mãe de quatro filhos, sendo três mulheres e um homem. Há 25 anos ela veio de Ijuí para morar em São Leopoldo por conta dos estudos das filhas, que passaram a frequentar a Unisinos. Casou-se com o homem que sua família julgou ser o ideal, afinal, na época, os matrimô-

que aguentar, mas se fosse hoje eu teria me separado”. Quando o marido voltava do bar e ficava violento, Anair chorava escondida dos filhos. O momento em que eles perceberam a gravidade da situação foi quando o pai tentou agredir a mãe fisicamente. “Ele só não fez nada pois minha filha interferiu”, lembra. Anair admite que sua mãe, que ainda vive em Ijuí e tem 90 anos, só ficou sabendo das violências sofridas durante o casamento após a morte do companheiro. “Hoje ela se arrepende de ter me feito casar com ele”. Quando o marido ficou doente, dona Guilhermina acolheu Anair em sua casa. “Ele estava violento e não andava mais certo da cabeça. Tinha Parkinson. Eu não aguentava mais, então saí de casa”. Anair lembra de episódios que ele a ameaçava e que quase colocou fogo na casa nova, que construíram no bairro. Hoje, vivendo sozinha, o lar de dona Anair é decorado com muitas flores e todos os objetos de decoração são comportados nos móveis de forma organizada. “Agora sou feliz. Cuido da minha horta e das minhas flores. Tenho a minha vida”.

AMOR X OBEDIÊNCIA

Anair fala com alegria da vida independente que leva hoje

nios arranjados ainda eram realizados com frequência. No entanto, Anair confessa que gostava de outro quando se casou. “Minha mãe achou que estava fazendo o melhor por mim, mas infelizmente ela se enganou”, lamenta. O engano encontra-se no fato de que o marido arranjado não foi um tão bom marido assim. No começo do relacionamento as coisas fluíram bem, mas anos depois ele passou a beber e a se comportar de forma violenta com a esposa. “Eu tinha medo dele, ele voltava do bar muito bravo”.

Anair também recorda que o marido não administrava bem o dinheiro que ganhava, pois gastava tudo o que ganhava com bebida e cigarros. A situação chegava ao ponto de que faltava comida para os filhos. “Ele preferia comprar o cigarro do que comprar comida. Então eu pegava minhas roupas e trocava com os colonos por alimento”. Com o comportamento agressivo do pai, os filhos de Anair acabaram se afastando. “Eles viram tanta coisa que passaram a não gostar muito dele”. Apesar disso, a filha

mais nova ajudou a cuidar do pai quando ele ficou doente. Sofria de diabetes e mal de Parkinson. “Minha filha ajudou a cuidar do pai mesmo sabendo que ele tinha raiva dela, por ela nunca aguentar as coisas calada”, conta Anair. Ela afirma que nunca passou por violência física, mas que a pressão psicológica lhe deixou marcas na saúde, como pressão alta. Questionada sobre o motivo pelo qual não se separou do marido, Anair diz que tinha medo de ser uma mulher excluída da sociedade por ser divorciada. “A mulher tinha

Dona Guilhermina casouse aos 18 anos e garante que foi por amor. “Nunca procurei outro homem pois sabia que nenhum seria igual ao meu falecido marido. Ele sempre foi muito bom comigo e com meus filhos”, diz. Já Inair se casou com o homem que sua mãe achou que seria o ideal. No entanto, amava outro. “Eu já tinha me separado dele uma vez, mas naquele tempo mãe e pai falavam mais alto. Casei com quem meus pais escolheram, e não com quem eu gostaria”. Questionada se hoje ela procuraria o homem que amou na juventude, ela responde: “Por enquanto quero o meu tempo. Foram 50 anos de um casamento muito difícil, fiquei traumatizada”. Hoje elas são mulheres bem resolvidas. Frequentam a igreja, a casa das vizinhas e passeiam. Ao final da entrevista, dona Anair se dirige a mim e fala: “Tomara que você encontre um marido que te faça feliz. Ninguém merece passar pelo que passei durante 50 anos”. Jéssica Zang André Michel


18. MULHER

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | OUTUBRO DE 2016

A dor da violência Histórias de Roberta e Joana são duas em dezenas que ocorrem no bairro Vicentina

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s olhos distantes e as mãos entrelaçadas sobre suas pernas revelam com certa delicadeza uma mulher que, ao longo de duas décadas, sentiu na pele – e na alma - a dor da violência doméstica. Roberta, 53 anos, aqui apresentada com este nome para preservar sua identidade, foi vítima de violência no auge da jovialidade. O marido, bêbado e agressivo, agiu impunemente por muito tempo. Seus familiares, de mãos atadas, e seus filhos, ingênuos, nada podiam fazer. Desde os 23 anos, passou por situações desumanas. Dentro daquela casa humilde do bairro Vicentina, na qual vive há 30 anos, a doce senhora perdeu toda a sua fé. Desamparada, viveu uma sucessão de erros, tentando recompor a vida com a criação de uma família – são seis filhos e nove netos – justamente ao lado do marido que a torturou por 20 anos. Neste longo tempo, sofreu como uma rotina repulsiva de chutes, arranhões, socos na cara, ofensas e diversas tentativas de facadas nas costas. Os filhos também apanharam muito. Apesar disso, o casamento segue. Há dez anos, a violência parou. Ficaram, porém, as marcas de duas décadas de violência. A história é surpreendente, mas não única. Não são raros os casos em que vítima e agressor se reconciliam. No caso dela, depois de uma série de acontecimentos. Mulher frágil, em determinado momento sua determinação sobre o que é certo falou mais alto. A gota d’água foi o dia em que ele bateu em uma das filhas e depois foi ao trabalho de Roberta lhe dar uma surra. Não satisfeito, exigiu que a esposa seguisse

nha patroa fosse denunciar por eu estar todos os dias com um roxo diferente no corpo. Eu tinha verdadeiro pânico dele e fazia qualquer coisa para não discutirmos, mas ele sempre arrumava algo bobo para implicar”, lembra. A mulher se sentia prejudicada em tudo, tanto profissionalmente como afetivamente. “Eu não era ninguém”, diz ela, com um sorriso desenganado. “Se fosse hoje eu sei que não conseguiria mais lutar, mas meus filhos foram minha motivação, eu sabia que precisava reagir”, completa. Apesar da mágoa que volta a aflorar às vezes, afirma viver feliz.

As mãos de Roberta falam de uma mulher que lutou para conquistar sua dignidade. Os cabelos amarrados de Joana dizem muito sobre o sentimento de impotência diante da violência sofrida ao longo de uma década

SER MULHER

trabalhando, mesmo completamente machucada. Foi nesse dia que ela conseguiu finalmente entender que poderia escapar daquele filme de terror. Roberta foi amparada pelo principal avanço brasileiro no combate à violência contra mulher, a Lei Maria da Penha. Com a mulher sob proteção, o marido deixou de ser violento. No dia em que policiais foram até sua casa, ele fugiu. Foram dias e meses turbulentos. Depois, veio a reconciliação. A opção de permanecer com o marido

foi consciente, afirma Roberta. “Ele já foi horrível comigo, eu tinha vontade de morrer e me sentia um lixo de pessoa. Eu não queria isso para mim e eu tinha certeza de que queria uma vida melhor”, revela, frisando que já doeu muito. “Dei um voto de confiança quando ele me disse que iria mudar, se convertendo para a Igreja Evangélica do bairro. A mudança foi da água pro vinho quando eu mostrei para ele que era independente”, complementa a mulher, que após as mudanças radicais, conseguiu um empre-

go de carteira assinada, escola para os filhos e o principal: retomou a sua auto-estima.

DA SUBMISSÃO À INDEPENDÊNCIA

Na época das agressões, quando conseguia, limpava casas e catava lixo para trocar por comida. Roberta nunca chegou a exigir salário, pois sabia que seu marido compraria drogas e bebidas. Pelo menos trocando por alimento, teria seus filhos bem fisicamente. “Deixei de trabalhar, eu tinha medo que mi-

Dos seis filhos, quatro são meninas e, como ela mesmo afirma, sua história de vida é uma escola viva para suas filhas. “Com certeza as minhas meninas aprenderam bem a lição de que nunca podem deixar que um homem faça o que eu permiti que fosse feito comigo durante 20 anos”, destaca. “Tive trabalho com meus filhos, que viram muitas coisas ao longo desses anos, mas consegui educá-los apesar de tudo. Eu sempre quis minha família reunida e eu sabia que a luta valeria a pena.” Roberta cursou até o primeiro ano do segundo grau e fez um técnico de enfermagem, apesar de não ter recebido o diploma. No fim, ela passou por maus bocados e confirma que sua independência mudou tudo. “Aprendi que a vida não é fácil quando tomamos a decisão errada.” Para ela, a mulher é uma peça importante na sociedade e jamais pode baixar a cabeça para homem nenhum. Antes, era submissa. Hoje se mostra uma mulher convicta que, acima de todas as coisas, aprendeu a se amar. “Mulher é uma peça chave, nada de sexo frágil. Somos batalhadoras, guerreiras, fortes”, afirma Roberta, com os olhos

Como denunciar Em São Leopoldo, a rede de proteção à mulher conta com o Centro Jacobina como referência em atendimento. Nas últimas décadas, o debate acerca da violência contra mulher vêm sendo ampliado, a fim de fomentar o desenvolvimento de políticas públicas capazes de prevenir e criminalizar agressões e assédios. Crimes que podem em qualquer esfera da sociedade. A Lei Maria da Penha, por exemplo, foi sancionada em 2006 a fim de garantir a punição de agressores. Esse direito só foi garantido através da luta de uma mulher que sofreu por anos na mão do seu companheiro. Maria da Penha Maia Fernandes ficou paraplégica em

1983 devido a um tiro nas costas, disparado por Marco Antônio Heria Vieros, seu marido na época. Depois de mais de duas décadas da luta engajada por Maria e por outras mulheres com histórias parecidas, a Lei foi instituída. Nos dias de hoje, a proporção dessa lei é muito maior e o acesso à proteção que ela garante é ampliado aos quatro cantos do Brasil. No Rio Grande do Sul, dados do Observatório de Violência contra as mulheres da Secretaria de Segurança Pública do Estado, divulgados em 2015, mostram que mais de 25 mil mulheres sofreram lesão corporal naquele ano. Para garantir a segurança, o conforto e os direitos

das vítimas, vários municípios recorreram à formação da Rede de Proteção às Mulheres. Como é o caso de São Leopoldo, que já atendeu mais de 3.400 mulheres no Centro Jacobina. O espaço funciona há 10 anos e é destinado à mulheres vítimas de violência que buscam apoio e compreensão para denunciar os agressores. Somente no ano passado, o Centro Jacobina realizou 206 novos atendimentos. Dessas vítimas, 28 eram moradoras do Bairro Vicentina. “O Centro de Referência para Mulheres em Situação de Violência - Centro Jacobina é um serviço de acolhimento, orientação e acompanhamento da mulher em situação de violência doméstica. É composto por equipe técnica de psicologia

e serviço social.” informou Márcia Horn, coordenadora do espaço, via email. Quebrar o círculo da violência não é fácil. Muitas dessas mulheres dependem financeiramente dos companheiros ou têm medo desestabilizar o núcleo familiar. Por isso, é importante o apoio incondicional de familiares e outras companheiras, sejam testemunhas ou confidentes. Além disso, é fundamental a eficácia dos órgãos públicos envolvidos na Rede de Proteção. Além do Centro, moradoras também podem recorrer à Brigada Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal. Denúncias podem ser feitas através da linha deTelefone Lilás e da Central de Atendimento à Mulher. Denuncie.


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doméstica marejados e o sorriso tímido de quem conseguiu vencer a mais dura de todas as batalhas.

UMA LUTA QUE JÁ PARECE PERDIDA

Joana, também apresentada com este nome para preservar sua identidade real, convivia com um marido extremamente agressivo. No entanto, ela afirma que “ele era um bom pai.” Com apenas 36 anos, todos os anseios por ser feliz, construir uma família e ser respeitada se esvaíram. Não por opção, mas por perceber que o seu casamento nunca seria o tão sonhado conto de fadas. Mãe de dois filhos e separada há seis anos, Joana conta que sofreu violência por uma década. Socos e chutes eram semanais, assim como eram frequentes as agressões com facão. Teve o ouvido estourado, entre outras torturas e humilhações. No trabalho, os colegas eram impotentes ao verem ela toda roxa e abatida. Não poder se defender era horrível, mas um dia a revolta falou mais alto. Em uma briga boba, em que o marido não estava satisfeito com a comida feita pela esposa, ele quebrou seu pé após horas de torturas verbais. “Foi nesse momento que eu estava convicta de que iria matar ele com um cabo de vassoura”, relembra, com os olhos marejados em um misto de tristeza, dor e raiva. “Foi quando minha filha se grudou entre minhas pernas e implorou para que eu parasse. Eu sabia ali que eu precisava tomar uma atitude, pois estava com medo do que eu seria capaz de fazer.” Joana afirma que seu ex-marido é extremamente machista e, olhando para trás, percebe as situações abomináveis às quais se submetia, como estar dentro da casa dele, dormir na sala com sua filha de apenas 6 meses e saber que ele passava finais de semana fora para ficar com

A força do sexo feminino

as amantes. “Eu me sentia bem simplesmente por estar na casa dele, com ele, limpando, cozinhando pra ele”, ressalta.

AS DIFICULDADES DE JOANA

Seu pai morreu há menos de dois meses. Sua mãe nunca foi sua amiga. Uma de suas irmãs – elas são em três – sempre foi sua confidente, mas nunca soube das barbáries. Joana sempre sentiu e mais do que nunca sente falta de poder contar com alguém. “Cheguei a frequentar o Centro Jacobina e lá aprendi que o problema da gente nunca é maior que o dos outros e isso me motivou bastante, apesar de inúmeras vezes pensar qual forma seria mais fácil e rápida de me suicidar”, revela, manifestando uma amargura em seu semblante. “Mas eu pensei, acima de tudo, nos meus filhos. Ver os olhinhos deles de medo a cada agressão doía mais que qualquer soco na cara ou chute no estômago. A gente não põe filho no mundo para nos ver sofrer dessa forma.” Ao ser questionada sobre a busca da felicidade, Joana dá de ombros, como quem está desacreditada após uma sucessão de agressões físicas e mentais. “Pra mim a felicidade é realizar um sonho. Tantos planos eu fiz de ter uma família linda e nada deu certo. Não vejo motivos para ser feliz”, resignase.“Minha única vontade é ensinar meus filhos a serem honestos e humildes. Eu vivo pra eles e por eles.” Joana ainda sofre ameaças e no mês de agosto apanhou novamente, mesmo sendo amparada por medida protetiva prevista na Lei Maria da Penha. Seu medo de viver é maior do que qualquer outro sentimento que possa aflorar dentro dela. Sua esperança, seus sonhos, sua felicidade. Quase tudo foi destruído e enterrado. CAROLINA ZENI VICTÓRIA LIMA

Contatos Central de Atendimento à Mulher: 180 Telefone Lilás: 0800 541 0803 Brigada Militar: 190 Guarda Municipal: 153 Centro Jacobina em São Leopoldo: 3588-8224

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m sorriso no rosto e falando com muito amor e orgulho da família que construiu. Foi assim que Isaura Moraes Moura, de 37 anos, nos recebeu em sua residência. Criando os quatro filhos sozinha há mais de dez anos, a mãe de família, que trabalha de atendente em um restaurante, se tornou uma mulher forte e guerreira ao longo dos anos. “Quando meu ex-marido saiu de casa, a minha filha mais velha tinha apenas 12 anos e o mais novo 2 meses. Eu tive que ser forte, pelos meus filhos. No começo foi complicado, passamos por várias dificuldades, mas eu tive muita ajuda da igreja aqui da comunidade e graças a Deus estamos aí, todos bem”, explica. Com muito esforço e trabalho, há cinco anos Isaura conquistou a sua casa própria, onde mora com a filha Natália Moura Simonetti, de 18 anos, e o filho Márcio Moura Simonetti, de 12 anos, ambos estudantes. Antes, a família morava em uma casa na beira do dique. As duas filhas mais velhas, Jaqueline Moura Simonetti, de 22 anos e Fabiana Moura Simonett, de 24 anos, são casadas, com uma filha cada uma, e não moram mais com a mãe. Titulado como o “homem da casa”, Márcio diz que é o protetor da mãe e das ir-

Mesmo com a ausência do pai, família Moura segue unida

mãs. Porém, segundo elas, quando se escuta um barulho à noite, o homem vira criança novamente e manda a irmã ou a mãe verificarem. Durante toda a nossa conversa, Márcio se mostrou muito carinhoso, em vários momentos de mãos dadas à mãe, e em outros com a sobrinha de 10 meses nos braços. Mesmo com todas as dificuldades, eles garantem que nunca sentiram falta de uma figura masculina, pois a mãe sempre foi muito forte, foi mãe e pai, fazendo de tudo para que não faltasse nada aos filhos. Quando o assunto é casamento, as irmãs possuem opiniões diferentes. Para Jaqueline, casada há um ano, ser mulher é cuidar dos filhos e da casa. Já Natália, primeiro quer se formar no curso de Veterinária, depois pensa em casar e ter filhos, mas deixa bem claro que quer ser

como a mãe, uma mulher independente. “Temos que lutar pelos mesmos direitos. Temos que ser felizes e não servir apenas para cuidar da casa. É preciso acabar com a violência contra a mulher, os homens precisam nos dar valor e nós precisamos nos valorizar”, afirma a estudante. O medo da violência contra os filhos foi um dos motivos que fez Isaura não se casar novamente. “Os meus filhos em primeiro lugar e por isso nunca coloquei outro homem dentro de casa. Não posso correr o risco de colocar um traste para bater ou abusar dos meus filhos. Depois que todos estiverem casados, com suas famílias, aí talvez eu penso nisso”, ressalta. Pensando sempre no bemestar dos filhos, Isaura fala que ensinou as meninas a serem independentes. “Eu sempre tive que trabalhar e elas que cuidavam de tudo, principalmente uma das outras e do irmão. Eu não quero que elas sejam dependentes de marido. Quero que sejam fortes e que saibam que a nossa família sempre está aqui, para qualquer dificuldade”, conclui Isaura. E é com esse companheirismo e amor que eles vivem a vida, todos protegidos pelo olhar de uma bela e forte mulher. Luana Cunha Jéssica Santos


20. MULHER

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Memórias de Sobradinho Amor para renascer

Natural da região centro-serra do estado, moradora encontrou no bairro a tranquilidade que buscava

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uem vê de fora do portão aquela senhora de aparência tranquila, não imagina tudo que a dona Neli de Almeida passou para chegar até ali. A moradora de 61 anos abriu a varanda de casa para nos contar sua história. Natural de Sobradinho, a aposentada mora no Vicentina há mais de vinte anos, tantos mais que a memória deixou escapar, mas pelas contas que fizemos, são 28 anos de bairro. A escolha por morar em São Leopoldo veio em um dos momentos de dificuldade da vida,“do que eu passei lá não sinto falta de nada”. Para entender essa história é preciso voltar no tempo, quando ainda criança, ela aprendeu o que era ausência. “Eu não tive família, me criei sozinha trabalhando nas plantações de feijão, fumo e trigo, só via a minha mãe, não tinha pai, não tinha irmãos, não tinha nada”, lamenta Neli que aos poucos nos oferece suas lembranças. A mãe, Desolina, teve quinze filhos ao todo, mas quatro faleceram ainda bebês. Dez deles cresceram, e foram entregues para o serviço de adoção após a separação dos pais. “Só eu fiquei com ela”, recorda. Apesar de ter se tornado filha única, a relação com a mãe não era boa, “a minha mãe nunca me deu um abraço”, constata a senhora que se desfaz em menina através da recordação. “Ela era malvada pra mim, a minha mãe era triste, até hoje eu penso, acho que era aquele pensamento antigo mesmo, que filho era um estorvo, não sei”, reflete ao lembrar-se da vez em que foi ameaçada com uma faca pela mãe, aos 10 anos de idade. Os irmãos, que ela sentia tanta falta quando mais nova, só veio conhecer depois de adulta, “uns eu conheço, outros não. Uma eu conheci três anos atrás”, assegura. Foi através da Internet que o filho mais velho, Carlos, descobriu a irmã Florisbela, de 70 anos, que mora em Parobé. “Na semana passada ainda ela me ligou, a gente quer se encontrar, mas ela trabalha muito e ainda não deu tempo”, lamenta. Dos irmãos que lembra ter conhecido, o caso que faz questão de contar em tom teatral, é do irmão que ela quase namorou. A cena do bailinho nos fundos de uma casa do interior se remonta. Só os homens podiam tirar para dançar. Ela não sabe dizer porque, mas tinham que dançar três músicas inteiras, e não

Neli escolhe a bolsa como o objeto que mais a representa na casa: “Tô sempre pra cima e pra baixo com ela”

podia rejeitar. Cada música era uma fase da paquera, a primeira para se conhecer, a segunda para dizer ao que veio, e na terceira, se não tinha dado em nada, podia trocar para outro. “Daí veio aquele homem e me tirou, eu não sabia nem dançar”, reconhece. Durante a primeira música os corpos se estranharam tentando achar um jeito de balançar junto no ritmo. Conversa vai, conversa vem, ela descobre no pretendente, um irmão. “A gente descobriu porque naquele tempo tinha que perguntar onde é que morava, quem era, de que família era. Ele se espantou e eu fiquei meio assim, pensando”. Cai na gargalhada. “Se não tivesse conversado ali na hora, de repente só ia saber isso na hora do casamento quan-

do fosse conhecer o pai”, imagina Neli. O pai, ela só conheceu quando foi pedir a “benção”, mas o casório foi com outro. Seu Pedro, de 64 anos, é um homem de sorte, conheceu Neli desde pequena. Naquele tempo ninguém pensava em nada, e foi só mais tarde que eles foram se apaixonar. “Ele é muito bonito”, admite encabulada. A relação que começou no interior do estado e mais tarde migrou para São Leopoldo, gerou quatro filhos, dois homens e duas mulheres. “Não dava mais nada na terra, feijão não deu, fumo não deu, daí como é que a gente ia manter as crianças lá?”, lembra falando sobre a época da mudança para o Vicentina. Da relação com Pedro aprendeu muita coisa, e garante que teve de ser muito

paciente para manter a união, “a relação com o marido é boa, se tá bem, bem, se tá meio atrapalhado, aí já viu, ontem mesmo eu disse ‘calma, homi, não adianta ficar nervoso, te acalma que as coisas vão dar certo’”. O nervosismo e a raiva do marido ela diz ter contornado com a fé. “Ajudou muito, agora eu tô tranquila, a gente tem que lutar na paciência, não na briga”, constata. Pergunto se é Deus quem resolve os problemas ou as próprias pessoas, e ela garante: “é Deus, e fazer as coisas certas, entendeu?”. O que é certo para Neli é que sempre quis ter uma família, não importando como fosse. O sonho de criar e construir o próprio bando guiou as escolhas que tomou e as situações ruins que aprendeu a reverter.

Mas nem sempre o corpo aguenta aquilo que a gente diz suportar. Há quatro anos, Neli teve um AVC.“Eu fiquei seis meses sem poder arrastar uma cadeira, e naquele tempo ainda tinha a minha sogra de cama pra cuidar”, destaca após um suspiro cansado. “Acumulou tudo em mim, faz comida, roupa, sogra, banho, banco, e buscar remédio, me sobrecarregou daí eu caí, três meses sem poder dormir na cama, igual uma múmia, e daí todo mundo correu pra ajudar, principalmente ele”, relembra analisando que foi nessa época que Pedro passou a dar mais valor para ela. “Ficava sentada no sofá escorada, mas não dormia, só cochilava, porque tinha medo, pensava, ‘eu vou dormir e vai me dar de novo’, vinha aquela cena na minha mente, sabe? E ele ficava do meu lado, eu dizia ‘homi, vai dormir’, e ele não ia.” Foi aí que o autônomo, que trabalha em construções, sentiu a falta que faz uma Neli dessas na vida. “Uma vez quando chegaram do hospital, disseram que viram ele chorando”, comenta. Aprendeu a lavar louça, varrer a casa, botar a roupa na máquina, separar a própria roupa antes do banho, fazer comida, enfim, Pedro adquiriu uma coisa chamada autonomia, e isso fez toda a diferença para este casamento. “Agora eu tô tranquila, me cuido na medida do possível, né, como pode, às vezes tem dinheiro pra comprar remédio, às vezes não”, reconhece a moradora que recebe o Bolsa Família. “Esse é o dinheiro que eu tenho, outra coisa não tenho nada, se precisar comprar um calmante tem que ser esse, é esse o dinheiro que tem”, revela. Se ela tivesse que dar um conselho para a Neli que chegou ao Vicentina vinte e oito anos atrás, ela “diria pra fazer tudo de novo, sempre lutando pelo melhor”. E dessa forma segue se desafiando porque sabe que é assim que se escreve a própria história, “não é que a pessoa envelhece que ela sabe de tudo, tô sempre aprendendo”, confirma. A mulher que aprendeu a olhar as horas pelo sol, e ainda lembra como fazer (sabia a resposta em sete segundos, e só errou por 2 minutos), admite que se fosse mais nova adoraria aprender a trabalhar no computador, e quem sabe também iria ao cinema, “talvez eu gostasse”, reconhece. Por enquanto, o projeto é comprar um celular novo, “aqueles de passar o dedo”, e não perder ninguém que ela ama de vista. Gabriela Wenzel Thiago Borba


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Duas mulheres fazem um ninho Casa, trabalho, filhos, sonhos, viagens. Como todo casal, Noeli e Jaqueline se uniram para construir uma vida

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ato palmas em frente ao portão pintado de branco. Grito: “Ô de casa”. Uma mulher de estatura baixa e cabelo cortado na altura das orelhas aparece na porta. Se aproxima de mim. Por entre as grades, estendo um exemplar do jornal Enfoque Vicentina. Pergunto, com medo de assustar, se ela é a mulher que vive com outra ali no bairro. Sem constrangimento, ela responde que sim. Noeli de Almeida Garcia tem 49 anos, é técnica de enfermagem e há 15 anos trabalha no Hospital Centenário. Há cinco, quando intercalava as funções no hospital com outro emprego em uma clínica geriátrica, conheceu a cuidadora de idosos Jaqueline Leiros, 32 anos. É Noeli quem conta a história das duas, enquanto Jaqueline, desconfiada da repórter, folheia o jornal sentada na mesa da cozinha. Bastou Noeli botar os olhos em Jaqueline nos corredores da clínica para que acendesse uma paixão. O fato de Jaqueline ser comprometida com outra mulher não impediu o romance. Ela desmanchou a relação, ficou com Noeli e, três meses de namoro depois, convidou a namorada para morar em sua casa no Vicentina. Noeli apostou as fichas no amor: largou um apartamento próprio no Centro de São Leopoldo e mudou-se para a vila, dividindo a vida com Jaqueline e a filha de 14 anos, fruto de uma relação anterior da companheira. A previsão dos amigos era que o casal não iria durar. Noeli é retraída, evita fofocas no trabalho, tem cara de braba. Jaqueline gosta de ir a festas dançar funk e música dos anos 80. Tem tatuagens e piercings espalhados pelo corpo, cabelo tingido de preto com tons avermelhados. Noeli veste camisa xadrez, gosta de jantares e de ficar em casa. Nas baladas, só entra na vibe da companheira depois de uns goles de cerveja. Jaqueline já foi evangélica, hoje é espírita. Noeli segue católica, como a família. “Ela é bem mais pra frente do que eu”, admite Noeli, que furou a orelha com um piercing e marcou a pele com tatuagem numa clara influência da amada. Em uma homenagem conjunta, uma desenhou a inicial do nome da outra no braço direito, próximo ao pulso. Prova de que a convivência com Jaqueline conferiu ares modernos a Noeli.

Jaqueline nunca deu bola para os comentários. Nem sobre sua sexualidade, nem sobre o futuro com Noeli. Sempre afirmou que queria casar com a namorada. Acostumada com a solteirice, Noeli evitava se comprometer. Jaqueline, teimosa, insistia.“Assim que liberar, a gente vai casar”, avisava, aguardando permissão da Justiça. O hábito de acompanhar os editais de casamento no jornal da cidade foi decisivo para o avanço da relação. Foi assim que perceberam que nomes de mulheres, um ligado ao outro, começaram a aparecer. A mudança aconteceu logo após o Conselho Nacional de Justiça aprovar, em 2013, uma reso-

lução obrigando os cartórios a realizarem o casamento gay. Não havia mais impedimentos. Noeli foi até o cartório pedir informações. Voltou para casa e pediu a mão da companheira. “Tu ainda quer casar comigo?”. “Quero”, respondeu Jaqueline. “Então vamos casar”, decidiu-se Noeli. A cerimônia ocorreu em novembro de 2015, com direito a festa na churrascaria, padrinhos e família. Fotos das noivas posando em um estúdio decoram a parede da sala. Noeli vestia camisa abotoada, calça escura e sapatilha nos pés. De vestido de noiva, Jaqueline brilhava. Uma das fotos é uma selfie sozinha, com pose sensu-

seguiu os costumes da família e casou com um homem. Divorciada, viveu 15 anos com uma mulher e teve uma relação conturbada com outra. Desse namoro instável ganhou o maior presente de sua vida: um menino de 10 anos, filho da ex-companheira, que ama como se fosse seu. Até semelhanças físicas enxerga entre os dois. Apesar de serem assumidas, elas nunca ouviram xingamentos relativos à sua orientação sexual. Noeli, poNa hora de gostar de rém, gostaria que os alguém, o casal homossexuais fossem do Vicentina mais discretos. Acredita comprova que não que foi pelo bom senso importa o gênero que conquistou respeito. “Nunca levantei bandeira. Acho que não precisa se expor”, diz, embora frequente a Parada Gay com esposa e amigos. Jaqueline ignora os comentários. “Não dou bola para o que os outros falam. E acho que tem que ser assim”, afirma. O jeito precavido de Noeli marcou presença até na lua de mel. A ousadia de Jaqueline, também. Dias antes de embarcarem num voo rumo a Maceió, Noeli telefonou no hotel para avisar que o casal que fizera reserva era de lésbicas. Queria, como de costume, evitar constrangimentos. Em terras nordestinas, as recémal e fazendo biquinho. casadas andavam de ônibus com Falar do vestido faz Jaqueline outros turistas quando o guia do romper o silêncio. Em instantes ela passeio passou o microfone para se está de pé, indo buscar a peça no apresentarem. Em instantes, Jaquequarto. Volta segurando um vesti- line pôs abaixo a discrição de Noeli. do branco tomara-que-caia, curto “Somos gaúchas e estamos em lua um palmo acima do joelho, decote de mel”, alardeou no microfone. avantajado e detalhes em renda A vontade de ser feliz soou mais lilás. A diferença da peça em relação alto que o recato da esposa. aos vestidos tradicionais, cheios de Todo esse rigor faz com que Jababados e longos até o tornoze- queline veja Noeli como o“homem lo, faz Noeli admitir: “A Jaqueline da relação”.“Eu sou o lado feminino. jamais usaria um desses”. Dá pra ver. Ela é o masculino”, obserAs duas já tiveram relaciona- va. Noeli repele o papel de homem. mentos heterossexuais. Jaqueline Enxerga as duas como mulheres. engravidou duas vezes do antigo Mas chega em casa e gosta da namorado: teve a menina e o pri- comida preparada. Também evita mogênito de 21 anos, que entrou passar bronca na filha de Jaqueline para o Exército. Muito jovem, Noeli quando a menina faz algo errado. É Jaqueline quem dá a lição. E quem faz boa parte das tarefas de casa, além de preparar o jantar.“E a casa tá sempre limpa, e a comida tá sempre pronta”, repete Jaqueline. Apesar da confusão com os papéis, o casal entende que, na hora de gostar de alguém, não importa o gênero.“Eu gosto da pessoa. Independente se é homem ou se é mulher”, diz Noeli. Aos filhos, Jaqueline passa o mesmo ensinamento.“A gente se apaixona é pela pessoa”, orienta, afastando qualquer barreira imposta pela questão de gênero. Abraçando Jaqueline para uma foto, Noeli revela os próximos planos da família. Pretende se aposentar dentro de cinco anos, vender o apartamento no Centro e levar a esposa e os filhos para morar em alguma praia de Santa Catarina, curtindo a vida de olho nas ondas do mar. Karine Dalla Valle Natan Cauduro


22. POLÍTICA

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Promessa: a esperança de voltar a andar Políticos, em época de campanha, prometem serviços em troca de votos, mas nem sempre os eleitores são beneficiados

N

o período de eleições, muitas pro messas, barganhas e propostas aparecem. Neste ano, candidatos a vereador e prefeito correm atrás de votos para vencer o pleito e garantir mais quatro anos de trabalho em âmbito municipal. Promessas de remédios, aterro, legalização e até mesmo procedimento cirúrgicos são feitos. Edson Almeida, 44 anos, morador do Vicentina, sofreu um acidente há cinco anos e tem um problema em sua perna direita. Em 2011, ele estava andando de bicicleta quando foi atropelado por um caminhão na Avenida João Corrêa, em São Leopoldo. Almeida aguarda há quatro anos na fila do SUS (Sistema Único de Saúde) para realizar uma cirurgia e corrigir a lesão na perna. Seu maior sonho é poder retornar ao trabalho. Anos atrás, Edson trabalhava em um restaurante como garçom. O morador do bairro busca diversas maneiras para conseguir sua cirurgia de forma mais rápida. Na última delas, ele trabalhou em uma campanha eleitoral com a promessa de obter sua cirurgia de forma mais rápida. Um vereador, que concorria ao pleito, prometeu consultas com os melhores especialistas e os custos do procedimento cirúrgico caso vencesse a eleição municipal de São Leopoldo. A promessa era de que na segunda-feira, posterior ao dia da votação, Edson teria seus exames levados ao melhor especialista para encaminhar Moradores a sua tão sonhatrabalham da cirurgia. Com nas campanhas a s e s p e r a n ç a s eleitorais para r e n o v a d a s , E d - garantirem seu son se deslocava presente prometido pelo bairro com a pelos candidatos ajuda das muletas. A cada esquina, pelas ruas, ele parava os moradores da cidade para falar sobre os projetos do candidato. Entregava a publicidade do político, explicava para os moradores as propostas que o vereador tinha para a

cidade e deixou à famosa “colinha” para o dia da eleição. Mesmo com dificuldades de se mover, ele desenvolveu o seu trabalho na esperança de voltar a andar e trabalhar com carteira assinada. O e x- g a rço m e s p e ro u ansioso o fim da eleição do domingo, dia 2 de outubro. A sua cirurgia dependia de um resultado positivo nas urnas de São Leopoldo. Mas, infelizmente, não foi o que aconteceu. O político não venceu a eleição e o sonho de Almeida foi novamente adiado. “Fiquei triste. Eu estava com a esperança de poder voltar a andar e trabalhar novamente.”, conta ele após ver o resultado da eleição. Perguntado sobre o custo da cirurgia, Edson afirmou que a operação custa, em média, R$ 15 mil. Após a derrota nas urnas, uma advogada particular, conhecida de Edson, encaminhou novamente o pedido da cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Orgulhoso, ele afirma que não gosta de pedir dinheiro, para não pare-

Edson, com seu material de campanha, explica para os moradores as propostas dos candidatos cer que está se prevalecendo. “Toda a ajuda é bem-vinda. Não gosto de pedir esmolas ou dinheiro, mas sei que neste mundo existem mais pessoas boas do que pessoas ruins. ”, afirmou Edson. Nestes casos, o conselho é procurar a Unidade Básica de Saúde. No Vicentina, a UBS fica na Rua Frederico Guilherme Schmidt, esquina Thomas Edson. Os telefones para contato são: 3590 1903 / 3590 1833 / 3590 2135. O horário de atendimento é das 08h às 12h e 13h às 17h, de segunda a sexta-feira. Após a primeira consulta, o médico envia o paciente para um especialista que deve ser marcado conforme as orientações do site: saoleopoldo.rs.gov.br. GUILHERME CHAVES GRÉGORI SORANSO


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Moradores questionam a relação entre bairro e políticos locais em véspera de pleito municipal

“N

inguém representa o bairro”. “Só aparecem de vez em quando por aqui e ainda para pedir votos”. “Prometem, mas não cumprem”. “Não existem lideranças políticas por aqui”. Essas são algumas das frases mais comentadas dentro do Vicentina quando o assunto é política. Assim como nas demais localidades, a relação dos moradores do bairro com questões públicas sustenta um caráter de relatividade. Existem, por exemplo, aqueles que monitoram a atenção do poder público com o bairro a todo instante. Outros, por sua vez, preferem manter-se afastados do assunto ou o acompanhar de forma moderada. No entanto, para maior parte dos entrevistados, a impressão de abandono com a comunidade é um fator que predomina, fazendo com que muitas famílias percam as esperanças por melhorias. Nem mesmo em período eleitoral pôde-se encontrar políticos na região. Muitos moradores questionam a ausência e a falta de um diálogo com os candidatos. É assim para o jardineiro Jean Pereira, de 24 anos – quatro deles residindo pelo bairro -, que admitiu não ter voto decretado. “Pouquíssima (atenção). O que eu percebo aqui pela rua são pessoas que trabalham para os candidatos e nos entregam o material de campanha. Mas é uma prática sem muito alarde. Sem falar que eu acho isso algo bastante superficial”, disse. A poucas quadras da casa de Jean, a aposentada Maria de Lima, 74, compartilha da mesma opinião. “Sabe que eu nem vi político passando pela minha rua ainda? (r isos)”. E completa: “Achei que as campanhas deste ano foram muito calmas. Sei disso porque moro no bairro há 56 anos e tenho conhecimento do processo. Já trabalhei em época eleitoral, batendo de porta em porta, para conquistar votos”, conta a idosa, que revelou incentivar a participação política de seus familiares. Holwainer Moreira, 50, por seu lado, enfatiza que a procura dos políticos pelos moradores, ainda que discreta, cresce em ano de eleições. Mesmo com os nomes da urna definidos, o preparador de torno automático critica, de forma geral, os postulantes a cargos públicos que

Sem política, sem esperanças

fazem uso dessa prática. “É ruim para mim, na condição de morador e ser humano, perceber essa diferença. Ainda não fui procurado, mas sei que as outras pessoas são. Vivo aqui há 30 anos e, durante todo esse tempo, escutei promessas de melhorias em inúmeras pastas que envolvem o Vicentina, mas as mudanças em si foram poucas”, lamenta. Outro ponto enfatizado pelos moradores no âmbito político são os problemas maiores do bairro. Encontram-se algumas propostas individuais, mas insuficientes para a comunidade. Isso fica evidenciado no compartilhado discurso de desânimo quanto ao plei-

to municipal de 2016. “São poucas as promessas para o bairro. Só entregam panfletos, mas ninguém vem para cá”, disse Luan Garcia, 24. “Ninguém representa o bairro, apenas levantam bandeira para cá em época de eleição. O Vicentina é um bairro abandonado, onde não se cumprem as promessas”, explicou Ari Grande, 53, dono de um restaurante local. A excessiva reclamação sobre aspectos voltados à saúde, segurança e pavimentação das ruas faz com que a falta de representantes do cenário político se torne ainda mais problemática. “Temos um posto de saúde

POLÍTICA .23 FALTA DE COMPROMETIMENTO?

Ao caminhar pelo bairro, pode-se notar que inúmeros santinhos estão por lá, jogados ao chão sem um fim digno para sua representatividade. Não há preocupação com a limpeza das ruas pós campanha eleitoral, apenas para angariar votos a fim de conquistar seu tão desejado cargo por parte dos candidatos. O que deveria ser uma solução acaba se tornando apenas mais um problema no mar de lacunas deixadas por políticos prévios. Isso acaba influenciando nas enchentes do bairro, algo um tanto comum nos últimos anos. Outro fator importante de ser ressaltado é que os rostos, de candidatos a prefeito e vereador, se fazem presentes. Porém, estampados apenas em cartazes e panfletos. A falta de conhecimento quanto a postulantes políticos e propostas destes, só é reforçada no momento em que o Vicentina Com visíveis se dá conta de que problemas no bairro, a comunidade os problemas existem e precisam ser sente falta de resolvidos. presença política de A própria pancorpo presente fletagem, feita por pessoas que trabalham em campanhas, e os carros sonorizados não aparecem com tanta freqüência. Mas como os moradores do bairro definem seus representantes? “Meu voto vai ser para dar uma força, pois é amigo do meu marido. Uma pena ser obrigada a isso”, revelou uma moradora do bairro, que preferiu manter a identidade em sigilo e cuja casa estampa uma faixa promovendo candidatos a prefeito e vereador. Em outro caso, pode-se perceber que algumas pessoas ainda decidem seus votos por mérito de quem os busca. “Escolhi uma pessoa que, há muito tempo, ajuda pessoas que moram próximas ao ‘valão’ do Vicentina e de baixa renda”, revelou Magda, filha de Maria de Lima. A mãe repassou seu envolvimento com a política aos parentes. Considerando que está sempre cheio e qua- que em sua época os partidos se nunca se compromete com brasileiros se resumiam a MDB agilidade aos pacientes. Mui- e Arena, sua filha, Magda, 56 tos vizinhos vão para outros anos, analista de sistemas, parbairros procurar atendimento ticipou de diversos movimentos, em outras unidades”, expli- inclusive um dos mais famosos ca Luciano Garcia, 33. até hoje, o “Fora Collor”. Marta Azzolini, 30, por sua O neto de Maria e filho de vez, sinaliza que os espaços Magda, Israel, 21 anos, votará recreativos e destinados ao pela primeira vez num pleito lazer, como o Parque do Tra- municipal e começou a compabalhador, as quadras polies- recer recentemente a eventos portivas e o espaço para cami- e comícios. Na maioria dos canhadas deixam a desejar. Para sos, o gosto pela política só é ela, os pontos são de extrema desenvolvido caso a família esimportância para a congre- teja presente no mesmo. gação da comunidade. Leonardo Ozório “São lugares que mereTiago Assis cem atenção, principalmente FERNANDO CAMPOS no que diz respeito às suas inVictor Thiesen fraestruturas”, pondera.


ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO (RS) OUTUBRO DE 2016

EDIÇÃO

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Manhã de santinhos, promessas e reclamações As impressões dos moradores que recebem panfletos eleitorais

U

ma eleição com novas regras, com campanha mais curta, permeada de restrições e que desafiou políticos, cabos eleitorais e eleitores. Apesar das novidades, os métodos na busca de um voto permanecem praticamente os mesmos. No Vicentina, em meados de agosto e setembro, encontramos vários cabos eleitorais que, momentaneamente, compram a ideia de um candidato à câmara ou à prefeitura. A oito dias das eleições, numa manhã de sábado, avistamos um grupo de quatro pessoas que se dividia entre os dois lados da rua na entrega de materiais de campanha de um candidato a vereador. Eram três mulheres e um homem. Pedimos para acompanhá-los naquela peregrinação pelo bairro. “Tomem cuidado com o material de vocês”, alerta Marina, 20 anos, uma das integrantes do grupo, se referindo à câmera. Essa precaução é evidenciada na fala da maioria dos moradores para quem perguntamos qual era o principal problema do Vicentina hoje. A segurança desponta na frente. Viramos a primeira esquina. Teresinha Woicziekoski tem 42 anos e é a mais experiente dos quatro. Ela aborda um casal que

juntava a grama recém cortada em frente à sua casa. De longe, ouço o homem dizer “porque tá difícil a coisa” e, da boca de Teresinha, “primeira vez”. Imaginamos que seja a primeira eleição do seu candidato a vereador. E era. A conversa dura menos de um minuto. Teresinha e os três colegas de campanha seguem sua caminhada e nós paramos para conversar com o casal recém abordado. Dejalmiro Nunes da Rosa tem 52 anos e sua esposa, Eliane Nunes da Rosa, 48. Ele é metalúrgico e ela, diarista. Moram há quase três décadas no Vicentina. Sobre a entrega de santinhos nas casas por cabos eleitorais e as propostas dos candidatos, Dejalmiro diz que “geralmente só promete e depois nunca mais, né?”. Eliane reclama da falta de segurança e das “ruas esburacadas”, mas mantém o bom humor. Ao fundo, enquanto conversávamos, passa um carro branco, a mais ou menos 10 km/h, adesivado e entoando o jingle do candidato para quem o grupo trabalhava. A frase que é possível ouvir diz “acreditar na esperança”. E era o que parecia faltar ao casal naquela manhã. “Há uns tempos a gente via a Brigada (Militar) passando, tinha no Parque”, queixa-se Dejalmiro. O grupo de cabos eleitorais pede instruções na esquina ao motorista do carro branco que servia de suporte a eles, além de fazer efeito visual e sonoro no bairro. Peço um dos panfletos que

eles entregavam. Uma folha de 15 centímetros de largura por 21 de altura. Na frente, uma foto grande do candidato com um breve parágrafo agradecendo a receptividade e frisando, ao final:“vamos cuidar da saúde”. Na imagem, um sujeito de aparência já idosa, usando óculos, camisa azul, braços cruzados e aliança na mão esquerda. No verso, fotos com apoiadores e grampeada uma colinha. Jason é o único homem daquele grupo. Tem 27 anos e parece querer entregar os panfletos rapidamente em todas as residências. Eles colocam os materiais nas caixinhas dos Correios, fixam na cerca de algumas casas, na porta, entregam para crianças e, quando possível, diretamente às pessoas com uma rápida conversa. Por vezes, em duplas, dividem-se entre ruas diferentes. Depois se reencontram e seguem juntos de novo. “Normalmente a gente fala que é a primeira vez que ele tá se candidatando, que ele é ficha limpa, é um atrativo”, me conta Marina sobre a estratégia de abordagem do eleitor. Além deles, Mariana, de 40 anos, também fazia parte do grupo. “Quinze pras onze já”, grita Teresinha enquanto fuma um cigarro no breve intervalo de cinco minutos que ela mesma se dá. Eles ficariam no Vicentina até o meio dia. Os quatro tinham na campanha eleitoral o seu trabalho naquele momento. A esperança, a partir da eleição do candidato para o qual trabalhavam, era um

A tentativa de Teresinha (esquerda, acima) de convencer Vitória (esquerda, abaixo) e o casal Dejalmiro e Eliane (direita) a votarem em seu candidato

futuro melhor para eles. Trabalhavam, na campanha, cerca de cinco horas por dia nos dias de semana. Aos sábados, oito. Na garagem de uma casa, avistamos uma senhora sentada. “Já deixaram um jornal Enfoque para a senhora?” Como resposta, um questionamento: “é de igreja ou de político?”. Logo percebemos a resistência a ambos. Leda Gutierrez tem 54 anos e mora há 30 no Vicentina. Visitava, naquela manhã, a amiga Vitória Silveira dias, de 59 anos, que aparece para conversar conosco dizendo ter trabalhado até este ano no restaurante que fica ao lado do Centro da Comunicação, na Unisinos. Enquanto dona Vitória fala sobre seus 20 anos de trabalho na universidade, fazendo lanches, Leda lê o panfleto entregue por Teresinha minutos antes.“Isso aqui é só mentira. Tava lendo e analisando as mentiras. Eu recebo por educação porque as pessoas que estão entregando tão ganhando alguma coisa”, afirma. Vitória tem um brechó em casa. Mostra camisas e bermudas. “Aproveita que hoje é tudo um real”, oferta ela. Sobre as eleições, discorda um pouco da amiga: “Às vezes tem uns que até dá pra dar uma olhada e precisamos dar o voto de confiança pra alguém”. Saindo da casa de Vitória, avistamos Teresinha, Mariana, Jason e Marina na esquina seguinte. Já eram quase 11h30. Precisávamos nos despedir porque, em seguida,

iríamos cada um para seu lado. Eles continuariam a panfletagem à tarde. Nenhum dos quatro é morador do Vicentina, mas dizem conhecer bem o bairro. Na volta para o ônibus, encontramos o jovem Ismael Silva, 16 anos. Não tem boa relação com a mãe, que vive em Porto Alegre, e com o pai, que mora em Canoas. Por isso foi morar com a tia na Ocupação Cerâmica Anita há um ano. Ismael está à procura de emprego. “Bato em mercadinho, em ferro velho. Mas não consegui nada ainda. O que vier pra gente é lucro. O que eu não souber tô disposto a aprender”. Hoje, depende da ajuda da tia para se sustentar. Ismael fala sobre sua vida como se fôssemos velhos amigos. Conta detalhes da separação dos pais e de sua história. Ele talvez seja o perfil mais atingido pela falta de assistência do poder público em geral. É jovem, parou de estudar na sexta série, os pais são separados e ele mora de favor com a tia. A luta, para ele, é por emprego. O mesmo emprego que aparece em tantos panfletos entregues pelo Vicentina e outros bairros nesta época de eleições como promessa de campanha. Assim como a frase que encerra a apresentação do candidato a vereador do grupo que acompanhamos: “Vamos cuidar de São Leopoldo”. anderson guerreiro Artur Colombo


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