Jornal Samambaia - Agosto de 2017

Page 1

jornal laboratório do curso de jornalismo da Universidade Federal de Goiás

ENTREVISTA

Como funciona um processo de denúncia na Delegacia da Mulher pela Lei Maria da Penha

goiânia, AGOSTO, 2017

nº 79/ ANO XVII

PERFIL

A influência das redes sociais na vida dos jovens e as estatísticas do cyberbullying

6

COMPORTAMENTO

Os desafios e benefícios na experiência da prática do ballet na vida adulta

14

10

samambaia Arte: Letícia Michalczyk l Edição de Capa: Fausto André e Larissa Ferraz l Diagramação: Ana Carolina Petry

O SILÊNCIO QUE GRITA Mulheres universitárias relatam sua convivência com a ansiedade pg. 8 e 9


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

- OPINIÃO -

O QUE OS OLHOS NÃO VÊM

S

Por Letícia Michalczyk | Diagramação: Gabriela Campos

aúde mental, em definições

E D I T O R I A L

RUMOR

gerais e comumente aplicadas, pode ser lida como o bem-estar integral, que engloba as esferas orgânica, psíquica e social do ser. Falar sobre saúde mental, entretanto, é percorrer diversos caminhos extremamente multifacetados e, por muitas vezes, desconhecidos. Tal falta de conhecimento se dá devido ao pequeno espaço de debate que o tema sempre possuiu na sociedade. Por muito tempo, o mal estar mental não foi trabalhado com seriedade por não ser um problema visível como os demais problemas de saúde. Porém, esse quadro tem começado a mudar. Atualmente, as doenças mentais vem conquistando seu espaço, mostrando que já não podem mais ser ignoradas. A proposta desta edição do Jornal Samambaia é trabalhar olhares sob essa nova realidade. O jornalista se encontra, então, no papel de desbravar essa mudança e esse tema, em suas mais variadas facetas. O que é saúde

mental? Em que ela pode nos trazer problemas? Quais são as alternativas para manter saudáveis nossas mentes em meio a vidas tão turbulentas? Ansiedade, anorexia e epilepsia se unem na reportagem de capa, trazendo reflexões sobre a realidade de quem lida com tais transtornos e sobre a força da superação, da qual a prática da Yoga se mostra uma forte aliada. Enquanto é preciso abordar faces que carregam tanto peso, compreendendo o quão urgente são as pautas sobre problemas mentais e suas realidades, auxílio e prevenção, é necessário, também, criar um laço entre faces que carregam força, resistência, atividade e esperança. Nossas páginas se casam de forma literária, abrindo espaço para temáticas como pressão e solidão, assim como estabelecendo uma linha tênue com a dança, a contação de histórias e práticas alternativas para uma vida mais saudável e feliz. Nessa trajetória, os estudantes de jornalismo da Universidade Federal de Goiás, produtores do jornal, convidam os leitores a se aventurarem no conhecimento das realidades às quais nossos olhos nem sempre se atentam.

- CRÔNICA-

Lima? Por Amanda Sales

O

centro da cidade ia meio morto por conta do horário, já no final do dia, quando os ônibus vão raleando e as pessoas vão achando o caminho de suas casas. Mas quem não tem casa vai chegando de mansinho e se instalando por ali mesmo. Os centros das grandes cidades abraçam todo tipo de gente. E eu voltando na última condução, andando rápido por medo ou por pressa. Um único estabelecimento permanecia aberto, um boteco. Atravessei como de costume na frente do botequim cuja decoração tosca os meus olhos já haviam decorado. Sentado na calçada, o mendigo de sempre. Mas por um motivo que eu não sei explicar os meus olhos viciados

pararam naquele corpo. Sujo. Bebum. Cheirando a mijo. E ele se levantou meio cambaleante. A dona do botequim que varria distraída a calçada me chamou num canto “cuidado, moça, que esse é doido”. Mas eu conhecia aquele homem. Antes de vista e agora, com seus olhos na altura dos meus, eu tinha certeza! Eu conhecia aquele ser maltrapilho! “Lima?” perguntei baixo para a dona do bar não ouvir. “Lima Barreto?!”. O homem começou a se aproximar de mim cambaleando por causa da bebida, do cansaço, da idade, do peso de uma vida toda na rua. E nos seus passos claudicantes eu via dor, indiferença, preconceito e

solidão. Tanta solidão... Mas não via loucura não. Eu via o escritor! Lima Barreto morreu 95 anos atrás nas mesmas condições desse mendigo na minha frente. Preto, pobre, alcoólatra. E doido. Escreveu a vida toda uma literatura da mais original possível. Criticou o estado, o sistema, criticou até os jornais para os quais escrevia, teve essa coragem. E morreu doido, internado em hospital para “alienado”. E o mendigo continuou se aproximando .”Lima”, tentei novamente. E me olhava nos olhos. Ele me ol-

hava, mas quem enxergou fui eu. Não era o Lima que eu via naquela cara imunda. Aliás, o Lima eu via também. Naquela loucura estavam todos os gays, todas as mulheres que gritaram, todos os velhos, todos os presidiários. E quem abortou. E quem roubou pra matar a fome. E quem mentiu pra proteger. E quem chorou em público. E os meninos de rua, os mendigos, os depressivos, as putas e quem fez o que bem quis com a própria vida. E o mendigo se aproximava. Eu repeti “Lima?”. “Não é Lima que eu chamo não, dona” e riu “fica aí repetindo Lima, parece doida”. E saiu rindo um sorriso meio sem dente que me deixou desconcertada. “Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.” Lima Barreto

samambaia

Ano XVII - Nº 79, Agosto de 2017 Jornal Laboratório do curso de Jornalismo Faculdade de Informação e Comunicação Universidade Federal de Goiás

Orlando Afonso Valle do Amaral reitor

Luciene Dias coordenadora geral do samambaia

Izabella Mendes monitora

Angelita Pereira de Lima diretora da faculdade informação e comunicação

Luana Borges produtora executiva

Turma de Jornal Impresso II edição executiva

Salvio Juliano Farias editor de diagramação

Turma de Jornal Impresso I produção

Rosana Maria Ribeiro Borges coordenado do curso de jornalismo

Turma de Laboratório Orientado diagramação


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

- SÁUDE E BEM ESTAR-

PANDEMIA DA ACELERAÇÃO MENTAL Foto: Fausto André

Fluxo intenso de pensamentos afeta mais de 80% da população Reportagem Adriel de Abreu Edição Juliana França Fotografia Fausto André Diagramação Amanda França

Fotografia conceitual, representa a velocidade desenfreada das ideias e seus efeitos mento para modular seu humor. Muitos são impacientes, ficam irritados facilmente e podem ficar agressivos. Muitas pessoas, ao pesquisar na internet sobre a síndrome, encontram a informação de que é necessária a mudança de hábitos para desacelerar o fluxo de ideias. Nesse sentido, ler, ouvir música, praticar meditação, desconectar das mídias sociais seriam ações que poderiam ajudar. Todavia, segundo Fonseca, essas atividades não são o suficiente para tratar a síndrome, pois, mesmo que o paciente as realize, o fluxo dos pensamentos continua a toda velocidade. Ela, como quem convive com a síndrome em sua própria mente e corpo – e como psicanalista –, adverte às pessoas sobre a medicina cibernética. Apenas pesquisas com a utilização da ferramenta Google não são suficientes, pois o tratamento da SPA precisa ser acompanhado por um especialista, que prescreverá a medicação para equilibrar as ondas cerebrais. Segundo a profissional, outro problema é a automedicação. Um paciente que sofra de dores abdominais e que encontre na rede virtual um remédio para gastrite, por exemplo, pode estar sujeito a desenvolvimentos de outras enfermidades. Há provas de que algumas dessas medicações podem atrapalhar a química do cérebro, ocasionando doenças psicossomáticas como ansiedade crônica, esquizofrenia, SPA, dentre outras. Marina relata que na sua infância já sofria de SPA. A seu ver, ela conseguiu aproveitar algo de útil de sua condição:

em certa medida, a síndrome a ajudava realizar suas tarefas com mais rapidez e precisão. “Enquanto uma pessoa realizava em média de 80 ordens de serviços, eu realizava 400 em um dia”, relembra ao falar de quando trabalhava em um banco. A Síndrome do Pensamento Acelerado, normamente, vem acompanhada por alguns sintomas, como explica Marina Fonseca. “Muitos têm problema de comportamento e comunicação. São gagos, tímidos, sofrem de

De segunda a quinta eu tenho monitoria de física, química e matemática; quinta tem monitoria de redação, sexta é estudo. Todo sábado a tarde tem simulado estilo Enem. Domingo simulados alternativos de vestibulares – que não são Enem – como UFU, UNIRV, UFGD, USP dentre outras. Eu tenho cerca de 27 professores. No cursinho você resume a sua vida acadêmica inteira em um ano, principalmente se você quer fazer me-

A

Síndrome do Pensamento Acelerado (SPA) é uma condição psicossomática que leva o indivíduo a desenvolver um fluxo intenso de pensamentos além do normal. Essas conexões neuronais são involuntárias e constantes, o que leva um desgaste químico nos neurotransmissores, afetando assim a saúde emocional e física do portador. Pessoas com SPA podem ter dores constantes em certas partes do corpo e seu humor altera com frequência. Estima-se que mais de 80% da população sofra desse mal. Estudos apontam que a sociedade em seu estado atual é um dos geradores e agravantes dessa doença. Demanda financeira, trabalhista, social e biológica são as principais responsáveis. No trânsito, engarrafamento, barulho, violência, aperto e terror; no trabalho: cobrança, esforço, mérito, fofoca, pressão, dor de cabeça; em casa: contas a pagar, comida, prestações, família. Hoje o trabalhador é obrigado a se destacar entre os demais. Essa competitividade faz com que a mente e o corpo se desgastem O fluxo de informação que passa pelo cérebro aumentou ao ponto de obrigá-lo a adaptar-se à hiperatividade. Marina Fonseca, paulista, 52 anos de idade e psicanalista há mais de 20, trabalha com pacientes que sofrem da Síndrome do Pensamento Acelerado. Segundo ela, que também já sofreu com a doença e hoje conseguiu estabilizá-la com o uso de medicamentos aliados à terapia, não existe cura para o SPA. A psicanalista explica que a síndrome é uma condição em que o paciente precisa aprender a conviver. Por isso, a terapia é realizada para a estabilização dos neurotransmissores. Os pacientes que sofrem com a síndrome, normalmente, tomam medica-

Enquanto uma pessoa realizava em média de 80 ordens de serviços, eu realizava 400 em um dia Marina Fonseca Psicanalista

TOC (transtorno obsessivo compulsivo) ou taquilaxia, trocando as palavras, já que o pensamento não acompanha a fala. Mas são pessoas normais como eu e você. Eu dou conta de falar com você porque aprendi a falar.”, diz Marina. Letícia Godoi, 20 anos, já faz cursinho pelo segundo ano seguido. Seu objetivo: medicina. “Eu acordo todo dia às 5:30 da manhã, minha aula começa as 7:00, tenho aula de segunda a sábado até 12:30, alguns dias tenho aulas o dia todo que são as quartas.

dicina, é necessário ter tudo na ponta da língua!”. A modernidade exige que a população seja mais hábil e mais informada. Pressão social, econômica, política, familiar e pessoal se torna um vírus; que ao estar incubado em um ser um dia pode eclodir adoecendo assim seu hospedeiro. Velocidade se torna sinônimo para a modernidade, que está em busca do tempo perdido; invocando assim o futuro que está por vir.


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

Uni duni tê, é o Sambalelê!

Foto: Marina Ferreira

Aliada àS escolas, a contação de histórias PRODUZ SABER REPORTAGEM Amanda de Oliveira EDIÇÃO Larissa Ferraz DIAGRAMAÇÃO Lethycia Dias

O

Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Vila Izaura, localizado na região de Campinas, é um dos muitos espaços que fazem parte de projetos da Rede Municipal de Educação de Goiânia, os quais realizam atividades lúdico-pedagógicas de contação de histórias em instituições educacionais. Em forma de espetáculo, a história oral e literária ganha gestos, sons, cores e proporciona um momento de aprendizagem, onde as crianças interagem de forma criativa. Meninos e meninas, entre um e três anos de idade, esperam eufóricas pela apresentação programada para a manhã de quinta-feira no CMEI. Omelete e Alexandre, integrantes do Projeto de Contação de História e Brinquedos Cantados, chegam com suas roupas coloridas, rosto pintado e um violão. Quando o espetáculo começa, as crianças não desprendem nem por um segundo sequer a atenção dos que, naquele momento, irão dar vida à história. Omelete e Alexandre apresentam uma narrativa que se constrói a partir do misterioso sumiço de um salame e de um sorvete colorido na casa do senhor Zé do Cravo e mescla personagens de diferentes cantigas populares. Durante a contação, os mesmos olhares atentos que buscam pela descoberta do ladrão também se distraem com as canções infantis que surgem no enredo, momento em que todos movimentam o corpo. “Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to não morreu rreu rreu”. A cantiga surge quando, ao chegar em casa e não encontrar o salame na geladeira, Zé do Cravo culpa o gato de Dona Chica e depõe na delegacia. Um bilhete, em código, havia sido deixado no ato do roubo: “Uni duni tê, salamê minguê, um sorvete colorê, uni duni tê”. “Além de possibilitar um processo consciente de expressão e co-

- CULTURA

O projeto “contação de história” chama a atenção das crianças em escola stemunhas oculares da história, delegacia denunciando o mesmo municação (gesto, voz, corpo), esta naquele momento só nós sabemos o roubo, em que o mesmo bilhete em arte - da contação - permite a conque vai se suceder. Dessa maneira, código foi deixado. O delegado, que strução de conhecimento sobre o o ouvinte fica louco para o próximo se chamava Lelevaldo mas tinha mundo através das histórias”, relata parágrafo, a próxima fala, o próxiapelido de Samba Lelê, lia o papel e Ivone da Cruz, que interpreta a permo gesto, para descobrir o que realfazia bolinha deles, jogando-as para sonagem Omelete. Para ela, o projemente vai acontecer”. o ar. Dona Chica, que estava na delto Contação de Histórias e BrinqueMais tarde, o filho do Conde, egacia com seu gato Totó para ver dos Cantados possui a intenção de o Sr. General, Terezinha de Jesus o que se passava, pegou as bolinhas colaborar com a construção de sae outros três aparecem na amassadas e as colocou beres e culturas ao “assegurar o diFoto: Marina Ferreira na bolsa. reito de interações Nesse momento e descobertas das as crianças dividiam a crianças”. atenção com a tentativa Foi evidenciade desvendar o grande do que o gato Totó mistério da história. “O não havia roubado prazer que as histórias o salame e o sorveproporcionam a quem te pois não escrevia as escuta acaba transnem sabia nenhum portando o ouvinte ao código. Nesse momundo da fantasia, onde mento a curiosiele vivencia as emoções e dade das crianças acontecimentos que ocorpara descobrir o rem com os personagens”, autor do roubo aurelata a contadora de menta e elas ficam histórias Valquíria Ducada vez mais atarte, graduada em Artes entas e ansiosas. Cênicas e que atualmente Shirlene Álvacursa mestrado em Perres, componente formances Culturais na do grupo Gwaya, Universidade Federal de da UFG, e Ciranda Goiás (UFG). dos Contos, da SecOmelete agora conta que retaria Estadual de Dona Chica culpava Rosa, Educação, acredita mulher do Sr. Cravo, pelo que a contação de roubo, alegando que ninhistórias se torna guém mais, além de Rosa, uma ferramenta poderia saber que ele tinha eficaz de aprensalame e sorvete colorido na dizagem quando geladeira. Rosa então deconsegue prender cide comprar salame, uma a atenção do pú- Música e cores são parte do visual adotado pelos contadores caixa de sorvete, um copo blico. “Somos te-


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

CULTURA Foto: Marina Ferreira

Goiânia com o trabalho de contar histórias. Valquíria Duarte também desenvolvia um projeto junto a Ivone e Alexandre na Secretaria Municipal de Educação. Nesse período, teve contato com professoras pedagogas que se interessavam muito no trabalho que desempenhavam nas escolas e pediam cursos de formação. Foi isso que motivou sua atual pesquisa de mestrado, que gira em torno da problemática de como desenvolver um trabalho cênico em performances narrativas com professoras pedagogas de um CMEI da Rede Municipal de Educação de Goiânia. “Para além de oferecer respostas prontas de como fazer, a pesquisa tem o intuito de investigar, propor e registrar possibilidades em se trabalhar com performances narrativas no âmbito escolar”, diz. A descoberta

Personagens abrem a possibilidade de vivências e interpretação de veneno, e colocar tudo em cima do piano, perto da janela, com a intenção de enfim descobrir quem era o ladrão. “Lá em cima do piano tinha um copo de veneno, quem bebeu morreu, o azar foi seu”. A arte de contar histórias é uma antiga prática em que valores, saberes e crenças eram transmitidos de geração para geração por civilizações que não possuíam escrita. “Além de

fornecer um leque de possibilidades de vivências, diversas informações, questionamentos e curiosidades, a contação de histórias, quando aliada às escolas, contribui para a qualificação do processo de alfabetização e letramento ao considerar a criança um sujeito de direito, suas vivências e experiências”, explica Ivone, que desde 2013 atende CMEIs e escolas da Rede Municipal de Educação de

A tentativa de captura do ladrão foi falha. O prato de salame estava vazio. Dentro da caixa de sorvete, outro bilhete: “Uni duni tê, salame lelê, um sorvete colorê, uni duni tê”. O copo de veneno também não estava mais em cima do piano. Rosa decidiu percorrer o caminho do ladrão, deu um salto no escuro e tropeçou no gato Totó, que estava jogado mole no chão. Teria sido o bichano quem tomara o veneno? Ou seria sua dona? Quase toda a vizinhança se aproximou, menos a Dona Chica. Encontraram o copo completamente vazio e Rosa pensou que quem bebeu possivelmente estaria doente. Correu para a casa de Dona Chica, que foi acusada de ser a autora do roubo e levada para a delegacia. “A contação se torna eficaz en-

quanto ferramenta educacional quando se escolhe uma boa história”, afirma Shirlene, que iniciou sua trajetória em 1998. “Uma história que dialogue com o projeto político pedagógico da instituição e que ensine através da narrativa comportamentos morais, valores, costumes, épocas, lugares”, completa. Valquíria, que também desenvolve um projeto de formação para professores na Secretaria Municipal de Educação (SME), considera que para além da leitura e da escrita, na educação, “a contação de histórias pode auxiliar na expansão da linguagem, na aquisição de conhecimentos, socialização, formação de hábitos e atitudes sociais e morais, aguça a sensibilidade, a imaginação e cultiva a memória”. É um mundo de descobertas. Apesar de terem chegado à delegacia, ninguém se encontrava. Foram até a casa do delegado e o gritavam sem parar: “Ô Samba Lelê, ô Samba Lelê”. Depois de um tempo uma mulher apareceu na janela do segundo andar anunciando: “Samba Lelê tá doente, tá com a cabeça quebrada, Samba lelê precisava é de umas boas palmadas”. Terezinha de Jesus surgiu com ares de dona da história. Pediu as bolinhas de papel que Dona Chica havia guardado e observou que possuíam a mesma letra e no último estava escrito “Lelê” ao invés de “minguê”. Na certa, uma distração. Samba Lelê era o ladrão! Levaram-no preso para o quartel e o entregaram para Francisco, cabeça de papel. Contam que o quartel pegou fogo, mas essa é uma outra história... *A história contada é uma adaptação do livro Uni duni tê, de Angela Lago.

Foto: Marina Ferreira

Ao final da contação de história, a animação toma conta das crianças que dançam e interagem com os personagens


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

“A mulher está mais encorajada a vir à delegacia” Delegada explica o mundo das denúncias contra a prática de feminicídio RepOrtAGEM Fernanda Peixoto EDIÇÃO Ana Paula Holzbach DIAGRAMAÇÃO Matheus Cruvinel Fachada da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM)

A ENTREVISTA A Delegacia da Mulher é uma delegacia especializada. Em quais casos a mulher deve procurar esta delegacia? Aqui na Delegacia da Mulher trabalhamos com os casos de violência doméstica, atendendo a lei Maria da Penha, que foi criada em 2006. São os casos em que a mulher convive com o agressor na mesma residência; em que o agressor é um parente, como pai, filho, irmão; em que a vítima mantém uma relação íntima de afeto, ou seja, quando a pessoa é um namorado, um companheiro e ambos estão em uma relação íntima. Importante lembrar que o agressor e a vítima não precisam, necessariamente, morar juntos. Os casos de feminicídio são atendidos aqui na Delegacia da Mulher ou são da alçada da delegacia de homicídios? Embora o feminicídio tenha a ver com a questão de gênero, os casos são investigados pela Delegacia de Homicídios, por uma questão da administração e de divisão de serviços. Todas as questões de feminicídio com que a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher teve um primeiro contato foram investigadas pela Delegacia de Homicídios. A tentativa de homicídio é investigada pela Deam, mas o feminicídio em si é investigado pela delegacia de homicídios. No caso uma mulher, que mora em uma cidade que não possui uma del-

egacia da mulher, e não quer realizar o boletim de ocorrência na delegacia do distrito, ela pode se dirigir a uma cidade que possua uma Deam? Segundo a lei, o fato é punido onde aconteceu. Por mais que não tenha uma Delegacia da Mulher dentro dessa cidade, o distrito tem que responder, registrar, fazer investigação, tem que elucidar toda essa situação onde ela aconteceu. E se por acaso não tenha plantão ou o crime ocorreu em um fim de semana e a delegacia estava fechada, então ela pode registrar em outra delegacia mais próxima que atenda aquela cidade. Quando a delegacia que estava fechada abrir, o boletim será encaminhado para ser realizada a investigação normal. Recomendamos que a ocorrência seja feita onde o crime aconteceu. Mas se, por acaso, não for possível ela não ficará sem atendimento, nós não iremos deixá-la desamparada. Vamos registrar, vamos pedir uma medida de proteção de urgência, realizaremos o que tiver de fazer. Até quando pode ser realizada a denúncia? Existe algum limite de tempo? Nós temos dois tipos de crime, que a lei Maria da Penha engloba: ação pública penal condicionada e a incondicionada. A ação pública penal condicionada refere-se a crimes de ameaça ou injúria. Já a ação pública penal incondicionada refere-se à lesão corporal. A ameaça ou injúria pode ser registrada, mas ela tem seis meses para representar ou para requisitar instauração de inquérito. Ou seja, ela tem seis meses para pedir o andamento deste procedimento. Esses crimes são mais específicos, por isso esse tempo. Agora o caso de lesão corporal, que é uma ação pública incondicionada, o problema que eu vejo é que se daqui um ano ela não realizou o exame médico ela já não tem as marcas, não é possível mais ter o exame de corpo delito. É claro que serão ouvidas as testemunhas. Mas eu acho mais complicado ser provado somente a partir deste tipo de indicio, o laudo médico é o melhor feito de se comprovar. Se ela fez o exame do IML e está ali atestado, ela pode registrar depois, não tem problema.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, dados de 2016, revelou que 11% das mulheres que sofreram violência, aqui no Brasil, procuraram a Delegacia da Mulher. Por que há um número tão baixo na busca pela delegacia? Depende de muita coisa. Muitas vezes a vítima não quer se separar. Ela tem o entendimento de que se ela não quer se separar, por que ela iria à delegacia? Ela sabe que a denúncia pode causar uma piora no relacionamento. E, às vezes, é por medo da reação dele, de que a partir do registro ele tome outra providência pior. Outras vezes é por dependência financeira ou dependência emocional. A dependência emocional acontece quando a pessoa ama demais o outro. Mas, muitas vezes, percebemos que é por causa do medo, pois há casos em que registramos um boletim e a vítima vem retira-lo logo depois. Mas a vítima pode retirar a denúncia? Com a Lei Maria da Penha, isso foi sendo selecionado. Quando o crime é de ação pública condicionado, ou seja, aquele que depende da vontade dela para dar andamento, para funcionar, ela pode retirar a queixa. Agora, quando o crime é de ação incondicionada, como lesão corporal, teoricamente ela não pode. Nesse caso, colhemos o testemunho dela, comunicando a retirada e mandamos para o juiz a informação que ela voltou atrás, mas, mesmo assim ele fará a audiência. A incondicionada será analisada pelo juiz, pois muitas vezes tem que ser verificado se a mulher não está sendo coagida a fazer isso. Pois não sabemos como está na casa dela. Ela pode ter ouvido ameaças como “ou você retira, ou eu vou te matar mesmo”. A Delegacia da Mulher foi criada depois que as vítimas relataram que muitos delegados, ao ouvirem suas queixas, não as recebiam com atenção ou pareciam fazer pouco caso. Existe alguma norma que determina apenas mulheres como delegadas?

Fotos: Fernanda Peixoto

A

pesquisa Datafolha divulgou no dia internacional da mulher, deste ano, os índices de violência contra a mulher no Brasil. Os dados revelaram que, em 2016, a cada uma hora 503 pessoas do sexo feminino sofreram agressão física. Apenas 11% delas buscaram uma Delegacia da Mulher. As mulheres que dizem ter sofrido agressão verbal, no ano passado, contabiliza mais um índice de 29% para as estatísticas. A delegada Bruna Coelho, da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), fala para o jornal Samambaia como a delegacia funciona e como ela pode auxiliar as vítimas.

Delegada Bruna Coelho da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher Não existe uma regra, não existe uma norma, uma determinação sobre o assunto. O que existe é uma orientação que o melhor são as delegadas mulheres. Primeiro porque sabemos que muitos crimes envolvem violência sexual e é muito difícil para a mulher chegar e relatá-la para um homem, sendo que, em casa, ela está tendo um problema com um outro homem. Então há a orientação de que aqui, na delegacia da mulher, todas serem delegadas. Mas nada impede que haja um delegado substituindo em uma situação esporádica, quando, por exemplo, está cobrindo férias. Isso não tem problema, não é proibido. No caso de mulheres cis, trans e travestis, elas podem realizar o boletim de ocorrência em uma delegacia da mulher? Se a mulher trans fez a cirurgia e judicialmente ela é mulher, nós realizamos normalmente a ocorrência. Colhemos os depoimentos e fazemos a investigação. Quando é o caso de uma agressão entre duas lésbicas também realizamos a ocorrência. Essa coisa de gênero é normal. Agora, se não for operado, realizamos a ocorrência, porém encaminhamos para a delegacia da área onde ocorreu o fato.


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

- COMPORTAMENTO -

ESPELHO, ESPELHO MEU do corpo À DITADURA DA APARÊNCIA GERA INSATISFAÇÃO REPORTAGEM Stefany Vaz EDIÇÃO Amanda França DIAGRAMAÇÃO Izabella Pavetits

O

s padrões de beleza acompanham a sociedade há milhares de anos e englobam tanto o olhar para a forma do corpo quanto para os modelos de roupas e cabelos. Desde os corpos esculturais da Grécia antiga até os modelos de hoje, esses padrões sofreram diversas alterações, em função do tempo e em função de localidade. Como os padrões variam drasticamente de acordo com cultura, época e ideologia de consumo capitalista, fica difícil delimitar ou se adequar a um formato que agrade a todos, e mais difícil ainda é acompanhar as tendências da beleza que a mídia sempre reforça e que mudam constantemente. A preocupação em se encaixar e ser aceito na sociedade surge em meio a essa instabilidade. Diferente do que muitos pensam, a professora de Psicologia Marilúcia Pereira diz que o processo de se preocupar com a própria estética tem seu início ainda na infância, não na adolescência, e pode refletir no comportamento social da criança e influenciar a prática de bullying e a não aceitação das diferenças. “Já na infância, ouvimos do adulto elogios que funcionam como aprovações para a entrada no grupo. E por isso, no período inicial de escolarização da criança, por volta de 4 a 5 anos, ela já traz conceitos no seu comportamento e, infelizmente, passa a julgar, seus coleguinhas, pelo crivo de beleza que o adulto a ensinou”, explica. Como a psicóloga ainda reforça, impor padrões é um erro, já que

“a princípio, a beleza não é algo que se possa padronizar. Ela é plural. À medida que o padrão de beleza classifica e exclui aquele que não se apresenta nesse padrão, se torna algo muito negativo para a sociedade”. Mesmo sabendo disso, pela forte presença da cultura que tenta enquadrar as pessoas em um molde, ocorre a busca por métodos muitas vezes invasivos e perigosos. Uma das ideias propagadas nesse contexto é a do “no pain, no gain” (sem dor, sem ganho), que dá a entender que é preciso sofrer para que se possa ter qualquer ganho e no final ficar feliz com os resultados. Às vezes o sofrimento vem em uma imersão desenfreada em dietas extremamente restritas e exercícios de musculação. No caso do Brasil, a procura pelo método das cirurgias é muito alta. Apesar de ter sofrido uma queda em quantidade de procedimentos realizados em comparação com anos anteriores, um levantamento de 2015 mostra que o país ainda ocupa o segundo lugar no ranking mundial em número de cirurgias plásticas, perdendo apenas para os Estados Unidos. De acordo com a pesquisa mais recente da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética (Isaps), no Brasil foram realizados mais de 1,2 milhão de procedimentos cirúrgicos estéticos no ano de 2015. Os números voltados para cirurgias desse tipo em adolescentes também chamam a atenção. Diferente da queda sofrida nos números dos adultos, o da juventude cresceu. Conforme outra pesquisa da Isaps, em 2013 foram realizadas mais de 113 mil cirurgias plásticas em jovens com menos de 18 anos no Brasil, o triplo do número de procedimentos nesse público que eram realizadas 5 anos antes. Como a Sociedade Brasileira de Cirúrgia Plástica (SBCP) recomenda, é necessário analisar muitos fatores antes da realização da cirurgia plástica em adolescentes, já que a mesma inclui riscos e divide opiniões entre especialistas da área. A SBCP salienta que “enquanto os mais velhos esperam um resultado que os diferencie dos demais, os jovens têm a expectativa de serem parecidos com outros jovens para se inserir socialmente”, por isso é importante que seja uma decisão tomada cautelosamente.

Publicação feita em um grupo fechado do Facebook com quase 500 mil participantes

Foto:Gabriela Gregório

ADEQUAÇÃO

REFLEXOS Em uma publicação feita em um grupo fechado do Facebook com quase 500 mil participantes, um membro perguntou: “Vocês estão satisfeitas com seu corpinho?”. Nos mais de 6 mil comentários, diversas respostas tanto de homens quanto de mulheres, a maioria responde “não”. Alguns até se culpam por serem como são como se fosse um problema seus corpos não serem “perfeitos” de acordo com os padrões de beleza. Em outros é possível notar uma dúvida, pois há oscilação de opinião. E em menor parte, alguns “sim”, vezes acompanhados de frases falando que aprenderam a se aceitar. É em meio à dificuldade de ser aceito e de se aceitar que muitas vezes surgem distúrbios físicos e psicológicos. “Muitos distúrbios alimentares e distúrbios da imagem do corpo estão ligados a essas tentativas de adequações ou, mesmo, à sensação de inadaptação e não aceitação em função da imagem corporal. Problemas como bulimias, anorexias, obesidade mórbida, depressão e, até mesmo, suicídio podem estar relacionados à questão da imagem do corpo”, lembra a professora Marilúcia Pereira. MODA Outro núcleo que poucas vezes é lembrado quando se pensa em padrões de beleza, mas que também sofre os reflexos das exigências impostas pela mídia, principalmente no meio da moda, são os homens. Esse é o caso do modelo Hector Daltro, 22 anos. Hector conta que começou a se importar muito com a estética por volta dos 13 anos, quando ele e outros amigos que não malhavam para “criar corpo” eram julgados pelos colegas da mesma idade e chamados de “maricas”, dentre outros apelidos maldosos. A vaidade e vontade de melhorar esteticamente, que é crescente nos homens, se refletem nos números de cirurgias plásticas desse público. A SBCP relata que, nos últimos cinco anos, a presença de homens em consultórios de cirurgia plástica quadruplicou, passando de 72 mil para 276 mil ao ano. SUPERAR Da mesma maneira em que pode haver favorecimentos por se encaixar nos estereótipos, não estar dentro deles também pode refletir negativamente na vida das pessoas. A estudante Iara Gonzales, 22 anos, é negra e sofreu desde a infância com julgamentos, machismo e racismo só por causa de ser muito magra e possuir cabelos cacheados. “Eu era muito magra, então sempre ouvia coisas do tipo: ‘mulher muito magra é feio’, ‘homem gosta de lugar pra pegar’”,

As linhas do corpo padrão diz. Com o tempo, desenvolveu muita dificuldade em se aceitar como era e, por isso, começou a alisar os cabelos. Iara fala que encontrou forças para assumir seus cabelos cacheados em 2013, quando conheceu o feminismo e começou a ver o empoderamento que o movimento pode trazer para as mulheres. “Desde então, venho aprendendo a me amar. Às vezes ainda tenho umas “recaídas” e começo a colocar defeito onde não tem. No ano passado, passei pela transição capilar e quando fiz meu big chop [corte que remove toda a química alisante do cabelo] ouvi de uma pessoa a seguinte afirmação : “nossa! Mas você é tão branquinha, não combina com cabelo duro’”, diz. FAZER DIFERENTE A estudante Bruna dos Santos, 26 anos, passou por muitas dificuldades por ter sobrepeso. Sofria para comprar roupas de numeração maior e até ofensas discriminatórias no trabalho em relação ao peso chegou a receber. Enfrentou um processo de emagrecimento de mais de 30kg em busca de mais saúde e hoje, apesar de sua aceitação pessoal esbarrar às vezes na dura imposição social de se adequar aos padrões de corpo magro, ela segue determinada. e cursa Educação Física. O objetivo de Bruna é ser uma profissional diferente dos que os que ela teve contato “Pretendo ajudar pessoas com o histórico parecido com o meu. Buscar qualidade de vida sem sofrer muito com esses padrões impostos”, diz. Para aqueles que sofrem com dificuldades de serem aceitos ou de se aceitar, é possível inverter esse quadro. A professora de psicologia, Marilúcia Pereira lembra que o processo não é simples, mas primeiramente basta tentar “buscar se desvencilhar do julgamento externo e perceber sua riqueza e sua beleza interna e externa. Compreender que a beleza é plural e que as diferenças são o que a compõem”.


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

- SAÚ

Vômito para acabar com o silêncio a partir da vida de duas universitárias REPORTAGEM Barbara Luiza EDIÇÃO Amanda Sales DIAGRAMAÇÃO Guilguer Ribeiro

E

(R)existência Anna Maria começou a ter epilepsia quando estava com nove anos. Nessa idade, ela não sabia o que tinha. A coordenadora de sua escola na época fez questão de lhe dar o diagnóstico. Dizia que Anna “fazia era teatro, queria era chamar a atenção!”. Quando foi ao médico, ele também a diagnosti-

Ele falava assim: ‘ninguém vai te querer, não!’. E eu acreditava Anna Maria Estudante Universitária

sumir cafeína e chocolate, e as crises tiveram seu fim. Mas o silêncio não. Um dos fatores que me faziam passar mal era a angústia de querer me comunicar e não conseguir. Quando eu falava, algum homem sempre me corrigia ou interrompia, levantando a voz. Isso me fez pensar que meu único lugar era na mudez. Muitas vezes quis falar na sala de aula, mas meu coração acelerou a ponto de minhas mãos começarem a tremer, a respiração ir parando e eu acabar cedendo e me calando. Eu via nos vômitos não simplesmente conteúdos gástricos, mas as palavras que estavam engasgadas na minha garganta serem vomitadas também. Anos depois, minha vivência no ambiente acadêmico me levou a desenvolver Anorexia Nervosa. Eu não era magra, e meus colegas faziam questão de me lembrar disso constantemente. Até que resolvi, então, parar de comer. Uma vez desmaiei e caí no chão na sala de aula. A pressão baixou em virtude da falta de comida. Alguns se preocuparam, meu melhor e único amigo me levantou do chão e me acolheu, mas a reação da maior parte dos outros estudantes foi o riso. Depois disso, uma colega, certo dia, me olhou e disse que falaria para minha mãe me dar um prato de comida, pois eu estava magra demais. Fui ao psiquiatra. Ele me disse que a síndrome não era tudo. A origem do meu problema estava, na verdade, em algo chamado Transtorno da Ansiedade Aguda. Então percebi que antes de todas as minhas crises eu estava cultivando expectativas sufocantes sobre algo que estava prestes a acontecer. Perdia inúmeras atividades escolares. Desde então até hoje, estudando na UFG, tomo remédios psiquiátricos controlados. Faço Jornalismo. Escrevo, por hora, essa matéria.

cou. Segundo o tal, era “só birra e falta de surra”. Anna era magra e, depois de menstruar, engordou cerca de 11 quilos. Nessa época, estava no sétimo ano. Ao entrar na sala de aula, foi vista por quem estava lá como “a gordinha que dava tremeliques”. Não tinha amigos. De acordo com ela, porque todos os seus colegas tinham vergonha de an-

dar em sua companhia. Começou a se mutilar, se bater, se morder de raiva. Tinha cerca de quinze crises convulsivas por dia. Seus pais estavam preocupados por não saberem o que a afligia. Achavam que ela deixava para estudar de última hora. Brigavam com ela. Anna começou a lidar com a doença e aprender a apaga-la. Mas sobre os outros, ela não teve controle. No nono ano, estudou com muitas pessoas evangélicas. Quando passava mal, não recebia apoio ou cuidado. Ouvia-os dizer que “era o capeta em seu corpo”. Todavia, passou por essa fase e entrou no Ensino Médio, quando fez amigos na escola, que lhe davam mais apoio e suporte. Os professores tiravam suas dúvidas no final das aulas e, se ela passasse mal enquanto estivesse fazendo prova, a escola permitia que fizesse depois. Ela se machucou de formas inimagináveis para qualquer um que não esteja em seu lugar. Quando magoada, triste e, consequentemente, ansiosa, passa mal. É sensível. Ainda no Ensino Médio, a estudante se apaixonou por um garoto, Arte: Karolin Koryl

u tinha dois anos de idade. Meu processo de crescimento foi muito bem demarcado periodicamente. A cada três meses, uma angústia muito grande tomava conta do meu corpo. Minha respiração era completamente encurtada e minha garganta se fechava. Eu sequer sabia o que era esse sentimento tão forte que me atormentava, só o sentia e não possuía controle nenhum sobre ele. Por isso, eu me odiava. Eu era derrubada, literalmente, por uma tontura muito forte, que fazia minha cabeça parecer estar saindo do lugar. Era levada pelos meus pais para a cama, por não conseguir ter controle sobre o meu corpo. Nas entranhas do meu cérebro, eu não sentia nada além de uma dor imensa que não me deixava sequer pensar em outra coisa que não fosse a própria dor, e no quanto eu gostaria que ela parasse. Assim que a dor parava, minha garganta se abria, e eu vomitava tudo que havia no meu corpo. Depois disso, eu ficava de cama, consciente, porém inválida. Não conseguia abrir os olhos, pois qualquer feixe de luz me fazia ter aquela tontura de novo. E, independente da luz, a sensação voltava constantemente. Vomitava o tempo todo, chegando a mais ou menos 4 vezes por hora. Após um tempo que variava aproximadamente entre três dias e uma semana de cama, com todos os cuidados que minha família me dava, a dor passava. Durante as crises, eu obviamente não ia à escola. Quando esses episódios começavam a acontecer no ambiente escolar, eu perdia o controle que mantinha sobre a minha aparência física por causa da dor, que me deixava pálida e feia. Era o que eu sentia nos olhares de meus colegas. Morei em quatro estados diferentes durante minha vida: Minas Gerais, São Paulo, Tocantins e Goiás, sucessivamente. Meus pais me levaram em

todos os tipos de médicos nesses estados, para tentar descobrir o que eu tinha e como fazer parar. Mas só em Goiás, quando eu tinha 11 anos, que um gastrologista enfiou um tubo no meu nariz – que descia pela minha garganta até o meu estômago – durante um dia inteiro, e descobriu o que era. Síndrome do Vômito Cíclico, o nome do meu rótulo. Tive de parar de con-

A ansiedade


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

ÚDE -

Foto: Victor Weber

Mulheres utilizam a prática coletiva de Yoga na UFG como uma alternativa de tratamento da ansiedade e do estresse

passava mal durante dias inteiros. Mas ela resiste. Em 2016, Anna Maria e sua família descobriram que o que a adoentava era epilepsia. O médico explicou para eles como funciona e disse que, com essa variação da doença, a tendência é piorar. Ela está, então, tentando ganhar a cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez o custo em clínicas particulares é de aproximadamente 90 mil reais. De acordo com o portal da Clínica Neurológica Dr. Arthur Cukiert, esse tratamento vem sendo aplicado há cerca de 50 anos. O procedimento só pode ser aplicado em alguns dos casos do problema, nos quais a pessoa não tem a alternativa de controlar as crises com medicamentos. Ainda segundo o site, existem duas formas de operação que podem ser realizadas. A primeira consiste na “remoção da área cerebral que está produzindo as crises”. Já na segunda, é feita a “interrupção do caminho do nervo ao longo do qual os impulsos que originam as crises se espalham”.

lembradas, e a fazem passar mal. Talvez seja o corpo querendo apaga-las. UFG Natália Beatriz Viana Peixoto é psicóloga, terapeuta holística e professora de yoga. Atua no Centro de Saúde da UFG como terapeuta, junto com outra colega psicóloga. Ela explica que há muitas pessoas na fila para o atendimento no local. Atualmente, cerca de 130 pacientes aguardam. “A gente faz o maior esforço para atender o maior número de pessoas possível, mas... é muito preocupante, e não adianta também a gente ficar aumentando o número de profissionais, precisamos ter formas de dialogar com a instituição para que ela seja mais protetora, no ponto de vista da saúde mental”, reitera. Natália explica que há burocracias na Universidade, além das próprias relações entre professores e alunos, que prejudicam o emocional dos estudantes. “Quanto mais o ambiente for favorável para o desenvolvimento verdadeiro de cada um, menos problemas de saúde

com o qual namorou durante três longos anos. Houve sucessivas traições do rapaz – além de mentiras sobre os lugares em que ele frequentava ou onde estava. Os dois terminaram. Logo após, a mãe do menino descobriu que ele usava drogas. Logo ele deduziu que tinha sido a ex-namorada que havia contado. A culpa era dela. Entrou na sala de aula em que Anna Maria estava, e a xingou repetidas vezes com a voz imponente. Exigiu que ela devolvesse tudo o que havia ganhado de presente dele durante o relacionamento. Anna ficou 12 minutos tendo crise, aos gritos. Um amigo gravou o ex-namorado rindo dela enquanto isso. Na sala de aula, um professor imitava as suas crises, fazendo graça. Estudantes riam. Anna respirou e uniu toda a sua força, raiva, mágoa e coragem e provou para a direção institucional que o docente estava fazendo isso, e que não era certo. Teve de dizer que, se não o demitissem, processaria a escola. Foi demitido. Toda vez que o ex-namorado passava perto dela no ambiente escolar, as crises se repetiam. Então, no meio do terceiro ano, ela se viu obrigada a trocar de colégio. Por exaustão. Mas as outras instituições de ensino não queriam aceitar a matrícula de Anna, por causa da epilepsia. Posteriormente conseguiu, enfim, se matricular na única opção que havia sobrado. “Depois eu ainda voltei com esse ex”, relata. “Ele falava assim: ‘ninguém vai te querer, não! Você está acima do peso, e dá esses tremeliques seus! O povo vai ter vergonha de andar com você, você não vai arranjar outro que suporte isso tudo não’. E eu acreditava”. Depois de um tempo, vendo que ele não estava lhe fazendo bem, terminou de vez o relacionamento. Entrou, então, em uma depressão grave, na qual

Quanto mais o ambiente for favorável para o desenvolvimento verdadeiro de um, menos problemas de saúde mental vão existir Natália Borges Psicóloga

Anna cursa hoje o segundo período de Pedagogia na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Com o tempo, a estudante vai perdendo a memória, por causa dos remédios e das crises. Todavia, as situações pelas quais ela já passou são

mental vão existir”, opina. Conclui também que atende mais mulheres do que homens. A terapeuta constata que a maior parte dos casos na UFG é de ansiedade e estresse. Ela diz que talvez a depressão

não esteja incluída nessa maioria pelo fato de que é mais difícil para quem a possui procurar atendimento – por usufruir de pouca energia, ter de se expor indo buscar tratamento já é um desgaste a mais. Por causa dessa grande demanda de pessoas ansiosas e estressadas, Natália Beatriz relata que fez um curso de formação em yoga e, aos poucos, começou a usar as técnicas desse exercício com seus pacientes. Então, a partir de conversas, gradativamente, a gestão institucional deixou que a psicóloga do Centro de Saúde liberasse alguns horários para a prática de yoga em grupo. Hoje, essa atividade ocorre toda segunda, quarta e sexta-feira, sempre às 17 horas, na Faculdade de Educação Física e Dança (FEFD-UFG). “A gente trabalha muito as técnicas respiratórias, liberação de tensões musculares, e consciências corporal, emocional e de saúde mental, em todas as práticas tem um pouco”, conta. Sintonia Anna Maria disse que a ansiedade a atrapalha muito, principalmente na faculdade. fazendo provas, a letra sai tremida, ela não consegue escrever, esquece a matéria. Algumas garotas da sala dela, mesmo testemunhando a gravidade de suas crises e de sua dor, ainda pensam que é fingimento. Escrevi essa reportagem com mãos trêmulas e dor de cabeça, duvidando de mim mesma por estar tendo a ousadia de falar sobre a minha própria história e pensando que não conseguiria terminar. Anna se fortaleceu sozinha. Depois de tudo que relatou, não há palavras no mundo que consigam dar conta da minha sinceridade emocionada e feliz ao dizer a ela que estamos juntas. “Isso de querer ser exatamente o que a gente é ainda vai nos levar além”, diz o poeta Paulo Leminski. Anna Maria gosta dessa frase. Hoje, eu também.


10

samambaia

Goiânia, agosto de 2017

- COMPORTAMENTO

RETRATO Foto: Caroline Álvares

REDES SOCIAIS PODEM INFLUIR VALORES CONFLITUOSOS NOS JOVENS REPORTAGEM Bruno Souza Destéfano EDIÇÃO Bruna Alecrim DIAGRAMAÇÃO Larissa Ferraz

F

Todas as ações que começam nas redes sociais ganham repercusão fora das telas ças de um passado que intoxica o presente e reverbera no futuro. A influência das redes sociais no jovem é nítida, segundo o sociólogo Nildo Viana. Ainda mais quando algumas pessoas, por passar momentos de maior vulnerabilidade, acabam sofrendo desdobramentos que abalam sua estrutura psicológica – como foi o caso de Fernanda. “As redes sociais também podem aprofundar o sentimento de isolamento e solidão, especialmente quando a experiência virtual é conflituosa. As notícias falsas e a exposição pública negativa também são outros exemplos de processo que afetam os ind i v í du o s”, comentou o sociólogo. O mundo virtual cria a aparência de uma realidade paralela, regida por leis próprias e singulares. Porém, a internet e, especificamente as redes sociais são, sobretudo, instrumentos criados no mundo real que

funcionam como parte da expressão da sociedade. O discurso empregado não possui autonomia suficiente para se separar de todos os valores sociais contidos nas relações humanas, para além de olhos mecânicos. Nildo Viana diz que a única diferença é a de que as relações em seu interior não são diretas, ou seja, são mediadas pela tecnologia. O virtual faz parte da mesma realidade que constrói a mentalidade das pessoas. Handersenn Shouzo Abe, psicólogo jurídico, entende que ambos os mundos não são independentes entre si, pois todas as ações que começam em redes sociais ganham repercussão fora das telas de computador, celular ou tablet, assim como as consequências dessas ações. “Os próprios traumas são causados por conteúdos ou pela forma como são passados, principalmente se alguém

As redes sociais também podem aprofundar o sentimento de solidão Nildo Viana Sociólogo

ernanda estava no primeiro ano do Ensino Médio e por mais tímida que fosse, se esforçava para manter contato com o máximo de pessoas possíveis. A solidão por vezes mutila a capacidade de até mesmo amar a si próprio e cultivar um pouco de autoestima. Aos trancos e barrancos, conseguia fazer a sua parte. Até o momento em que o aplicativo chamado “Secret” foi criado, em meados de 2013. Aplicativo esse que permitia que as pessoas publicassem segredos sem revelar suas identidades. Virou febre em sua escola. Todo mundo falava de todo mundo. Até que um dia, para a surpresa de Fernanda, os holofotes se concentraram em torno dela. Como não tinha o aplicativo, ela ficou sabendo dois dias depois do conteúdo dos comentários. A garota, hoje com 19 anos, se lembra de tudo o que foi escrito. “Cuidado, meninas. Fernanda, além de gorda, parece sapatão”. “Essa baleia mal cabe na cadeira porque não para de comer”. “Seja mulher e pare de andar como uma sapatão”. A partir daí, a vida de Fernanda não foi mais a mesma. Muitas pessoas, principalmente mulheres, pararam de conversar com ela. Na fila do lanche, todos os olhos prestavam atenção na quantidade de comida que a garota compraria. A situação ficou insustentável a ponto de não conseguir sair da sala de aula nem para ir ao banheiro. A insegurança de antes foi sendo cada vez mais consolidada. No ano seguinte, Fernanda temia retornar às aulas que mais pareciam um prelúdio do purgatório. A insegurança agora era sua mais íntima companheira. Porém, o sucesso do Secret havia passado. Em 2014, o aplicativo foi proibido no país por violar o direito à imagem, à privacidade e à honra, mesmo com a permissão de denúncias. As pessoas que antes a maltratavam sem pensar duas vezes estavam agindo como se nada tivesse acontecido. A brincadeira havia terminado, menos para a própria Fernanda, que continuará lidando com as lembran-

é exposto no mundo virtual de maneira que não deseja”. O problema não está especificamente ligado às redes sociais. Elas não têm força para influenciar positiva ou negativamente a vida de nenhum jovem. Um automóvel ou até mesmo uma faca são instrumentos que servem ao propósito de quem as utiliza. O mesmo acontece com o uso da internet. Handersenn ressalta que a intenção agressiva, que depende das condições internas e inerentes do sujeito, fala muito mais do que os meios usados. O carro é um meio de condução, mas também pode atropelar. A faca corta legumes, mas também pode ser usada como uma arma letal. As redes sociais permitem maior campo de participação em conversas sobre novas realidades, mas também podem reproduzir discursos conservadores, afetar vivências e permitir a particularização de seu conteúdo por quem detém, no seu interior, maior força e poder. “Na internet existem excelentes materiais informativos e produções culturais, porém, a maioria busca aquilo que os meios oligopolistas de comunicação e empresas capitalistas promovem. Esse é o caso das correntes de opinião existentes e que são reproduzidas na internet e nas redes sociais, sendo que a corrente de opinião predominante na sociedade é também predominante no meio virtual”.


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

ORTAMENTO -

11

O DO REAL Arte: Polly Nor

O

Especializados na investigação desses tipos de crimes. Dependendo do contexto e de qual é o tipo penal, os delitos são direcionados para uma delegacia em que cabe a investigação. “Nós não temos uma delegacia que vai abranger todos os cybercrimes. Por exemplo, se for um que é contra uma criança ou um adolescente, vai ser apurado aqui na DPCA. Se for praticado por outro adolescente, ela vai ser apurada pela Delegacia de Polícia de Apuração de Atos Infracionais (DEPAI)”. Paula Meotti, contudo, diz que a visão da Polícia Civil é de construção desse novo cenário. “Existem grupos e delegacias que tem muita expertise para investigar esse tipo de crime. Nós temos a Academia da Polícia Civil do Estado de Goiás. Ela tem diversos cursos voltados especificamente para a apuração de cybercrimes. À medida que formos caminhando, existirão cada vez mais crimes virtuais. Está tudo informatizado, está tudo conectado. Realmente é importante que todos os policiais tenham essa competência”. Ainda segundo a delegada, os principais casos de crimes virtuais têm conexão com distribuição e armazenamento de material pornográfico infanto-juvenil, e incitação de crianças para a prática de crimes libidinosos por meio da internet e das redes sociais. “O que mais a gente percebe hoje é esse tipo de crime. Muitos pedófilos usam as redes sociais para ter acesso a essas crianças”. Devido ao medo da reação dos pais, Fernanda não denunciou os

abusos que sofreu no aplicativo. A época dos insultos passou, mas as marcas ainda dominam seus pensamentos. A delegada Paula Meotti comenta que os meios utilizados para os crimes virtuais não servem de parâmetro, salvo quando corroboram para a investigação. Quando as condutas podem ser qualificadas em lei vigente, o crime é caracterizado pelos mesmos critérios

previstos para o “mundo real”. No entanto, a lei que tipifica a LGBTfobia como crime ainda não existe. Dessa forma, a conduta “moralmente inadequada” é vista como infração penal, porém não nas circunstâncias corretas. “Em algumas situações, sinto que há uma lacuna legislativa em casos peculiares que não se enquadram em nenhuma lei específica”. Arte: Polly Nor

cyberbullying sofrido por Fernanda no extinto aplicativo “Secret” não é um caso isolado. Em Goiânia, a incidência de crimes virtuais é alarmante. Segundo a Delegada Titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Paula Meotti, vários crimes e tipos penais são cometidos dentro do contexto das redes sociais. “Alguns elementos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) formam aparato de defesa para jovens no campo virtual. No artigo 240, por exemplo, consta punição no ato de produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente”. Entretanto, mesmo com o marco civil da internet e o ECA – que prevê crimes como a indução do jovem a praticar infrações penais por intermédio de quaisquer meios eletrônicos – não há filtros particulares no campo de pesquisa do site da Secretaria de Segurança Pública e Administração Pública para verificar as estatísticas. Em Goiânia, inclusive, não há delegacia específica para cuidar de crimes virtuais. Mesmo pertencentes ao mundo “real”, esses delitos e/ou violações de direitos têm instrumentalização diferenciada do comumente investigado. Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Piauí, Pará, Tocantins, Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Mato Grosso e Rondônia possuem Delegacias ou Departamentos

CRIMES VIRTUAIS

Redes sociais são instrumentos criados como expressão da sociedade


12

samambaia

Goiânia, agosto de 2017

- COMPORTAMENTO

Corpo, alma que o ballet é uma opção para qualquer idade REPORTAGEM Victor Lisita EDIÇÃO Ana Carolina Petry DIAGRAMAÇÃO Juliana França

A

nimeire Kudo fez a inscrição no site da Faculdade de Educação Física e Dança (FEFD), da Universidade Federal de Goiás (UFG), para tentar uma vaga na turma de ballet para adultos. Ela achou que não fosse conseguir se matricular, pois havia 33 pessoas inscritas na sua frente. Três semanas após o início das aulas, a secretária da faculdade ligou para ela e perguntou se ainda tinha interesse em se matricular. “Na hora eu comecei a chorar, do tanto que eu tinha vontade!” Aos 48 anos, Animeire procurava uma atividade física para ter um fortalecimento muscular e encontrou isso no ballet. “Sem fazer nenhuma dieta, consegui emagrecer 4 kg. Para mim, foi melhor do que a academia.” Animeire viu que podia. Ela viu que não tem uma idade para praticar o que se gosta, não tem uma forma ou um peso, é preciso se dedicar e, o mais importante, acreditar em si mesma. O ballet não tem sido apenas uma experiência maravilhosa, ele também trouxe o conhecimento de seu próprio corpo, o que ela chama de “consciência corporal”. Ao final da aula, o sentimento de alegria e cansaço misturados à disposição de ter mais aulas durante a semana é o que fica. “No começo, eu estava com tanta disposição que meu corpo não reagiu de nenhuma forma negativa.” Relata também que cada aula é diferente. Na primeira vez que teve um circuito só de abdominais, todo mundo terminou com a barriga dolorida. “Nós precisamos da força do abdômen para manter a postura.” Em contrapartida, ela diz que hoje em dia seria tranquilo fazer o circuito novamente. Se você faz parte da porcentagem que possui o conceito de que o ballet só pode ser iniciado nos primeiros anos de vida, esta reportagem será um banho de água fria - e você não estará sozinho. No decorrer de toda a apuração para escrever este texto, aprendi tanto sobre esta modalidade de dança que estive perplexo por ela ser uma atividade tão próxima a mim

COMPROMETIMENTO Sem saber muito bem por onde começar, segui as orientações de minha editora e entrei em contato com a Coordenação de Extensão e Cultura da FEFD para conseguir uma entrevista com a professora que ministra as aulas de ballet para adultos. Informaram-me que a professora Alexssandra Sousa era quem eu buscava. Recolhi os horários de suas aulas, o local e, juntamente com a repórter fotográfica Thallya Rodrigues, parti para a FEFD. O banho de água fria começou assim que vislumbramos o salão de dança. Ele era quadricular e alto, grande como deve ser. O piso tinha um reves-

Aula de ballet para adultos na FEFD – UFG a professora informara que chegaria atrasada, então esperamos e, a cada minuto que se passava, mais pessoas apareciam e o salão se enchia de empenho. Assim que Alexssandra chegou, ela e a turma iniciaram a aula. Todos os movimentos (pliés, développés, dégagés, entre outros), nomeados em francês por convenção internacional, eram fluidos e ocorriam naturalmente com o passar da música clássica. Ao final, o sorriso em meio ao suor deixado por uma aula bem aproveitada é a imagem mais importante que trago comigo. Ainda que, para mim, a turma estivesse cheia, Animeire contou que naquela quarta-feira alguns alunos não compareceram. “Hoje

dégagés, é certo

e que, no entanto, nunca dei um passo para aprofundar meu conhecimento sobre ela. Como homem, cresci com os valores de que o ballet é uma prática que apenas meninas podem fazer e, após de 20 anos, desmistifiquei essa abordagem. Entretanto, durante todo o processo de pesquisa e entrevista, percebi que ainda tinha outros prejulgamentos. Para tanto, a temática do ballet possui suas protagonistas e não cabe a mim tomar frente de suas experiências. Cada uma, de professoras a alunas, relatou o que a dança significa para si e esclareceu muitas dúvidas que eu tinha e que talvez você tenha, mas nunca deu o passo seguinte para buscar respostas.

Foto: Thallya Rodrigues

Entre pliés e

Vença os tabus sobre peso, idade e encare. É uma atividade que dá muito prazer. Se você gosta, vá em frente Animeire Kudo Aluna da turma de ballet para adultos

timento do que acredito ser mogno ou um material similar, uma das paredes era coberta por espelhos de ponta a ponta (mas não chegavam ao teto), nas demais paredes havia barras que auxiliam no equilíbrio dos praticantes, além de três ventiladores fixos em três paredes – mais tarde eu entenderia o porquê. O salão não estava vazio, as alunas já estavam se aquecendo mesmo sem a presença da professora. O comprometimento de cada uma delas em estarem prontas para a aula só não é maior do que o engajamento na aula em si. Excepcionalmente neste dia,

estavam faltando várias pessoas, a turma é muito grande. Ao menos 70% fazem parte da comunidade acadêmica e são pessoas jovens. Acredito ser a mais velha.” Por ter entrado três semanas após o início da turma, Animeire perdeu um total de oito aulas e não teve a oportunidade de conhecer logo no começo os nomes dos passos e das sequências. “Eu pesquisei na internet todos os nomes e, junto com os outros, criamos um grupo no WhatsApp, em que postamos o que encontramos que pode ajudar na nossa aprendizagem.”

ADULTOS Atualmente, muitos estúdios de dança e academia adotam algumas modalidades do ballet. A professora Alexssandra esclareceu quais as diferenças entre tais categorias, a começar pelo Ballet Clássico, que possui uma estrutura e determinados passos que o bailarino precisa aprender em níveis definidos. Ela relaciona o método com o ensino fundamental, em que se tem o primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto ano, e a evolução do conteúdo em cada um deles. “Antigamente, existia o estereótipo de que adulto não poderia dançar ballet, porque ele deveria entrar no que chamamos de ‘baby class’, aos cinco anos de idade. Então, como fazer isso?” A partir dessa necessidade, é desenvolvido o ballet para adultos. “Essa modalidade procura lazer, condicionamento físico e resistência, e trabalha o alongamento, flexibilidade e força.” A bailarina acrescenta que há um cuidado com o corpo, pois existem corpos diferentes, o que quebra os preconceitos de que o ballet é apenas para quem é magro e sem musculatura nos braços e nas pernas. “Cada corpo tem suas especificidades e é preciso saber lidar com elas.” No projeto da FEFD, Alexssandra ensina a técnica do ballet, a nomenclatura e os passos, destacando que tudo é passado devagar até todas conseguirem chegar a uma execução mais rápida de cada passo. “Ele é uma combinação do que é necessário para que os interessados aprendam corretamente.” Alexssandra é do Piauí e mora há sete anos em Goiânia. Começou a praticar ballet considerada um pouco velha, aos 12 anos. Desde então, são 14 anos dedicados à modalidade, tanto é que veio para a capital de Goiás fazer o curso de Dança na UFG, porém não conseguiu passar no vestibular e seguiu para dar aulas no In-


samambaia

Goiânia, agosto de 2017

ORTAMENTO -

13

alma e coração

Ballet Health A professora Giselle Quintão, criadora do método Ballet Health, aponta que essa modalidade “é uma aula de ballet para adultos, entretanto, nela se procura trabalhar mais a musculatura e desenvolver melhor alguns aspectos de que o adulto precisa, como a coordenação e a flexibilidade”. “Nós usamos os movimentos do ballet para desafiar o corpo.” Giselle conta que a prática possui toda a base do Ballet Clássico e segue sua sequência, como o uso de barras, exercícios de chão e valorização do centro e diagonal. O acréscimo está na utilização em conjunto de muitos exercícios do Pilates, como a isometria, que consiste em manter o corpo em posição fixa por determinado tempo, a fluidez dos movimentos e concentração para, ao final, ter um trabalho melhor na musculatura. Durante o desenvolvimento do método, até mesmo sua avó participou das primeiras aulas. O ballet entrou na vida de Giselle por conta de um desvio no quadril que ela herdou de sua mãe, em que seus joelhos e pés tendiam a se voltar “para dentro”. Em Brasília, sua cidade natal, ela conseguiu um tratamento

em um hospital e seus médicos indicaram que ela praticasse ballet, visto que forçaria os músculos e os ossos “para fora”. Giselle tinha quatro anos quando começou a conciliar a dança com a fisioterapia. Após seu fêmur rotacionar o suficiente para parar com o tratamento, ela já havia se apaixonado pelo ballet. Desde então, são 23 anos de dedicação e prática. “Percebi que eu era realmente muito apaixonada pela dança quando fui escolher minha profissão.” Ela passou para Medicina, porém não quis cursar porque teria de parar de ser bailarina. Por fim, acabou conciliando Direito e licenciatura em Dança. Giselle também destaca como o Ballet Fitness se diferencia das categorias já apresentadas. “São usados poucos movimentos do ballet, as músicas fogem um pouco das clássicas, sendo utilizadas mais aquelas do gênero pop, com batidas de 130 bpm, e exercícios funcionais.” Ela também acrescenta que existem pessoas que começaram a prática quando adultas e, atualmente, já possuem um nível intermediário ou avançado na dança. No caso do Ballet Health, “o que altera é a aplicação dos movimentos. Por exemplo, utilizamos o plié na isometria, em que flexionamos o joelho lentamente e ficamos na posição por um tempo.”

cias passaram pela vida de Giselle. Atualmente, ela possui uma aluna que lutava contra uma depressão há quatro anos e começou a praticar ballet. As aulas seriam para que ela pudesse esquecer os pensamentos ruins que a importunavam e relaxar. Por ter ficado muito tempo em uma cama, sua postura ficou comprometida e Giselle garante que tudo isso está sendo trabalhado com ela. Outra discípula recebe aula particular por ter

Minhas alunas entram com certa resistência por conta dos estereótipos, mas depois eu vejo que o ballet trabalha a mente delas, rompendo os preconceitos e trazendo consciência do próprio corpo Alexssandra Sousa Professora de ballet para adultos

BENEFÍCIOS Em meio ao nosso bate-papo, Giselle destacou que o ballet bem feito pode funcionar como fisioterapia, visto que já deu aula para muitas pessoas com problemas no joelho. Ela conta que quando lecionava no Rio de Janeiro, o marido de uma de suas alunas foi agradecê-la dizendo que desde que sua esposa começou a praticar, muita coisa melhorou na vida dela. “Um outro benefício que vem além da sala de aula, é a vivência de cada uma das bailarinas no mesmo espaço.” Com 10 anos de sala de aula, muitas experiênFoto: Thallya Rodrigues

síndrome do pânico, e Giselle já percebe uma grande melhora nela. “Estamos trabalhando para ela pratique as aulas com as outras meninas.” Observando seus alunos, Alexssandra percebe que o ballet traz paz e uma tranquilidade muito grande para eles. Ao mesmo tempo em que a técnica é ensinada, ela consegue passar seu prazer para cada aprendiz. “O objetivo é aprender de maneira correta, mas ao mesmo tempo ser bom, agradável e confortável. Minhas alunas entram com certa resistência por conta dos estereótipos, mas depois eu vejo que o ballet trabalha a mente delas rompendo os preconceitos e trazendo consciência do próprio corpo.” Suas bailarinas se sentem bem porque estão conhecendo seus limites e vendo até onde o corpo pode ir. “Após elas começarem a entender o que é o ballet, a autoestima de cada uma aumentou significativamente.” Alexssandra tenta trabalhar com cada uma a consciência de que não se pode desistir facilmente de seus objetivos, além de que é preciso praticar arduamente para se alcançar a próxima etapa. FUTURO

Treinamento oferecido no Studio Dançarte em Goiânia

o horário serão divulgados no segundo semestre. Animeire garante que estará na apresentação, que é uma das mais clássicas do mundo. Seu sonho é chegar ao ponto de conseguir calçar a célebre “sapatilha de ponta”. Ela diz que sua turma está trabalhando as forças nas pernas para conseguir usá-las até o final do ano. Em contrapartida, Alexssandra explica que o trabalho de ponta demanda um preparo físico para os pés

Ao final de 2017, a turma de ballet para adultos da UFG que acompanhei irá apresentar o espetáculo O QuebraNozes. “Toda essa parte de sequências a que você assistiu é uma preparação”, contou-me Animeire. A data, o local e

stituto Tecnológico de Goiás em Artes Basileu França, onde lecionou por cinco anos. Durante nossa conversa, Alexssandra me contou que no início não tinha muita vontade de praticar; ela começou por aspiração de suas tias, porém ela não tinha condições financeiras de entrar na escola de sua cidade. Fez o teste aos nove anos e passou, mas não conseguiu comprar o uniforme, o que a levou a esperar um tempo. Nessa época, a vontade de praticar já tinha aumentado consideravelmente, até que o tempo transformou a dança em sua paixão. “O ballet mudou tudo em minha vida. Eu mudei de uma cidade por conta da dança e hoje vivo dela.”

e para a coluna, sendo que, se ela não tiver certo cuidado, é possível lesionar suas alunas. Giselle destaca ainda que depende muito do formato do pé, visto que quando a dançarina é nova, é possível fazer um trabalho melhor com a curvatura do membro. Já para o adulto é mais complicado, visto que o pé está muito mais enrijecido. Alexssandra lembra que a técnica não é o mais importante, mas, sim, a compreensão dela. “A técnica está pronta, está escrita, possui um padrão e existem diversos livros falando como se faz o ballet. O importante mesmo é como eu o entendo e coloco essa técnica no meu corpo.” Para Giselle, “todo adulto que tinha um desejo de fazer a dança na infância pode fazer atualmente. Não se ache velha, não pense que não vá conseguir. Só sabemos se vamos conseguir quando damos o primeiro passo para tentar. Nunca é tarde para fazermos o que sonhamos.” Perguntada o que mais faria falta se parasse de praticar ballet, Animeire é direta e diz que em hipótese algum pensa em parar. “Se acabasse o projeto aqui na UFG, eu procuraria outro local para continuar. No ballet você escuta e respira a música, assim como trabalha com o corpo. É corpo, alma e coração. Quem tem vontade de fazer e não praticou quando era criança, nunca é tarde para nada. Vença os tabus sobre peso, idade e encare. É uma atividade que dá muito prazer. Se você gosta, vá em frente.”


Goiânia, agosto de 2017

O L H A R E S

14

samambaia

1

2

3

PARA SEMPRE Textos da escritora Clarice Lispector (1920-1977), analisados neste semestre na disciplina Seminários Temáticos: narrativas do feminino no jornalismo e na literatura, ministrada pela professora Luana Silva Borges, serviram como ponto de partida para as imagens exibidas neste Olhares. As montagens foram desenvolvidas digitalmente em Jornalismo Ilustrado, sob orientação do professor Salvio Juliano Farias. A Língua do P, Uma Galinha e A Quinta História foram os textos utilizados como referência para a criação das ilustrações apresentadas �������������������������� nesta página.

5

4

6

7

9 8

Autores: Hugo Silva (1), Izabella Pavetits (2), Pedro Henrique Ferreira (3), Bárbara Luíza (4), Bruno Destéfano (5), Gabriela Campos (6), Domingas Inglês (7, Victor Lisita (8) e Caroline Brandão (9)


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.