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edição 2
jul/2016
TUDO MUDA
Revista experimental do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre
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N
o primeiro semestre de 2009, depois do primeiro dia de aula, recebi um e-mail de um aluno. Na ocasião, eu ministrava uma atividade acadêmica que desenvolvia uma revista experimental, como esta, no campus de São Leopoldo, chamada Primeira Impressão. Na verdade, ainda ministro. No e-mail, o aluno dizia o quanto a primeira aula havia lhe inspirado a se dedicar ao máximo na produção da revista. Um estudante empolgado é o melhor presente que um professor pode receber. Passados tantos anos, hoje esse ex-aluno está editando a revista Josefa comigo. Bruno Alencastro é professor da atividade de Projeto Experimental em Fotografia do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre e responsável pela orientação dos alunos fotógrafos e pela edição das fotos da revista. Em 2009, nenhum de nós dois imaginaria que hoje Bruno seria professor, nem que estaríamos lado a lado
na produção de uma revista – embora sua empolgação em sala de aula certamente tenha contribuído para que essa mudança ocorresse em sua vida e ele construísse uma carreira sólida como fotojornalista e como professor. Também não poderíamos prever que o Campus Unisinos Porto Alegre existiria e que nele haveria um curso de Jornalismo, o qual eu coordenaria. Muita coisa
Luis Felipe Matos
Cartaaoleitor
mudou, e não só conosco. A maioria dos repórteres e fotógrafos que produziu a Josefa neste semestre foi meu aluno em uma das primeiras disciplinas do curso: Introdução ao Jornalismo. Hoje eles já estão na reta final, e cada um sabe o quanto sua vida mudou. O amadurecimento e o aprendizado nesses anos são evidentes. Cada um tem o seu jeito, suas preferências, mas todos são muito diferentes de quando começaram. E o próprio curso também mudou, em grande parte pelas provocações desses mesmos alunos. Mudar faz parte da vida. Às vezes, mudamos por opção, outras, por necessidade. Sequer nos damos conta e mudamos. São histórias como as nossas que você encontrará nas próximas páginas. O que não muda, para nós, é a paixão pelo que fazemos. Thaís Furtado Professora editora de textos
A gaúcha Maria Josefa Barreto Pereira Pinto foi a primeira mulher jornalista brasileira. Mãe, feminista, poeta, escritora e professora, dirigiu dois jornais, sendo proprietária de um – o Belona Irada Contra os Sectários de Momo –, que circulou em Porto Alegre entre 1833 e 1834. Josefa não teve uma vida fácil. Foi abandonada quando nasceu, mais tarde seu marido a deixou e ela viu seus dois filhos morrerem. O nome desta revista é uma homenagem a ela.
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ndice 06 10 14 18 22 26 30 34 36 40 44 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90
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Mudança de país Assumindo os cachos Aposentadoria Cotas raciais Bipolaridade Mudança da voz Mudança de hábitos alimentares Mudança de religião Refugiados Drag queens Comunidades alternativas Gravidez na adolescência Mudança de curso Circo Startups Redução de estômago Separatismo A vida nos abrigos Mudança de time Parto humanizado Violência contra a mulher Frete
Caroline Baisch
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VIAGENS
Os motivos, conselhos e experiências de quem já morou em diferentes países Texto Gabriela Gonçalves Fotos Maurício Trilha
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á quem tenha raízes, priorize o trabalho, a família e os velhos costumes. Há quem prefira o desconhecido, tenha pavor de rotina e esteja com as malas sempre prontas. Ainda assim, há quem passe por fases. Quem prefira manter os pés no chão e, de repente, precise de um impulso. Comparado a 2011, o ano de 2015 teve 67% mais Declarações de Saída Definitiva do País, documento apresentado ao fisco por quem emigra de vez, segundo dados da Receita Federal. Um número para provar que os beijos de despedida em aeroportos estão cada vez mais comuns. Juliano Dellamea, Julia Tietz, Lola Piccione e Kelly Kaiser deixaram o Brasil e encararam novas culturas mais de uma vez. Independentemente das inúmeras descobertas que uma mudança traz, todos eles notaram: nenhum povo distribui tantos sorrisos como o brasileiro.
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Na bandeira da Espanha, Julia guarda mensagens de carinho dos amigos
QUAL É O TEU
endereço?
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“Deixar a família é a parte mais difícil”
Formado em Relações Públicas e trabalhando com gerenciamento de comunidades na empresa TwitCasting, em Tóquio, Juliano Dellamea saiu do Brasil em 2013. Ele e a atual esposa, Andressa Grams, foram para os Estados Unidos cursar uma pósgraduação de dois anos. No segundo ano, apesar de estarem empregados, não conseguiram o visto de trabalho. A empresa onde trabalham ofereceu a oportunidade do casal ir para o Japão. “Nos casamos em São Francisco para conseguir o visto, mas isso foi consequência, casaríamos de qualquer jeito”, afirma. As 12 horas de fuso horário, que deixam o dia e a noite no Brasil e no Japão totalmente ao contrário, dificultam a comunicação com a família. Ainda assim, fazendo bom uso da tecnologia, do WhatsApp e do Skype, é possível conversar pelo menos uma vez na semana. “Deixar a família é a parte mais difícil.Se eu pudesse, traria todo mundo para cá. O resto nós já temos.” Juliano diz que só voltaria se alguém o colocasse em um avião e falasse que é preciso voltar. “Seria difícil viver sem segurança de novo. Se meus pais tivessem tido a chance que eu tenho hoje, aos 28 anos, eu teria ficado bravo de crescer no Brasil. Penso nos meus futuros filhos.” Entre os próximos planos do profissional de relações públicas está conquistar uma posição sênior na empresa e, daqui a cinco anos, ter filhos. Por enquanto, aproveita as experiências da nova cultura, admira o senso de honestidade do povo e descobre o estilo de vida japonês. 8
“Quando eu desço em um aeroporto no Brasil, sinto cheiro de casa”
Mesmo que Julia Tietz não considere o Brasil como lar e não se adapte mais ao país, ela conta que em nenhum outro lugar as pessoas recebem o outro de maneira tão afetuosa. Apaixonada por viagens, herdou o espírito livre do pai, Roberto Tietz, técnico de vôlei, que já treinou times em vários países. “Estamos eternamente de malas prontas. Se ele disser ‘vamos’, nós vamos.” Quando ela e sua família moraram na Suíça, quase fronteira com a Itália, eles criaram laços ainda mais fortes e visitavam o país vizinho constantemente. Cheia de carimbos no passaporte aos 21 anos, Julia diz que seu coração é italiano, apesar de hoje estar morando no Brasil: “Eu amo a Itália, lá é o meu pedacinho do mundo”. Ainda assim, ela confessa: “Quando em desço em um aeroporto brasileiro, sinto cheiro de casa”. Depois de passar quase um ano estudando na Espanha, se acostumou a viver a um oceano de distância da família. Fez amigos de apenas um dia, descobriu que o espanhol não é tão fácil quanto parece, mediu o tamanho do medo pela proporção da vontade de vencer e tornou-se uma nova Julia. “A ideia de abraçar o que vem é a minha maior inspiração”, revela a quase formada em Relações Internacionais, que sonha em fazer um curso sobre história da arte na França ou na Itália e levar a arte como um hobby. “Antes eu preciso ganhar dinheiro. Quero um novo desafio em um novo país. Se tudo der errado, eu volto para o Brasil”, diz Julia. Tantas mudanças ensinaram a estudante a priorizar o que realmente importa. Hoje, ela valo-
Na casa de Kelly, as paredes trazem lembranças dos amigos artistas que ela tem ao redor do mundo
Comparado a 2011, o ano de 2015 teve 67% mais Declarações de Saída Definitiva do País, documento apresentado ao fisco por quem emigra de vez, segundo dados da Receita Federal
cou não adianta. Não tem que ficar com saudade da goiabada brasileira. Tem que abrir a mente”, aconselha.
“Eu preciso viajar, preciso de desafios”
riza a simplicidade. Aprendeu que, no final das costas, resta o essencial: amigos em qualquer lugar do mundo, momentos que nunca sairão da memória e a certeza de que a família sempre estará por perto.
“Mudar é se reinventar. Até o meu nome eu reinventei”
Diacuy Mesquita Piccione, de 49 anos, aproveitou a mudança de país e reinventou o próprio nome: “Agora eu me chamo Lola. É espanhol, é fácil e não preciso mais ouvir ‘o quê?’ quando eu digo que meu nome é Diacuy”. Natural de São Paulo, Lola é casada com Paulo, um italiano, e tem dois filhos, Pietro, 16 anos, e Francesco, 13. De 2001 a 2003, moraram na Itália, onde nasceu Francesco. De 2008 a 2010, tiveram a Espanha como lar, e até agosto de 2016 a família viverá na cidade de South Bend, nos Estados Unidos. “Vou voltar para o Brasil porque está na hora do Pietro prestar vestibular e ele quer estudar em Florianópolis”, explica. Se pudesse, Lola ficaria. Nos EUA, os filhos poderiam ganhar bolsa de estudos integral nas faculdades se tivessem uma boa nota, já que o pai está trabalhando como professor visitante de uma universidade, o principal motivo de tantas mudanças. “Com 16 anos é tão difícil ser racional para decidir a sua vida”, comenta a mãe sobre as decisões de Pietro. Ainda assim, ela lembra que não é uma mudança definitiva: “Se os meninos quiserem, é só voltar”. A fotógrafa se impressiona com os diferentes pontos de vista de cada cultura. “Mudar também é isso, é descobrir diferentes maneiras de ser. Só que não basta entregar o passaporte na Polícia Federal. É preciso deixar o preconceito, os julgamentos e as idealizações. Ficar chorando pelo o que fi-
Kelly Kaiser já morou na Espanha, Itália, Inglaterra, Suíça e Luxemburgo com o marido, Peter Klegues. Foram 10 anos no exterior, sendo cinco na Espanha e três na Inglaterra, onde a filha do casal nasceu. “Essas mudanças aconteceram porque eu preciso viajar, preciso de desafios”, destaca. Ela, fotógrafa; ele, tatuador. As duas profissões permitem que Kelly e Peter tenham o estilo de vida em que acreditam: livre, com constantes desafios e com a possibilidade de morar em mais de um lugar ao mesmo tempo. “Hoje, vivemos no Brasil e em Luxemburgo, porque não conseguimos nos enraizar. Estamos acostu-
mados com o modo de vida europeu”, conta. O casal aproveitou fases sem responsabilidade, viveu histórias que renderiam um livro, trabalhou muito para conquistar os sonhos e, em certo momento, percebeu que não estava mais completo. Isabelle veio para preencher o espaço vazio e, aos três anos, ela já sabe cantar em inglês e espera as férias para ver a neve. Para a brasileira Kelly, a maior dificuldade é estar fora do país onde nasceu e, ainda assim, estar presa por algum motivo: “Nós sempre buscamos quem pensasse parecido conosco. Estávamos lá, mas não conseguíamos nos desvincular da nossa pátria. Eu sempre disse que não voltaria ao Brasil, até perceber que eu precisava estar aqui”. Muito mais do que trocar de endereço, mudar significa transformar. Juliano, Julia, Lola e Kelly são movidos pela vontade de conhecer novos horizontes. E você?
OLHAR DA
REPÓRTER
Fazer uma matéria sobre mudança de país já vem com um desafio: conciliar o fuso horário de quem mora no exterior com o horário de Brasília. Das quatro entrevistas, duas tiveram que ser por Skype. Obrigada, tecnologia. Infelizmente, os 7.000 caracteres que a Josefa dispõe para cada repórter foram pouco para contar tudo o que ouvi. O trabalho de edição a partir de 20 páginas de rascunho exigiu coragem e desapego na hora de cortar. Valeu a pena ouvir quem foi; quem já voltou; quem foi e quer ir embora de novo; e quem foi e precisa voltar. Nas casas que conheci, me encantei com as decorações e os pedacinhos de outras culturas em cada detalhe. Entendi que mudar de país é muito mais do que trocar de endereço ou aprender a falar outra língua. Mudar de país muda a maneira como uma pessoa enxerga a vida. Traz descobertas, surpresas e obstáculos. Foi aí que eu tive certeza: é o que eu quero para mim.
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CABELOS
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Liberte-se Histórias de mulheres que decidiram mudar e assumir os crespos e cacheados Texto Naiady Souza Fotos Cora Zordan
Q Suellen começou os tratamentos químicos para alisar os cabelos aos 12 anos. Hoje, assumiu o black
uando se fala em estilo e personalidade, os cabelos têm bastante destaque, e isso não é nenhuma novidade. Nos anos 20, os cabelos ganharam um papel importante. A moda era o corte “chanel’’, estilo que moldava o rosto da mulher. Desde então, a cada década surgia uma nova tendência capilar. Sem dúvida a década de 1950 foi um dos principais períodos em que os cabelos marcaram presença. Naquela época, a indústria de cosméticos teve uma evolução com os surgimentos de técnicas novas e produtos para fazer as famosas luzes. Já nos anos 1960, os cabelos eram dominados por volume no topo da cabeça, feminilidade nos penteados e vários acessórios, como laços ou presilhas para ressaltar o romantismo das mulheres. Os anos 1970 foram marcados pelo movimento hippie. Os hippies lutavam por mudanças sociais, por isso os cabelos ganharam um ar mais natural e sem muitos cuidados. A tendência eram as ondas e muito volume.
Essa década também ficou marcada pelos cabelos black power. Nos anos 1980, o corte repicado em cima da cabeça e a permanente ganharam espaço. A moda era de quanto mais volume melhor. Outras tendências importantes que foram lançadas nessa época foram os cortes de cabelos de Lady Diane e os famosos mullets, que a dupla Chitãozinho e Xororó usava. Chegando nos anos 1990, a tendência capilar muda drasticamente; a moda era de um visual mais clean, natural e com movimentos próprio de cada cabelo. O cabelo e corte mais cobiçado era da personagem de Jennifer Aniston na série de maior sucesso da época: Friends. Chegando no final da década de 1990, inicia-se a ditadura do cabelo liso. E nos anos 2000, essa tendência se torna mais forte. As técnicas e produtos de alisamentos começam a fazer sucesso com atrizes, celebridades e subcelebridades aderindo ao cabelo superliso e sem volume. Cabelos crespos, cacheados ou com um volume maior co| julho/2016 | 11
meçaram a desaparecer do gosto das pessoas. As mudanças iam dos adultos para as crianças, por conta de uma necessidade de se encaixar nos padrões de beleza impostos. O liso dominava.
Quebra de padrões
Pryscila Oliveira, 21 anos, começou a alisar o cabelo com 14 anos para se livrar das piadas que os colegas da escola faziam sobre os seus cachos. Fez progressiva, relaxamento, entre outros tipos de procedimentos que existem para alisar os fios. “Eu tinha vários apelidos no colégio por causa do meu cabelo, sem contar quando colocavam chiclete ou cola, aquilo me magoava muito. Eu sempre tive cabelo crespo e com volume, mas as outras meninas não, então um dia resolvi conversar com a minha mãe e pedi para alisar o cabelo.” Desde o dia que alisou os cabelos, os apelidos sumiram. Pryscila passou a seguir o padrão, escondendo o volume e os cachos através da famosa progressiva. Já com Suellen Lopes, 18 anos, os tratamentos químicos começaram aos 12 anos. “Eu sempre via na TV as famosas com aqueles cabelos lisos e louros, bem diferentes do meu. Então eu resolvi alisar pra ficar igual a elas.” Quem passa por procedimentos químicos no cabelo, como progressiva ou escovas alisadoras, deve fazer uma manutenção trimestral para manter o resultado, porém, a maioria desses procedimentos acaba danificando os fios com o tempo, sem contar o valor que é gasto em cada sessão: uma média de R$ 250,00 para retocar e manter os cabelos lisos. Com o passar do tempo, os cabelos de Pryscila começaram a ficar danificados por conta da quantidade de química que ela usava para 12
alcançar o liso desejado. Aos 16 anos, ela começou a entender que não precisava de tantas químicas e que aquilo estava prejudicando a saúde do seu cabelo. Compreendeu que não precisava ter o cabelo igual a de todas as pessoas e nem ter vergonha do volume e dos cachos. O momento de deixar as químicas de lado e começar a assumir os cachos é muito importante e mexe com a autoestima da mulher. Depois de um período em que se utiliza químicas no cabelo, o fio normalmente não volta ao normal, então a única solução é deixar a raiz crescer novamente. Este processo é conhecido como transição capilar. Gedmila Alves, 25 anos, está passando pela transição capilar. Ela começou a utilizar químicas para alisar o cabelo aos 12 anos por não se sentir à vontade com o cabelo cacheado. Em sua concepção, ela não se encaixava em uma socie-
Depois que assumiu os cachos, a autoestima de Pryscila aumentou
dade que ditava que o crespo não era bom, mas sim o liso, optando, assim, pelos alisamentos. Depois de muito tempo, Gedmila começou a pesquisar sobre a transição. Foi através da internet que passou a conhecer vários movimentos que apoiam mulheres a assumirem os cachos. Movimentos que incentivam a deixarem os tratamentos químicos de lado e valorizar o natural. “Eu comecei a acompanhar várias youtubers, comecei a achar várias comunidades na internet sobre cabelos e isso foi me dando mais coragem pra assumir os meus.” Ela sentia vontade de realizar a mudança, mas a coragem para assumir os cachos ainda era pequena. “Aceitar o meu cabelo natural foi e é um momento bem difícil. Eu enfrento muitas barreiras, sempre penso um milhão de vezes antes de cortar o cabelo e fazer o BC (Big Chop, que significa grande corte em
OLHAR DA
REPÓRTER
Fazer essa reportagem me mostrou como a mídia influencia no gosto e nas atitudes das pessoas. Digo isso pois as três meninas que conheci para realizar a matéria sobre mudança capilar só não se assumiam porque não se viam representadas em nenhum lugar. Tv, jornal ou revista eram marcados por mulheres de cabelo liso e com pouco volume, então a maioria via a necessidade de se encaixar em um padrão que era exposto pela mídia e, de certa forma, cobrado pela sociedade. Percebi que a decisão de assumir os cachos, o crespo e o volume vai muito além de estética. É uma forma de se redescobrir. Adorei conhecer mulheres incríveis e corajosas, que enfrentaram as barreiras que foram construídas e assumiram os cachos.
“Depois que eu assumi meus cachos, tudo mudou, meu estilo, minha autoestima. Eu me encontrei. Hoje me sinto bem mais bonita” Pryscila Oliveira Estudante
inglês). Eu tenho um pensamento construído de que não preciso alisar meu cabelo para me encaixar em um padrão, mas as pessoas ao meu redor não, então não é uma decisão fácil”, comenta Gedmila. A transição capilar é um momento delicado porque é o período em que os fios vão precisar de cuidados extras e também a fase em que a mulher vai ter que deixar o apego ao cabelo e decidir quando cortar. Algumas mulheres vão cortando as pontas do cabelo aos poucos até se livrar de toda química, ou então optam pelo Big Chop, que leva esse nome porque é o ato de tirar toda a parte do cabelo que contém química de um vez só, esteja o cabelo do tamanho que estiver. Pryscila escolheu fazer o big chop, deixou o cabelo crescer por alguns meses até ter a coragem de cortar todo o comprimento que continha química. “Quando meu cabelo começou a crescer e ficava metade liso e metade cacheado eu tinha muita vergonha de sair na rua, pois não ficava bonito, não tinha nenhum penteado que eu fizesse que ficasse bonito, então eu utilizava chapinha praticamente todo dia pra ficar uniforme. Quando a raiz ficou com um bom comprimento, eu cortei e assumi meus cachos.” Já Suellen resolveu fazer de uma forma diferente. Quando decidiu
deixar as químicas de lado, passou a utilizar aplique de tranças no cabelo, o que ajudou no crescimento dos fios. “Enquanto eu estava com as tranças, meu cabelo foi crescendo. Quando ficou com um comprimento legal, eu assumi o black. Essa forma foi bem melhor, eu ia mudando a cor das tranças conforme eu queria, até o cabelo ganhar comprimento”, comenta. Mudar o cabelo não é uma decisão qualquer, principalmente para as mulheres. Envolve uma autoaceitação e também a quebra de barreiras que foram construídas durante muito tempo. Passar pela transição capilar e assumir o que de fato é seu é uma forma de se redescobrir e encantar a si mesma com a beleza que tem. “Depois que eu assumi meus cachos, tudo mudou, meu estilo, minha autoestima. Eu me encontrei. Hoje me sinto bem mais bonita”, comenta Pryscila. O padrão de beleza imposto pela sociedade muda constantemente, pois a grande verdade é que não existe uma forma. Somos todos iguais com características diferentes, e o legal do mundo é isso, não ser igual a ninguém, ser único, com uma beleza única, como já dizia a cantora Pitty na música “Máscaras”: “O importante é ser você. Mesmo que seja estranho, seja você”. | julho/2016 | 13
ESCOLHA
Texto Tainá Rios Fotos Amalia Martinez e Tainá Rios
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o livro O que é escolha profissional, da autora Dulce Helena Penna Soares, conhecemos dois possíveis caminhos em relação à aposentadoria. O primeiro corresponde à perda de identidade. “O lado mais difícil de encarar a aposentadoria está ligado à questão da nossa identidade profissional. Nosso trabalho passa a fazer parte da nossa identidade, somos a nossa profissão”, afirma a escritora. Dedicar-se a uma profissão é como o ciclo da vida: tem início, meio e fim. Quando percebemos que o fim chegou, o medo de não saber o que fazer ou de como preencher esse vazio assombra muitas pessoas. João Carlos dos Santos, 68 anos, por exemplo, dedicou-se por 30 anos ao ofício de vendedor, mas uma nova fase o distanciou dessa paixão. “Você corta esse ciclo e, por mais que você se prepare para isso, precisa de um tempo para assimilar tudo e criar novas rotinas”, afirma. O segundo caminho possível é representado pelo tempo livre. Para a autora, pessoas habituadas a terem atividades de lazer, a curtir outras atividades além do trabalho, sentemse mais tranquilas no momento da aposentadoria. Foi o que aconteceu com Débora Campos Velho, que, aos 59 anos, decidiu realizar um sonho: substituir o caos da metrópole urbana pela vida mansa do litoral catarinense. Cercado de morros, o novo endereço é a Praia da Armação, no Sul da Ilha de Florianópolis, a uma quadra da beira da praia. A opção pela aposentadoria precoce surgiu com o cansaço da rotina de trabalho e o desejo de mudança. “A vida inteira eu quis vir para cá ou para mais longe. Dei-me conta que posso estar aqui ou não. Eu posso mudar. Eu vou para qualquer lugar e posso fazer muitas coisas.”
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Na praia ou na cidade, a aposentadoria traz a mudança de rotina às nossas vidas
CHEGOU O MOMENTO DA
pausa
Tainá Rios
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Junto com toda dedicação profissional, havia o sabor de novas culturas e o aprendizado com os colegas. João Carlos relembra todos os fatos com muito carinho. Para ele, o bom profissional precisa saber aprender e ensinar e não ter medo de compartilhar experiências, sempre com muita humildade e sinceridade. “Isso que me deu mais prazer na minha carreira: com essa capacidade de aprender e ensinar, impulsionei a carreira de muitas pessoas. Foi muito prazeroso”, relembra. O recém aposentado começou como vendedor, foi gerente, até chegar a representante regional, sempre na área comercial. Para seguir nessa carreira, foi preciso fazer as malas muitas vezes. João Carlos, morador de Porto Alegre, lembra das atividades rotineiras e pautadas pela profissão que escolheu, mas que não lhe causavam nenhum incômodo. Sempre acompanhado da esposa Iolete dos Santos, morou em São Paulo, Ceará, Belém do Pará e Rio de Janeiro. Toda essa história profissional não seria possível sem o apoio da família e a flexibilidade dos filhos em aceitar as transferências e a distância. O casal não tem filhos juntos, João Carlos tem três filhos e Iolete, dois.
A aposentadoria chegou: e agora?
João Carlos sempre teve o companheirismo da esposa que lhe ouve atentamente e procura aconselhar da melhor forma possível. Para ela, essa nova fase é esperada há muitos anos e prevê um convívio maior com o cônjuge. Mesmo com o apoio da família, João Carlos sente insegurança, seus sentimentos se confundem e compara o momento de descanso da aposentadoria com o 16
luto. “Você precisa refazer sua vida, buscar novas rotinas diárias para preencher essa lacuna tão intensa.” Ele conta que ainda sonha com as tarefas do antigo trabalho. O lazer e as viagens não foram descartados do plano de aposentadoria. Junto com a esposa, pretende aproveitar os bens adquiridos com muito esforço, visitar mais os netos e os filhos, sem esquecer das novas aventuras nas tarefas da casa. Quando percebeu a mudança que a aposentadoria causaria na vida do ex-funcionário, a empresa onde trabalhava lhe ofereceu uma ajuda: um coaching de direcionamento de carreira. “Eu vou passar por um assessoramento, para me ajudar a indicar qual o caminho que eu vou seguir, porque ainda não está definido que eu vá me aposentar definitivamente e parar”, explica. João Carlos ainda pensa na possibilidade de unir o tempo em casa com alguma atividade.
A conquista de um sonho
A vontade de morar a poucos metros da areia surgiu na Praia de Gaivotas, em Sombrio, Santa Catarina, quando Débora tinha 18 anos. “Eu não sei qual a palavra, Amalia Martinez
O conhecimento profissional
O jeito calmo dos novos vizinhos ajudou Débora na aceitação do novo status de vida
porque eu não conseguia sair daquela maravilha”, relembra. A sensação de ver o mar pela primeira vez foi inesquecível. No entanto, o desejo de permanecer diante daquela paisagem foi adiado e ela continuou morando em Porto Alegre. Primeiro, precisava concluir a graduação de Estudos Sociais, depois teve dois casamentos e duas filhas. Mas o sonho permanecia. E foi em 2014 que o plano de mudança começou a ser arquitetado. Insatisfeita com o trabalho de administração numa clínica oncológica, foi até o INSS para começar a saga da aposentadoria. Foram muitas tentativas e muitos ‘nãos’ até o pedido de afastamento ser aceito com a complementação em dinheiro. “Pedi um adiantamento
Depois de 30 anos dedicados ao trabalho, João Carlos ainda tenta se acostumar com a sua nova condição de aposentado
Tainá Rios
Débora planejou o momento de parar e foi morar perto do mar, onde sempre sonhou
para o meu chefe prometendo que, quando saísse a aposentadoria, eu devolveria a quantia. Também pedi que me demitisse, para eu poder me mudar, porque deixaria todas as minhas coisas e compraria tudo de novo”, lembra. Com um passo de cada vez, Débora foi colocando o projeto em prática. Primeiro, a filha mais nova foi aprovada no vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mudou-se para lá, em março, com amigos. Depois, a aposentadoria foi aceita em maio. A demissão ocorreu em agosto e, finalmente, fez a mudança no final do mês de setembro. “Eu sempre tive esse sonho, então é tudo maravilhoso”, fala com brilho nos olhos.
O desapego da rotina
No armário da sala de estar, livros de yoga, educação alimentar, ensinamentos para uma saúde saudável e para descobertas interiores. Débora afirma que os livros são os maiores companheiros da nova fase. Com eles, contempla o pôr do sol na beira da praia e aprende como desapegar do ritmo herdado da capital gaúcha. “Eu era muito acelerada, como todo mundo que mora na cidade grande. As pessoas pensam rápido, agem rápido, fazem tudo rápido e aqui não.” O jeito calmo dos novos vi-
zinhos ajudou Débora na aceitação do novo status de vida. A primeira mudança na rotina de Débora foi em relação à casa. Agora, ela tem pátio, uma cozinha razoavelmente grande, sala de estar, varanda, ar puro para o cultivo da horta e das plantas e mora sozinha. Nas paredes e na geladeira, muitas frases de incentivo, desenhos alegres e mantras budistas. A cortina da janela de entrada foi substituída por uma canga com o desenho de Ganesha, um dos deuses do hinduísmo. O cheiro de incenso é percebido logo que se entra na casa. Os armários dos quartos não existem mais, foram trocados por araras aéreas, deixando as roupas bem visíveis. “Eu estou em outra vibe: o menos é mais. O mais pra mim é poder cheirar sem sentir gás carbônico de carro pra cima e pra baixo. Eu só tive acréscimo de qualidade de vida. Eu estou com uma cor maravilhosa que eu nunca tive. Eu adoro estar aposentada e estar aqui por uma escolha minha.” A aposentadoria assemelha-se a inscrição no vestibular. Uma escolha difícil que precisa ser tomada com calma e atenção. Utilizar o tempo livre para atividades de prazer é a grande dica dos especialistas. Seja no décimo andar de um prédio ou com os pés na areia da praia, o importante é fazer a escolha certa para o momento da pausa.
OLHAR DA
REPÓRTER
Escrever sobre aposentadoria me fez refletir sobre os nossos momentos de pausa. Minha jornada de trabalho está no início, tenho muito a caminhar, mas os dois entrevistados deixaram bem clara a importância de construir um momento reservado para a aposentadoria. Para escrever as duas histórias apresentadas aqui na Josefa, precisei mudar de cenário. Foram 12 horas de viagem, de ida e de volta, para Santa Catarina. Uma bela paisagem para uma história inspiradora! Débora mostrou que um espírito livre sempre será bem-vindo, em qualquer lugar do mundo, trazendo consigo um sorriso largo no rosto e um abraço bem apertado. João Carlos me mostrou a necessidade de criar uma boa carreira profissional e me falou de toda a bagagem que levamos quando chegamos ao fim. Espero que todos os leitores da segunda edição da Josefa possam planejar a partir de agora quais os caminhos que estão trilhando para a tão esperada aposentadoria.
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COTAS RACIAIS
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O sonho de acesso E PERMANÊNCIA D
Para Horácio, as cotas deveriam se expandir para outros programas do Governo
urante a cerimônia de colação de grau da turma de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da qual fazia parte, Horácio de Moraes decidiu, como forma de protesto, sentar-se enquanto seus colegas, em pé, cantavam o hino do Rio Grande do Sul. A cena aconteceu na noite de 10 de março de 2016 e logo viralizou nas redes sociais, fazendo com que muitas pessoas questionassem a atitude. Horácio é negro, usa o cabelo black power e acredita que o hino do estado é um símbolo contestável. “Aquele hino não nos representa. Durante a Revolução Farroupilha, prometeram a liberdade aos negros escravizados, mas, ao invés disso, foram utilizados como bucha-de-canhão durante a guerra e acabaram mortos”, afirma Paulo Ricardo de Moraes, militante do movimento social negro e pai de Horácio. Para quem não compreendeu, há um trecho da canção que diz “povo que não tem virtude, acaba por ser escravo”. A atitude de Horácio e de seus familiares, que mantiveram a mão na boca durante o ato, revela o incômodo com a execução obri-
gatória do hino rio-grandense em cerimônias oficiais no estado. Atitudes preconceituosas e ofensivas, infelizmente, sempre estiveram presentes na vida de Horácio, que, mesmo estudando na UFRGS e não sendo cotista, percebia o tratamento diferenciado que era dado pelos docentes a outros alunos. “Logo quando as turmas eram formadas, o pessoal que já se conhecia ficava junto, e quem não era do grupo acabava sobrando. Os professores nos olhavam de maneira diferente”, relata. Segundo Horácio, depois que foi instituída a Lei 12.711, de agosto de 2012, que garante o acesso através das cotas nas universidades federais para combater a desigualdade, ficou mais agradável a convivência no local de ensino, visto que os negros passaram a se reunir e não se sentiram mais tão excluídos. “De acordo com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), até o final de 2015 foram 150 mil jovens realizando o sonho de cursar uma faculdade. Falo em 150 mil jovens negros”, observa Oscar Henrique Cardoso, presidente
A mudança na vida de jovens depois de instituída a reserva de vagas na universidade e serviço públicos Texto Stéphany Franco Fotos Paulo Egidio
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do Conselho Municipal dos Direitos do Povo Negro (CNegro).
Quando o fator socioeconômico fala mais alto
Para Israel Cardoso Rodrigues, que sempre estudou em escola particular, se formou em enfermagem na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e é concursado do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, a lei de cotas nas universidades minimiza uma lacuna gerada pela desigualdade no país e tende a refletir nos profissionais que teremos no futuro na sociedade. “Um adolescente que vai ao posto de saúde e é atendido por um médico negro acaba enxergando ele como um exemplo a ser seguido”, ressalta. Israel, assim como Horácio, optou por não utilizar cotas raciais. Eles acreditam que o fator socioeconômico é mais forte do que a questão da cor da pele. “Se um negro nasceu em uma família que tem condição financeira favorável e teve oportunidade de estudar, então 20
não precisaria fazer uso de cotas, pois não teve seu desenvolvimento prejudicado. Sou a favor da lei, que vem para ressarcir a parte histórica, mas dentro de critérios bem estabelecidos”, afirma o enfermeiro.
O uso das cotas raciais como direito
Para Vera Beatriz Cruz, cotista do curso de Ciências Sociais da UFRGS, as cotas são um direito conquistado pelo povo negro e devem ser utilizadas, independente do fator social. “A sociedade deve reconhecer que existe um déficit na história. Se tratarem negros e brancos de maneira igual, haverá diferença”, relata. Vera é membro da Comissão Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Grupo Hospitalar Conceição (Ceppir/GHC) e analisa que o acesso nas universidades a partir das cotas tem impacto nos concursos públicos, que possuem 20% das vagas destinadas para negros, através da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. “Conhecimento é poder”, afirma
Vera e Renata acreditam que as cotas raciais são um direito que deve ser usufruído por todos. Já Israel optou por não utilizar a reserva de vagas para negros
a jornalista Renata Lopes, que é representante regional da Fundação Cultural Palmares no Rio Grande do Sul durante o governo Dilma. Renata acredita que a negritude é capaz de conquistar qualquer cargo ou espaço, mas, para que ocorra de maneira justa, as cotas devem ser utilizadas, pois são uma forma de reparação histórica de um passado de escravidão. “Nosso lugar é em todos os lugares. Seja na universidade, seja no espaço público”, completa. Quanto à portaria normativa nº 13, aprovada pela presidente
“As cotas devem ser utilizadas, pois são uma forma de reparação histórica de um passado de escravidão” Renata Lopes
Representante regional da Fundação Cultural Palmares
Dilma Rousseff em 11 de maio de 2016, que garante o uso de cotas raciais em universidades públicas para pós-graduação, a jornalista acredita ser um grande avanço na igualdade de direitos da população brasileira. “As cotas raciais são fundamentais para a continuidade da qualificação profissional dos afro -brasileiros”, afirma Renata.
Reserva de vagas
O ano de 2007 entrou para a história devido à constante luta dos movimentos sociais pelo fim da exclusão de estudantes negros e indígenas na UFRGS a partir da aprovação da proposta de ingresso pelo Conselho Universitário (CONSUN) com vigor a partir de 2008. No primeiro semestre do ano subsequente à aprovação, foram 97 alunos matriculados na universidade a partir do sistema de cotas raciais, sendo 88 negros e nove indígenas. A partir da implementação e desenvolvimento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS, Lucíola Belfort pôde cursar Medicina. Lucíola, que pertence a tribo kaingang, foi uma dos nove indígenas que ingressaram na universidade no ano de 2008 e foi a primeira indígena formada pela UFRGS nesses mais de 80 anos de existência. “O primeiro edital de 2008 foi diferenciado dos anos anteriores, pois não excluía indígenas formados ou com vínculo em outras universidades.
Dessa forma, pude participar do processo seletivo”, afirma. Para a jovem, a reserva de vagas é a única forma de garantir a presença de indígenas nas universidades públicas do país, pois eles não teriam condições de competir com os demais concorrentes em um vestibular, considerando o estado crítico da educação no Brasil. “O indígena que entra no Ensino Superior tem todas as condições de acompanhar o curso, mesmo com o ingresso diferenciado”, ressalta Lucíola, que é médica da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e supervisora das equipes que atuam nas aldeias de Porto Alegre. A forma de ingresso dos índios na universidade dá-se através de uma prova e redação de temática indígena, diferente do vestibular convencional.
A luta pela permanência
Segundo o assessor técnico da Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas e Direitos Específicos (SAPIDE), Luiz Fagundes, tão importante quanto o acesso dos povos indígenas nas universidades é a sua permanência. “Os indígenas não gostam de ficar isolados, pois não faz parte da cultura deles. Se existisse uma casa de estudante exclusiva para o seu povo, facilitaria”, completa. Lucíola Belfort acredita na importância de uma política de
permanência para que os alunos possam dar continuidade à faculdade. “Cursei enfermagem em outra universidade, sem nenhum tipo de auxílio por um ano, e praticamente tive que abandonar o curso. A partir do momento em que o estudante tem onde morar, como se alimentar e se vestir, sem depender da família, ele fica na faculdade. Vale a pena investir em minorias”, afirma. Para Horácio de Moraes, as empresas e universidades públicas e privadas são o retrato da desigualdade que existe no país. “As ações afirmativas deveriam se estender para outros programas, como os de habitação”, conclui o arquiteto.
OLHAR DA
REPÓRTER
O tema da reportagem, que trata sobre o sistema de cotas raciais em diferentes âmbitos, foi escolhido por mim pelo fato de eu estar estagiando na Secretaria Municipal de Direitos Humanos, mais precisamente na Secretaria Adjunta do Povo Negro. Como vejo diariamente as demandas que chegam através dos movimentos sociais negros, decidi falar sobre as cotas raciais que são consideradas uma conquista para a negritude e para os povos indígenas. Desde que foram instituídas a Lei 12.711, que garante a negros e indígenas o acesso à universidade, e a Lei 12.990, que reserva 20% das vagas em concursos públicos para negros, a questão das cotas raciais causa polêmica nas rodas de conversa, pois uns acreditam que é privilégio, outros tratam como uma forma de reparar o passado. Por este motivo, busquei a opinião de cotistas em universidade pública, não cotistas que, mesmo podendo usufruir desse direito na universidade e concurso público, optaram pelo acesso universal e especialistas. Desse modo acredito que criou-se uma discussão saudável sobre o assunto.
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SAÚDE
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DA TRISTEZA PARA A
eufo
oria Doença que atinge 10% da população mundial, a bipolaridade influencia na rotina e no humor de quem sofre com o transtorno
J
Texto Amanda Bicca Fotos Caroline Baisch
uliana* estava tranquila. Mais uma aula da faculdade. Pensou até que dessa vez tivesse escolhido o curso certo. Já era a terceira graduação que estava iniciando. Ali gostava dos professores, os colegas eram legais e as matérias realmente interessavam. Só precisava ir buscar uns documentos no atendimento e depois iria para casa. Um problema na papelada foi o suficiente para odiar Psicologia, cancelar todas as disciplinas, nunca mais botar os pés naquela faculdade e se trancar no quarto por um bom tempo. “Acho que essa foi uma das piores crises que eu tive. A impulsividade vem do nada”, reflete Juliana, ao falar sobre o transtorno bipolar. Aos 26 anos, a
jovem, que hoje administra junto com seu irmão e seu primo uma casa de chás em um shopping de Porto Alegre, conta que a bipolaridade já faz parte da sua vida há muito tempo e, por isso, já se conhece o suficiente para tentar administrar o transtorno. “Sou gaúcha, mas me mudei muito cedo para Curitiba. Então, quando eu tinha 10 anos, chegou a hora de voltar para Porto Alegre. Foi aí que os problemas começaram”, lembra. Como era tímida, as dificuldades de se enturmar e criar novas amizades eram enormes. Na escola começou a sofrer com bullying e não demorou muito para não querer mais frequentá-la e se isolar completamente. “Aos 14, eu já não aguentava mais, fiquei muito deprimida. Só queria ficar na minha | julho/2016 | 23
casa, no meu quarto, aí pedi ajuda”, lembra. A partir de então foram muitas idas ao psicólogo, algumas internações e um diagnóstico: transtorno bipolar do tipo II, em que a fase maníaca é menor que a depressiva. O psiquiatra e professor do curso de Biociência da PUCRS Diogo Lara explica que o transtorno bipolar é uma doença psiquiátrica na qual a pessoa oscila entre períodos de depressão e outros de euforia (ou mania). “Nos períodos de depressão, o paciente se isola, não sente vontade de fazer nada. Já na mania apresenta um comportamento extravagante. É como se uma euforia enorme tomasse conta da pessoa, aí ela acaba não respeitando nenhum limite e age por impulso.”, conta. Existem quatro tipos de transtorno bipolar. O tipo I é o que requer mais cuidado, pois o portador apresenta períodos de mania mais duradouros e fases de depressão que podem durar dias ou meses. Segundo Lara, o tipo II é aquele em que há uma alternância entre períodos mais longos de depressão e menores de hipomania (leve euforia). O tipo III é chamado de transtorno bipolar não especificado ou misto, pois, apesar dos sintomas, nem o tempo de duração, nem o número de crises são suficientes para classificar a doença como tipo I ou tipo II. O quadro mais leve é o tipo IV, chamado de transtorno ciclotímico, marcado por pequenas oscilações de humor durante o dia. Como no caso de Juliana, para quem o transtorno bipolar apareceu após a mudança de cidade, muitas vezes o fator desencadeador do transtorno pode ser algo simples, mas que seja significativo para a pessoa. “Ocorre sempre com pessoas muito sensíveis. Então, por exemplo, o namorado curtir um post no Facebook de outra garota pode desencadear todo esse turbilhão de emoções. Não há uma válvula de escape”, explica Lara, que também é autor do livro Temperamento Forte e Bipolaridade. Outra característica que, 24
segundo o psiquiatra, vêm crescendo atualmente é o número de casos entre crianças e adolescentes. “Não se sabe bem certo o porquê, mas trata-se de uma fase de transição. E nesse período normalmente o jovem ainda se sente inseguro, cheio de perguntas sobre si e sobre os outros”, declara. Apesar do número de casos de bipolaridade estar aumentando entre as crianças, não existe uma idade para que o distúrbio se manifeste. “Pode acontecer aos 10, aos 30 ou aos 60, nunca se sabe”, explica o médico. Quando descobriu que o que tinha não era só depressão, Juliana começou a seguir o tratamento adequado. “Passei a fazer terapia, e ela te dá autoconhecimento. A partir do momento que tu começas a entender teus limites, fica mais fácil não ultrapassá-los. Eu ainda sei que vou ter essas crises, mas agora também sei que elas vão passar.” Manter uma rotina e ter hábitos saudáveis são dicas da empresária. O tratamento é realizando com remédios prescritos pelo médico, como os estabilizadores de humor, normalmente a base de lítio; antidepressivos e antipsicóticos. Segundo Lara, cada caso deve ser tratado conforme o histórico do paciente e, se for possível, a medicação deve ser diminuída conforme o tempo e a resposta do paciente. O diagnóstico do transtorno bipolar é realizado através dos sintomas e relatos do paciente e também da família. Por ter características semelhantes, muitas vezes o transtorno é confundido com depressão, síndrome do pânico e, em alguns casos, até esquizofrenia. Para Lara, o diagnóstico errado pode ser desastroso. “É um distúrbio emocional. Se o tratamento for inadequado, os sintomas não vão desaparecer, muito pelo contrário.”
Relacionamento e família
Até então com um semblante sério, Juliana sorri ao falar do namorado. “É
“Eu ainda sei que vou ter essas crises, mas agora também sei que elas vão passar” Juliana
Empresária
importante estar com alguém que te respeite. Nem sempre ele vai entender, mas eu sei que ele vai me respeitar, e só isso já me acalma.” A empresária ressalta a importância de contar sobre a bipolaridade para as pessoas próximas a ela: “Assim que eu comecei a namorar, já procurei conversar sobre isso. Faz parte porque eu não surto no meio da rua ou com quem não conheço. Acontece quando estou com alguém do meu círculo social que vai ter que conviver comigo quando eu acordar e não conseguir sair do quarto nem pra trabalhar
ou pra ir naquele compromisso que já estava marcado faz tempo.” Já Lara destaca que o papel da família é fundamental. “Incentivar o paciente a prosseguir com o tratamento vai fazer toda a diferença. Quando estamos passando por uma fase difícil, sempre é bom saber que tem alguém por perto que vai nos apoiar”, finaliza. (*) O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada.
OLHAR DA
REPÓRTER
Existem matérias que são produzidas com facilidade, parece que tudo se encaixa rápido. Horários, fontes, dados, fotos, inspiração, tudo em sincronia. E, então, você parte para a próxima. Outras demandam mais tempo, persistência e sensibilidade para entender sobre o que você está escrevendo. Logo que foi definido o tema da Josefa, pensei que seria uma ideia bacana entender como ocorre a mudança de humor. Depois aprofundei um pouco mais, e a bipolaridade se transformou na minha pauta. Com o tema definido, parti logo para as pesquisas, porque não é justo com o leitor, nem com as fontes, que seja publicado algo que não é verdade, ou que não se tem certeza. Por dentro da minha pauta, com as perguntas prontas, entrei em contato com as minhas fontes. E nesse momento há algo para se destacar: não é fácil encontrar alguém que queira falar abertamente sobre a sua relação com a bipolaridade. Quando Juliana aceitou me encontrar e depois me explicou o porquê da recusa em tirar fotos, por exemplo, e do pedido para trocar seu nome, pude entender. Mesmo que ela seja uma pessoa saudável, faça o tratamento adequado e se aceite, ainda existe o preconceito e aqueles que insistem em julgar sem antes conhecer. Então, para as fotos da revista, eu e a fotógrafa Carol Baisch pensamos que um ensaio poderia, de alguma maneira, retratar a mistura de emoções que o transtorno bipolar tem como característica. Não foi uma matéria fácil de escrever, tampouco rápida, mas foi cheia de sentimentos.
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SAÚDE VOCAL
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Julia Freeman-Woolpert
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Uma das condutoras das emoções humanas e instrumento de trabalho de profissionais da música, a voz sofre as mais complexas alterações durante nossa vida Texto Luciano Del Sent Fotos Tuane Moreira e Julia Freeman-Woolpert
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Tuane Moreira
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o século XXI, em meio a plena evolução de tecnologias que buscam por intermédio de caracteres e algoritmos aproximar membros da sociedade contemporânea, a voz ainda é característica primordial de identificação humana. O chorar de um bebê, a conversa verborrágica de jovens em um happy-hour, assim como a melodia vocal de grupos musicais, são momentos em que o trabalho das pregas vocais está presente. Com o objetivo de manter qualificada essa identidade vocal, os profissionais da música necessitam de cuidados específicos. De acordo com a fonoaudióloga Ana Paula Marques Barbosa, a voz é veículo da personalidade do interlocutor. “Conversando, usamos a voz 100% natural. Provinda da genética, dos hormônios e da nossa constituição física e emocional, ela está ligada diretamente às emoções. A prova disso é que, ao ficarmos emocionados, temos dificuldade em falar. A voz fica embargada. E quando estamos bravos, gritamos”, destaca Ana Paula. Existem três tipos de voz: a falada, a locutada e a cantada. Em todos, as pregas vocais precisam de ajustes para se adequar e expressar o sentimento desejado, sendo exercitadas por profissionais especializados. O professor de música é o profissional mais adequado para exercitar a voz do cantor através de técnicas adequadas, enquanto o fonoaudiólogo pode auxiliar na voz natural do profissional da música. “Dependendo do esforço empregado durante uma música, o cantor acaba forçando demais as pregas vocais, criando uma espécie de calo nelas, o que pode influenciar na voz falada”, afirma a especialista em saúde vocal. Conforme Ana Paula, um exemplo é a cantora Ivete 28
Sangalo, que possui uma voz limpa ao cantar, contudo, ao ser entrevistada, é audível a rouquidão causada por essa lesão. Devido a esse fato, é necessário o acompanhamento de um fonoaudiólogo para tonificar a musculatura vocal do cantor, deixando flexíveis as fibras no entorno dessa calosidade. De fala calma e ritmada, assim como se estivesse organizando a melodia de seus alunos de canto, o professor regente Eduardo da Rosa
Alves, 41 anos, destaca que um simples resfriado pode dificultar a vida do cantor. “Não há exercício especifico para contornar uma gripe ou um resfriado, pois, nesse período, quaisquer atividades vocais irão danificar a musculatura já comprometida”, afirma Alves. Shhhhh, silêncio! O repouso vocal, em conjunto com uma hidratação reforçada, é a única maneira de amenizar a rouquidão causada pelo resfriado. Uma alimentação rica em fru-
Realizar exercícios focados na articulação e na projeção vocal deixa as pregas vocais maleáveis para o canto e saudáveis à fala, destaca a fonoaudióloga Ana Paula
“As mulheres atingem a plenitude vocal somente aos 25 anos, diferente dos homens, que em poucos meses atingem a constituição vocal completa” Ana Paula Marques Barbosa Fonoaudióloga
tas adstringentes, como a maçã e a pera, pode facilitar a digestão. Desta maneira, amenizará a pressão do suco gástrico, presente no estômago, sobre o diafragma, músculo responsável pela respiração. Contudo, segundo a fonoaudióloga Ana Paula, além da alimentação leve, a limpeza nasal com soro é de suma importância, pois impede a entrada de impurezas no sistema respiratório, o qual é responsável direto pela projeção vocal. “É muito mais algo mecânico do que sistêmico. Podemos dizer que o milagre para uma voz saudável é a limpeza nasal, a hidratação através de líquidos e os exercícios vocais”, revela Ana Paula.
Combinações vocais
Professor regente há onze anos, Eduardo Alves diz que combinar vozes num coral é uma tarefa complexa. “Normalmente existem quatro vozes num coral clássico, chamado coral de Bach.” A nomenclatura homenageia o lendário regente alemão Johann Sebastian Bach. “As vozes grave, agudo, tenor e contra-alto são divididas lado a lado, como se fossem combinações de cores, buscando uma espécie de casamento de vozes”, destaca Alves. O tenor do sexteto Vocal 5, formado em 1999, em Porto Alegre, revela que os músicos possuem uma limitação fisiológica para mudar de técnica vocal. “Como estou acostumado desde jovem a participar de coro musical, teria muita dificuldade em utilizar uma técnica vocal como o drive, por exemplo.” O drive é caracterizado pelo uso agressivo da voz, sendo utilizado principalmente por bandas de rock e metal. “Essa vocalização forçaria um ponto das minhas cordas vocais que não se encaixa no meu treinamento cotidiano”, revela Alves. A idade e o sexo dos cantores são
fatores importantes no que tange a vocalização empregada pelos profissionais. De acordo com a fonoaudióloga Ana Paula, quando os meninos atingem a puberdade, entre 10 e 14 anos, repentinamente, produzem uma elevada carga de hormônios que estimulam a formação da laringe, órgão onde se localizam as cordas vocais. Essa explosão hormonal acelera o processo de crescimento físico dos homens, influenciando, fortemente, na mudança de voz masculina. “A testosterona faz com que a laringe masculina cresça até 1/3 a mais do que a feminina. Por isso, a voz do homem é mais grave”, destaca Ana Paula. Em contrapartida, o desenvolvimento vocal do sexo feminino é apresentado como um processo menos intenso. “As mulheres atingem a plenitude vocal somente aos 25 anos, diferente dos homens, que, em poucos meses, atingem a cons-
tituição vocal completa”, afirma a fonoaudióloga. O sexo masculino mantém a voz equilibrada por um longo período da vida, porém, as mulheres, durante a menopausa, podem ter variações na frequência vocal devido a queda hormonal. As cantoras Rita Lee e Paula Toller já perderam uma parcela da frequência vocal, segundo Ana Paula. Desta maneira, o contato frequente com especialistas em saúde vocal possibilita que especialmente os profissionais da música sofram menos com as mudanças de voz do que as que estamos sujeitos no decorrer da vida. Sendo assim, as dificuldades impostas pelas doenças que prejudicam as pregas vocais ou o sistema respiratório, a grande intensidade de determinados ritmos e as variações hormonais podem ser controladas, contribuindo à qualificação da forma mais humana de expressão de sentimentos, a voz.
OLHAR DO
REPÓRTER
A temática “mudanças”, definida para sustentar a segunda edição da revista Josefa, me fez refletir sobre quais assuntos poderiam saltar aos olhos dos colegas de reportagem. Durante a reunião de pauta, escutando atentamente a seleção de informações, com o objetivo de captar uma pequena ideia que pudesse virar uma bela matéria, pensei: o que muda tanto que, em algum momento, deixamos de perceber? Nesse momento, entendi que minha reportagem não saltaria aos meus olhos, mas, sim, aos meus ouvidos. Nossa voz muda diariamente, sendo assim, isso se tornou algo comum e trivial. Por isso, é difícil de percebêla e analisá-la. Contudo, adaptar-se a essas alterações é muito importante para quem trabalha diretamente com o sistema vocal. Durante as entrevistas, conheci a importância de manter a saúde vocal em dia. Aprendi que o principal veículo das emoções do ser humano necessita de cuidados especiais, como uma alimentação regrada e acompanhamento profissional. Dessa maneira, esta reportagem me fez relembrar que o jornalista não deve só transcrever o que vê, mas, principalmente, deve perceber o que muitos deixam de ouvir, dando voz a tudo que merece ser retirado da linha do cotidiano.
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ALIMENTAÇÃO
mais cor, O
menos carne
número de vegetarianos no Brasil e no mundo não para de crescer. Isso é um fato interessante, já que, culturalmente, somos instruídos a ingerir alimentos oriundos de outros animais, seja pela influência da família no início da educação ali-
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mentar, ou até mesmo pela mídia. É normal ouvirmos dizer que, se a maioria das pessoas deixasse de comer carne, faltariam verduras, legumes e frutas na mesa. O interessante é que, para que cada animal seja preparado para o abate e posteriormente consumido, é pre-
ciso que ele ingira uma certa quantidade de verdura. Para cada quilo de carne no prato, outros seis foram consumidos pelo animal. É claro que esses alimentos têm os seus benefícios para a saúde e são mais fáceis de serem encontrados e, em alguns casos, saem
Fotos de Guilherme Moscovich
Mudar os hábitos alimentares pode parecer uma tarefa difícil, mas, com convicção e força de vontade, colorir o seu prato pode ser fácil e prazeroso mais em conta. Mas o que faz uma pessoa ignorar o senso comum e se tornar vegetariano? O estudante de filosofia Lucas Casagrande, 22 anos, vegetariano há cerca de três anos, conta que a única dificuldade que enfrentou no processo foi a de experimen-
tar diferentes tipos de comida. “Antes de me tornar vegetariano, minha alimentação era bem pobre, não no sentindo de não ter o que comer, mas de não haver muita variação”, destaca. O que motivou Lucas a parar de ingerir carne foram diversos documentários
Texto Guilherme Engelke Fotos Guilherme Moscovich e Sergio Trentini
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Fotos de Sergio Trentini
Dentre as diversas opções vegetarianas em feiras, Lucas gosta do pão chinês de proteína de soja, cenoura e repolho
que assistiu e que o fizeram se conscientizar sobre o tema. Após três anos, a experiência tem sido maravilhosa para ele. Lucas diz que agora se sente responsável por aquilo que come, por todo o processo daquilo que chega até o seu prato, até pelo que o afeta fisiologica e psicologicamente: “Não é por dó do animal morto, mas por todo um processo de coisas interligadas: a minha saúde, a saúde do planeta, a mercantilização de vidas, o fato de comprarmos tudo pronto sem querer saber de onde veio, a utilização de hectares de terra somente para alimento do agronegócio, apenas para chegar um bife no nosso prato. Para mim, se tornou uma questão ética muito forte”. Essa questão ética, citada por ele, está atrelada ao fato de que a pecuária contribui significativamente com as emissões dos gases do efeito estufa, devido ao metano liberado pelos animais e por conta do desmatamento. Para Lucas, as políticas de sustentabilidade devem ser repensadas e campanhas que incentivem o vegetarianismo e o veganismo precisam ser mais difundidas. Em relação à saúde, o principal problema pode ser a falta de ferro, oriunda de alimentos de origem animal. No caso do Lucas, ele foi ao médico algum tempo depois de ter se tornado vegetariano, e o índice de ferro e a vitamina B12 estavam realmente baixos. Porém, ele diz que isso poderia ser, segundo o médico, devido ao fato de que ele costumava 32
doar sangue seguidamente. Como não ingeria carne, o ferro não era reposto no organismo. “Essa questão de deficiências é bem relativa, já que cada organismo se comporta de uma forma. Conheço gente que não teve nenhuma alteração nos exames em anos sem comer carne e outros que param alguns meses e começam a ter anemia e outras complicações. Gosto de pensar em uma visão mais holística de saúde. Não é simplesmente o que você come, mas como você vive, suas emoções e sentimentos, seus meios sociais. Tudo isso acaba
influenciando no seu corpo”, ressalta Lucas, que passou a tomar alguns suplementos para repor a falta de B12 e ferro. Segundo a nutricionista Joselaine Stürmer, a reposição dos nutrientes e vitaminas encontrados na carne e no leite é muito importante nesse processo. “A carne é rica em ferro e vitamina B12. O leite e derivados, em cálcio, magnésio e proteínas de uma maneira geral. Ovos, feijões, frutas, oleaginosas, como castanhas, nozes e amêndoas, lentilhas e todo o tipo de legumes são ótimas opções que contém esses nutrientes”, afirma.
“Não é por dó do animal morto, mas por todo um processo de coisas interligadas: a minha saúde, a saúde do planeta, a mercantilização de vidas” Lucas Casagrande Estudante de Filosofia
Ela ainda diz que existem diversos estudos que provam que uma dieta vegana pode diminuir o risco de câncer, principalmente no intestino. Porém, Joselaine alerta que, se a substituição adequada não for feita, o efeito pode ser inverso, aumentando o risco de doenças devido a essas carências. Lucas tem a intenção de se tornar vegano com o tempo, mas o que lhe impede no momento é o fato de ainda morar com a família. Por mais que faça sua própria comida na maioria das vezes, ainda é complicado cortar os derivados do leite de todas as refeições. Em relação a roupas ou utensílios que venham de animais, ele garante que não sente a mínima vontade de continuar utilizando.
Novas gerações
Diferente da maioria das pessoas, que se tornam vegetarianas depois de adultos, quando têm uma opinião mais clara sobre o assunto, Yago Koetz, de sete anos, já deixou de comer carne. Segundo ele, o motivo é que gosta muito dos bichos, e, se fosse eles, não gostaria que o matassem. “Os animais também precisam viver”, diz Yago. A sua mãe, Márcia Koetz, conta que certo dia ele decidiu parar de comer carne, sem um motivo radical que determinasse isso. “Ele sempre foi um menino muito sensível, demonstrando interesse muito grande pelos animais e pela natureza. A sua vó materna é vegana, e mesmo assim nunca o influenciou diretamente, mas o Yago sempre pergunta coisas a ela”, salienta Márcia. Como ele optou por essa mu-
dança cedo, com o corpo ainda em desenvolvimento, os pais se preocuparam e o levaram no pediatra, que fez um acordo com ele: comer peixe ou frango pelo menos uma vez por semana e fazer exames periódicos a cada três meses. Se não houvesse nenhuma alteração, não teria problema eliminar a carne completamente. Ao contrário da maioria das crianças, Yago sabe exatamente o que ele está comendo. Sabe a função e os benefícios de cada alimento no seu organismo. Ele se interessa por isso. Arroz integral, feijão, frutas e um prato colorido de saladas não podem faltar nas suas refeições diárias. Além disso, ele dispensa a fritura e come doce apenas uma vez por semana. É um exemplo para todas as crianças e para os pais, porque demonstra que é possível se alimentar de uma forma saudável desde pequeno. A nutricionista Joselaine diz que uma criança precisa ter uma alimentação equilibrada para manter um crescimento saudável, o que não é fácil na infância e na adolescência por conta da rejeição a vários alimentos. Novamente destacando a substituição correta dos alimentos, ela fala que a proteína animal é melhor absorvida do que a vegetal, e ela possui um papel essencial no crescimento dos tecidos e músculos, por exemplo. Conscientes de que a ausência desses nutrientes pode acarretar em um desenvolvimento comprometido, os pais precisam fazer a substituição corretamente, assim é possível que a criança passe pela fase de crescimento de uma
OLHAR DO
REPÓRTER
Em meio a essa reportagem, me despus a ficar uma semana sem comer carne. Essa mudança afetou radicalmente a minha rotina, porque a carne faz parte de basicamente todas as minhas refeições. E, além disso, não costumo comer verduras e saladas. Mas isso fez com que eu descobrisse por conta própria diversas receitas com alimentos que eu nem imaginava que eram tão bons, como brócolis, grão-de-bico, hambúrguer de jaca, suflês de legumes, além da substituição das sobremesas (que quase sempre envolvem leite e derivados) por frutas. Por isso escolhi esse título para matéria. Minhas refeições nunca haviam sido tão coloridas. Inicialmente, imaginava que a mudança dos meus hábitos alimentares faria com que eu gastasse mais para procurar alimentos que substituíssem a carne. Para minha surpresa, o meu orçamento não aumentou e, em alguns casos, dependendo da receita que escolhia, a conta saía até mais baixa. Para mim, essa experiência foi ótima, pois abriu a minha mente para um novo cardápio com comidas mais saudáveis e me conscientizou a respeito da minha alimentação.
maneira saudável, mesmo abdicando do consumo de carne. Tanto Lucas quanto Yago provam que podemos levar uma vida sem carne, pois há um leque enorme de opções de alimentos nutritivos e deliciosos, que podem, inclusive, substituir ou enganar o paladar, pois possuem gostos semelhantes àqueles que costumam nos agradar. | julho/2016 | 33
RELIGIÃO
A ADEQUAÇÃO DA
M
uitas coisas têm o poder de reger nossas vidas. Há quem não comece o dia sem ler seu horóscopo e quem busque simpatias para ter sorte. Todos queremos encontrar respostas que nos fortaleçam. Um dos caminhos para isso pode ser a religião. Ela faz parte da cultura humana desde indefinidos séculos passados e contraria aqueles que acreditam que ela perderá seguidores. É seguro dizer que sempre haverá alguém professando uma nova crença, novos modos de interpretação ou novas doutrinas. A variedade de pontos de vista provoca questionamentos sobre o que acreditar, e essa dúvida pode nos levar para outros caminhos. Mas como surge a ideia de adotarmos uma religião? Segundo o psicólogo Leonardo Melo, muitos procuram a religião como algo que vá suprir suas dúvidas, anseios e conflitos. “Repassam a responsabilidade sobre sua vida para um pensamento de que algo superior vai resolver seus problemas, e é também uma forma de buscar conforto.” A partir desses sentimentos, as pessoas optam por aquela religião com a qual mais se identificam. Entretanto, essa escolha nem sempre se mantém a mesma. A estudante de pós-graduação em Teologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) Jackeline Moraes aponta os principais aspectos que levam à mudança de religião. “Creio que a troca acontece por causa da doutrina. Cada igreja ou religião tem seus ritos, suas práticas, seus dogmas e regras, como, por exemplo, as igrejas pentecostais, em que as mulheres devem usar somente saias. O afastamento de uma religião ocorre quando o indivíduo, muitas vezes, concorda com o discurso, mas discorda da doutrina. Há também as influências geográfica, familiar e social que contribuem para isso”, explica Jackeline.
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fé Não ser fiel a uma crença é um fato comum Texto Débora Vaszelewski Foto Cora Zordan
Não são raros os casos de pessoas que mudam de religião, como ocorreu com a estudante de Jornalismo Tuane Moreira, que era católica e cumpriu certos rituais católicos, como o batismo e a primeira comunhão. Mas há cerca de dois anos mudou para a Religião de Deus, ecumênica e com crença no novo mandamento de Jesus. “Ela responde muitas coisas para mim. Preenche lacunas que faltavam na minha vida religiosa”, explica. Os influenciadores para o processo de troca foram as atividades extras da Religião de Deus aliadas à socialização com pessoas dessa crença. “Eu participava do coral municipal da cidade de Arroio dos Ratos e fomos nos apresentar no Natal Luz de Gramado em 2005. Lá, conheci o
coral Boa Vontade, que pertence a Religião de Deus. Fiz amizade com uma integrante e, em 2013, ingressei também no coral deles.” Quando o coral não se apresenta, Tuane canta nas reuniões que ocorrem aos sábados à tarde. Junto com ela estão um baterista e um guitarrista. Outro exemplo de pessoa que aderiu a outra doutrina foi a professora de português Cláudia Presser Sepé, por motivos bem diferentes dos da Tuane. Cláudia foi influenciada pelos familiares. Também pertencente a religião católica, ela se viu com a mãe muito doente. Os cunhados, preocupados, vieram de São Paulo para apoiar e mantê-la mentalmente forte e preparada para os cuidados. Apresentaram o que conheciam para cumprir essa função: a religião Presbiteriana Chinesa. Assim como o marido, os cunhados são de origem taiwanesa e por isso possuem uma crença vinda do outro lado do mundo. “A questão decisiva foi a doença da minha mãe. A família deu muita força para eu conseguir ir adiante com ela. Meus cunhados vieram de outro estado para colaborar de alguma maneira e passaram a me levar nos cultos.” Infelizmente, a mãe de Cláudia faleceu em 2015, mas a presença nos encontros religiosos de todo domingo de manhã continuou integrada na sua rotina.
A religião no dia a dia
Não somente quando estão na reunião ou no culto Tuane e Cláudia praticam suas crenças. Novos hábitos foram incorporados quando estão em casa. Tuane passou a ouvir a estação de rádio com programação da Religião de Deus. Além disso, fluidifica algumas vezes a água antes da família beber. Isso significa que todos se reúnem em torno da água, fazem orações e depositam nela toda
Arquivo pessoal
“O afastamento de uma religião ocorre quando o indivíduo, muitas vezes, concorda com o discurso, mas discorda da doutrina” Jackeline Moraes Pós-graduanda em Teologia
sua energia positiva antes. Cláudia faz sua oração antes das refeições e antes de dormir e também não a dispensa em vários momentos do dia. Outra mudança foi no seu ritmo. Ela conta que se sente muito mais calma desde que adotou os hábitos da religião presbiteriana chinesa. A religião impacta mentalmente as pessoas e reflete nos seus atos. Ela é base para que surjam as diferentes manifestações de crenças. Todo o propósito da religião é preencher os vazios, dúvidas e fraquezas das pessoas. Cada um sabe o caminho melhor a seguir.
OLHAR DA
REPÓRTER
Poucas coisas conseguem nos tirar da correria e trazer paz ao nosso interior como a religião faz, independente de qual seja. Ao entrar na igreja da Religião de Deus, a música ambiente já dá a sensação de calmaria. O ambiente é bastante parecido com o da Presbiteriana Chinesa. A diferença está no centro de cada uma delas. Na primeira, há uma imagem do rosto de Jesus. Na outra, somente uma cruz. Ambas utilizam projetores para mostrar as letras dos cantos e imagens
de acordo com o que o pastor ou o pregador estiver falando. Cada culto dura mais de uma hora e meia, e as interações com o público fazem com que não se perceba o tanto de tempo que já passamos lá. Os cantos alternam entre calmos e animados. O que fica para mim dessa reportagem é o quanto algo tão abstrato pode ser positivo na vida das pessoas que acreditam numa crença. Afinal, todas se diferem em algo, mas se assemelham nos seus propósitos: transmitir boas mensagens.
Tuane e Cláudia mudaram recentemente de religião e estão satisfeitas com as suas escolhas
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IMIGRAÇÃO
EM BUSCA DE
oportunida 36
Amalia Kusiak Martinez
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A mudança na vida de refugiados e imigrantes que vieram para o Brasil à procura de emprego Texto Laíse Feijó Fotos Amalia Kusiak Martinez e Laíse Feijó
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O haitiano Fanes veio para o Brasil com a esposa e o filho de 7 anos
ara muitas pessoas, a mudança significa uma guinada em busca das oportunidades que nunca apareceram. Não se trata de desfrutar do prazer de uma viagem, de conhecer um país novo. Diz respeito à qualidade mínima de vida, algo que refugiados e imigrantes não conseguiram em sua terra natal. O Brasil é procurado principalmente por grupos vindos de países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Conforme levantamento da Polícia Federal publicado em março de 2015, o país abrigava na época 1.847.274 imigrantes regulares. Destes, 1.189.947 são classificados como “permanentes”; 595.800 são “temporários”; 45.404, “provisórios”; 11.230, “fronteiriços”; 4.842, “refugiados”; e 51, “asilados”. O Rio Grande do Sul, em decorrência do grande número de empresas e oportunidades de emprego, é um estado que vem recebendo muitos imigrantes e refugiados. Caxias do Sul e Porto Alegre são os principais destinos de quem veio de longe com o objetivo de trabalhar em busca de uma vida mais digna. Fanes Moise, 34 anos, é natural de Porto Príncipe, no Haiti. Lá ele concluiu o equivalente ao Ensino Médio, porém faltavam oportunidades de emprego e a faculdade
era inviável. Com 23 anos, mudouse para a Venezuela, onde conseguiu estudar mais e formou-se técnico em informática. As oportunidades, porém, continuaram escassas mesmo com estudo. Após nove anos, Fanes viu no Brasil uma chance de mudança. “Eu ouvia falar bastante nas oportunidades de emprego que o Brasil oferecia, principalmente no Sul. Saí da Venezuela e fui primeiro para Manaus, onde fiquei por menos de um mês. Vim com minha esposa e nosso filho que hoje tem sete anos. Escolhemos ficar em Porto Alegre”, conta o imigrante. Ele está há dois anos na capital gaúcha e atualmente trabalha como frentista em uma filial da Rede Vip de postos de gasolina. O haitiano conta que sua maior dificuldade ao chegar no país foi a língua. Fluente em francês, idioma oficial do Haiti, e já bastante familiarizado com o espanhol decorrente dos anos na Venezuela, Fanes teve que se adaptar ao português para conseguir emprego. “O espanhol tem algumas semelhanças, mas mesmo assim foi bem complicado no início. Hoje eu já domino bem a língua e me saio muito bem nas minhas atividades como frentista, trabalhando diretamente com o público”, relata. | julho/2016 | 37
Não conseguiu validar seu diploma no Brasil. Como tinha família, não pôde insistir muito nisso, teve que partir para outras oportunidades. “Eu cheguei a trabalhar em uma loja antes de vir para a Vip, mas logo fui demitido. Como eu tenho muita vontade de trabalhar, me candidatei para a vaga de frentista e deu certo”, conta. A Rede Vip foi uma empresa que deu muita oportunidade para imigrantes e refugiados, tendo hoje cerca de 70 haitianos no seu quadro de funcionários e alguns africanos também. Gilberto Sales, gerente da unidade “Brino”, localizada na Avenida Assis Brasil, conta como foi que o projeto surgiu: “No início de 2014, tivemos uma falta de mão de obra muito grande. Sobravam vagas na nossa rede, precisávamos de funcionários e o quadro não era preenchido. Foi então que surgiu a ideia de firmar uma parceria com grupos de auxílio a refugiados e imigrantes haitianos, que estavam chegando em grandes grupos ao Rio 38
Laíse Feijó
cartola
“No meu país, eu me considerava um ser humano como qualquer outro. Aqui eu sou considerado negro e sou julgado pela minha cor” Emmanuel Saula Barista
Grande do Sul”, conta Sales. Foram selecionados cerca de 100 homens e mulheres que passaram por um treinamento de duas semanas antes de iniciar efetivamente. O gerente ressalta que a vontade de trabalhar e a disponibilidade dos haitianos podem ser facilmente percebidas. “Eles têm muita boa vontade, são muito educados com colegas e clientes, se esforçam bastante para dar conta do serviço. Nossa experiência com haitianos é ótima. São funcionários de grande valor para a Rede”, conclui Sales. Fanes Moise não descarta a possibilidade de voltar para o Haiti e nem para a Venezuela, onde deixou seu segundo filho. Mas para isso ele diz que ainda precisa trabalhar bastante e juntar mais dinheiro. “Eu deixei a minha profissão de lado ao vir para o Brasil, mas não me arrependo. Estou hoje em um emprego que eu gosto, onde sou bem tratado e consigo dar uma condição de vida melhor para a minha família”, diz o haitiano.
No Brasil há sete anos, Emmanuel diz que aprender português foi um desafio
Dificuldades vão além do trabalho e estudo A imigração muitas vezes acontece em decorrência da busca pelo estudo. Este é o caso de Emmanuel Saula, natural de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, na África. Atualmente com 28 anos, veio para o Brasil muito jovem, com apenas 21. Na época ele estudava Matemática e Informática na Universidade de Kinshasa e, por influência de alguns amigos, decidiu buscar por novas oportunidades no Brasil. Optou então por um intercâmbio de estudos e inscreveu-se para o curso de Ciências da Computação em diversas universidades públicas brasileiras, obtendo aprovação para a UFRGS, em Porto Alegre. Para isso, ele fez uma prova na Embaixada do Brasil no Congo. Veio para o país com mais 11 amigos que acabaram se dividindo entre várias universidades dentro e fora do estado. Ele conta que primeiramente, além da dificuldade com a língua portuguesa, teve sérios problemas para conseguir alugar uma casa ou um apartamento. “A primeira dificuldade foi mesmo a língua. Eu tinha dinheiro, mas como não dominava o português ainda, não conseguia nem comprar comida direito. Depois vieram as dificuldades para conseguir uma moradia. As exigências eram muitas. Precisava de um fiador, de comprovação de renda, e eu mal falava a língua. Então foi bem complicado me estabelecer em Porto Alegre”, lembra. Após alguns anos de estudo, Emmanuel recebeu a notícia de que seu pai estava com um problema sério de saúde e por isso a família não poderia mais ajudá-lo como vinha fazendo. “Logo ao chegar, fui
encaminhado para fazer um curso de português que teve a duração de um ano. Depois, eu estudei Ciências da Computação por cerca de três anos. Porém, com o tempo, eu tive que desistir do curso, pois minha família, no Congo, não pôde mais me ajudar financeiramente. Foi aí que mudei meu visto de estudante para o permanente, o que fez com que eu conseguisse carteira de trabalho”, lembra Emmanuel. Depois das dificuldades financeiras, com a ajuda de uma professora da UFRGS, ele conseguiu uma oportunidade de emprego em Gramado, na Serra Gaúcha. Assim como o haitiano Fanes Moise, não conseguiu trabalhar em sua área de estudo e também não pôde esperar, pois precisava de dinheiro, afinal acabou se endividando em Porto Alegre. Junto de mais quatro amigos africanos, mudou-se para Gramado e começou a trabalhar como garçom em um restaurante. “Como eu tinha domínio da língua francesa e inglesa e boas noções do português, o emprego veio rapidamente”, lembra. Morando hoje em Gramado com um amigo também africano, Emmanuel destaca que gosta muito do país, mas que já enfrentou grandes problemas no Brasil, dentre eles o racismo. “No meu país, eu me considerava um ser humano como qualquer outro. Aqui eu sou considerado negro e sou julgado pela cor da minha pele. Foi o primeiro contato que eu tive com o racismo e, em sete anos, ele ainda persiste. Seja dentro do trabalho ou na rua. Isso é algo que me entristece bastante”, relata o congolês. Emmanuel mantém contato com sua família que está no Congo, falando com eles quase todos os dias graças aos recursos de comunicação oferecidos pela internet. “Eu já tinha visitado outros países, mas foi
no Brasil que me estabeleci. Isso me ajudou a crescer muito como pessoa e me mostrou qual a visão que o mundo tem do meu país e que até então eu desconhecia. Hoje eu vivo bem aqui”, diz Emmanuel. A mudança de país nem sempre é fácil. As dificuldades são muitas e os desafios também. Mas, apesar de tudo, Fanes Moise e Emmanuel Saula são exemplos de que o esforço pode dar certo.
OLHAR DA
REPÓRTER
Fazer esta reportagem não foi tarefa fácil. Desde a escolha do tema da revista decidi que trataria do assunto através da perspectiva de refugiados e imigrantes que viram no Brasil uma oportunidade de recomeço. Por mais que se saiba que muitas pessoas nesta situação vivem no estado, conseguir o contato foi bem complicado. Em meio à produção, alguns problemas pessoais e de saúde acabaram atrasando as entrevistas. O medo de não dar tempo começou a aparecer. Contei, porém, com a compreensão das fontes que entenderam a minha posição e não mediram esforços para me ajudar, dividindo comigo suas histórias de vida cheias de superação. Os entrevistados foram de uma delicadeza e atenção sem igual. Apesar de todas as dificuldades que já enfrentaram, não perderam o amor pela vida e demostraram isso ao longo das nossas conversas. Foi uma experiência única e de troca que mudou a minha maneira de enxergar os problemas e de lidar com eles. A mudança é mesmo algo magnífico.
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EXPRESSÃO ARTÍSTICA
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Da Representatividade Ao A Gênero Jean questiona padrões quando se monta como Rebeca Rebu Texto Leonardo Stürmer Fotos Marina Zwetsch
ndando para frente, um, dois, três, quatro. Andando para trás, cinco, seis, sete, oito. Vira para o lado, um, dois, três, quatro. Assim foi o aquecimento da aula de video dance do professor Jean Netto, estudante de dança. De dia ele ensina os passos para os alunos, e, em algumas noites, ele dança como drag queen em casas noturnas de Porto Alegre. Começando devagar e depois aumentando o ritmo, ele fez a pequena turma dançar. “E tudo isso são só 40 segundos da música”, brinca o professor, pouco antes do alongamento que finalizaria a aula. Em outra rua do bairro Cidade Baixa, na capital, é onde Jean mora com seu namorado e seu gato. “Amor, coloca uma roupa que eu tô com gente aqui”, diz ele, abrindo um pedaço da porta. Logo de cara, entrando no apartamento, era possível ver uma grande peça de dominó feita de cartolina
e fita isolante, que seria o figurino drag queen daquele dia. “Eu ainda tenho que dar um jeito de colocar as alças por dentro”, ele diz, enquanto pega mais fita adesiva para finalizar a sua roupa. A conversa com ele aconteceu enquanto preparava os últimos detalhes do figurino, com muita concentração, para tentar fazer tudo nas medidas certas. Ele sempre se monta em casa, sozinho mesmo e sem gastar muito dinheiro, pois ainda não tem um bom retorno financeiro com isto. Sobre as roupas que usa quando se monta como drag queen, ele diz que a maioria vem de brechós ou do que já tem em casa. Ele que pensa em tudo, na ideia, no que quer mostrar com aquilo. O dominó, parte do figurino do dia, surgiu da ideia de brincar com a forma do corpo, deixá-lo mais quadrado. “Acho que vou colocar um dado na cabeça”, diz ele. “Essas roupas duram uma noite. Como são feitas de material frágil, geralmente acabam ficando na festa. Teve uma vez que eu usei um bolo na cabeça, eu deixei ele lá mesmo. Eu nem ia ter onde guardar em casa”.
Shantay, você fica
A maquiagem transforma o rosto de Jean em Rebeca
“Tem gente que me conhece só como Rebeca”, afirma, ajustando os detalhes para o figurino da noite. “Às vezes, bate uma crise, não sei se sou Jean ou se sou Rebeca.” As pessoas que o conhecem pela noite, nas festas, vão conhecer Rebeca mesmo, e ainda tem quem não note que há o artista Jean por trás daquilo. RuPaul, famosa drag queen americana, têm um reality show que está em alta e escolhe, a cada ano, a nova drag queen da temporada. Como o próprio Jean diz, RuPaul conseguiu mostrar o lado | julho/2016 | 41
cartola
“A maior transformação que aconteceu na minha vida foi quando eu comecei a fazer drag” Jean Netto
Professor de dança e drag queen
humano das drags, mostrar que, por trás de toda a roupa e toda a maquiagem, há um ser, um artista que pensou e se esforçou para que aquilo acontecesse. “Tem vezes que nem eu diferencio a Rebeca do Jean. Mas, quando rolam brigas, eu consigo separar bem os dois, saber quando falam de mim ou do meu trabalho.” Enquanto termina seu vestido de dominó, Jean conta: “Drag é uma construção particular para celebrar o feminino que existe dentro da gente. O homossexual já é reprimido desde que nasce, então acaba sendo uma forma de celebrar isso. É uma expressão artística, ‘viaaado’!” Ele começou a fazer a Rebeca Rebu há pouco tempo. “Foi no ano passado. Eu me vesti para uma apresentação da faculdade”, explica. Depois disso, foi chamado para se montar mais vezes, e agora se monta para fazer shows, trabalhar como DJ ou apenas para quebrar um estereótipo. Quanto ao nome, queria algo que pu42
A transformação fica visível com maquiagem pronta e peruca
desse ser pronunciável por todas as idades e que fosse marcante. Assim surgiu Rebeca Rebu.
Extravagância em alta
“A maior transformação que aconteceu na minha vida foi quando eu comecei a fazer drag, e não foi nem por fazer, foi por começar a procurar sobre essas questões de gênero, saber mais sobre o assunto.” A questão de gênero é algo delicado e pessoal, e não apenas para as drags, mas para todo este meio. A Rebeca é uma artista feita para questionar, e a roupa de dominó provou isso: um vestido quadrado, quebrando o padrão de beleza, do corpo perfeito que estamos acostumados. “No meu colégio já tinha coisa errada, as turmas de educação física eram divididas e as meninas tinham dança. Eu queria fazer dança e não podia, só porque era menino. Isso não é certo.” E isso foi só um dos problemas que ele relata em questão de gênero. Como drag,
ele também já sofreu preconceitos, principalmente com taxistas. Mas, ao mesmo tempo, ele afirma que tem gente livre desses preconceitos, que o trata no feminino quando está montado e respeita a sua arte. Para ele, Rebeca é feita para fazer a diferença, seja na maquiagem, na roupa ou nas performances. “Quero fazer a minha parte no mundo ter um valor.” A escolha de ser dançarino também foi para causar, para chamar atenção. “Querendo ou não, sendo drag todo mundo te olha, porque tu tá exagerado, tá chamando a atenção.”
Com vocês, Rebeca Rebu
Com o figurino da noite já terminado, Jean começa a fazer a barba para, em seguida, se maquiar. Ele passa cola bastão nas sobrancelhas que, juntamente com corretivo, as esconde. Delicadamente com uma esponja, cuidando milimetricamente no espelho, ele começa a fazer os contornos que dão forma a Rebeca,
afinando o nariz e deixando o rosto com um semblante feminino. Feito isso, a maquiagem de gatinho surge nos olhos, sendo seguida das sobrancelhas – sendo uma delas vermelha e a outra preta, desenhadas a mão. Para a boca, fez um formato de coração. “Tá muito exagerado? Não sei se faço aquilo que eu ia fazer”, comenta com o namorado. “Ah, acho que tu tem que fazer, sim”, é a resposta, que define a próxima etapa da maquiagem. Os detalhes embaixo dos olhos começam a ser feitos seguidos de um susto: um risco feito sem querer no meio do nariz. Após alguns segundos de desespero e com ajuda do namorado, o risco é tirado e a maquiagem continua. Dois triângulos e círculos embaixo dos olhos e a boca de coração complementam a roupa de dominó e dado – tudo remetendo a jogos de carta e tabuleiro. Pode parecer que foi rápido e fácil fazer esta maquiagem, mas o processo demora em torno de duas horas. Para completar tudo, ainda
tem os cílios postiços. “Uma vez colei com super bonder, achei que não ia mais sair.” Desta vez, felizmente, foi com cola branca normal – e paciência, pois é um processo demorado. A maquiagem que transforma Jean em Rebeca agora já é mais definida, é um rosto que ele encontrou que fica bem para ela. Com a maquiagem na cara, já se nota que é outra pessoa. Praticamente irreconhecível, Jean agora é Rebeca, faltando apenas a roupa e acessórios, o que vai completar toda a mudança para drag. Os gestos e a voz já começam a ficar diferentes, a artista começa a aparecer, confundindo quem é quem. Depois de muito tempo e bastante trabalho, é possível ver Rebeca Rebu completa, com peruca, figurino, luvas e maquiagem. Às vezes, ela usa unhas postiças, principalmente para se sentir poderosa. Ela diz que, para se desmontar, dá muito trabalho, é pior do que se montar. “Estar montado é muito desconfortável, mas é maravilhoso”.
OLHAR DO
REPÓRTER
Na escolha do tema desta edição, eu já tinha essa pauta na cabeça e planejava como iria conduzi-la. Durante o seu decorrer, tive alguns empecilhos e também surpresas e aprendizados. No começo, foi difícil encontrar uma drag queen que se disponibilizasse a divulgar qual era o seu trabalho. Felizmente consegui o contato com o Jean, o que foi ótimo. Eu já conhecia um pouco sobre o mundo das drag queens e o que elas enfrentam. Durante a apuração, pude descobrir o envolvimento com a arte e os processos e desconstruções que são feitos para questionar. Não foi apenas passar um dia com uma fonte, foi aprender sobre o mundo, a sociedade, os padrões, os comportamentos e sobre o que precisa ser mudado no mundo. Tentei passar no texto essa experiência e o que mais me marcou dela: que, apesar de tudo, nós somos todos a mesma coisa, somos apenas humanos.
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ESTILO DE VIDA
A VILA DOS
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gravatás
Uma mudança radical de estilo de vida fez a família Gusson viver em harmonia com a natureza Texto Laís Albuquerque Fotos Luis Felipe Matos
N
Os Gusson e demais moradores costumam agradecer pelo alimento antes das refeições
o interior da cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul, depois de dois quilômetros de estrada de chão, avistamos uma entrada sem portões. Uma placa colorida nos avisa: estamos na Ecovila Karaguatá. A casa se localiza ao pé de um morro e uma trilha íngreme nos leva até as moradias. Uma moça – que parece não falar muito bem o português – e uma senhora nos recepcionam calorosamente. Elas são, respectivamente, Cécile e Glória. Uma das fundadoras da ecovila, Glória Concepcion Miranda Caceres é casada com Luiz Aquiles Gusson, também fundador e proprietário do local. Já Cécile Reynaud é uma estudante francesa que está ali há três dias. No total, são três estrangeiros e quatro brasileiros hospedados na Karaguatá. Mas frequentemente esse número muda. Só em 2015, cerca de 2.500 pessoas passaram por lá. A rotatividade na ecovila é grande, pois é simples se hospedar: “É | julho/2016 | 45
só vir”, resume Glória. Eles pedem contribuição espontânea ou trabalho em troca da hospedagem. Não há portões, cercas ou grades no local. A ecovila é bastante tranquila e segura. “Tentamos não artificializar a vida. Vivemos intensamente”, explica Glória. Ter uma relação mais próxima dos dois filhos foi uma espécie de desculpa para o casal tomar a decisão de mudar radicalmente de vida. Mas, segundo Aquiles, algo sempre lhe inquietou. “Eu tinha uma insatisfação dentro de mim e ficava procurando o que procurar. Depois que vim morar aqui, essa insatisfação aquietou”, revela. Morar na ecovila mudou os padrões de vida da família. Se antes os Gusson tinham babá e empregada, agora todo o trabalho, tanto domés-
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tico quanto rural, é dividido entre eles e os visitantes. A renda da família foi reduzida. “Fomos na contramão. Somos levados a acreditar que vivemos em busca do dinheiro. Nosso objetivo é tirar o dinheiro do centro das nossas vidas”, fala Aquiles.
Mas, afinal, o que é uma ecovila?
As chamadas ecovilas são locais sustentáveis onde pessoas vivem em comunidade. Seus habitantes procuram conviver em harmonia com a natureza, fugindo do individualismo e do consumismo. Diversos princípios de uma ecovila são encontrados na Karaguatá. No local são produzidos alimentos orgânicos e são utilizados sistemas de energias renováveis como banheiros secos,
A maioria dos espaços da ecovila foi construída em formato circular. A bateria, o piano e a flauta são alguns dos instrumentos utilizados pelos Gusson nos momentos de lazer
reaproveitamento de água e fogão a lenha com serpentina, que aquece a água do banho. As construções são feitas a partir da bioconstrução, que é uma maneira de construir com menor impacto ao meio ambiente. Novos processos de tomada de decisão também ocorrem, pois nada é imposto aos moradores e visitantes. Toda noite, cada pessoa escreve em um pequeno quadro negro o que fará no dia seguinte. Há apenas uma regra mais rígida: não utilizar drogas. “Se não respeitarem, pedimos que se retirem”, explica Glória. A economia autossustentável, que se baseia nas trocas e na compra de produtos de pequenos produtores próximos, também é realizada. Glória conta que eles já passaram três meses vivendo só do que produziam na eco-
Glória e Aquiles afirmam que, afinal, a proposta da comunidade é essa: cessar o sofrimento
Glória mostra a tijela tibetana, usada para a massagem sonora. Abaixo, mapa feito à mão detalha cada espaço da ecovila
vila, mas foi muito difícil e tiveram que ceder. Hoje em dia, alguns produtos são comprados dos vizinhos ou trocados com eles. Aquiles, por exemplo, é médico e já atendeu pacientes em troca de sacas de cebola. A família também frequenta feiras orgânicas e, em último caso, vai ao supermercado, mas dá preferência aos atacados, pois compram em grande quantidade. Todos esses itens fazem parte das noções de “permacultura”. O termo se origina de permanent culture (cultura permanente, em inglês) e é, basicamente, um método para planejar, atualizar e manter comunidades sustentáveis, justas e financeiramente viáveis. A família Gusson não se vê como permacultora, mas afirma seguir os princípios do método. Eles não se consideram budistas, mas se apoiam em alguns ensinamentos da religião. A ecovila pratica o que o budismo chama de “oito passos para cessar o sofrimento”, que inclui meditação e mente atenta. Gloria e Aquiles afirmam que,
afinal, a proposta da comunidade é essa: cessar o sofrimento.
Um médico, uma dentista e um sonho em comum
Há 13 anos, Aquiles e Gloria decidiram fundar a ecovila. “Todo mundo achou uma loucura, mas era exatamente o que eu precisava”, conta Aquiles. Glória tem 50 anos. Nasceu no Paraguai e aos 10 veio morar no Brasil. É formada em Odontologia e ainda exerce a profissão na cidade. “Às terças e quintas sou dentista. Nos outros dias sou mãe, cozinheira, agricultora”, conta, soltando uma gargalhada. Sempre sorrindo, ela trata a todos como se fossem seus filhos. Os longos cabelos pretos, suas vestes e a forte ligação com a natureza dão-lhe um ar místico, lembrando uma fada da floresta. Aquiles tem 50 anos, é gaúcho, natural de Lajeado. Formou-se em medicina e é clínico geral. Especializou-se em homeopatia e acupuntura e hoje também tem conhecimentos sobre
florais e regressão. A mais curiosa especialização de Aquiles é a massagem sonora, feita com a vibração produzida em tigelas tibetanas. O médico já teve seu próprio consultório, mas não se adaptou. Além de não gostar de receitar remédios comuns, Aquiles leva no mínimo três horas para atender cada paciente. Hoje em dia, ele atende apenas na ecovila. Os cabelos grisalhos e a serenidade ao falar dão-lhe a impressão de um homem muito sério. Mas Aquiles brinca: “Cabeludo desse jeito, eu sou do time dos rebeldes”. O casal tem dois filhos: Ian, de 19 anos, e Gabriel, de 14. O mais velho estuda Agronomia na UFRGS e mora na capital. Já Gabriel vive na Karaguatá e estuda em uma escola da cidade. A renda da ecovila é proveniente das contribuições voluntárias e também do dinheiro que Aquiles e Gloria recebem de suas consultas. Os Gusson também são uma família de músicos: Gabriel toca bateria; Ian, piano; Aquiles toca saxofone e Glória canta. A música é bastante importante na ecovila. A sala de estar do local é cheia de instrumentos e é comum que os moradores se reúnam para tocar. Por lá, eles não assistem aos canais de televisão. Há um aparelho que só é usado para ver filmes e escutar música. | julho/2016 | 47
A ecovila dos abacaxis
Na casa à direita da entrada da ecovila fica a biblioteca e o consultório de Aquiles. À esquerda, fica a “casa mãe” e em sua varanda há um grande mosaico feito com tijolos e azulejos. No meio do desenho, um grande símbolo do ying-yang ganha destaque. Nos dois andares da moradia principal se distribuem a cozinha, a sala de estar e um dormitório coletivo. Há ainda uma terceira parte, ligada à casa mãe, onde ficam a lavanderia, uma grande sala com ferramentas e utensílios e, no segundo andar, mais um quarto coletivo. A maioria dos cômodos possuem algo em comum: foram construídos em formato circular. Na propriedade há ainda uma estufa e uma horta. Apelidada de “Baleia’’, a estufa estava sendo construída por Aquiles e outros quatro rapazes quando chegamos por lá. Todas as moradias da Karaguatá foram construídas assim, coletivamente. A ecovila toda requer muita mão de obra: “Trabalho aqui 48
é o que não falta”, diz Glória. Na cozinha, praticamente todos os moradores ajudam no preparo e no servir do almoço. O cardápio costuma ser vegetariano, pois eles não compram carne e também não criam animais. Há apenas uma gata de estimação. Entretanto, não se consideram vegetarianos, pois, caso ganhem carne, não deixarão de comê-la. A palavra Karaguatá no português se escreve com ‘C’ e é o nome de uma planta. A origem vem do idioma guarani e significa abacaxi. A nomeação foi por causa da planta, também conhecida como gravatá, que era um verdadeiro inço no local. A terra arenosa foi um problema: “Era tão ruim que meus pais diziam que, se dependêssemos dela, morreríamos
de fome”, relembra Aquiles. Adubo e princípios de agrofloresta (o plantio de diversas espécies de plantas que melhoram a terra) foram utilizados. Hoje a situação é bem diferente. Enquanto conversavam conosco, o casal descascava uma boa quantidade de aipim, colhida da plantação própria. Aquiles conta que a produção de frutas também já é autossuficiente: “Não compramos mais, pois conseguimos produzir aqui”. A impressão que se tem é que os moradores têm uma noção de tempo diferente do vivido na cidade. A calma, a paciência e as poucas vezes em que eles procuram saber as horas demarcam bastante isso. Em suas palavras, Glória consegue explicar bem essa diferença: “Na cidade tudo
“Todos acharam loucura, mas era o que eu precisava” Luiz Aquiles Gusson, fundador e proprietário da ecovila
Em mais um trabalho coletivo, Aquiles e outros moradores constroem uma estufa, chamada de “Baleia”
é rápido. Aqui, esperamos. Enquanto no mercado você compra na hora um cacho de bananas, nós esperamos três anos para comê-las”. Glória conta que morar dessa forma não é fácil, mas que foi uma decisão. “Queremos compartilhar essa abundância com quem quer viver em comunidade”, complementa Aquiles. Eles não vendem nenhum dos 42 hectares da ecovila porque rejeitam a ideia de propriedade privada. Por isso, as portas da Karaguatá estão sempre abertas para receber visitas. Eles acreditam que todos somos um: “Há individualidades, mas somos todos o universo. Estamos juntos”, explica Glória. E sobre a grande mudança que fizeram há 13 anos em suas vidas, Aquiles é enfático: “Foi transformador e essencial”.
OLHAR DA
REPÓRTER
Pé na estrada de chão batido e dois domingos inteiros de apuração. Eis o resumo do que foi escrever para a Josefa – mesmo que seja realmente difícil resumir essa experiência. Tive contato com pessoas incríveis e pude perceber que até mesmo a noção de tempo pode ser diferente para cada um, de acordo com sua maneira de viver. Saio dessa reportagem com um aprendizado imensurável e muita gratidão pelo acolhimento que recebi dos entrevistados e pelas orientações preciosas dos professores. Durante a apuração, visitei duas ecovilas. Apesar do termo ‘ecovila’ ter um significado
específico, as comunidades eram extremamente diferentes. Dois opostos, praticamente. Foi díficil e excitante lidar com isso. Aprendi o quanto é importante procurar diversas fontes, porque mesmo que abordemos o mesmo assunto, a diferença entre elas pode ser enorme. Difícil foi a escolha que tive que fazer. Abordar os dois cases ou apenas um? Minha decisão se baseou no tema da revista: mudança. Escolhi focar nos personagens que mais mudaram o seu estilo de vida e criaram uma comunidade alternativa, com regras e princípios comuns de uma ecovila. Fiquei feliz com a minha escolha. Espero ter acertado.
De um ponto mais alto, Glória apresenta uma parte dos 42 hectares da ecovila
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gravidez na adolescĂŞncia
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Nem sempre É UMA ESCOLHA
E
Gerusa, 27 anos, e a filha Noemy, 10 anos, são muito apegadas
m um sábado, entrei em uma lotação para voltar para casa depois de ir cobrir fotograficamente uma pauta sobre violência contra a mulher em Belém Novo, Bairro da Zona Sul de Porto Alegre. Entrei na lotação junto com minha colega de faculdade, pagamos e nos dirigimos aos bancos para sentar. Quando virei, observei duas adolescentes cheias de utensílios de bebê, como bolsa de plástico com bolsinho lateral para guardar mamadeira, toalhinha, fralda de tecido e um cobertorzinho. Era um fim de tarde frio de outono. Uma delas – com as expressões do rosto nitidamente cansadas - segurava um pacotinho nos braços. Um recémnascido enrolado, literalmente, em no mínimo três cobertores coloridos. A menina aparentava ter no máximo 15 anos de idade e a outra, que parecia sua amiga pela prontidão em ajudar a carregar as coisas da mãe do bebê, também. Logo comecei a lembrar das minhas colegas e amigas na época
em que estava no Ensino Fundamental e Médio. Apesar de saber que meninas do nosso convívio que tinham, no máximo, dois, três anos de idade a mais, engravidavam, nenhuma de nós se tornou gestante durante a adolescência. Entre estudos e casos, o fato é que a gravidez na adolescência é um problema social. A Pesquisa Nacional por Mostra de Domicílios (PNAD) de 2013 mostrou que o Brasil tinha 5,2 milhões de meninas de 15 a 17 anos. Dessas, 414.105 tinham pelo menos um filho. Neste grupo, apenas 104,731 estudavam. As outras 309.374 estavam fora da escola. Um pequeno grupo só trabalhava (52.062) e a maioria dessas jovens (257.312) não estudava nem trabalhava. As mulheres que engravidam sabem que muitas mudanças acontecem em suas vidas e em seus corpos. Tem aquelas que planejam a gravidez, com todo apoio familiar e com estrutura emocional e material para isso, e as que descobrem por
A mudança que a gestação provocou na vida da adolescente Gerusa Texto Marina Lehmann Fotos Tuane Moreira
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acaso, sem esperar. As exigências sociais aumentam e lhes é cobrada a responsabilidade por darem à luz mais uma pessoa no mundo. De parto normal às 18h50min do dia 8 de junho de 2006, nasceu Noemy Bittencourt, na Emergência do Hospital Vera Cruz, na cidade de mesmo nome no interior do Estado do Rio Grande do Sul. Prematura, não havia completado sete meses dentro da barriga de sua mãe. Pesando 720g e com 32cm, ela parecia uma boneca, de tão pequena. Sem sequer ter sido tocada pela mãe, foi levada de ambulância para Santa Cruz do Sul, onde ficava o hospital mais próximo e com mais estrutura para recebê-la. Aos 17 anos, Gerusa Bittencour ficaria 48 horas internada - regra para as mulheres que davam à luz. Só 20 minutos depois do parto, ela soube que estava tudo bem com Noemy e descobriu que ela havia sido transferida para Santa Cruz. O médico chegou para fazer os pontos na episiotomia - incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto - a que Gerusa fora submetida, sem ser consultada. “Eu já estava com uma dilatação de dez dedos, não precisava terem me cortado tanto, ninguém me perguntou nada e ninguém vinha me dizer nada. Eu ainda estava lá de perna aberta, sangrando, com o corte aberto, esperando. É a coisa mais desumana. Foi um parto horrível. Levei sete pontos pra fechar a incisão”, lembra Gerusa. A adolescente namorava havia mais de um ano e meio quando resolveu terminar o relacionamento por diversos casos de ciúmes por parte do namorado. O motivo era a rotina ativa que ela tinha entre colégio, treino de atletismo e viagens para competir, além dos ensaios com a irmã, Josi, com quem cantava. 52
A Pesquisa Nacional por Mostra de Domicílios (PNAD) de 2013 mostrou que o Brasil tinha 5,2 milhões de meninas de 15 a 17 anos. Dessas, 414.105 tinham pelo menos um filho Passados dois meses do fim do relacionamento, Gerusa começou a notar algumas mudanças em seu corpo. No verão de 2006, especificamente no mês de fevereiro, ela foi com a família passar as férias em Torres, no litoral gaúcho, mas não conseguia ficar dentro d’água. Seus seios estavam muito sensíveis. “Eu não tinha me dado conta da questão da menstruação. Foi aí que a minha ficha caiu: eu não tinha menstruado no mês de janeiro. E não tinha menstruado em fevereiro de novo,” conta. Era a primeira vez que desconfiava estar grávida e decidiu conversar com o ex-namorado assim que voltasse para Vera Cruz. Abortar não passou pela sua cabeça, mesmo assustada com tantas novidades. Também não foi cogitada essa possibilidade pelo pai de Noemy. O
teste deu positivo e, junto com a notícia, começaram as consultas e o pré-natal. Um mês depois, eles decidiram voltar a namorar e mais algumas mudanças aconteceram na vida da jovem gestante. Além do estresse elevado que todas as preocupações trouxeram, ela havia passado no vestibular da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), em Enfermagem, pelo Prouni e previa que não seria nada fácil conciliar as rotinas de mãe, estudante e dona de casa. Ela e o namorado haviam decidido casar e morar juntos. “Foi muito estressante, porque tivemos que organizar tudo. Cada um morava com seus pais e tivemos que ver e arrumar tudo pra nossa casa. Nossas famílias ajudaram muito,” relembra Gerusa. A rotina precisaria de um dia que durasse mais de vinte e quatro horas para conseguirem dar conta de tudo. Uma das saídas foi a jovem mamãe de primeira viagem abandonar o atletismo, pois os treinos eram intensos e exigiam forte preparação física, o que poderia prejudicar o bebê. Após seis dias morando juntos, Gerusa entrou em trabalho de parto, com fortes contrações. Ela já estava deixando de ir às aulas do primeiro semestre de faculdade e a sua sorte naquele dia foi ter casado. Seu marido, por ser militar, tinha direito a alguns dias de folga após o casório. Rapidamente ele a levou até o hospital e saiu para avisar a sogra que sua neta estava para nascer. Depois de dar à luz e das 48 horas de recuperação, Gerusa chegou no hospital em Santa Cruz do Sul para onde Noemy havia sido levada. Para sua surpresa, ao chegar, foi chamada pelo conselho tutelar. A maternidade do hospital havia a denunciado por abandono, alegando que ela estaria deixando Noemy para adoção. A justificativa
do hospital foi que o bebê chegou sozinho, sem a mãe ou o pai. “Eu nunca falei que queria doar a minha filha. O conselho tutelar entrou em contato com o meu pai e minha mãe. O desrespeito em todo o processo provavelmente teve a ver com a minha idade. Todas e todos sabiam que a Noemy tinha chegado de Vera Cruz e que eu ficaria internada 48 horas. Foi traumatizante aquilo tudo,” desabafa. O acompanhamento do conselho tutelar continuou por alguns meses, mesmo não sendo necessário. A mesma pergunta se repetia a cada entrevista: “Você está querendo amamentar?”. Gerusa fez questão de amamentar Noemy até o momento que a filha não necessitasse mais. Noemy teve complicações de saúde por ter nascido prematura e junto veio a necessidade de se mudarem para Porto Alegre. Ela ficou internada um mês no Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto
Alegre para fazer cirurgias. Juntas, mãe e filha, enfrentaram diversas mudanças. Hoje, com dez anos, Noemy é uma criança saudável e está na escola. Gerusa está separada do pai de Noemy. Conseguiu se formar em Enfermagem e trabalha em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Capital. Ela passou na pós-graduação com ênfase em ciência e tecnologia em saúde no Grupo Hospitalar Conceição. Gerusa é o exemplo de uma mulher que na adolescência não teve informação suficiente para prevenir a gravidez. Toda adolescente deveria ter acesso a possibilidade do uso de contraceptivos para poder escolher quando engravidar, ou até mesmo decidir por não ter filhos. Como a maioria das meninas que engravidam, ela enfrentou as mudanças que a gestação trouxe e adaptou-se a uma nova realidade. Gerusa e Noemy hoje são muito apegadas e não sabem como viver uma sem a outra.
OLHAR DA
REPÓRTER
Escrever sobre gravidez na adolescência para a Josefa, que nesta edição com o tema mudança traz histórias tão particulares e íntimas, me fez refletir sobre ser mulher, filha e irmã. Com formação e olhar feminista, vejo os altos índices de gravidez na adolescência como um problema social e um assunto que deveria ser amplamente debatido desde a formação escolar básica com meninos e meninas. Isso evitaria que o julgamento dessas jovens por parte da sociedade viesse antes de suas vozes. Procurar histórias de mulheres que tiveram filha(o) tão jovens fez com que descobrisse um universo de possibilidades e superações. E mesmo com dificuldade para concluir esta matéria, pela importância do tema, escolhi contar uma história que completa o sentido de família: não abandonar ou julgar e, com amor e afeto, apesar de qualquer circunstância, apoiar.
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Marcel Hol
VOCAÇÃO
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TEU CURSO TE
define? Diferentes fatores fazem com que os jovens troquem de rumo no Ensino Superior
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Texto Lucas Proença Fotos Lucas Proença e Marcel Hol
ma pessoa de 17 anos está, inegavelmente, no início da vida, mas ela tem que tomar decisões que a acompanharão para sempre. Isso acontece com quase todos, é o considerado normal, mesmo para indivíduos tão jovens. Os seres humanos são influenciados pelos acontecimentos e pelas pessoas que conhecem e confiam. As suas vivências os fazem mudar e aprender, algumas vezes para o bem, outras para o mal. Talvez a grande influência, quando mais novos, sejam os pais. Pelo menos foi esse o caso do estudante de Teatro da Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) Nicolas Vargas. A dúvida sobre o que cursar não estava presente na cabeça de Nicolas. Ao contrário de muitos adolescentes, mesmo no colégio ele já sabia exatamente o que queria fazer depois de terminar o Ensino Médio: ser ator de teatro. Entretanto, logo que saiu da escola, a pressão familiar o fez mudar de rumo profissional, outrora tão bem definido. Acabou se matriculando no Curso de Direito da PUC-RS: “Meus pais sempre foram um pouco conservadores, queriam que eu cursasse Direito para seguir na empresa da família, além de
acharem que teatro era uma profissão que não dava dinheiro, e na época eu era muito jovem para bater de frente com eles e impor o que eu realmente queria”, conta o jovem atualmente com 23 anos. A Doutora em Psiquiatria e professora do curso de Psicologia da Unisinos Fernanda Serralta acredita que múltiplos fatores são determinantes no processo de escolha profissional, e a família exerce uma grande influencia, principalmente os pais, pois fazem parte da fase de consolidação da identidade do jovem. “Os pais não somente constituem modelos, ideais a serem seguidos – ou evitados –, mas também são fonte de suporte emocional e financeiro, tão necessário nesta etapa. Entretanto, esta influência pode ser positiva, no sentido de acolhimento, respeito à autonomia e incentivo ao crescimento, ou negativa, gerando mais dúvidas e inseguranças.” A história de Isadora Ferrão, de 26 anos, também de Porto Alegre, é um pouco diferente da de Nicolas. Ela sempre quis fazer Design, a família nunca foi um empecilho, mas foi um professor de matemática do colégio que a desestimulou. “Ele disse que eu nunca iria pas| julho/2016 | 55
Reprodução
sar nas cadeiras que envolvessem cálculos”, conta com leve sorriso. Então, ela decidiu cursar Jornalismo também por causa do colégio: “Pensei na minha matéria destaque, que era português, então logo me veio o jornalismo, onde queria trabalhar na parte de cultura, com música, ou em alguma revista relacionada à moda”, explica. Logo ao ingressar no mercado de trabalho, ainda como estagiária, Isadora viu que não estava exatamente no lugar certo. No primeiro emprego, já estava pendendo para outro lado, que posteriormente renderia sua primeira troca de curso: “Comecei a trabalhar e a ver que eu não era muito extrovertida para ser jornalista, para aquela coisa do dia a dia, da rua, de falar com as pessoas, e comecei a ser meio social media. Fazia criação de conteúdo, redes sociais, enfim”, lembra. No curso de Jornalismo mesmo, ela começava a fazer os trabalhos e logo entrava em crise por ter que falar com pessoas. Então, depois de longos quatro semestres, ela passou a conversar com pessoas próximas a ela e do seu trabalho, na Prefeitura de Porto Alegre. “Elas falavam que eu tinha cara e perfil de publicitária, e eu achava legal que havia várias funções, várias áreas e fiz a troca”, conta. Na Publicidade, Isadora parecia ter encontrado a sua futura profissão. O começo foi excelente, logo de cara conseguiu um estágio na agência Competence. “Foi ótimo mudar, comecei com um novo gás, tive vontade de procurar estágios, foi tri bom mudar”, avalia. Porém, com o tempo, o mercado de trabalho e a faculdade influenciaram negativamente na decisão de Isadora. Segundo ela, a faculdade estava virando uma perda de tempo, pois aprendia muito mais no seu emprego. “O mercado começou a me 56
Nicolas trocou de curso mesmo contra a vontade da mãe e do padrasto
mostrar a realidade da minha área; a faculdade não estava rendendo tanto quando eu gostaria e eu estava investindo muito dinheiro naquilo. Além de trabalhar, como efetivada, 12 horas por dia. Entrava às 9h e saia às 21h. Não conseguia ir para aula direito e, quando ia, era sem motivação. Pensei que iria rodar por faltas e tranquei a faculdade depois de três anos de curso”, conta.
Evasão no Ensino Superior
O Ministério da Educação não tem dados sobre a desistência de alunos nas graduações no Brasil. A estimativa é de que, em média, dois em cada 10 estudantes desistem do curso escolhido. Mas um estudo de 2009 aponta que a taxa de evasão escolar do Ensino Superior no Brasil caiu. Passou de 22% em 2008, para 21% em 2009. Não se sabe ao certo o que faz os estudantes trocarem os cursos. Isadora e Nicolas são dois casos distintos. A jovem, por exemplo, sofreu com a falta de identificação nos seus dois primeiros cursos, enquanto Nicolas acabou cursando Direito por um ano e meio, como ele mesmo fala, por uma questão de segurança financeira e para seguir uma carreira com mais credibilidade imposta por seus pais. Esse complicado ciclo da vida de Nicolas terminou em um dia
“Olhamos para a escolha profissional como um fim, mas por vezes nós, como sociedade, esquecemos que é uma etapa de um processo de maturação” Fernanda Serralta
Doutora em Psiquiatria
Lucas Proença
normal, antes de uma aula. Ele resolveu ter uma conversa de verdade com sua mãe, que, segundo ele, era mais influenciável: “Disse para ela que ia trancar o curso de Direito. Não conseguia mais. Queria partir para o Teatro, que foi o que eu sempre quis. Depois de muita briga, ela acabou cedendo”, revela. Mas a novidade ainda não tinha chegado a todos os ouvidos do apartamento da Rua Plínio Brasil Milano: “Fiz um ano de Teatro escondido do meu padrasto, para evitar mais confusão em casa depois da reação da minha mãe. Ele acabou descobrindo, mas, no fim, aceitou, pois já era tarde, eu já estava até trabalhando com teatro e vivendo plenamente o curso.” Além de esconder a verdade do padrasto, anteriormente, Nicolas também teve de fazer meio ano de cursinho, sem contar a ele. “Foi um ano complicado, já estava havia um tempo sem estudar as matérias do colégio, acabei ‘chutando’ na grade de respostas as questões de física, matemática e química, passei na raça”, comenta.
Novos horizontes
“Olhamos para a escolha profissional como um fim, mas por vezes nós, como sociedade, esquecemos que é uma etapa de um processo de maturação. Por vezes, a experimentação é neces-
Isadora está em seu terceiro curso, o de Administração
sária. A escolha não tem que ser definitiva”, avalia Fernanda. Hoje Nicolas se considera fazendo o que realmente gosta, acredita que a sua atitude lhe proporcionou uma mudança positiva. Sua empolgação é notória ao contar de como falou para o seu padrasto da troca de curso: “Falei para ele que se continuasse no Direto, além de um aluno infeliz com o curso, aca-
baria me tornando um advogado medíocre, e que já estava começando a ganhar nome e respeito pelo meu trabalho no teatro”, recorda. Atualmente, a discussão e o ressentimento dos pais pela escolha que fez há quatro anos não existe mais. Nicolas está trabalhando na recente TV OCTO e atuou no filme Prova de Coragem, do diretor uruguaio Roberto Gervitz, fazendo sua estreia nos cinemas. E o mais importante, feliz com o que escolheu. Já Isadora pensou de outro modo, escolheu como seu terceiro curso o de Administração, por ser mais generalista e por já ter lidado com negócios mesmo na área de publicidade. E enquanto não descobre o que realmente quer para o futuro, já vai trilhando um caminho parecido com da sua família, que tem uma empresa. Além de fazer um curso com mais matérias, mais teoria, mais estudo, diferente dos anteriores, que foram mais práticos.
OLHAR DO
REPÓRTER
Durante um grande período, tive dificuldade para escolher uma pauta para o tema da revista. Isso aconteceu na maioria dos trabalhos desse tipo na faculdade, pois não sou um bom “pauteiro”. Quase aos 45 do segundo tempo, decidi fazer sobre a mudança de curso no Ensino Superior. O trabalho fluiu de uma maneira melhor. Já tinha em mente a ideia das fontes. Pelo período mais reduzido que tive, ficou ainda mais apertado, e fonte profissional, a psiquiatra Fernanda Serralta, acabou
entrando na matéria no final. Já com os cases que entrevistei, me dei muito bem, foram atenciosos ao contar suas histórias e tudo aconteceu de maneira leve e natural. Quem sabe até por serem de uma faixa etária perto da minha. Acabei também fazendo as fotos para a matéria. Gostei da experiência, digamos completa, no ofício jornalístico, tendo em vista a participação na diagramação. Foi uma experiência muito proveitosa participar da confecção dessa edição da Revista Josefa.
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cartola
RESPEITÁVEL
público! Com vocês: a família Torricceli
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udo pronto! Hora de ligar o motor nova. O sobrenome Torricceli vem do biTexto Lua Kliar que carregará as oito carretas da savô do dono do circo, Jaime, que, por um Fotos Rebecca Rosa família Torricceli para outro luerro na hora do registro, ficou apenas com gar. A próxima parada não é muito longe, fica na cidade o sobrenome Zanquetin. Jaime é pai de Ângela, e, para manvizinha, mas a função começou desde cedo. No dia da ter a tradição, se autodenominam família Torricceli. mudança, todo mundo pega no batente, não tem moleza Para eles, o primeiro dia de espetáculo é sempre o para ninguém. Desde os pequenos detalhes, como tran- melhor. “É muito bom ver pessoas diferentes, saber que car os armários para as louças e alimentos não caírem, aquilo também é novo para elas”, conta Ângela. Novidaaté desmontar a grande lona azul e amarela. A pressa é de move a vida de cada um ali. Porém, não escapam da resultado da ansiedade pelo novo. “O dia da mudança é vida burocrática do universo dos “lóquis” (pessoas que o melhor! Tudo se renova, vamos com todo gás”, conta não são circenses). Antes de chegar na cidade, deve-se Ângela Zanquetin ou, se preferirem, Palhaça Polina. escolher a praça, geralmente um terreno vazio perto de Todos os meses eles se mudam. Dificilmente o circo escolas ou com grande circulação de pessoas. O próximo ultrapassa esse tempo nas cidades, a não ser que a praça seja passo é contatar o proprietário e acertar o aluguel. É de boa. A família, descendente de ciganos, tem fome de coisa praxe que paguem uma caução. Estadia definida, é hora
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cartola
“Deus me livre de ver uma árvore crescer “ Jaime Zanquetin Dono do circo
de agilizar a matrícula das crianças. Depois disso, é correr atrás dos alvarás de licenciamento dos bombeiros e da prefeitura, ser aprovado, montar a lona e começar o show. Não são poucas as histórias que Ângela conta sobre a sua infância. Uma delas é a da leoa que jogou as crias para fora da jaula e quase morreram congeladas. “Era um inverno daqueles de rachar, e a leoa pariu três filhotes e não quis saber deles. Foi um desespero quando encontramos os bichinhos congelados”, conta. Mas as batidas dos três corações denunciavam vida, e o desespero mudou de cena. Os pequenos felinos foram para dentro do forno. “Aquecemos eles durante um tempo até que ouvimos um miado, então retiramos eles do forno e começamos a esquentá-los com secador de cabelo”, relembra. Então tentaram devolvê-los à mãe, mas ela não aceitou. Acabaram tendo que alimentar os bichanos com mamadeira. Nesta época, o uso de animais ainda era permitido nos espetáculos, e eles faziam parte 60
da família. “As crianças nas escolas que estudei, tinham cachorro, gato passarinho. Eu e meus irmão tínhamos leões, lhama, elefante. Era muito diferente”, lembra a circense.
Na corda bamba
Desde cedo a rotina dos pequenos circenses é diferente das outras crianças. O pátio é o picadeiro, e lá não tem nada de videogame ou smartphone. O negócio é corda bamba, trapézio e malabares. Isso se reflete na escola, onde ainda existe muito preconceito contra esse povo. Muitas instituições tentam negar vaga para as crianças, por alegarem que elas “atrapalham” o andamento da disciplina. Porém, com a lei que garante o estudo das crianças circenses e ciganas, esse problema tem diminuído ao longo dos anos. A vida nômade sempre desperta o interesse dos colegas de aula. “Fazem todos os tipos de pergunta, é sempre a mesma coisa”, conta Malu, filha da Ângela. Leandro Júnior, 14 anos, Maria Luísa, 12 anos, e Miguel, de 9, são os três filhos da Palhaça Polina
com o ex-lóqui Leandro Cieslinski, ou Palhaço Batatinha. Miguel, o mais novo, também é palhaço, o Bolachinha, e corre no Globo da Morte desde os quatro anos. Começou como uma brincadeira com a sua bicicleta, e hoje, aos nove, corre com motocicleta de gente grande. Malu é contorcionista e equilibrista. Leandro Júnior atua na corda bamba e no monociclo. Uma coisa importante para os circenses é cada um “ganhar o seu pão”. No circo, todos podem trabalhar, independentemente da idade.
Ângela e o marido, Leandro (de palhaço e na moto), apresentam-se com os filhos e os sobrinhos em diferentes cidades do Brasil
Desde as crianças, já acostumadas com a vestimenta de palhaços ou com o equilíbrio na corda bamba, até os idosos que vendem maçã do amor ou cuidam da bilheteria. “O importante é que todos façam alguma coisa, não dá pra ninguém ficar parado no tempo”, diz Ângela. Os lucros são divididos entre todos. As crianças ganham R$ 150,00 por semana. Cada um dos quatro filhos fica com 8% da bilheteria. E o lucro da venda dos alimentos fica para quem vende. Ao todo são dezoito pessoas trabalhando para o circo lotar. Cada espetáculo comporta 500 pessoas. Aos finais de semana, são quatro por dia. “Se lotar os quatro em um dia, estamos com as contas garantidas”, conta Ângela. Há três gerações, mudar faz parte da rotina da família. Como diz Jaime, pai da Ângela: “Deus me livre de ver uma árvore crescer”. Essa frase ecoa na cabeça de cada um dos filhos e netos do casal que, há dezoito anos, saiu da cidade natal Gaúcha, no Paraná, para montar o próprio circo em Campinas, no estado de São Paulo. Os pais de Jaime também tinham um circo, mas ele resolveu abrir o seu negócio com a sua família. No dia 17 de março de 1998, o Circo Torricceli teve sua estreia. Desde então, levar alegria por onde passam é o propósito dessa família. E alegria é o que não falta neles.
OLHAR DA
REPÓRTER
O dia escureceu rápido e a noite trouxe um frio doloroso. Entrei pela bilheteria, passei pelo picadeiro, iluminada apenas pela luz da lua cheia. A lona era maior do que eu esperava, e o medo do escuro também. A falta dos óculos dificultou o caminho. Finalmente uma lanterna sinalizou a passagem ao fundo. “Por aqui! Pode entrar.” Mais tarde descobri que a voz era do palhaço Batatinha. Cheguei na carreta e subi a escadinha (que vertigem!). Apareceu a Ângela. No primeiro momento, só vi a cor misteriosa dos olhos de uma cigana. Foi o suficiente para tudo ali ser ainda mais interessante. O seu sotaque paulista falou durante quatro incansáveis horas regadas pelo café passado no saco de pano. Vez ou outra, um dos filhos e o sobrinho interrompiam a conversa pedindo mais pão,
depois voltavam a brincar. A carreta é como um grande trailer. Tudo meticulosamente compactado e funcional. Cozinha, banheiro, três quartos e uma área de serviço com máquina de lavar e secar roupas. Enquanto conversávamos, Batatinha instalava mais uma televisão na casa. Já passava das 22h, minha mãe me esperava no carro. Decidi que era hora de me despedir da família. Ângela ainda tinha que preparar a janta. Disse que faria uma massa sem carne pra mim, caso eu quisesse ficar. Agradeci. Saí da carreta acompanhada por ela e pelo cusco. Fiz o mesmo caminho na volta, agora um pouco mais segura. Quando entrei no carro, minha mãe disse: “Achei que tu ia ficar no circo e ir embora com eles”. Respondi: “Vontade não faltou. Quem sabe na próxima”.
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STARTUPS
Uma nova maneira 62
empreen
Ideias que mudam a forma de solucionar problemas cotidianos Texto Luis Felipe Matos Fotos Laís Albuquerque
S
tartup é a nova maneira de empreender que está conquistando as mentes criativas do mundo. Não é muito fácil conceituar esse modelo de negócio. Primeiro, porque ele é muito novo. Segundo, porque muitas pequenas empresas se autointitulam assim. Ok. Temos alguns exemplos de empresas inovadoras com mais de 40 anos. Mas foi com a expansão da internet, no final dos anos 1990, que surgiram inúmeros empreendimentos apoiados nas novas tecnologias que atraíram muitos investidoGuilherme, da res apostando bilhões de dólaPulsar, promove o empreendedorismo res nesses cavalos premiados. nas universidades As empresas ponto com (dot com) foram as startups pioneiras e pagaram um preço por isso. Esse período, chamado de Bolha da Internet, definiu os rumos do mercado. A definição mais difundida é que uma startup deve apresentar um modelo de negócio repetível e escalável. Isto é, a partir de uma ideia inovadora, que atenda uma necessidade cotidiana, os sócios consigam entregar uma solução para mais e mais pessoas. Dessa forma, eles terão um retorno financeiro cada vez maior e contribuirão para a satisfação de seus clientes.
de
nder
Projetos que mudam vidas
E se naquele dia em que você estiver tão envolvido com o trabalho tiver que fazer hora-extra e não der tempo de passar no supermercado para comprar o que precisa para sua casa? Esse é um problema comum, que muitas vezes nos incomoda e acabamos deixando para resolver no dia seguinte. Acontece que um grupo de estudantes universitários pensou em uma solução para essa situação. Durante uma competição criada para promover o conceito de startups nas faculdades de Porto Alegre, Marcelo Almeida, sua namorada, Raysa Townsend, seu irmão, Daniel Almeida, e mais três amigos criaram a Canguroo. | julho/2016 | 63
A ideia básica da Canguroo é conectar aquela pessoa que não teria tempo de fazer suas compras do dia com outra que se disponha a passar no mercado e levar os produtos encomendados para a primeira. A equipe tem a pretensão de mudar as vidas dessas pessoas, facilitando o dia a dia de uma e reforçando o orçamento de outra. Enquanto o projeto ganha forma, as mudanças já acontecem nas vidas dos empreendedores. Marcelo é formado em Design e cursa Administração desde 2012. Ele conta que sua vida mudou muito desde aquela competição. Integrante da equipe vencedora do concurso em 2015, ele explica que a competição serviu como um empurrão para o grupo repensar suas carreiras. “Olha só, nós somos capazes. Possuímos as ferramentas e o conhecimento necessários para tocar nosso próprio negócio.” Segundo ele, esse foi o sentimento que os motivou a mudar e cogitar a tocar suas vidas como empreendedores. A receita de vida desses amigos mudou. Com essa oportunidade de empreender, eles decidiram sair de seus empregos. Não que essa seja a solução mais fácil. “Principalmente nessa caminhada inicial, a gente não vê o dinheiro entrando na conta todo o final do mês”, revela Marcelo, que entende esse desafio como algo que torna mais interessante toda a jornada. “Dessa forma, acabamos encontrando novas maneiras de nos sustentarmos e novas formas de viver”, conclui.
Base para mudar
No Rio Grande do Sul, foram mapeadas pela Associação Gaúcha de Startups (AGS) cerca de 140 startups em atividade. A AGS tem o objetivo de fortalecer, conectar e representar a comunidade de startups do Estado. Segundo a 64
A Canguroo mudou a vida do designer Marcelo
associação, estima-se que haja atualmente 1700 empreendedores em startups no Rio Grande do Sul. No país, uma das instituições que mais presta apoio ao empreendedorismo é o Sebrae. João Antônio Pinheiro Neto, gestor do programa StartupRS do Sebrae/RS, afirma que os números são bem difíceis de mensurar, pois existem muitas startups nascendo, morrendo e pivotando, isto é, modificando seu modelo de negócios e o mercado alvo a todo momento. “Dentro do StartupRS, já ajudamos a desenvolver 40 startups em todo o Rio Grande do Sul e, atualmente, estamos ajudando a desenvolver mais 15”, diz o gestor, apresentando os resultados do programa. Com o StartupRS, o Sebrae/RS criou uma parceria entre os principais agentes de apoio e investimento em startups, como aceleradoras, incubadoras e demais entidades do mercado. As novas empresas estão trazendo soluções inovadoras para os segmentos mais variados, como games, agronegócios, saúde, alimentos, vestuário, entre outros. Sobre as mudanças que essas empresas trazem, João Antônio acredita que todas têm, independentemente de sua solução, algum impacto na vida dos cidadãos e das corporações. “Para as pesso-
as, muitas vezes representa conforto, confiança e agilidade. Para as empresas, representa redução de custos e prazos, ou aumento no domínio de informações sobre seu desempenho, facilitando a tomada de decisões e tornando-as mais competitivas.” A ideia de competição também mudou. Foi ampliada para ajudar esse mercado a se aquecer. Existem muitos concursos destinados a promover esse novo tipo de empreendedorismo. Alguns servem para apresentar projetos aos investidores dispostos aos riscos e incertezas inerentes a este mercado. Outros trazem experiências de inovação para o público universitário, interessado em aprender e empreender. Para levar essas experiências ao meio acadêmico, surgiram empresas e entidades de apoio ao novo empreendedor, como a Pulsar. Com o entendimento de que se estudava pouco, ou de maneira superficial, sobre empreendedorismo e inovação nas universidades, os sócios Guilherme Viegas e Tainan Caballero criaram um hub de cultura empreendedora que promove experiências de educação e desenvolve negócios disruptivos para nova economia, conforme as informações da página oficial da empresa. Ou seja, uma conexão entre o empre-
“Nós somos capazes. Possuímos as ferramentas e os conhecimentos necessários para tocar nosso próprio negócio” Marcelo Almeida
Cofundador da Canguroo
endedorismo e a educação. Guilherme Viegas viveu esse problema na pele. “Estudei durante cinco anos no curso de Administração da UFRGS e somente nos dois últimos semestres tive cadeiras de empreendedorismo”, conta Guilherme, compartilhando a percepção que teve ao sair da faculdade de que esse não era um caso isolado. Ele identificou que as universidades não estimulavam seus alunos a empreender. “Havia pequenos espaços dentro das instituições, ou em incubadoras tecnológicas. Esses canais eram
tão restritos que muitas vezes os alunos não tinham acesso ou nem mesmo sabiam que existia”, explica Guilherme. As informações sobre essas oportunidades acabavam ficando nas mãos de poucos alunos, que transpunham as barreiras burocráticas das universidades. “Acabei tendo que buscar essas experiências fora do ambiente acadêmico. Só assim pude desenvolver um olhar mais amplo sobre empreender”, resigna-se. O primeiro passo da Pulsar foi buscar parcerias que ajudassem a aproximar os mundos acadêmico e do empreendedorismo. Dessa forma, passaram a levar para dentro das instituições de ensino experiências educativas conectadas com os jovens universitários, trabalhando com a mobilização de forma inteligente e acessível. No meio desse processo de desenvolvimento pessoal e profissional, Guilherme entrou em contato com uma empresa californiana, a Ideation, que estava desenvolvendo uma competição em Porto Alegre. Durante a primeira edição, voltou a trabalhar com Tainan Caballero, com quem veio a fundar a Pulsar. Assim, a segunda edição foi uma parceria entre Ideation Brasil e a
nova empresa de Guilherme e Tainan, que promoveram a competição “Sua Ideia na Prática – Porto Alegre”. A parceria durou por essas duas edições da competição. Na última, organizada pela Pulsar, foram 93 universitários inscritos, alunos de 15 instituições e vindos de sete cidades do Rio Grande do Sul. E, entre todas as ideias inovadoras que estavam concorrendo, a primeira colocada foi a Canguroo. Seguindo esta mesma linha de competições para promoção do empreendedorismo nas universidades, a Pulsar buscou novas parcerias. Agora, conta com o Sebrae-RS no “Desafio Empreendedor UFRGS”, que já soma três edições e mais de 240 alunos da universidade que apresentaram seus projetos de startups. Várias formas de empreender e muitas ideias inovadoras surgem e acabam não dando certo, enquanto outras são vitoriosas. Elas buscam facilitar as vidas das pessoas. Transformam carreiras e, como sonham muitos empreendedores, trazem grande retorno financeiro. De qualquer maneira, é impossível não perceber que estão mudando muitas relações no campo social e econômico em todo o mundo.
OLHAR DO
REPÓRTER
Já faz algum tempo que o empreendedorismo desperta meu interesse. Desde que decidi cursar Jornalismo, busco imaginar uma forma de seguir meu próprio caminho. Além das incertezas do cenário atual do mercado de notícias, não me vejo nesta carreira como empregado de carteira assinada. Hoje, vejo que as universidades têm se preocupado com essa questão. E foi na faculdade, em 2015, que fiquei sabendo do programa Sua Ideia na Prática da Ideation Brasil e da Pulsar, citado na matéria. Esse concurso me motivou
a buscar mais informações sobre o assunto. Várias ideias começaram a surgir. Muitos problemas no meu dia a dia já inspiraram alguma solução que imaginei transformada em uma startup. Mesmo sem o compromisso de fazer uma matéria para a revista, certamente iria entrar em contato com as pessoas entrevistadas aqui. São pioneiros de um campo que está sendo desbravado e fazem parte de um acontecimento maior que merece ser registrado, independente do sucesso individual de cada projeto aqui apresentado.
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CIRURGIA BARIÁTRICA
MUITO MAIS DO QUE A
balança Vivian eliminou 59 quilos em um ano, modificando completamente sua vida, pessoal e profissional
Texto Rodrigo Ávalos Fotos Luis Felipe Matos
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egundo dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, o Brasil ocupa atualmente a segunda posição no ranking mundial da chamada “cirurgia de redução de estômago”. A operação cresceu 275% nos últimos sete anos no Brasil e representa um grande auxílio para aquelas pessoas que tentaram de inúmeras formas diminuir seu peso ao longo dos anos e não foram bem sucedidas. Perder peso, apesar de representar uma melhora na autoestima, não se restringe somente a isso. O maior objetivo é proporcionar uma melhor qualidade de vida, já que a obesidade aumenta o risco de muitas doenças potencialmente mortais, como diabetes, hipertensão, derrame, infarto e diversos tipos de cânceres. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 15 % dos brasileiros têm obesidade em algum grau, tipo 1, severa ou mórbida. A cirurgia traz consigo uma grande mudança na vida das pessoas ope-
radas, conforme relata Vivian Formiga, 29 anos, que passou pelo procedimento em abril de 2015. A decisão foi tomada em outubro de 2014 após várias tentativas de perder peso, que incluíram dietas e tratamentos clínicos, todos sem resultado. Vivian é enfermeira e chegou a engordar deliberadamente para atingir o Índice de Massa Corporal (IMC) necessário para ser autorizada a fazer o procedimento. “Eu trabalhava no período noturno, o que facilitou muito o ganho de peso. Estava sempre correndo na emergência e, durante o dia, dormia. Acabei trocando o dia pela noite. Tinha muita insônia e, nesse período, meu metabolismo ficou completamente bagunçado, engordei muito.” Os médicos exigem que os pacientes tenham IMC maior que 40, ou, se houver alguma doença grave, como diabetes ou alterações cardíacas, até 35. A enfermeira nem sempre foi gordinha. A obesidade apareceu na sua vida a partir dos 18 anos, e somente 11 anos mais tarde ela optou pela cirurgia bariátrica como forma de melhorar sua saúde e também a imagem refletida no espelho. “Apesar de gordinha, eu nunca tive problema de autoestima. Eu costumo dizer que acho que tenho mais receio agora. Parece que antes eu era mais segura e hoje em dia às vezes me acho até muito magra. Olho pro meu marido e digo, poxa, meu shorts é 36 e ele está grande.” Outro motivo que levou Vivian a procurar o trata-
Hoje Vivian frequenta a academia regularmente com prazer
mento através da cirurgia foi o desejo de engravidar. Tanto ela quanto o marido, Eduardo Ramos, fizeram diversos exames procurando o que poderia estar errado, já que tentaram por dois anos e não conseguiram a tão sonhada gravidez. Os exames deram todos normais. “A obesidade influencia muito na gravidez. A pessoa obesa pode tanto ter mais facilidade quanto dificuldade para engravidar. A mulher obesa também pode ter ovário policístico, além de ter uma gravidez de alto risco. O bebê pode nascer com algum problema cardíaco ou diabetes tipo 1. Uma gestação de mãe obesa traz muito mais risco, esse sempre foi meu receio”, explica Vivian. A cirurgia mudou muita coisa na
vida da Vivian. Após 20 dias de pós -operatório, ela retornou aos exercícios físicos em academia. “Eu frequentava a academia anteriormente daquele jeito esporádico. Hoje tenho muito prazer no exercício físico. Não vou mais à academia pensando em emagrecer. Frequento porque me sinto bem. Minha psiquiatra às vezes até me recomenda a pegar mais leve em dias que estou mais cansada.” As mudanças de humor após a cirurgia também são normais, a tristeza e a depressão podem aparecer. Conforme Márcia Listgarten, psicanalista, pessoas que não foram corretamente preparadas psicologicamente para a cirurgia podem desenvolver alcoolismo, tabagismo,
compulsão sexual, compulsão por compras, depressão. “A possibilidade de o operado deslocar sua compulsão alimentar para outra forma de lidar com seus conflitos existe.” Vivan concorda e esclarece: “A tristeza e a depressão aparecem porque a cabeça da gente continua a mesma, o que reduziu foi o estômago. As vontades não passam, a gente continua tendo. Eu sempre gostei de festas, continuo gostando, mas isso modificou bastante. Eu poderia beber, não tenho restrição, mas a bebida alcoólica é muito calórica, então acabo me controlando”. Isso foi bem difícil, hoje ela prefere tomar água ou chá. “Essa foi uma mudança bem radical.
Vinte dias após a cirurgia, Vivian retornou à academia
“Eu poderia beber, não tenho restrição, mas a bebida alcoólica é muito calórica. Hoje eu prefiro água ou chá. Foi uma mudança bem radical” Vivian Formiga Enfermeira
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Vivian emagreceu 50 quilos nos primeiros seis meses
“As pessoas não me reconhecem na rua. Às vezes me dizem que nem me achavam tão gordinha assim, ao que eu respondo, sim, mas eu era.” Essa mudança visual do próprio corpo provavelmente seja a maior mudança relatada pela enfermeira. “Foi provavelmente a mudança mais gritante”, revela. Em outubro, apenas seis meses após a cirurgia de redução de estômago, Vivian teve que se submeter a uma nova intervenção médica. Ela percebeu que o consumo de líquido havia diminuído muito, e dores começaram a acometer a enfermeira
diariamente. Seu médico constatou a necessidade da retirada da vesícula. “Quando o médico disse que eu teria que fazer uma cirurgia seis meses após a redução de estômago, foi um baque pra mim. Fui para casa chorando, não acreditando que teria que me operar de novo. Foi bem ruim.” Vivian não tem mais a vesícula e também não tem mais dores, e o problema do consumo de líquidos foi resolvido. Após as duas cirurgias, ela acredita que foi a melhor decisão a ser tomada. “O médico foi muito atencioso, inclusive aproveitou as mesmas incisões da cirurgia anterior.” O apoio dos familiares, do seu esposo e dos colegas da Unimed, onde Vivian trabalha, foi muito importante
para ajudá-la a lidar com tantas mudanças, tanto físicas quanto psicológicas. “Além do Eduardo, tive apoio dos meus pais e de minhas irmãs, ficamos 15 dias na casa deles. Minha mãe fazia minha comida na hora, sempre fresquinha. Isso me ajudou muito.” Com tantas mudanças na vida de Vivian, fica um alerta para todos que desejam e planejam se submeter a uma cirurgia bariátrica: é necessário acompanhamento psicológico antes e depois do procedimento, apoio familiar e muita força de vontade. Os ganhos de saúde e na autoestima são gigantescos, como atesta o exemplo da enfermeira, porém também podem ocorrer casos de depressão e outras enfermidades, geralmente psicológicas.
OLHAR DO
REPÓRTER
Apesar de alguma dificuldade na marcação da entrevista com a principal fonte da minha matéria, Vivian Formiga, a mesma ocorreu sem problemas, além de ter sido muito elucidativa, tanto no que tange ao tipo de cirurgia feita pela mesma quanto ao pré e pós operatório. A entrevista foi acompanhada pelo seu marido, Eduardo Ramos, que, da mesma forma, foi muito solícito e cooperou com a matéria, oferecendo uma segunda visão do fato.
A visão de quem acompanhou toda luta da Vivian durante a adolescência, o período em que engordou bastante, antes e depois da cirurgia. Tirando o fato de não ter conseguido acompanhar a reunião mensal oferecida pelo Centro Integrado de Controle da Obesidade (CITO), não tive maiores dificuldades em levantar as informações e redigir a matéria, tanto com informações de especialistas quanto com os próprios entrevistados.
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IDEOLOGIA
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ELES QUEREM A
secessão
Conheça um pouco sobre os grupos separatistas que existem no Sul do Brasil, quais são suas características e o que reivindicam Texto Matheus Martins Fotos Paulo Egidio
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eparação, segundo o dicionário, significa partição, divisão, desunião, secessão. O ato de se separar pode significar separação conjugal, de amizade ou ruptura de laços. No entanto, o significado pode ser muito maior. É uma questão ideológica, vista por alguns como fanatismo e, por outros, como ideal de vida e desejo de mudança. Pessoas como Romualdo Negreiros, 62 anos, motorista da Carris, historiador por paixão e pesquisador por devoção. Negreiros é participante e fundador do Movimento Rio Grande Livre e da Organização Não-Governamental de
mesmo nome. “Nosso movimento não é separatista. Não pregamos o separatismo como um ideal, e sim a ação de difundir e incentivar a preservação da cultura do gaúcho original”, começa Negreiros. Diferentemente de outros movimentos, o RS Livre foca em mostrar ao gaúcho que a nossa cultura não é a brasileira, e que, sim, devemos nos orgulhar por sermos gaúchos. A forma de separação desse movimento é pela conscientização popular das diferenças culturais. A diferença entre movimentos de secessão e separatistas podem ser várias. Existem diversas orga| julho/2016 | 71
nizações separatistas mundo afora, alguns que pregam a separação plebiscitária (através de plebiscito), conscientização popular ou revolução armada. Os movimentos separatistas em geral se criam do descontentamento perante a desvalorização de seu estado ou província diante de um poder central. Como são os exemplos de Catalunha, Escócia, Tibete, Irlanda do Norte e de alguns movimentos brasileiros, como o Grupo de Estudos sobre o Nordeste Independente (GESNI) e o Movimento São Paulo Independente (MSPI).
Separatismo: uma questão histórica
No Sul, existem vários grupos que pregam a independência Sulista ou somente do Rio Grande do sul. Tudo começou lá na longínqua Guerra dos Farrapos e na proclamação da República Juliana. Há desde sempre um sentimento de grande parte dos gaúchos que os fazem se sentirem intrusos em ninho brasileiro. Inclusive o termo “gaúcho” provém dos antepassados que viveram no interior do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, dando mais semelhança aos nascidos no sul do Brasil com esses dois países. Historicamente e culturalmente, a separação de estados do sul do Brasil é um tema recorrente e que decorre principalmente de valores culturais e econômicos. Os movimentos começaram a tomar forma em 1985, quando o santa-cruzense Irton Marx fundou o Movimento Separatista Pampa. O grupo trouxe à tona para além do Mampituba a vontade separatista dos Sulistas, sendo noticiado e ficando conhecido em todo o Brasil. Porém, de acordo com o fundador, algumas reportagens deram a conotação xenofóbica e segregadora ao movimento, levando até ao processo e prisão 72
de Marx. Toda essa visão negativa levou à dissidência de vários participantes, criando assim os movimentos O Sul é o Meu País, o Pampa Livre, o República Rio Grandense e posteriormente o Rio Grande Livre. Apesar de existir uma grande quantidade de grupos separatistas no Sul, há dissidência e animosidade entre alguns. Como é o caso do movimento O Sul é o Meu País e o atual República do Rio Grande (antigo Movimento Separatista Pampa e que defende somente a separação do Rio Grande do Sul). Pela visão de Marx, fundador do grupo gaúcho, o Movimento O Sul é o Meu País prega sionismo e visa destruir seu movimento. “Pessoas de Santa Catarina mantinham contato comigo e, naquele estado, foram ministradas muitas palestras até o aparecimento deste grupo, que veio com a intenção de destruir o nosso movimento”, acusa Marx. Já segundo Celso Deucher, diretor de mobilização estratégica do O Sul é o Meu País, a dissidência se dá pela visão ideológica que ele considera preconceituosa por parte de Marx. “Existem movimentos na internet que não temos interesse em buscar unidade, porque alguns deles são preconceituosos, outros são movimentos de uma pessoa só, outros ainda não tem a menor cultura organizativa”, relata Deucher.
Negreiros, fundador do Rio Grande Livre, quer difundir e preservar a cultura do gaúcho original
“Em casos de apoio a movimentos separatistas, a sociedade é um dos elementos fundamentais e decisivos no processo de separação, pois pode determinar com a sua força os rumos do processo” Diego Garcia Sociólogo
Hoje quem encabeça os movimentos separatistas do sul é o movimento de Deucher. Com maior número de militantes, cerca de 35 mil, O Sul é o Meu País foi criado em 9 de abril de 1992 e defende uma separação democrática e plebiscitária dos três estados do sul do Brasil. O grupo surgiu na mesma época do processo de impeachment que retirou o ex-presidente Fernando Collor da presidência, criando um cenário que apontava diversos caminhos, dentre eles uma visão positiva para uma maior autonomia dos Estados. Como nos moldes dos movimentos Escocês e Catalão, o cidadão decidiria através de um plebiscito se a região se separaria ou não do país. Segundo a última pesquisa feita pelo grupo de estudos do próprio movimento, mais de 70% dos entrevistados aprovaria a separação dos três estados do Sul. Segundo o sociólogo Diego Garcia, sempre que as comunidades periféricas se sentem desprivilegiadas, mesmo contribuindo mais que as outras regiões, surgem ideias de secessão. “A forma de luta foi modificando com o passar dos tempos, deixando de ser apenas com armas e passando a ser pela via do diálogo e da democracia. Cito como exemplos o recente plebiscito que ocorreu na Escócia para que se tornassem independentes da Inglaterra e a questão
da separação da Catalunha junto à Espanha”, comenta Garcia. O papel da sociedade, como sendo um motor do Estado, é fundamental. “Em casos de apoio a movimentos separatistas, a sociedade é um dos elementos fundamentais e decisivos no processo de separação, pois pode determinar com a sua força os rumos do processo”, completa o sociólogo. Do ponto de vista constitucional, qualquer forma de separatismo não conta com amparo legal. A constituição no Brasil não dá brechas para isso, tornando o processo quase impossível. “A constituição brasileira é clara quando fala em União indissolúvel de estados, distrito federal e municípios. Ou seja, nenhum deles pode proclamar independência”, diz Leonardo Grison, professor de Direito Constitucional da Unisinos. Grison também comenta que o separatismo pode se enquadrar em crime, caso o grupo ou movimento atente contra a segurança da Nação, ou da população de forma agressiva. Mesmo sabendo dessa falta de amparo constitucional, os movimentos se articulam de outras formas. Alguns, como O Sul é Meu País, pensam em recorrer à ONU, outros utilizam a doutrinação dos sulistas para entender que não pertencem ao Brasil de alguma forma. Mas todos no fim querem a mesma coisa: mudar para se encontrar.
OLHAR DO
REPÓRTER
Fazer uma reportagem sobre algo que é alvo de um preconceito é sempre complicado. Ainda mais com essa fama bairrista que o gaúcho tem, já que se criou este estigma que relaciona o gaúcho com um ser intransigente, arrogante e com “um rei na barriga”. Fazer essa reportagem me trouxe desafios como, por exemplo, não causar mais animosidade entre as partes e os movimentos. Como foi mostrado no texto, há rusgas não esclarecidas entre integrantes de grupos por questões ideológicas e até acusações graves de racismo. Tratar isso foi bem difícil, e a decisão de publicar, mais ainda. Mas a satisfação de conseguir abordar esse assunto tão pouco tratado na imprensa tradicional e trazer uma reportagem sem preconceitos é grande. O separatismo, apesar de ser inconstitucional, se não traz violência, não precisa ser tratado como algo ruim. Na minha visão, é só uma forma de um povo expressar seu sentimento e suas vontades de mudança.
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ACOLHIMENTO
HISTÓRIAS
transform
Circunstâncias da vida fazem com que jovens deixem suas casas e passem a morar em abrigos 74
Texto Nathalia Amaral Fotos Caroline Baisch
M
uitos jovens que vivem uma realidade devastada por experiências incabíveis para a infância precisam encarar a repentina, porém necessária e drástica, mudança de vida. Sair do convívio familiar, mesmo conturbado, é difícil. Aquele é o único modelo de família que conhecem. Dentre tantas inseguranças, a rotina é totalmente
madas mudada. O novo nem sempre é bem recebido no início. O caminho é o abrigo, que acolhe e orienta jovens que precisam de apoio para entender o que aconteceu em suas vidas e seguir em frente. Em uma rua calma de Porto Alegre, uma casa comum e muitas histórias para contar. O abrigo é a nova casa desses adolescentes que
passam a conviver com pessoas diferentes, estranhas, porém receptivas. É manhã de uma terça-feira, todos já acordaram. Alguns estão na escola, outros ouvindo música ou conversando com algum dos educadores. O clima é o mesmo de uma casa comum, apesar das circunstâncias. Há amparo por todos os lados, do psicológico ao lazer.
Não faltam mãos e mentes dispostas a contribuir. Existe uma equipe preparada para acolher. O lar não é improvisado, foi feito para isso. Apesar de passarem pela mesma mudança em suas vidas, os acolhidos não têm histórias iguais, são peculiares. Isso torna o processo mais delicado. Agora dividem espaço, têm tarefas, horários | julho/2016 | 75
Apesar da dura realidade de suas vidas, os acolhidos se divertem como qualquer criança nos ambientes do abrigo
definidos. Nada é forçado, mas contribuir para o funcionamento da casa é essencial para uma boa convivência. Nesse lugar, acima de tudo, percebe-se respeito mútuo. Diante das histórias de vidas ainda tão jovens, porém cheias de experiências, é possível identificar a força que vem da fragilidade escondida em meio a maturidade forçada. Alguns parecem mais velhos, porque suas vidas lhes deixaram menos ingênuos, mas isso não afasta a necessidade de apoio. Marcelo*, um dos moradores da casa, tem 17 anos e desde os cinco vive em abrigos. Foi preciso. A mãe é usuária de drogas e negligenciava o cuidado dos filhos. O restante da família não podia ficar com ele e com os quatro irmãos. Não conhece o pai. A solução foi o abrigo. Ele relata a infância com certa naturalidade, apesar da tristeza, afinal, aquela realidade era a única que conhecia. “Ela se drogava, era normal, mas um dia meu tio foi nos visitar e viu que ela usava na nossa frente.” O início foi difícil, sentia falta da mãe, da casa onde vivia. Passou por muitos abrigos antes de chegar no lar em que vive hoje. Nesses anos todos, houve algumas tentativas de retorno ao convívio familiar, sem sucesso. Quando tentou voltar a viver com a mãe, mais uma vez as drogas atrapalharam. A última tentativa foi com a avó de criação, mais uma frustração. A violência. Em um episódio na casa da avó postiça, Marcelo teve o braço quebrado por uma barra de ferro. Pediu para voltar para o abrigo em que estava e que vive hoje. “Eu fui no conselho tutelar e pedi pra voltar.” Segundo ele, a rotina no lar é tranquila. Ele vai para a escola à 76
tarde e é tudo muito normal. Tem apoio e ouvidos interessados em saber o que se passa com ele. O psicólogo da unidade, Germano Brites, acredita que isso torna a situação menos dolorosa para os jovens, pois, para ele, a mudança na rotina é uma violência contra esses adolescentes, apesar de viverem em situações de risco. Para uma criança, a casa é onde se sente mais segura e, quando não se tem mais a família, tudo muda. No abrigo, eles tentam trazer de volta a normalidade para a vida desses
jovens. “É como uma casa com muitos filhos, cada um tem uma rotina, eles vão para a escola, fazem curso. Nós tentamos fazer com que eles não sejam taxados como meninos de abrigo”, diz o psicólogo. Este abrigo dá assistência a jovens em situações de vulnerabilidade social até os 18 anos completos. São cerca de 22 jovens que recebem assistência desse local, que busca o melhor encaminhamento possível após o desligamento que vem com a maioridade. Em casos e que não conseguem independên-
“Nós tentamos fazer com que eles não sejam taxados como meninos de abrigo” cia, são encaminhados para abrigos adultos. Porto Alegre têm 22 abrigos como esse, 12 deles pertencem a rede da Fundação de Assistência Social e Cidadania da Prefeitura de Porto Alegre (FASC). Existem ainda 46 casas lares, através de convênios, que também acolhem crianças e adolescentes, porém em outra modalidade de acolhimento institucional. São aproximadamente mil crianças e adolescentes acolhidos pela instituição na Capital.
Envolvimento
A relação com os profissionais poderia ser distante, estranha, mas não é. Os adolescentes participam de tudo relacionado ao lugar, inclusive construíram parte da mobília, como um sofá de pallets que fica na sala de estar. Todos usam. “O sofá foi eles que fizeram, os armários e mesa também. Nós queremos que eles sintam que essa é a casa deles”, explica Brites. Pensando dessa forma, todos ajudam a manter tudo no lugar, cuidam de suas coisas e se auxiliam naquilo que é para todos. O lar é de todos. A mudança compulsória fez com que as vidas de todos se cruzassem, acolhidos e acolhedores. Diego*, 15 anos, vive entre idas e vindas para abrigos há cerca de oito anos. A infância não era ruim, segundo ele, mas a mudança para o abrigo foi melhor. “Foi bom ir para o abrigo até, mas depois que eu fiquei mais velho eu voltava para casa. Evadia”, conta. Nas vezes que Diego voltou para o bairro em que morava, acabou se envolvendo com o tráfico de drogas. Em uma das situações, foi baleado. Seis tiros. Dezessete dias no hospital. A recuperação foi no abrigo em que vive. “Eu estava na praça perto da minha casa, de boa, então vieram três caras e atiraram em mim. Foi ruim,
Germano Brites Psicólogo do abrigo
sim, mas eu sabia o que estava acontecendo e fui para o hospital. Só tive medo de morrer”, relata. Diego quer algo diferente para o seu futuro, ainda não decidiu o que quer estudar. Está em dúvida entre Medicina, Fisioterapia e Engenharia. Já trabalhou como servente de pedreiro. O certo é que quer construir algo para si, diferente do que viveu até agora. É bom aluno, gosta de português. “Quero estudar, ter a minha casa, um trabalho bom. Vou fazer minha carteira de trabalho, fazer um curso e começar a trabalhar também.” Diego recebe a visita da mãe quase todos os domingos, mas não pretende voltar para casa. “Eu quero ficar no abrigo até os dezoito. É bom aqui, eu gosto.” Para quem ajuda na adaptação dos jovens a essa nova vida, o trabalho só é possível por ser feito com muita dedicação. Para Andressa Menegotto Lima, que cursa Serviço Social e trabalha no abrigo há cerca de um ano, o afeto é essencial na realização do trabalho. “Não tem nenhuma outra explicação. É amor
mesmo. A gente passa mais tempo aqui com eles do que na nossa casa. A gente se envolve, e muito. Eu saio daqui e fico pensando em como eles estão. Nós somos uma família, a gente costuma dizer que aqui é nossa segunda casa.” Aqueles que conseguem se sustentar, por já estarem trabalhando, podem ir para uma república paga. Mesmo quando um jovem se desliga do abrigo, os educadores tentam se manter presentes em sua vida. “A gente mantém contato, para eles não se sentirem abandonados. Nos preocupamos com a situação deles dentro e fora do abrigo”, conta Andressa. A vida no abrigo só é possível pelo respeito que se baseiam todas as relações e, acima de tudo, pelo cuidado com que os educadores tratam os acolhidos, que precisam estar ali. O lar foi pensado e construído para ser acolhedor, e essa é a mudança. Acolhimento. (*) Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados
OLHAR DA
REPÓRTER
Quando parti em busca das histórias para essa pauta, não pensei que me surpreenderia tanto. Cheguei em uma manhã nublada de uma terça-feira, sentei em um banco no pátio da casa, pude observar aquela rotina. Tão comum. São muitos adolescentes que dividem espaço, experiências de vida.
Mas são jovens, fazem brincadeiras, perguntas. A beleza que existe em um lugar que acolhe com tanta dedicação jovens que precisam de apoio foi gratificante em meio aos relatos duros que os fizeram chegar até esse novo lar. Quando pude conversar com um dos adolescentes,
fui recebida com certa timidez, e um pouco de curiosidade também. No fim da conversa, risadas, descontração. Mesmo arranhados por pesares, sempre um sorriso. Fui muito bem recebida pelos educadores e acolhidos do abrigo. Foi uma mudança pessoal de como encarar a vida.
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FUTEBOL
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cor
Juan Gomez
MUDANDO DE P
aixão não é um sentimento fácil de explicar. Você simplesmente se identifica e admira algo - ou alguém - e acaba se entregando totalmente. Mas, assim como vem, a paixão pode ir embora. Você já deve ter ouvido alguma história de apaixonados que, atualmente, não estão mais juntos. No entanto, você lembra a última vez que conheceu alguém que deixou de ser apaixonado por um time de futebol e passou a torcer para o maior rival? Difícil. Acredite ou não, isso realmente aconteceu com a médica veterinária Cristina*, de 42 anos, uma ex-torcedora fervorosa do tricolor gaúcho. Torcia, sofria, ia aos jogos frequentemente e, inclusive, era sócia do Grêmio. Cristina sequer pensava que um fato triste da história do clube feriria tanto seu sentimento de torcedora “imortal”. Tudo começou após o ato de racismo Incentivada contra o goleiro Aranha, pela mãe, ocorrido em meados de Cristina passou 2014. Para Cristina, a atia torcer para o tude, segundo ela, omissa Internacional da direção do Grêmio em e até começou a frequentar relação ao fato foi detero Beira-Rio minante para que uma forte mágoa nascesse. “Ali, já comecei a me desinteressar, me sentia mal torcendo por um time cuja torcida chama o oponente de ‘macaco’. Aquilo começou a me incomodar muito”, destaca.
A troca de time é uma mudança que mexe com sentimentos de torcedores da dupla Grenal Texto William Szulczewski Fotos Juan Gomez e William Szulczewski
Após esse acontecimento, Cristina parou de acompanhar não só o Grêmio, mas também o esporte em si. No entanto, alguns meses depois, após se tornar adepta à pratica do yoga – que a ajudou a despertar uma série de sentimentos – a veterinária resolveu acompanhar sua mãe colorada aos jogos do Internacional. “Era um programa massa, sem paixão, apenas pela diversão. Eu consegui assistir os Grenais da final do Gauchão sem sofrer, sem gritar, sem quase morrer do coração como acontecia quando torcia pelo | julho/2016 | 79
Juan Gomez
FUTEBOL
O caso de racismo contra o goleiro Aranha foi fundamental para a mudança de Cristina Grêmio”, diz. Acompanhar a mãe acabou se tornando uma atividade rotineira e prazerosa. Atualmente ela é colorada de carteirinha. De carteirinha mesmo, pois se tornou sócia do Internacional e, inclusive, possui uma turma de amigos que vai, quase sempre, aos jogos.
Sofrimento por “virar a casaca” A mulher que antes ia ao Olímpico Monumental, era sócia, acompanhava apaixonadamente, sofria e chorava, hoje torce para o arquirrival. Entretanto, essa mudança não foi fácil. Cristina começou a ser hostilizada por alguns torcedores da equipe gremista que passaram a chamá-la de traidora. “Foram os gremistas que ajudaram a despertar meu ‘coloradismo’”, enfatiza. Além de ter melhorado sua autoestima, Cristina tem tido sorte na torcida pelo Internacional. Desde que “virou a casaca”, como ela mesmo diz, o colorado não deixou o rival vencer o Gauchão, sem contar que o clube vermelho tem cada vez mais conquistado sua nova e ilustre torcedora. A bandeira vermelha e branca se tornou seu manto, e o Beira-Rio, a sua casa. “Agora está bem prático poder ir aos jogos, perto de casa para curtir 80
futebol com minha mãe e dar uma bela caminhada até o Beira, num domingo de sol”, enfatiza.
Ex-craque colorado agora é tricolor A mudança de time pode até ser difícil para quem é torcedor. No entanto, aqueles que tiram o sustento dos gramados tratam a situação como normal e corriqueira. Diversos jogadores, principalmente da dupla Grenal, já atuaram e fizeram história nas duas equipes. Um bom exemplo disso é o meio-campista Giuliano, que já jogou na Seleção Brasileira e foi craque do Internacional na Copa Libertadores da América de 2010. Atualmente, por força do destino e de sua vontade, o meia é ídolo no arquirrival. Giuliano Victor de Paula, de 25 anos, confessa que não ficou com medo ou receio da reação da torcida gremista quando foi chamado para compor o elenco do Grêmio. Entretanto, o jogador sabia que naquele clube teria uma grande missão pela frente. “Me senti preparado para um novo desafio”, revela. E a recepção no time azul foi a mais perfeita possível para o atleta. Além de não receber nenhuma reação negativa da torcida do Grêmio, o jogador caiu nas graças do torcedor em pouco tempo de clube.
Acompanhar os jogos do Colorado hoje é uma atividade prazerosa na vida da médica veterinária
A ligação com o Grêmio é tão forte que Giuliano descarta até mesmo qualquer chance de voltar a jogar no Internacional. “Sendo bem realista, isso é algo praticamente impossível de acontecer. Estou feliz no Grêmio”, revela. O meiocampista tem a consciência de que faz parte da carreira de jogador de futebol trocar de time, por isso a mudança é mais fácil para os que ganham a vida fazendo esse trabalho. A troca não é sentida profundamente nem pela família do jogador, que entende a sua profissão. “Minha família sempre torce para o time que eu jogo. Não acho que seja muito diferente para eles onde eu estou, eles são Giuliano Futebol Clube”, brinca o jogador.
Mudar de time é realmente difícil? Para o professor da Unisinos Celso Candido de Azambuja, que é mestre em Filosofia e doutor em Psicologia, a troca de time para os torcedores é realmente difícil, porque a escolha do clube tem a ver com opções pulsionais, afetivas e inconscientes. “Mudamos de opinião com mais facilidade, pois esta depende de avaliações mais racionais, menos afetivas. Quando estamos no campo das paixões, as escolhas são passionais, por isto torna-se muito mais difícil
trocar de time”, revela o docente que também é um dos autores do livro Filosofia e futebol: troca de Passes, publicado em 2012. Aliás, paixão e futebol são dois termos que andam juntos. Azambuja enfatiza que essa relação é visceral pois, por mais racional e técnica que seja a gestão profissional do futebol, a força das diretorias consiste na capacidade de despertar e manter a paixão dos torcedores. “Sendo paixão, a troca de times deve responder a um sentimento mais profundo que força o indivíduo, eventualmente, a fazer essa mudança”, revela. Para o professor, esse sentimento é muito comum entre gaúchos e brasileiros. “Futebol é um momento de transcendência, de alegria, de encontro, de superação, de autoi-
dentificação. O futebol, pelas forças pulsionais que carrega, casa bem com o espírito do povo brasileiro, cuja característica fundamental é o emocional”, destaca Azambuja. Além de ser uma idolatria para os brasileiros, o esporte é ainda mais amado dentro do Rio Grande do Sul, onde dois clubes tomam a frente na disputa de torneios importantes. Para o docente, o povo gaúcho tem uma marca guerreira, uma subjetividade competitiva que se nutre da rivalidade. E o professor, que é gremista, mudaria de time? “É difícil, com certeza. Mas, sendo o amor a maior força que nos move, ele poderia, eventualmente, levar a uma mudança.” (*) O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada.
OLHAR DO
REPÓRTER
Escrever a matéria sobre a troca de time não foi uma tarefa difícil. Difícil mesmo foi transformar em palavras um sentimento tão complexo vindo de uma entrevistada que abandonou seu time do coração para torcer para o grande rival. Uma mudança, confirmada na reportagem pelo professor Celso Azambuja, muito difícil de acontecer. A fonte que nomeamos de Cristina, por ela temer a hostilidade dos torcedores mais fanáticos, me deixou muito intrigado. Nunca havia visto – no mundo dos torcedores de futebol – alguém que deixasse tão claro que sua paixão mudou de arquibancada. Uma história única, muito difícil de ser encontrada e lapidada. Ela mostra que a paixão pelo futebol é, de fato, difícil de explicar. Fazer essa reportagem foi um aprendizado e uma vivência incrível.
William Szulczewski
Giuliano se identificou tanto com o Grêmio que até descarta, um dia, voltar para o Internacional
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PARTO HUMANIZADO
O RENASCIMENTO
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DO
parto A mudança de paradigma quando se trata da forma de dar à luz Texto e Fotos Rebecca Rosa
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A professora de yoga Gabriela usou a prática para se conectar com o bebê durante a gravidez
corpo da mulher é preparado para todas as mudanças durante o decorrer da gravidez até o momento de parir. Seguindo esta linha, se tudo está bem, o corpo também é preparado para o nascimento de uma criança de forma natural. Entretanto, com o avanço da medicina, os partos têm sido cada vez menos naturais. Técnicas a serem evitadas, segundo orientação do Ministério da Saúde, continuam a ser usadas indiscriminadamente, como, por exemplo, o corte do períneo sem consentimento. A taxa de cesáreas no Brasil é alarmante. No país, 56% dos partos são intervenções cirúrgicas. Esse número aumenta quando se trata da rede particular: mais de 80%, quando o recomendado é de que somente de 10 a 15% dos nascimentos sejam feitos através de cesáreas. Em muitos casos de cesárea, há reclamações de violência obstétrica, que vão desde a violência verbal e moral, até a manobra de Kristeller, que condiz em fazer pressão na parte superior da barriga para “ajudar” a criança a descer. A prática não é recomendada pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde. Janine Franceschi, 32 anos, enfermeira desde 2002 e hoje doula, conta que foi vítima da manobra de Kristeller em um de seus partos. “Eu chorava de raiva, porque estava com dor, entre contrações, num momento expulsivo do parto, e tinha uma pessoa em cima de mim.” Além da agressividade da prática, ela pode causar intercorrências gravíssimas à mãe e ao bebê, como ruptura uterina e até mesmo morte fetal. Gabriela Silva Dias, 34 anos, professora de yoga, conta que desde criança dizia que não queria sentir | julho/2016 | 83
dor quando fosse ter filhos. Porém, com seu crescimento e o conhecimento sobre partos, a ideia mudou. “Quando as pessoas vêm te falar de parto, é sempre algo relacionado a dor, a coisas ruins. Elas, sem querer, nos passam uma insegurança muito grande”, comenta. No dia 23 de maio, Gabriela deu à luz Ravi por meio de parto humanizado realizado na água, em sua casa. O sentimento de segurança é muito necessário no momento de ter um bebê. Segundo a enfermeira, educadora perinatal e doula Marta Sabocinski, 30 anos, a mulher deve resgatar seu protagonismo na hora do parto, que hoje está com os holofotes para médicos, medicamentos e aparelhos tecnológicos. A doula, que dá apoio emocional e físico para a gestante durante todo o período da gravidez até o nascimento do bebê, tem um papel muito importante no resgate desse protagonismo. “Para podermos ser donas do nosso corpo, precisamos saber, conhecer e ter informação. O empoderamento da mulher é uma construção muito interna”, afirma. Janine Franceschi tem o desejo de acompanhar suas doulandas para que nada de ruim aconteça a elas nesse momento tão especial da chegada de um bebê. “Me tornei doula para que nenhuma mulher precise passar pelo o que eu passei, essa é a minha inspiração”, relata. Janine e Marta fazem parte da Parto do Bem, equipe que conta com doulas, psicólogas, e enfermeiras obstetras. O grupo trabalha para que mulheres tenham o parto mais natural possível. O alívio da dor fica por conta das massagens relaxantes baseadas na Ayurveda, medicina oriental que preconiza o equilíbrio e a prevenção da saúde. Tranquilizante e aconchegante, a massagem é realizada pelas doulas. Suas mãos têm um quê de magia: a energia transmi84
tida, até mesmo num aperto de mão, passa segurança e confiança. O parto humanizado tem como objetivos evitar qualquer tipo de violência obstétrica e dar à mãe todo o conforto possível, possibilitando que ela tenha seu bebê onde bem entender. A escolha da posição na qual terá o bebê também é escolha da mulher. A posição mais conhecida e usada nos hospitais consiste na mãe deitada de barriga para cima e fazendo força para baixo. Segundo as doulas Janine e Marta, a posição não é a mais eficiente de todas, porém o que importa é que a mulher se sinta o mais confortável possível, sendo nessa posição ou não.
Humanizado em qualquer lugar
O parto humanizado não é necessariamente domiciliar. Segundo doulas, a mulher deve estar no ambiente onde se sente confortável e segura. Nem sempre esse lugar é a própria casa, sendo assim, é feito o encaminhamento da parturiente
para o hospital. Marta diz que, acima de tudo, ser doula é respeitar totalmente a cultura, as escolhas, as crenças e as decisões da mulher e da família. Cabe à doula opinar quando solicitada, mas a decisão é da parturiente sempre. O parto humanizado é muito bem aceito em alguns hospitais, inclusive da rede pública. O Hospital Fêmina, de Porto Alegre, que faz parte do Grupo Hospitalar Conceição, tem como excelência o atendimento à mulher. O chefe da ala de obstetrícia do hospital, Elio Bosa, com mais de 30 anos de profissão, é completamente a favor da prática de parto humanizado. “Aqui no hospital, temos alguns equipamentos e equipe médica preparada para realizar partos humanizados”, afirma. No hospital referência em atendimento à mulher, a taxa de cesáreas é mais baixa, cerca de 40% dos nascimentos precisam de intervenção médica. “Como somos um hospital também de alto risco, é inevitável que algumas cesáreas sejam feitas, para a saúde da mãe e do bebê. Porém o médico
Ravi nasceu de parto humanizado em casa, como a mãe desejava
“O médico está ali para intervir se preciso, e não para tomar uma decisão pela parturiente” Elio Bosa
Chefe da ala de obstetrícia do Hospital Fêmina
está ali para intervir se preciso, e não para tomar uma decisão pela parturiente.” Existe um selo chamado “hospital amigo da criança” que certifica hospitais que têm hábitos pré, durante e pós parto, de acordo com a humanização da prática. Ainda em 2014, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que garante auxílio financeiro aos hospitais que cumprirem uma lista de práticas relacionadas ao parto humanizado, como oferecer um ambiente acolhedor à gestante e garantir o acesso livre, 24h por dia, dos pais ao recém-nascido.
Governo e sociedade têm andado juntos para garantir um parto mais digno para todas as mulheres: sem intervenção cirúrgica desnecessária, com variadas formas não medicamentosas de alívio da dor, como banheira ou chuveiro, massagens ou bola de pilates. A vontade da mulher deve ser respeitada acima de tudo, e sentir-se desconfortável durante a hospitalização para o parto não é normal. O empoderamento feminino, aliado a medidas governamentais e ao apoio de profissionais bem preparados, é o caminho para um país com menos cesáreas e para o fim da violência obstétrica.
OLHAR DA
REPÓRTER
Ao mergulhar num mundo completamente desconhecido, o prazer pelo novo saber se aflora. Em minha reportagem, onde falo sobre parto humanizado e tudo o que o engloba, ouvi opiniões contrárias à minha, tentei reconstruir o meu pensamento do zero, como se nunca tivesse ouvido falar do assunto. Cada reportagem é um livro de histórias que temos para contar, é crescimento e amadurecimento. Sempre existe um ângulo pelo qual ainda não observamos. Conheci pessoas mágicas, chamadas de doulas: uma tarde inteira de conversa me abriu horizontes infinitos. Me senti acolhida, bem recebida e querida por aquelas pessoas. Refleti sobre os porquês de tudo e, principalmente, entendi o motivo pelo qual eu estava realizando este trabalho: minha paixão pela forma mais natural de todas as coisas. Saí diferente desta reportagem. Mais empoderada, tranquila e com muitas certezas que antes eram dúvidas. O jornalismo faz isso com a gente: transforma.
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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
NÃO ERA AMOR, era
posse Carol já viveu quase metade da vida em uma cadeira de rodas por causa do machismo Texto Vanessa Vargas Fotos Marina Lehmann
É
disputando espaço com os carros de passeio, motos e até caminhões na estreita Estrada Chapéu do Sol, no bairro Belém Novo, em Porto Alegre, que Carol Santos, 33 anos, nos guia até sua casa, a bordo de sua cadeira de rodas motorizada. Na carona vai Roberth, de dois anos, confortável no colo da mãe, comendo sua bolachinha e levemente envergonhado pela nossa presença. Atravessar a rua não é tarefa fácil. Os carros seguem rápidos e, além de não haver calçada, a via esburacada em alguns pontos dificulta ainda mais o acesso. Seguimos conversando por aproximadamente 500 metros até sua casa, onde vive sozinha com o filho. Entramos pela cozinha e é num cômodo 86
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meio sala, meio quarto, que nos acomodamos para ouvir a sua história. A casa é pequena e bem organizada para que haja o espaço de locomoção na cadeira de rodas. A história, em síntese, eu já havia acompanhado em seu blog “Carol Diversidade”, mas ouvi-la da própria personagem é muito mais real. Com apenas 17 anos, Carol teve o primeiro relacionamento abusivo. Carrega desde então as marcas da violência. Um namoro de aproximadamente nove meses que acabou justamente pelos famosos “sinais”: ciúmes e comportamento possessivo por parte do então namorado. Depois ela se apaixonou, desta vez por Marcelo, um colega de trabalho. Seguiu sua vida. O ex não aceitou bem. Parece irreal que alguém tão jovem possa acreditar que sua vida acabou junto com o namoro de adolescência. Mas, no dia 23 de abril de 2000, um domingo, Carol estava em casa com Marcelo quando seu ex chegou pedindo para conversarem. Ela o encontrou no pátio e foi firme na decisão de não continuarem o relacionamento. Foi nesse momento que ele sacou uma arma. Ela pulou sobre ele, o empurrou para fora do pátio e correu para dentro da casa, onde Marcelo dormia. Assustada, acordou o namorado e começou a trancar as portas, mas não teve tempo. Foi por uma janela que ele deu o tiro que lhe tirou os movimentos. Invadiu a casa e atirou também em Marcelo, cometendo suicídio em seguida, aos 15 anos de idade. Marcelo morreu na hora, o atirador ainda sobreviveu por dois dias no hospital. A tragédia só não foi maior porque Vera Lúcia, mãe de Carol, não estava em casa. Além disso, o atirador acreditou que Carol estivesse morta, por isso não atirou mais. “Eu estou viva porque fechei os olhos para não ver o Marcelo morrer, ele caiu 88
Carol está na cadeira de rodas há 16 anos, vítima de um tiro disparado pelo ex-namorado
na minha frente”, lembra ela. Foram meses na cama, sem nem tentar a cadeira de rodas. “Achei que a minha vida tivesse acabado, que nunca mais ia namorar, que ninguém ia me querer”, recorda. O ânimo foi voltando aos poucos com o apoio da mãe. Levou seis meses para conseguir sair de casa. A história dessas duas mulheres nunca foi fácil. Vera teve Carol com apenas 14 anos. Adolescente, com uma filha bebê, ela perdeu a mãe e não demorou para que passassem fome. Ela conta com detalhes o dia em que achou que iriam ganhar alimentos e auxílio. Foi o que lhe disse uma irmã. Como ficou contente. Colocou uma roupa bonita em Carol, se arrumou e esperaram o carro “do governo” vir buscar. Era um carro preto. “Tenho pavor de carro preto”, exclama Vera. Ela não lembra bem o nome do órgão governamental, só lembra que tiraram Carol dos seus braços, alegando que ela não tinha condições de cuidar, mas a
deixaram, também menor de idade, sozinha e passando fome. Depois de mais de um ano, a mãe conseguiu recuperar a filha, com a ajuda do companheiro, com quem foi morar depois que levaram Carol. Foi mais um relacionamento complicado. Teve mais três filhos que ficaram com o pai quando ela decidiu ir embora e recomeçar a vida ao lado da filha Carol. Mãe e filha sempre se apoiaram nas situações mais inimagináveis, mas, mesmo assim, Vera garante que esses primeiros meses após o crime foram os mais difíceis. A mãe não sabia como lidar com as limitações que, de uma hora para a outra, a filha passou a ter. Precisava sair para trabalhar e deixar a filha na cama. Para isso, até contou com a ajuda de vizinhos. Depois de dois anos, Carol foi para Brasília em busca de tratamento especializado no Hospital Sarah, de reabilitação, e foi ganhando autonomia. O que demorou mesmo a passar
“Achei que a minha vida tivesse acabado, que nunca mais ia namorar, que ninguém ia me querer” Carol Santos
Coordenadora do coletivo Inclusivass
foi a culpa. Por 13 anos ela se sentiu culpada, nunca vítima. Culpou-se pelo que aconteceu a si, mas principalmente pela morte de Marcelo, com quem tinha estado por poucos dias “que pareceram anos”.
Depois da culpa, o ativismo
Foi em uma Marcha Mundial das Mulheres que ela ganhou voz. Pediu o megafone e desabafou. Contou sua história e, pela primeira vez, soube que não era culpada. Que era mais uma vítima de violência contra a mulher. Daquele dia, no ano de 2012, em diante, Carol se empoderou. Ela passou por outra mudança: o feminismo e o ativismo entraram em sua vida. Hoje ela faz parte do Coletivo Feminino Plural, onde fez amizades que lhe deram força. Carol faz parte da coordenação de um grupo direcionado às mulheres com deficiência, o Inclusivass, criado em 2014. Não se culpou mais, não se
calou mais. Por onde passa leva sua história de vida e tenta mudar a vida das outras mulheres como pode. “Eu não seria quem sou se tudo não tivesse me acontecido.” O que nos tornamos é, sem dúvida, resultado de todas as mudanças que sofremos e da forma como as encaramos. Carol decidiu lutar por ela e por outras mulheres. Descobriu que podia mais, que a cadeira não era o limitador que pensava no início. Descobriu-se como mulher e, há quase três anos, como mãe. Durante a gravidez, lutou novamente contra as dificuldades de sua condição. Os médicos do posto de atendimento mais próximo não sabiam como lidar com uma mãe cadeirante, e ela teve que buscar tratamento em local maior e mais equipado. Não houve grandes mudanças. Lá também não estavam preparados para lidar com a situação. Foi uma gestação difícil, mas o sonho de ser mãe foi enfim alcançado. Hoje cria o filho Roberth, com o apoio do pai, com quem tem um bom convívio. Ela o cria para ser um homem que respeite as mulheres e os demais. Carol é mãe e exemplo vivo de que o machismo mata ou deixa marcas.
OLHAR DA
REPÓRTER
Desde o meu ingresso na universidade, em 2012, tenho “aberto a mente” para diversos temas que antes me pareciam mais distantes, ou para os quais simplesmente não atentava. A sala de aula já é um ambiente de discussão, mas, além disso, passei também a morar em um lugar onde as ideias fervem e os debates se formam: uma casa de estudantes. Por isso, e por acreditar que o nosso papel enquanto jornalistas deve ser justamente o de debater temas socialmente importantes, escolhi escrever sobre a violência contra as mulheres. Aqui contei a história de uma mulher que, ainda na adolescência, foi vítima de um ex-namorado e convive com as consequências físicas da violência vivida. Vejo muitas pessoas, de todas as idades e gêneros, questionando nas redes sociais e até em rodas de conversa a real necessidade do feminismo. Afinal, “machismo não existe mais”, alegam alguns. A partir disso, constatei que esse, infelizmente, ainda não é um tema “batido”. Pelo contrário, precisa ser constantemente discutido. Espero ter contribuído para isso.
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FRETE
A CAMINHONetA É PEQUE
preço é cama Conheça a história de Soneca, que, se não o mais antigo, é o mais conhecido freteiro de Viamão Texto Vinicius Ferrari Fotos Luis Felipe Matos
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“E
u estava contando aqui para o teu colega que pra essa cidade crescer mesmo ainda faltam morrer uns três ou quatro velhos que moram aqui no centro. Vê se tem cabimento aquela casa lá, por exemplo, em meio a tantas lojas! Eles não vendem as casas porque gostam de ver a mulherada passando de um lado para o outro. Esses velhos precisam morrer logo pros filhos venderem os imóveis pras lojas e o progresso chegar logo”, comenta Soneca, aos risos, quando me encontra em uma ensolarada, porém gélida, tarde de sábado no centro de Viamão, município da região metropolitana de Porto Alegre. Quando decidi levar o tema desta edição de Josefa ao pé da letra e contar a história de alguém que literalmente muda a vida das pessoas de lugar, decidi procurar nas redes sociais por uma pessoa que pudesse ser meu entrevistado. Após umas cinco menções ao nome de Soneca, percebi que estava aí a minha fonte: Soneca, o primeiro, senão o mais conhecido, freteiro de Viamão. Ele é tão conhecido na cidade que após essa pesquisa descobri que até minha sogra o conhecia e tratou de junto com o número de telefone me dar duas importantes informações: “A caminhonetinha é pequena, mas o preço é camarada”. De fato, as duas observações estavam corretíssimas.
Marcamos em frente a uma loja de eletrodomésticos e móveis, no centro de Viamão. Soneca é um senhor magro, com barba e bigode esbranquiçados pela experiência da vida e pelos 64 anos. A fala mansa e o modo delicado e atencioso de conversar conferiram um tom informal e bastante confortável à conversa que tivemos naquela tarde. A temperatura beirava os 10 Cº e, de braços cruzados por cima do blusão quente que vestia, buscando se aquecer no solzinho gostoso que fazia, Soneca começou a me contar a história de sua vida. Liceu Nunes da Silveira nasceu, cresceu, casou e criou os seis filhos em terras viamonenses. Em uma época em que o trabalho infantil era permitido, e sequer era chamado assim, aos dez anos começou a trabalhar como cobrador nos bondes que transportavam as pessoas do centro de Viamão até a área rural do município. Quando a atual Empresa Viamão chegou na cidade e comprou os bondinhos, Liceu continuou trabalhando com o transporte público. Foi aí que ganhou dos colegas cobradores o apelido de Soneca. O motivo segue um mistério até hoje, mas o apelido pegou, e todos o conhecem assim. Faz 25 anos que Soneca abandonou o transporte público para se dedicar a uma nova profissão a convite do grande amigo Wilson Arruda, aposentado da Corsan, ex-
Há 25 anos trabalhando com fretes, Soneca faz de quatro a cinco transportes por dia
NA, MAS O
arada
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vereador, ex-secretário municipal e por muitos anos colunista de vários jornais da cidade, portanto outro personagem bastante conhecido em Viamão. Em 1991 Arruda incentivou Soneca a comprar um caminhão e começar a transportar verduras e frutas da Ceasa até o comércio. Não demorou muito e os pequenos fretes começaram a aparecer. Depois vieram os pedidos de mudanças inteiras e, quando percebeu, Soneca já tinha uma nova profissão: freteiro. “As pessoas começaram a me pedir para levar uma coisa aqui, outra acolá, foi então que eu percebi que dava para ganhar a vida assim”, conta Soneca.
Uma nova cidade
Viamão faz divisa com Porto Alegre e é o sétimo município mais populoso do Rio Grande do Sul, com 251 033 habitantes. O apelido de cidade dormitório acompanhou o município por décadas por uma simples razão: com o valor pago por uma casa ou apartamento em Viamão é possível comprar apenas imóveis nas periferias da capital, o que explica o fato da maior parte da população trabalhar em Porto Alegre e utilizar o município apenas para dormir. Na última década, porém, este quadro começou a se modificar. Algumas indústrias se instalaram no município e o número de lojas e restaurantes, 92
“Às vezes eles me ligam pedindo pra eu fazer a mudança inteira, de uma casa para outra. Se oferecem para pagar o mesmo que pagariam para um caminhão grande e não se importam de fazer várias viagens. Aí eu vou, né?”
principalmente na região central, cresceu consideravelmente. O engraçado é que a brincadeira de Soneca sobre os moradores do centro não deixa de ter um fundo de verdade: o crescimento dos empreendimentos ocorreu justamente após a morte de algumas figuras idosas do município. Cada vez mais condomínios, horizontais e verticais, de luxo e populares, são erguidos em terras Viamonenses, o que aumenta a procura por estabelecimentos que forneçam bens e prestem serviços. Enquanto o “sonho” de Soneca não se realiza e as casas do centro não são demolidas para dar espaço para os empreendimentos, a saída encontrada pelos empresários é descentralizar os estabelecimentos. Próxima à área central do município, a Rodovia Tapir Rocha (RS 040) na última década recebeu seis novos restaurantes, entre grandes redes de fast food, filiais de estabelecimentos sediados na capital e redes locais. A Viamão que encontramos naquele sábado de 2016 é completamente diferente da Viamão que Soneca encontrou quando começou a trabalhar com fretes, em 1991: “A rua principal do centro era de saibro, chão batido. Não tinha nenhuma dessas lojas, era tudo muito diferente”. A rotina de Soneca começa cedo: todos os dias, de segunda a sábado, ele estaciona a sua caminhonetinha na frente da mesma loja de eletrodomésticos e fica aguardando algum cliente da loja comprar um item que não possa carregar sozinho ou que alguém telefone para ele pedindo um frete. “Tem gente que me liga dizendo que é filho de fulano, de beltrano e pedindo frete. Muitas vezes eu não lembro, são muitos anos trabalhando com isso, né? Além do mais, a idade vai batendo e fica cada vez mais difícil lembrar de nomes e rostos.” Há alguns anos, Soneca, por determinação médica, precisou comprar uma caminhonete menor do que os caminhões que estava acostumado a dirigir. O veículo atual é um pouco maior que uma pick-up popular, o que não o impede de fazer algumas mudanças grandes esporadicamente:
“Às vezes eles me ligam pedindo pra eu fazer a mudança inteira, de uma casa para outra. Se oferecem para pagar o mesmo que pagariam para um caminhão grande e não se importam de fazer várias viagens. Aí eu vou, né?”, conta feliz. Por um frete simples Soneca cobra de R$ 40,00 a R$ 60,00, dependendo do volume e do destino da carga. Durante todos estes anos mudando a vida das pessoas de lugar e transportando seus sonhos e planos, Soneca coleciona algumas histórias inusitadas, como a do dia em que foi parado em uma blitz da polícia rodoviária por estar transportando carga roubada. “Tem muito disso neste ramo: a pessoa liga pra gente, contrata o serviço e, quando percebemos, estamos em uma enrascada. Neste dia fiquei um bom tempo prestando esclarecimentos para a polícia, mas no fim foi tudo resolvido. Graças a Deus todos me conhecem aqui, e não foi difícil desfazer o mal-entendido.” Quando falei que todos conhecem Soneca, não se trata de força de expressão: durante os 40 minutos em que conversamos, três pessoas o abordaram, tanto para cumprimentar quanto para solicitar seus serviços, e uma ligação foi recebida. Era a vendedora de uma outra loja, nas imediações, avisando Soneca que nosso repórter fotográfico, Luis Fe-
Todos os dias, de segunda a sábado, Soneca aguarda na frente da mesma loja de eletrodomésticos algum cliente comprar um item que não possa carregar sozinho
lipe Matos, estava fotografando sua caminhonetinha. Quando terminou de esclarecer a situação, Soneca se virou para mim rindo e disse: “Eu nunca tranco o carro quando estou aqui no centro, e eles ficam preocupados com isso. Esses dias, quando entrei no carro, tinha um bilhete colado na direção: ‘da próxima vez eu levo’. Até hoje não sei quem foi, mas deve ser um dos meus amigos, né?”. Claro que sim, afinal, quem poderia ser inimigo de Soneca?
OLHAR DO
REPÓRTER
Quando meus colegas propuseram o tema mudança para a segunda edição da Josefa, brincamos que seria interessante fazer um perfil sobre alguém que faz mudanças literalmente, um motorista de caminhão de mudanças. O que era para ser apenas uma piada acabou se tornando a minha pauta de verdade. Minha família se mudou de Porto Alegre para Viamão quando eu havia acabado de completar um ano, e se você é um dos portoalegrenses que usa a expressão “Porto Alegre é um ovo”, você certamente não conhece Viamão. Enquanto conversava com Soneca, descobri que possuímos vários conhecidos em comum e dividimos muitas histórias. Escrever sobre uma figura tão querida pelos meus conterrâneos foi uma ótima experiência e, com toda a certeza, é isso que me encanta tanto nesta profissão: conhecer e reconhecer as pessoas, contar suas histórias, descobrir ou redescobrir figuras como o Soneca, cuja simplicidade e alegria encantam a todos os que o rodeiam.
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