Jornal Samambaia - Março de 2019

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JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS GOIÂNIA, MARÇO, 2019

MOBILIDADE SEGURANÇA E CONFORTO COMPENSAM INVESTIMENTO NOS SERVIÇOS DE VAN

ANO XIX

SAÚDE FALTA DE TEMPO AFETA ROTINA DE ATIVIDADES FÍSICAS DOS UNIVERSITÁRIOS

PARTICULARIDADES PRESENTES NA RELIGIÃO DOS ORIXÁS

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Foto: Carolina Lucas Ferreira

nº 82/

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TERREIRO

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O campo campo de de flores flores que que resiste resiste O pg. 88 ee 99 pg.

Arte: Letícia Dias | Fotos retiradas da Internet | Diagramação: Letícia Dias | Edição de Capa: Turma A de Jornalismo Impresso

MARIELLE VIVE


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Goiânia, março de 2019

- OPINIÃO -

PRATICIDADE SUBJETIVA

RUMO R

POR Paulo Emílio Medeiros | DIAGRAMAÇÃO: Augusto César de Oliveira

N E D I T O R I A L

as Ciências Exatas, uma pessoa pode fazer três linhas de contas e chegar à solução, enquanto o colega de estudo faz sete linhas para fechar o problema. Ambos chegaram ao “x” da questão, mas, as escolhas subjetivas dos indivíduos criaram rotas alternativas para a superação de um mesmo obstáculo. Assim também funciona o ser humano que busca resolver assuntos cotidianos e nem sempre percebe como sua posição na sociedade se manifesta nessa pilha de tarefas. Todos os dias, centenas de estudantes fazem o trajeto Anápolis-Goiânia de diferentes formas, mas andar de ônibus tem o mesmo conforto de uma van? Então, caro leitor, essa edição do SAMAMBAIA vem para mostrar que não é só se deslocar, a vida é um pouco menos crua e mais cheia de planos de fundo. Não foram apenas quatro tiros direcionados contra a vereadora carioca Marielle Franco, cada bala carregava mais significado do que pólvora. É preciso considerar as lutas dessa mulher, que fez sua voz ecoar nos gritos resistentes de quem lamentou sua morte.

É evidente que as pessoas que rasgam a placa homenageando o legado da ativista acham que os lutuosos estão com o "mimimi" exaltado. Vão logo em seguida pegar uma notícia qualquer de assassinato e tirar uma empatia dos calabouços da alma para pedirem a mesma comoção da tragédia da vereadora. Mas, também, alguns não percebem que eles mesmos atribuem significados para tudo e, por isso, julgam quando outros transcendem a natureza crua dos fatos. Ir para Trindade a pé pensando nas promessas de Deus não é a mesma coisa de ir para queimar gordurinhas. Os seres humanos são complexos naturalmente, mas eles têm dificuldades em compreender a complexidade alheia. O animal nasce e se preocupa em sobreviver o máximo de tempo possível. A humanidade não funciona assim. Ela preserva bairros históricos, mesmo com empreiteiras no cangote querendo construir novas moradias. Não há nada de supérfluo ou inútil nisso, é apenas uma maneira de fugir do “nascer, crescer e morrer” para se encontrar momentaneamente na eternidade.

Graças a Deus eu não sou afetado por ideologia nenhuma

Esse povo da Marielle tá chorando até agora... olha isso

- ARTIGO -

MEU CORPO NÃO É PÚBLICO

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assédio consiste em uma perseguição insistente e inconveniente que tem como alvo uma pessoa ou grupo específico, afetando a sua paz, dignidade e liberdade. A violência sexual no transporte público acontece diariamente com as mulheres. Esse fato está relacionado com o machismo e a objetificação do corpo feminino. Os ônibus cheios facilitam a violência, pois, os assediadores aproveitam a falta de espaço para, sem permissão, tocar de forma sexual o corpo das mulheres. Em meio à superlotação, ninguém percebe o crime que permanece oculto. Em um primeiro momento, isso gera um sentimento de constrangimento, mesclado com revolta. A sensação é de indignação, raiva, medo. As pessoas olham e não fazem nada, mesmo sendo perceptível o incômodo da mulher. Ninguém quer que ela denuncie, pois a viagem para casa, após um dia cansativo, será atrasada. Com isso, não se importam com o que a mulher está sentindo, com o fato de não poderem tocar o nosso corpo sem o nosso consentimento, independente da situação.

POR Nathália Matos | DIAGRAMAÇÃO: Augusto César de Oliveira | ARTE: Raíssa Guadalupe

No Brasil, a Lei de Importunação Sexual 13.718/2018, foi sancionada no dia 24 de setembro de 2018 e prevê punição de um a cinco anos de detenção para os casos registrados a partir da vigência da norma. Porém, nos casos anteriores, a aplicação da pena segue a orientação do Código Penal que prevê multa e até dois anos de detenção para os assediadores. Em Goiânia, a pesquisa “Avaliação do Transporte Público”, feita pelo Grupom Consultoria e Pesquisas, mostra que 34% das 329

mulheres escutadas sofreram esse tipo de violência no transporte público, 66,1% conhecem alguém que foi assediada e 18% foram abusadas e conhecem alguém que esteve nessa situação. Apesar desse número de violência no transporte público, na Secretária de Segurança Pública, em 2017, foram registrados apenas 81 casos de assédio sexual no geral. A informação de que os números de denúncias são pequenos pode indicar que as mulheres que residem na capital goiana não acreditam que os assediadores serão punidos. É fato que, para aquelas que sofreram assédio sexual, a ausência de uma punição eficiente, gera revolta. Porém, para além da ação corretiva, é preciso que esses homens sejam reeducados, de modo a prevenir que outras mulheres sejam expostas à esse tipo de violência. A sociedade também precisa ser instruída sobre a importância da denúncia. Na tentativa de combater o assédio em Goiânia, a Câmara Municipal aprovou o projeto de um veículo exclusivo para transporte de mulheres, denominado “Ônibus Rosa”. Essa medida apresenta problemas que vão

desde a reprodução de um padrão de feminilidade até a ineficiência do que foi proposto, pois, esses veículos só funcionam em horários de pico. Assim, além de terem que se adaptar aos assediadores, caso as mulheres utilizem o coletivo comum poderão ser culpabilizadas e os agressores continuarão sem punições. Não é segregando a figura feminina que o problema será solucionado. O vereador goianiense, Eduardo Prado, apresentou um projeto chamado “Botão do Pânico” que prevê a obrigatoriedade de todos ônibus públicos terem um interruptor que, quando acionado, envia um alerta para os órgãos de segurança informando a localização do veículo, para que possa ser abordado pela viatura que estiver mais próxima. Se essa medida for efetuada, talvez, os assediadores sejam punidos com maior eficácia. Ainda que o transporte seja público, o corpo da mulher não é. Por isso, não pode ser tocado sem consentimento. É nosso dever enquanto sociedade contribuir na vigilância sobre essa questão, porque quando o silêncio é incentivado, as pessoas defendem o lado do agressor.

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Ano XIX - Nº 82, Março Ano XVII - Nº 74, Maio de 2017 de 2019 Jornal Laboratório do curso Jornal Laboratório do curso de Jornalismo de Jornalismo Faculdade de Informação Faculdade de Informação e Comunicação e Comunicação Universidade Federal de Goiás Universidade Federal de Goiás

Orlando Afonso Valle doBrasil Amaral Edward Madureira reitor reitor

Luciene Dias Luciene Dias coordenadora geral dodo samambaia coordenadora geral samambaia

Angelita Angelita Pereira Pereira de de Lima Lima diretora da faculdade informaçãoe diretora da faculdade informação e comunicação comunicação

Luana Borges Denise Soares produtora executiva produtora executiva

Rosana Maria Ribeiro Sálvio Juliano PeixotoBorges Farias coordenado coordenadordo docurso cursode de jornalismo jornalismo

Salvio Juliano FariasFarias Salvio Juliano Peixoto editor de diagramação editor de diagramação

Izabella Mendes Letícia Dias monitora Editora gráfica Turma ImpressoImpresso II TurmadeAJornal de Jornalismo edição executiva edição, produção e diagramação Turma de Jornal Impresso I produção Turma de Laboratório Orientado diagramação


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Goiânia, março de 2019

- TRANSPORTE -

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VANTAGENS EM TRÂNSITO INFLUENCIAM A ESCOLHA PELAS VANS REPORTAGEM Caio Henrique EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Gustavo Soares

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serviço de vans se caracteriza como uma das escolhas de transporte dos estudantes que precisam se locomover para a universidade, especialmente, os que são de outras cidades e realizam um deslocamento pendular para estudar na capital, Goiânia. Diversos fatores entram em cena no processo que irá determinar a decisão final do transporte. Em muitos dos casos, após uma análise da situação socioeconômica e pessoal de cada universitário, a escolha acaba sendo pela van. A estudante Ana Raquel Barbosa, de Anápolis, conta que após ser aprovada na Universidade Federal de Goiás (UFG), não sabia como iria realizar sua locomoção. Ao pesquisar sobre algum ônibus que realizasse o percurso gratuitamente, através do serviço da prefeitura - ou outra opção que não exigisse firmar moradia na capital - encontrou a van. “Fiquei sabendo da locação de vans que acabou sendo uma das únicas alternativas que supria minha necessidade. Por ter um conforto razoável e promover uma segurança não só física, mas, também por oferecer uma garantia contratual, de horários e tudo mais”. Porém, não são apenas os lados positivos desse tipo de serviço que atraem os alunos, os fatores negativos dos outros meios de transportes também contribuem para a equação. “O custo para ir de carro é muito grande e eu não tenho veículo próprio. O uso do coletivo pode ser bem cansativo e complicado. Pela questão dos horários e tempo na estrada, acaba não restando muitas opções”, conta Isabella Vilasboas, estudante de 19 anos que percorre diariamente, na van, os 55 quilômetros que separam a saída de Anápolis do Campus Samambaia, em Goiânia. Contudo, a preferência pelas vans não se restringe apenas às pessoas de outras cidades. A estudante Ana Paula Langer, 18, explica como a sua experiência pessoal levou à escolha do transporte mesmo morando em Goiânia e, como a van consegue oferecer uma chance de repouso,

ÔNIBUS Das cidades ao redor da capital, apenas Trindade oferece um serviço de ônibus para os universitários que estudam em Goiânia. O coletivo deixa e busca os estudantes nos horários de aula, com opções de retorno no almoço, fim da tarde e noite. Uma ferramenta como essa, oferecida gratuitamente, contribui para que mais jovens tenham oporEstudantes reunidos em um dos pontos de vans, no Campus Samambaia tunidade de ir à universidade. deslocamentos entre municípios foo trabalho de ir de um lugar para o A dificuldade de locomoção rem atendidos pela rede de ônibus, outro é uma dor de cabeça. A van pode ser um empecilho no caminho devem ser realizados, preferencialacaba sendo, dos males, o menor”, acadêmico dos estudantes. Alexanmente, por esse modo. As vans atuaafirma Ricardo Moura, hoje formadre Magalhães, aluno de 20 anos, riam de forma complementar a este do em Arquitetura, antigo cliente de que também utiliza as vans, exemserviço, atendendo aquelas cidades diversas empresas de van. plifica essa questão. “Conheço várias que não provém da rede convencioSebastião Soares da Silva tem cinpessoas que, mesmo passando para nal de transporte”. quenta e três anos e atua como motoa UFG, não puderam fazer o curso rista há cinco. Natural de João Pesporque precisavam continuar moEXPERIÊNCIAS soa, Paraíba, veio para Goiânia ainda rando em Anápolis. A dificuldade e Como a UFG possui dois campi criança e logo teve contato com os o custo do transporte diário era muina cidade, geralmente as empresas meios de transporte coletivos. “Trato alto, então acabaram por escolher de vans focam em um deles, princibalhei vinte anos como motorista de uma faculdade mais próxima”. palmente as que realizam um desloônibus e cinco com as vans. Posso A situação não é válida apenas camento de algum outro município, dizer que é uma experiência melhor para aqueles que não podem utilizar com o propósito de facilitar o sere com mais conforto. O veículo é mea van ou outra espécie de transporte viço e ter uma praticidade maior ao nor e é mais fácil de dirigir, além de coletivo que exija uma mensalidade buscar e levar os alunos. Essa ação ser minha própria empresa”. ou um sacrifício de horário e rotina, resulta em uma diminuição de conO motorista corrobora com a como explica Alexandre. “Se tivesse corrência na área de atuação, uma justificativa dada pelos alunos soalgum transporte oferecido gratuivez que ocorre a divisão dos pontos bre a escolha do meio de transporte tamente com certeza eu utilizaria. de rota. coletivo privado e relata as perspecMesmo que os horários fossem apertivas para o futuro na área de trabalho. “Em assentos almofadados e reclináveis, os alunos são deixados em casa de maneira tranquila. EspePor mais que os horários sejam um pouco cansativos ro crescer cada vez mais, conseguir mais veículos e expandir a empresa”, me permite uma mobilidade segura e tranquila conclui Sebastião. Por outro lado, a pesquisadora ANA PAULA LANGER Érika Kneib ressalta a importância de se voltar o olhar para a situação Estudante do transporte coletivo e cobrar melhorias no serviço. “As vans atendem as necessidades individuais, Sendo assim, os clientes ficam mas não resolvem o problema maior tados e o caminho mais desgastansujeitos a certas imposições que por que é a mobilidade, já que se trata te, a economia valeria a pena. O que vezes acontecem. “A gente fica meio de um serviço privado. Quando o não é o caso dos ônibus regulares”. preso, né? Aumento de mensalidade, transporte coletivo for entendido A professora Érika Kneib, que deixar de ir em dias de evento porcomo prioridade pela sociedade e realiza estudos e pesquisas na área que a van não circula e alguns outros pelos gestores, haverá uma perspecde mobilidade urbana, explica como episódios raros, mas que por vezes tiva de melhora de mobilidade e a esses deslocamentos deveriam ser acontecem. Não tem o que fazer, não oportunidade de cobrar a existência feitos, caso a rede de ônibus possuístem como largar tudo e ir pra outra de fatores como segurança e oporse infraestrutura e a devida atenção empresa, o padrão se mantém. Todo tunidade de descanso”, avalia. dos gestores responsáveis. “Se os

E CONFORTO

questão relevante dentro do meio acadêmico. “Não tenho carro. Ônibus se torna perigoso porque fico até à noite na faculdade e teria que pegar dois para ir e dois para voltar. Por isso, escolhi a van. Por mais que os horários sejam um pouco cansativos, me permite uma mobilidade segura e tranquila, tendo a possibilidade de dormir no caminho o que não durmo à noite, além de ficar dentro do orçamento”.

Foto: Caio Henrique

SEGURANÇA


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Goiânia, março de 2019

- INTERCÂMBIO -

SEM INDIFERENÇA AO SER DIFERENTE CULTURAL COMO PEÇA FUNDAMENTAL NO APRENDIZADO REPORTAGEM Camila Lopes EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Lavínya Santos ILUSTRAÇÃO Abner Marcelo

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estudante Giuliana Olibano deixou a cidade de Mendonça, na Argentina, para cursar História na Universidade Federal de Goiás (UFG). O uruguaio, Gianfranco Heinze, foi o primeiro intercambista de Medicina Veterinária, deixando a cidade de Paysandú. Juan Carlos, veio da região norte do Peru e completou seis anos morando em terras brasileiras. Natural de Cabo Verde, na África, Melanie Sequeira cursa Relações Públicas há quase dois anos em Goiânia. Mesmo vindo de quatro lugares bem distintos, esses estudantes intercambistas têm relatos semelhantes sobre suas vivências a partir do contato com outras culturas. Segundo a Coordenadoria de Assuntos Internacionais (CAI) da UFG, houve um total de 42 estudantes, vindos de 11 países e programas diferentes de graduação estrangeira para a universidade em 2017. Não incluídos nesses números, vieram também três docentes de instituições argentinas. A proximidade geográfica entre esses países, Argentina,Uruguai, Peru e Cabo Verde faz com que seus habitantes tenham um estilo de vida aparentemente parecidos. As afinidades entre leis, hábitos, culinária e datas festivas são fatores que facilitaram a adaptação desses imigrantes aqui no Brasil. Bernardo Fonseca, antropólogo, explica que essas identidades paralelas existem devido ao processo de colonização razoavelmente parecido que esses países passaram. “Não é igual, mas tem seu grau de similaridade, então tem um registro ibérico, tanto dos espanhóis e portugueses na colonização americana. Isso faz com que tenhamos algumas aproximações”. Na Argentina, pode-se encontrar o mesmo amor pelo futebol que muitos brasileiros partilham. O Peru, assim como o Brasil, figura como um dos países latinos mais ricos em gastronomia. E, enquanto aqui o carnaval ocorre, usualmente, durante três dias, no Uruguai a festividade é estendida durante mais de um mês. Em

Cabo Verde não tem samba, mas tem batuque, todos cantados em crioulo, uma língua com forte influência do português. A Antropologia utiliza o termo “trânsito cultural” para explicar a troca de ideias e identidades e, conforme indica Bernardo, isso acontece quando uma cultura dialoga com a outra. EXPERIÊNCIAS Comportamentos, uma nova língua, culinária diferente, diversidades culturais fazem parte da nossa realidade globalizada. Contudo, dentre os elementos culturais, a comida e a música melhor evidenciam a pluralidade nos modos de vida. “Aqui vocês comem arroz e feijão todos os dias, no meu país, cada dia é um prato diferente", afirma Juan. Ao se mudar para Goiânia, Giuliana percebeu que a música argentina se assemelha com a brasileira, porém, o modo de celebração se difere. “O Brasil é um país que tem mais festas”, comenta. Gianfranco reconhece a festividade brasileira, mas disse preferir lugares mais calmos, apesar de se identificar com a música sertaneja. Estudar fora, portanto, é uma experiência que proporciona o amadurecimento por meio do contato com diferentes culturas e costumes. Adaptar-se ao um ambiente novo exige disposição e flexibilidade. Para o antropólogo, quando um sujeito sai de uma cultura e vai para outra, ele passa a ter que fazer o exercício de se relacionar com outras práticas sociais a partir de seus próprios referenciais. Fonseca afirma ainda que cultura também pode ser entendida como uma forma de descrever as diferenças que se tornam mais evidentes quando os sujeitos deixam seus lo-

cais de origem. “Quando uma pessoa viaja, ela está externando a percepção da diferença e falando que essa é uma cultura diferente da minha. Então cultura nada mais é que um descritivo para explicar as diferenças percebidas pelo sujeito”, explica. DIFICULDADES Quando se deixa um país, estado ou até uma cidade, as surpresas são inevitáveis. Os obstáculos que a pessoa terá que percorrer, torna a situação de morar longe ainda mais árdua. Para Juan, a ausência da família, amigos e gastronomia dificultam a adaptação. “Um dia eu liguei pra minha mãe e perguntei o que ela faria de café. Ela disse: arroz com carne ao suco. Não me lembro da última vez em que tomei um café da manhã

Para todos esses fatos, Juan nomeou de doenças sociais. "Assim como meu país, o Brasil é marcado por corrupção, serviços de saúde péssimos e pior ainda é a educação”. ADAPTAÇÃO Os desafios para se adaptar são variados e vão desde a aprendizagem do idioma até a relação com novas pessoas. Contudo, todas essas questões são facilitadas quando os intercambistas encontram uma recepção afetuosa. “As pessoas foram muito hospitaleiras. Meus vizinhos são ótimos e me dão conselhos” disse Gianfranco. Giuliana concorda com a opinião do uruguaio. “Eu gostei muito das pessoas daqui. Até agora não encontrei ninguém que se negou a ajudar e orientar as pessoas, e isso é funda-

É pela viagem que um imigrante consegue problematizar algo que no seu local é totalmente naturalizado BERNARDO FONSECA PROFESSOR E ANTROPÓLOGO

assim", relatou o peruano depois de admitir a saudade de casa. Gianfranco também compartilha com Juan algumas dificuldades. Ambos tiveram uma jornada difícil com o que eles chamaram de burocracia brasileira. “Tudo é papel. Todos dizem que é preciso voltar outro dia. As duas primeiras semanas fiquei cansado. Eu fazia uma coisa, voltava e tinha que fazer outra”. contou o uruguaio. Juan complementa a experiência: “Você tira um documento aqui, mas, para assinar, é preciso ir até ao outro lado da cidade”. Melanie, por sua vez, relata outra experiência que considera desagradável. “Meu choque foi com os ambulantes e as pessoas saltando a catraca nos ônibus. Eu me assustei muito quando vi. O carro de ambulância também passa toda hora”, disse.

DIVERSIDADE

mental pra quem viaja só”, afirmou a argentina. Juan corrobora dizendo que gostou de ter se mudado, mas que a experiência foi feliz porque encontrou pessoas que o trataram de maneira amigável. Dos quatro, três estudantes intercambistas passaram por um processo de adaptação com a língua. Melanie foi a exceção, uma vez que em Cabo Verde, além do crioulo, se fala o português. Mas, para Giuliana, Gianfranco e Juan que nasceram em países de língua espanhola, houve dificuldade. Juan, por exemplo, aprendeu a falar português ouvindo músicas sertanejas. Giuliana também não falava a língua e, por isso, sua primeira opção era a Espanha ou o México. “Pensei em fazer lá, porque falar espanhol era mais fácil”, relata. Apesar das dificuldades, no final de toda a experiência o que se obtém é um conjunto de conhecimentos. Para Bernardo, “existe uma construção social muito marcada na trajetória das pessoas pelas culturas. É pela viagem que um imigrante consegue problematizar algo que no seu local é totalmente naturalizado”, conclui.


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- BAIRROS -

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HISTÓRIA NO CENTRO DA CIDADE GRANDE REVITALIZAÇÃO EM CONFLITO NO SETOR MAIS ANTIGO DE GOIÂNIA REPORTAGEM Evelyn Alves Melo EDIÇÃO Letícia Dias DIAGRAMAÇÃO Rauane Rocha

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Foto: Evelyn Alves Melo

ampinas é o bairro mais antigo de Goiânia, apesar de ter sido uma das primeiras cidades do estado de Goiás. O ano de 1810 marca o início da história deste bairro, que começou como um povoado, depois se tornou arraial, vila e, somente em 1907, se tornou um município independente. A espera de 97 anos por sua autonomia e reconhecimento foi substituída por uma lógica de integração à nova capital do estado. Em 1930, a cidade se tornou um apoio para o estado e para Goiânia, que estava sendo construída ao seu redor. O bairro de traços e arquitetura tradicionais se misturava com a capital moderna e planejada. A junção com a nova capital trouxe mudanças estruturais para o bairro. Edifícios e casas antigas, que evidenciavam a trajetória histórica de Campinas, foram destruídos para abrigar comércios varejistas e atacadistas, conectados ao abastecimento da capital, além de outros usos. A evolução imobiliária tomou proporções inimagináveis, deixando os traços originais do bairro confinados ao meio de novos loteamentos.

Somente a partir do plano diretor de Goiânia de 1992, Campinas passou a receber maiores cuidados porque foi considerada área de preservação cultural. A moradora de Campinas, Millena Ferreira, que mora no setor desde seu nascimento, há dezoito anos, apresenta sua visão sobre o assunto. “A importância de um bairro histórico está ligada com a arquitetura empregada no local, as pessoas que ali residiram e a época em si. Um conjunto de fatores que criam uma identidade histórica, um recorte específico e único da humanidade. Preservar é manter vivo, é relembrar". Não foram muitas as ações tomadas no sentido da proteção como patrimônio histórico e cultural. Em 2003, no processo de tombamento do acervo arquitetônico e urbanístico art déco de Goiânia, pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), incluiu-se o bairro de Campinas, salvo alguns edifícios, como o estádio Antônio Accioly e a igreja Matriz de Campinas. Em 2011, após começar a construção de um prédio de 23 andares no meio do bairro, surgiu um questionamento entre os moradores sobre a necessidade de um empreendimento desse porte em um local histórico. Além dessa questão, houve a preocupação sobre o que isso acarretaria para a preservação do espaço, não só do bairro, mas também da memória de seus habitantes. Rodolpho Furtado, criador do Projeto Pigmentos que valoriza os monumentos de Goiânia através de fotos, comenta sobre a preservação desses espaços. “Um bairro como Campinas, fundado há mais de 100 anos antes de Goiânia, carrega uma evolução histórica que conta por que esse sítio se tornou o que é hoje e o

Novas construções disputam espaço com o patrimônio histórico

PRESERVAÇÃO E

Cidades históricas são museus abertos e vivos que estão constantemente sendo remodelados, revisitados e adaptados CRISTINA MARIA COSTA Arquiteta e Urbanista

que representou para o crescimento de Goiânia. Dessa forma, sua preservação significa valorizar a nossa própria história e reconhecer que ela nos levou ao que somos hoje". De acordo com a arquiteta e urbanista, Cristina Maria Costa, a preservação do bairro de Campinas também perpassa a transmissão das memórias entre grupos distintos em relação ao local. “Quando se preserva um bairro como Campinas, que possui mais de 200 anos de história em relação a sua jovem cidade que é Goiânia, 123 anos mais jovem, tem-se a possibilidade de mostrar aos mais jovens, um modo de viver, de fazer, que nós não conhecemos. E as memórias deveriam ser importantes para não repetirmos os erros passados, por exemplo. Cidades históricas são museus abertos e vivos que estão constantemente sendo remodelados, revisitados e adaptados”. PRESERVAR Conservar o que existe, fazer adequações que mantenha aspectos originais e impedir que o patrimônio seja destruído, se chama preservação. Preservar, por sua vez, é uma ação que está conectada diretamente com a ligação entre o objeto de afeição e seu cultivador. Então surge o questionamento: mudanças são um desrespeito ao seu sentimento original? Em relação a um espaço tão grande quanto um bairro, se torna possível imaginar o tamanho do sentimento envolvido entre os moradores com os monumentos e as histórias ligadas ao local em que vivem. A moradora de Campinas, Rosângela Silva, diz que “não se deve construir novos empreendimentos para não mudar a história do local”. Mas esse sentimento não é unânime. Rafael Gomes, outro morador do setor, discorda. “Não penso que novos empreendimentos são um desrespeito ao bairro. Infelizmente não tem como empreender sem fazer mudanças drásticas, então penso que o correto seria padronizar o empreendimento para que ele se adapte a arquitetura do bairro, ou, que procure um local mais adequado para investir”, afirma. Rodolpho, além do Projeto Pigmentos, estuda as histórias dos bairros de Goiânia, inclusive Campinas, e reconhece a necessidade de adaptar os espaços históricos para novos usos para que se os conserve na memória das pessoas,

porém, aponta cuidados. "A ambientação de um edifício histórico deve ser resguardada, uma vez que sua relevância não se restringe ao prédio em si apenas, mas a todo seu contexto. Dessa forma, é preciso respeitar o que é pré-existente no local antes de se considerar construir algo novo”, ressalta. REVITALIZAR Revitalização é uma série de ações planejadas, provenientes de um grupo ou comunidade que buscam dar nova vida a alguma coisa. No caso de um espaço do porte espacial e histórico de Campinas, seria mudar algo inerente ao visual do bairro, e isso pode mudar a concepção de algumas pessoas sobre revitalizar o local. Apesar do sentimento de preservação que se tem com o setor, vários moradores concordam que um plano de revitalização é uma demanda urgente. A moradora Deise Silva fala que a revitalização melhoraria a qualidade do patrimônio porque o deixaria mais atrativo e seguro, não apenas para visitantes, mas, também, para os moradores. Manter um edifício histórico sem revitalização ou sem uso social é um desserviço à memória de uma sociedade. “Querer preservar um edifício mantendo-o congelado no tempo e impedindo seu uso de forma contemporânea é o mesmo que não preservar. Para preservar a memória de um espaço é preciso que ele esteja integrado na rotina da sociedade. Acredito que manter espaços históricos parados no tempo e sem uso atual apenas ajuda a colocá-los no esquecimento. Mas dar novos usos a esses locais, fazendo com que as pessoas reflitam sobre a própria história, isso sim é preservar". Cristina Maria concorda que Campinas precisa ser revitalizada. A arquiteta afirma que o bairro é composto por pessoas e, portanto, capazes de promoverem modificações e adaptações necessárias. Embora não exista um consenso a respeito das decisões em relação a conservação ou revitalização do bairro é importante ressaltar que o patrimônio histórico cultural associado a Campinas vai além das estruturas arquitetônicas. O que realmente importa é que não se perca a memória afetiva ligada ao setor. Lembrar do que aconteceu no bairro e permitir que outras gerações conheçam sua história.


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Goiânia, março de 2019

- CULTURA -

PODER DO MILAGRE DA FÉ QUE MOVE AS PESSOAS À CIDADE DE TRINDADE

é. Duas letras, uma palavra tão pequena e com amplo significado para o dicionário: “sistema de crenças religiosas”. Para as pessoas que vão até Trindade, de diversas partes do Brasil, o significado é maior e mais profundo. Monyque Pereira, bancária de 36 anos, veio de Capitólio, Minas Gerais à cidade pela terceira vez e declara “é um encontro pessoal com Deus, é o acreditar que não existe o impossível. Vemos tantos milagres que simplesmente não dá para negar”. Na época da conhecida festa em louvor ao Divino Pai Eterno, que acontece entre o final de junho e começo de julho, passam por Trindade 3,5 milhões de pessoas, vindas das mais variadas partes do país. A tradição se iniciou em meados de 1840, quando encontraram o medalhão com a imagem da Santíssima Trindade e permanece até os dias atuais. Passam pela cidade, fora do período da festa, 1,5 milhões de pessoas, principalmente aos fins de semana, segundo dados da Polícia Militar e do reitor do Santuário Basílica. Estima-se que ao longo dos doze meses, passam por Trindade cerca de cinco milhões de romeiros. Mas, não se tratam apenas de números. São pessoas com histórias que as trazem até esse lugar. Percorrem longas distâncias, muitas vezes sem conforto e, mesmo assim, oferecem um sorriso no rosto ou lágrimas de emoções e agradecimento. Em frente à Igreja Basílica, à

Fiéis moradores de Trindade, rezando o terço do Divino Pai Eterno

segunda maior festa do Brasil, sendo a festa de Aparecida do Norte a maior do país. Acontece, todo mês de abril, uma reunião entre autoridades de órgãos que participam e colaboram com a organização da Romaria do Divino para definição das diretrizes da celebração. “Mal termina uma Romaria e nós já começamos a organizar a próxima. Essa reunião tem um papel fundamental”, disse o reitor do Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, Pe. Edinisio Pereira.

É um encontro pessoal com Deus,

é acreditar que não existe o impossível MONYQUE PEREIRA Bancária

espera de seu ônibus e das pessoas que a acompanham na excursão, a aposentada Marina Moreira estava visivelmente emocionada. Pela primeira vez em Trindade, a devota

“É uma experiência maravilhosa. Ouvimos tantas histórias emocionantes que fazem todo o trabalho valer a pena. Quando consigo, venho à Trindade aos finais de semana, porque fora da festa é mais tranquilo”, comenta. Quem também vivencia essas histórias são os vendedores de artigos religiosos que trabalham nas proximidades das igrejas. Maria Rita é uma delas, que tem o sorriso no rosto como cartão de boas-vindas aos clientes que se aproxiFoto: Débora Alves

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REPORTAGEM Débora Alves EDIÇÃO Evelyn Alves Melo DIAGRAMAÇÃO Alan Souza

veio de São José dos Campos, interior de São Paulo, um trajeto que pode durar até 20 horas. “Já fui em Aparecida do Norte e faltava conhecer aqui. Estou amando! Tudo muito bonito, é a realização de um sonho. Apesar da distância e do calor que faz na cidade, eu não poderia estar mais feliz”. A romaria de Trindade é a maior festividade no mundo dedicada ao Divino Pai Eterno e a maior celebração religiosa do Centro-Oeste. Além disso, se apresenta como a

PEREGRINAÇÃO

Bruna Santos, que mora no interior de Goiás, já fez parte de uma equipe que recebe os romeiros. Durante oito anos atuou como voluntária na igreja no período de festa.

mam. Trabalhando há cinco anos no ramo, ela diz não se ver fazendo outra coisa. “Aqui tem muita história de fé, as pessoas contam os milagres. Além de vender os artigos religiosos, vivemos um testemunho das pessoas, é maravilhoso fazer parte disso”. BÊNÇÃOS Diante de duas grandes portas e longos corredores, cheios de histórias, a Sala dos Milagres é uma das experiências religiosas marcantes para os fiéis do Divino Pai Eterno. O local recebe anualmente diversos pertences e fotos dos fiéis como gesto de agradecimento pelos milagres concedidos. Na época da romaria, o número de objetos deixados aumenta consideravelmente, segundo os voluntários da Igreja. Entre os itens deixados estão muletas, próteses, crucifixos e pinturas. Uma vez por semana, os itens são trocados para fazer um revezamento, devido ao alto número de pertences entregues por devoção. No acervo da Sala dos Milagres, existe a foto da filha de Maria

Aparecida, devota que, ao receber a notícia de que a caçula estava com câncer, recorreu à divindade. “Poucos dias após a promessa a médica disse que minha filha teve uma melhora significativa e, três meses depois, eu trouxe a foto dela na última sessão de quimioterapia”, relata. As pessoas que passam pelo local contam como os milagres, materializados nos objetos expostos, despertam a emoção. Longos corredores, cheios de objetos, fotos e histórias e cada pertence foi entregue por alguém que acredita no mesmo que Monyque Pereira, que não existe o impossível para Deus. Elas acreditam, acima de tudo, no poder do Divino Pai Eterno. Não é raro, portanto, olhar pelos corredores e encontrar pessoas com os olhos lacrimejando, pois, tudo no local representa a benção que alguém recebeu. Muitos romeiros percorrem o caminho até Trindade a pé. Diversos vem de longe a cavalo ou de carro de boi enfrentando quinze dias ou mais de viagem. Porém, no período da festa, um dos caminhos mais percorridos é o da Via Sacra na GO-060. A rodovia liga a cidade de Goiânia à Trindade e totaliza 18 km, passando por quatorze painéis, divididos em sete estações que representam a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. CAMINHADA Desde a reforma realizada em 2013, a GO-060, foi duplicada oferecendo 5,5 metros de largura para passagem. Foram plantadas mil palmeiras em toda a extensão da pista, além da grama. Os painéis da Via Sacra foram revitalizados e receberam nova pintura e, em cada painel, foram colocados três refletores de luz. O aposentado João Almeida faz esse caminho desde a infância e hoje, aos 72 anos, diz que continuará fazendo o percurso. “Já tive oportunidade de vir de carro de boi e a pé. Sou de São Luís de Montes Belos e sempre venho a Trindade agradecer. Enquanto Deus me der força e saúde vou continuar vindo, pois, na época da festa faço o trajeto da rodovia dos romeiros”, conta. A professora e devota Lucia Barcelos de 43 anos, que mora em Goiânia conta que aprendeu a tradição quando era moça. “Procuro vir todos os anos para agradecer ao Divino Pai Eterno as graças recebidas e para pedir proteção para minha família”. Lucia partilha com os filhos o costume e devoção que aprendeu com seus pais e demonstra que o envolvimento com essa manifestação religiosa é passada por gerações.


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- RELIGIÃO -

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VOZES DOS TERREIROS PELA NECESSIDADE DE PROTEÇÃO E INVOCAÇÃO DOS ORIXÁS REPORTAGEM Carolina Lucas Ferreira EDIÇÃO Evelyn Alves Melo DIAGRAMAÇÃO Letícia Dias

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ANIMAIS Em frente ao assentamento - representação do orixá na Terra - o ogã entoa uma cantiga específica para a matança do animal. Com uma faca própria para o ato, o axogun inicia sua função. Já sem vida, os miúdos do bicho são separados e servidos ao orixá que irá "comer". O couro servirá para a montagem do atabaque. O eje - sangue do animal - é utilizado para sacramentar o assentamento e outros instrumentos do terreiro. Por fim, a carne servirá de alimento para os filhos e demais visitantes do terreiro. A matança de animais gera debates calorosos dentro e fora das comunidades religiosas. Em agosto de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio, afirmou que “é irracional proibir o sacrifício de animais quando diariamente a população consome carnes de animais’’. A Constituição brasileira de 1988 garante a liberdade religiosa como direito e garantia fundamental, positivando o princípio em seu artigo quinto. O texto constitucional também protege a manifestação da cultura afrobrasileira, indígena e popular. Por outro lado, a Carta Magna protege a fauna e a flora vedando às práticas que submetam os animais a crueldade. Diante da dualidade de princípios, a mãe de santo Aninha de Oxum parte em defesa dos terreiros ao alegar que existe, entre as casas de santo, a conduta de que o animal precisa ser morto de forma rápida e que não provoque dor. Ela ainda diz que a matança é um dos momentos mais sagrados dentro do culto aos orixás, por isso merece respeito e compreensão.

Além de pai de santo, ele é historiador e pesquisador de Antropologia Social e Teologia, assim, aponta que no Batuque não é permitido que o orixá seja fotografado, filmado ou revelado sua presença na pessoa. Já no candom-

pessoa é mantida confinada no terreiro por 21 dias. Nesse período, ela passa por banhos e procedimentos secretos para, enfim, receber o orixá", explica. Fernando de Olodê afirma que nesse intervalo o devoto abandona a vida

Cada terreiro que resiste aos dias atuais são pequenas Áfricas FERNANDO DE OLODÊ Pai de santo

blé, é permitido que a pessoa saiba da presença do orixá nela, bem como o ato de ser fotografado. Os praticantes da religião acreditam que os orixás viveram na Terra e realizaram grandes feitos, por isso, ganharam do criador do universo, Olodumare, o domínio sobre elementos da natureza. Ao falar sobre as principais nações do candomblé, que se dividem entre Ketu, Jeje, Nagô e Angola, Mãe Aninha de Oxum alega que apesar de algumas distinções, as nações representam divindades parecidas. "No ketu, Oxum representa as águas doces e o ventre. Na Angola, é Dandalunda, o próprio elemento das águas doces e o grande ventre". INICIAÇÃO Após vinte e seis anos desde sua iniciação no candomblé, Ogã Marcos de Oxossi observa que as pessoas não pedem para fazer parte da religião, são convocadas. Ele aponta que existem os casos em que a confirmação se dá através do jogo de búzios, realizado por um pai ou mãe de santo. A iniciação se diferencia de acordo com a nação, como explica Mãe Aninha de Oxum. "No candomblé ketu, a

EXPOSIÇÃO O candomblé se assemelha a religiões como o cristianismo por possuir diversas vertentes de expressões, aqui conhecidas como "nações". O zelador da nação Jeje, pai Fernando de Olodê, explica que o termo serve para diferenciar segmentos, dialetos, liturgia e o toque dos atabaques. Ele ainda cita como exemplo o Batuque, muito popular no Rio Grande e uma nação do candomblé. "No batuque cultuam o orixá na essência primitiva, enquanto o candomblé cultua a essência do orixá Fiéis louvando o orixá da justiça, Xangô no ser humano".

mundana e renasce para o sagrado através da iniciação. Para ele, isso implica na restrição do uso de drogas alucinógenas, do ego e vaidade para se dedicar a algo maior, ao orixá. Depois do recolhimento, Mãe Aninha de Oxum explica que o iaô - filho de santo iniciado no candomblé - permanecerá de resguardo, agora podendo sair do terreiro. O resguardo consiste em um período de três meses. Tendo passado por esse processo há 20 anos, Mãe Aninha lembra que nesta fase o iniciado não poderá utilizar talheres para comer. Deve sentar-se no chão sobre uma esteira durante as refeições, fica proibido de usar outras roupas que não o branco e de comer carne vermelha. Fernando de Olodê ressalta que no candomblé, não se enaltece a pessoa. O que ocorre são oferendas feitas aos orixás, no intuito de serem merecedores das bênçãos que os adeptos da religião recebem. Nas nações Jeje, Ijexa, Oyó, Nagô, dentre outras, mulheres têm poder. Nesse sentido, podem se tornar um alagbe, pois, ele não tem gênero (ogã é apenas masculino). No candomblé, apesar das funções, nenhum gênero é superior ao outro. Foto: Carolina Lucas Ferreira

ogã é um dos primeiros a chegar ao terreiro em dia de função. Toma banho de descarrego, veste-se de branco, põe seus fios de conta e bate cabeça para os santos da casa. É assim a rotina do Ogã Marcos de Oxossi ao chegar na sua casa de santo, na zona sul de Goiânia. Iniciado no candomblé há vinte e seis anos, Marcos conta que essa é uma religião vinda da África, onde se cultuam divindades da natureza, conhecidas como orixás. No Brasil, uma das mais emblemáticas é Iemanjá, tida como rainha das águas e protetora dos pescadores. No dia dois de fevereiro, a festa em homenagem a santa recebe milhares de baianos e turistas na praia do Rio Vermelho, em Salvador. No local, pessoas trajadas de branco fazem uma procissão até o templo de Iemanjá, onde deixam os presentes que enchem os barcos que os levam para o mar. Em seu terreiro, próximo a uma movimentada rodovia de Aparecida de Goiânia, o pai de santo Fernando de Olodê, zelador de nação Jeje e praticante do culto aos orixás há 40 anos, explica que na África, os orixás são cultuados em regiões distintas e cada um da sua forma. De acordo com o pesquisador de religiões espiritualistas e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Goiás, Rafael Belmont, quando esses povos foram tirados à força de suas nações para serem escravizados, foram-se espalhando uma mistura de tradições que deram origens a outras vertentes do candomblé, como a existente no Brasil. Nas palavras do pai de santo, "cada terreiro que resiste aos dias atuais são pequenas Áfricas". Após cumprir suas funções na casa de santo, o Ogã de Oxossi senta para explicar que a função dele se diferencia do rodante, ou seja, ele não incorpora o orixá. O homem de postura firme e riso fácil afirma que a presença deles se faz necessária pela segurança do terreiro. "Depois do pai ou mãe de santo, o ogã é a pessoa mais importante dentro da casa", afirma. Marcos ainda conta que através do toque dos atabaques, os orixás são enviados da natureza. Dentre suas atribuições, as principais são o domínio da língua africana, o iorubá e

a responsabilidade pela montagem dos atabaques, além de chamar os orixás à Terra. É em meio a muito verde que a mãe de santo Aninha de Oxum nos recebe em seu terreiro na zona norte da capital. Para ela, dentre as várias ramificações de ogãs, os principais são aqueles que tocam atabaque, cantam e o axogun para quem cabe a responsabilidade da matança dos animais.

OGÃS NASCEM


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- RESILI

OS FRUTOS DE UMA HÁ UM ANO BROTAVA A RAÍZ DE MARIELLE FRANCO, HOJE FLORESCEM SUAS SEMENTES REPORTAGEM Laura Chaud e Lavínya Santos EDIÇÃO Rauane Rocha DIAGRAMAÇÃO E ARTE Letícia Dias

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ulher negra, lésbica, mãe, socióloga, defensora dos Direitos Humanos e vereadora eleita com exatos 46.502 votos pela cidade do Rio de Janeiro. Marielle Franco foi uma “cria” do Complexo da Maré e as condições do local em que nasceu e viveu orientaram suas escolhas. Sua militância política teve início após uma amiga do curso pré-vestibular comunitário se tornar vítima de bala perdida durante uma troca de tiros entre policiais e traficantes da comunidade.

Com a vida social e política voltada à militância antirrascista, feminista e contra ações violentas nas favelas, Marielle se formou em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) e defendeu sua dissertação de mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), com o título “UPP: A redução da Favela a três letras”. Mas ainda faltava algo. Em 2016, empenhou sua primeira candidatura ao Legislativo do município pelo PSOL e foi a quinta vereadora mais bem votada da cidade. Durante seu curto mandato - de apenas um ano e três meses -, propôs 16 Projetos de Leis (PLs), sendo cinco aprovados, somente após sua morte. Os projetos apresentados pela vereadora versam sobre enfrentamento ao assédio e violência sexual, valorização da mulher negra, assistência social e medidas socioeducativas. Na noite de 14 de março de 2018 houve a tentativa de silenciar o que Marielle representa. Após sair de uma reunião no bairro da Lapa, acompanhada de seu motorista Anderson Pedro Gomes e

sua assessora, que escolheu não ter seu nome divulgado, seu carro foi perseguido por um Cobalt prata por, aproximadamente, quatro quilômetros até a rua Joaquim Palhares, local do crime. Treze tiros atingiram o carro. Sua assessora recebeu estilhaços. Anderson levou três tiros em suas costas e Marielle Franco, quatro tiros fatais em sua cabeça. O crime foi cometido há um ano e a investigação só poderá ser arquivada mediante pedido do Ministério Público e/ou decisão do Juiz responsável, como explica a advogada Karla Fernandes, mulher negra e especialista em Ciência Criminal pela UFG. A advogada reforça que o Estado tem o dever de garantir que a polícia disponha de equipamentos necessários para garantir condições de trabalho no que tange, também, a solução de crimes. O site <mariellefranco.com.br> mantém informações sobre a vereadora, o andamento de seu legado e um cronômetro que indica quantos meses, dias, horas, minutos e segundos se passaram desde o assassinato da vereadora. Com a hashtag #MarielleVive, o site reconhece e legitima a existência do que vem chamando de verdadeiras “sementes da Maré”. A frase “quem mandou matar Marielle mal podia imaginar

Poderia ser qua

ainda pode ser q

HYAPONN Mestranda em A

que ela era semente, e que milhões de Marielles em todo mundo se levantariam no dia seguinte”, sintetiza a mensagem. #MARIELLEVIVE “Quando eu recebi a notícia do assassinato de Marielle, foi uma mistura de dor, tristeza e indignação”, relata Francy Eide Nunes Leal, uma mulher negra que saiu de Minas Gerais e atualmente mora em Goiânia para estudar. Leal faz doutorado de Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG), e estuda há quase 10 anos sobre educação escolar quilombola, quilombo, gênero e feminismo negro. “Somos cientistas sociais e tentamos contribuir com a sociedade”. Marielle era casada com Mônica Benício e usava seu papel de luta dentro da comunidade LGBT. “Enquanto uma mulher negra, lésbica, periférica, que está inserida dentro da militância eu compartilho, basicamente, Marielle, sabe?”, afirma Hyaponnira Rocha, que possui intersecções como as de Marielle. Ela é mestranda em Antropologia Social pela UFG e, em sua pesquisa de mestrado estuda a condição da “mulher preta e sapatão”: os avanços e retrocessos sobre as constituições de família nos bairros periféricos de Goiânia. A notícia do assassinato da vereadora reverberou em sua própria identidade: “Poderia ser qualquer uma de nós, ainda pode ser qualquer uma de nós”, argumenta Hyaponnira. Para Leal, o assassinato de Marielle Franco simboliza, no contexto brasileiro, uma semente. “Mataram a Marielle, mas esqueceram que se enterrar vira semente e a gente pode ver ela brotando com as mulheres negras na política”. Nas eleições de 2018, o número de mulheres que lançaram candidatura e foram eleitas aumentou. A ex-chefe de gabinete e parceira de luta de Marielle, Renata Souza foi eleita com mais de 63 mil votos para deputada estadual e entre os 70 deputados estaduais eleitos, ela foi a nona mais votada. Daniela Monteiro, ex-assessora de Marielle, foi eleita também para deputada


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IÊNCIA -

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A SEMENTE DA MARÉ

qualquer uma de nós

NIRA ROCHA Antropologia Social

alquer uma de nós,

estadual, com quase 28 mil votos e Mônica Francisco, que também integrava a equipe da vereadora Marielle, concorreu a deputada estadual e foi eleita com mais de 40 mil votos. Além das mulheres negras, tivemos pela primeira vez na história uma mulher indígena, Joênia Wapichana, eleita deputada federal por Roraima e, em São Paulo, tivemos a primeira mulher transexual,

Erica Malunguinho, eleita deputada estadual. Na opinião de Francy Eide, Marielle simboliza “a resistência das mulheres negras” e Hyaponnira corrobora ao dizer que “é questão da gente ter que lutar, da gente dar a cara à tapa mesmo, de não deixar a poeira abaixar e deixar por isso mesmo, fingir que nada aconteceu. Devemos ir pra lutar sim! Por ela, pela Luana Barbosa e por tantas outras mulheres, lésbicas, negras que são mortas todos os dias, e acredita que todas nós, somos Marielle”. Marielle Franco, para alguns um grito que nasceu na favela e hoje ecoa em todo o mundo. Para outros , apenas mais uma mulher. Na favela da Maré surgiu a onda mais forte que atingiu todo o mundo. Marielle Franco, vive.

ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES NEGRAS

Foto: Reprodução

A memória de Marielle esteve presente durante todo o Encontro Nacional de Mulheres Negras, que ocorreu em Goiânia (GO), nos dias 6 a 9 de dezembro de 2018. A irmã da vereadora, Anielle Franco, se envolveu com o evento todos os dias e presenciou Angela Davis, escritora norte-americana, rememorar que em março passado os movimentos antirracismo, feministas, abolicionistas e o movimento Black Lives Matter protestaram contra o assassinato brutal de Marielle Franco. "Todas nós manteremos o legado dela vivo ao enfatizarmos as inter-relações entre racismo, misoginia, pobreza, homofobia e transfobia. Marielle Franco, presente!”, afirmou. Essa segunda edição do evento, celebrou os 30 anos do primeiro encontro que ocorreu em 1988, na cidade de Valença, no Rio de Janeiro. Antes do Encontro Nacional, ocorreram encontros estaduais para a escolha das delegadas que representariam seus respectivos estados no evento nacional.

Assim, o encontro foi organizado pelo Fórum Permanente de Mulheres Negras em articulação com diversos grupos e movimentos de mulheres negras do país. Em Goiânia, mais de mil mulheres negras, de todos os estados brasileiros, ativistas do campo e da cidade, das periferias, comunidades quilombolas, grupos religiosos de matrizes africanas, pesquisadoras, trabalhadoras e mulheres de todas as idades se reuniram no evento. Além da presença de Anielle Franco e Angela Davis estavam presentes mulheres importantes na luta do feminismo negro como Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Cidinha da Silva e a da deputada federal Benedita da Silva. Segundo a assessoria, o encontro visa fortalecer a luta histórica das mulheres negras contra o racismo e a violência, além de promover o bem viver da mulher negra. Ademais, busca viabilizar a participação política das mulheres negras nos espaços de fala e, sobretudo, de poder.

COMPARATIVO POR REGIÕES ELEIÇÕES PARA CÂMARA FEDERAL 2014 - 2018 * Com informações do Tribunal Superior Eleitoral


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- SAÚDE -

UM TEMPO QUE EU NÃO TENHO

POR CONTA DE HORÁRIOS

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REPORTAGEM Rauane Rocha EDIÇÃO Letícia Dias DIAGRAMAÇÃO Laura Chaud

anter uma vida saudável é um desafio. Não importa a idade crianças, jovens, adultos e idosos enfrentam suas dificuldades. Nesse aspecto, sair do sedentarismo pode até ser uma meta, mas prevenir doenças cardíacas, melhorar o funcionamento dos órgãos, combater problemas respiratórios e diabetes não tem sido uma tarefa fácil. Sonossivia Cardoso, 20, pratica esportes e atividades físicas desde a adolescência e segundo ela, foi assim que conseguiu diminuir o seu nível de ansiedade e estresse. A estudante de Engenharia Ambiental e Sanitária, que começou a correr há cinco anos, conta que iniciou a atividade pelo bem estar corporal, para melhorar o sono e sentir seu corpo mais leve. Agora, na faculdade, o cuidado com sua saúde está sendo afetado pela constante mudança de horários. “Esse semestre eu quase não estou fazendo muita atividade física porque tenho aula à noite e era o único horário que tinha”, disse. Na universidade, a rotina dos alunos muda a cada cinco meses. Apesar da escolha das disciplinas ser tomada próprios estudantes, usualmente, eles precisam se matricular até nos três turnos para fechar a carga horária. A jovem afirmou que isso mexeu drasticamente com o ciclo do seu dia e também alterou o seu condicionamento físico. “Hoje eu pratico atividades físicas duas vezes na semana no máximo. Semestre passado eu fazia às segundas, quartas, sextas e sábados, e em alguns domingos. Meu condicionamento físico agora está bem precário. Corria sete quilômetros, hoje se eu correr dois, eu me sinto muito cansada”, afirma. Weslei de Melo, 30, e Priscila Kanela, 20, também passam pelas mesmas dificuldades. A prática de atividades físicas os acompanham há alguns anos e, como futuros profissionais da saúde, sabem que precisam primeiro cuidar de si. “Quando você estuda diretamente a saúde, há um despertar para você cuidar da sua própria. A faculdade ajudou bastante”, declarou Priscilla.

Nem sempre eu tenho esse espaço de tempo, depende do semestre e das disciplinas WESLEI DE MELO Estudante de Farmácia

O relato dos graduandos é o mesmo de 51,6% de brasileiros adultos que responderam a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 2015. No panorama publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a maioria da população aponta a falta de tempo como o principal argumento para justificar o fato de não praticarem atividades físicas ou esportivas.

Foto: Arquivo pessoal

DE LAZER

INCENTIVO A Universidade Federal de Goiás disponibiliza aos estudantes, servidores efetivos e terceirizados, sem fazer distinção de cargo ou ocupação, uma academia e um ginásio poliesportivo no Centro de Esportes Campus Samambaia (Cecas). O local é gerido pela Coordenação de Esporte e lazer, ligado à Pró-reitoria de Assunto Estudantis (Prae), e é um espaço aberto de 7h às 22h para quem quiser usar. Por causa da alta procura, a academia tem lista de espera e para acessar o local é preciso apresentar relatório de saúde e aptidão física. No ginásio é possível praticar voleibol, futsal, handebol e basquete, mas a quadra também já foi utilizada para esportes como badminton, quimbol, tênis de mesa e campeonato de aviãozinho de papel. Élcio Inácio de Paula coordena a quadra do Cecas há quatro anos e, segundo ele, o centro esportivo foi um pedido da própria comunidade

PERDEM PRÁTICAS

Para Weslei, cursar Farmácia trouxe mais conhecimentos. O fato de trabalhar com doenças que estão relacionadas ao estilo de vida, como hipertensão, diabetes e colesterol alto, o deixou bastante motivado. “Eu era uma pessoa muito sedentária e depois que tomei ciência dessas doenças me motivei a praticar mais exercício físico. Mas a rotina da faculdade atrapalha”, assegura. O estudante era acostumado a correr oito quilômetros e se exercitava regularmente alternando os dias. Ele conta que até o semestre passado fazia muitas atividades físicas, mas que por conta da quantidade de disciplinas, 10 em 2018/2, nem mesmo na caminhada conseguiu se manter frequente. “Nem sempre tenho esse espaço de tempo, depende do semestre e das disciplinas que estou pegando, pois, meu curso é integral, manhã e tarde. Eu chego cansado e por mais que tenha consciência de que é necessário, não consigo e isso é complicado”, afirma.

universitária. “Antes a organização da parte esportiva era da Faculdade de Educação Física, mas a demanda era única e exclusivamente acadêmica, então não conseguia atender a comunidade universitária. Conseguia atender através de projeto de extensão, que era para a comunidade externa e universitária e a demanda era alta”. O coordenador ainda destaca que a

Foto: Arquivo pessoal

ESTUDANTES

Sonossivia praticando futebol

construção de um Centro de Esportes no Samambaia não tinha apenas a intenção de causar impacto na saúde, mas no lazer e na interação social. Além do Cecas, a Prae também regula outro incentivo da universidade a prática esportiva. O uso da quadra das Casas de Estudantes Universitários 1 e 3 é organizado por Gláucia Mitiel. Segundo a monitora de esportes responsável, o espaço é aberto à comunidade universitária, as atléticas da PUC, podendo, inclusive, ser disponibilizado para competições, como o Torneio dos estudantes indígenas e quilombolas e os jogos da semana da África. BEM-ESTAR A prática de esportes e atividades físicas se relacionam com a recreação social. Estar em contato com pessoas e o meio ambiente podem aliviar sintomas e predisposição a ansiedade e depressão. Para a psicóloga do Saudavelmente, Lívia Mesquita, essas medidas são importantes na vida de qualquer pessoa e, por isso, recomenda a procura e participação dos jovens nesses momentos. “Essas atividades fazem parte da saúde de um modo geral, é qualidade de vida e todo mundo tem necessidade de descanso e de um momento de relaxamento, de estar com pessoas. As atividades recreativas representam saúde psicológica”, afirma. Lívia avalia que do ponto de vista psicológico, atividades físicas são saudáveis e necessárias, e a busca deve ser semanalmente. “Não é bom ficar só voltado para o trabalho e para os estudos. As pessoas precisam conciliar atividades recreativas a correria do dia”, conclui.


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- COMPORTAMENTO-

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MEDITAÇÃO E ARTE DO SILÊNCIO ALTERNATIVA PASSA A SER OFERECIDA PELO SUS REPORTAGEM Matheus Moreira EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Nathália Matos

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Foto: Raissa Guadalupe

s centros urbanos estão poluídos de imagens e sons o tempo inteiro. Em uma vida agitada e cosmopolita escondem-se pessoas que buscam um momento em que consigam parar, processar, respirar e, momentaneamente, se afastar das rotinas que as aprisionam em uma lógica de constante produção. Os ambientes de práticas de medicina alternativa se tornaram populares no Brasil no início da década de 2000, sendo cada vez mais procurados para entender e compreender a vida, rotina e principalmente o corpo. “Quando me procuram geralmente buscam uma atividade que quebre essa rotina de ficar oito horas sentado. As pessoas normalmente tem uma resposta muito rápida às práticas da yoga com a meditação”, afirma a professora de yoga, Valéria Prates. As modalidades que mais receberam entusiastas foram a meditação e a yoga por sua popularização entre as celebridades hollywoodianas, como a cantora estadunidense Madonna. Existem, porém, diferenças: a meditação é o momento de parar e se concentrar, deixando sua mente fluir e se auto descobrir. Já a yoga é o exercício de cooperar a mente como o corpo através de práticas que buscam derrubar limites e explorar o corpo humano. Apesar disso, os profissionais costumam usar as práticas juntas, por as considerarem o “casal perfeito”. É a junção de corpo e mente.

A meditação é uma das modalidades mais procuradas.

Mindfulness é a técnica que mais se popularizou entre os praticantes de meditação no ocidente. Seu método consiste na concentração e no esforço de parar e se dedicar mentalmente em algo. Segundo a Revista Science, em 2017, cerca de 46% das pessoas encontram dificuldade em realizar essa tarefa. Porém, a técnica tem mostrado resultado eficaz nos casos como o de Victor Weber, estudante de jornalismo da UFG. “O primeiro encontro com método me fez ver a meditação como algo mais palpável e acessível para a prática, principalmente para quem imagina que meditar significa ficar horas em silêncio como os monges budistas”, afirma o universitário. Daniel Bertelli, advogado e condutor budista diz que o maior obstáculo em meditar consiste em sentar e se concentrar. “A mente vai criar problemas ou coisas como: preciso verificar se fechei o carro ou preciso arrumar o quarto ao invés de concentra”, comenta. O grande desafio, então, corresponde ao ato de controlar uma mente que está em ritmo frenético, em razão de que a consciência não é algo que pode ser parado brus-

46% das pessoas possuem dificuldades para se concentrar

camente: requer técnicas e cuidados, uma vez que o silêncio pode nos dizer ou mostrar coisas que não temos consciência. “A mente é traiçoeira nesse sentido”, complementa Bertelli.

Desde janeiro de 2015, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou oferecer, de forma gratuita, as atividades de medicinas alternativas como meditação, arteterapia e reiki. Esses métodos atuam como complemento ou substituição aos tratamentos tradicionais. Essas medidas estão de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e sua nova política sobre medicina tradicional. Os serviços são oferecidos por iniciativa local, mas recebem financimento do Ministério da Saúde por meio do Piso de Atenção Básica (PAB) de cada município. APLICATIVOS “Sente-se, depois se posicione como uma borboleta. Feche gradualmente seus olhos. Respire e inspire com calma. Atente-se em sua respiração. Deixe que sua mente te leve aonde ela deseja”, assim começa a sessão conduzida por Daniel Bertelli no Centro de Estudos

Yoga não é só uma atividade física, mas sim, uma disciplina da mente VALÉRIA PRATES Professora de Yoga

EQUILÍBRIO No âmbito acadêmico diversos pesquisadores da área de medicina passaram a pesquisar a yoga e seu impacto psíquico em quem a pratica. Em recente pesquisa feita com alunos de uma escola de yoga e meditação em Boston, a neurocientista Sara Lazar descobriu efeitos positivos que a prática traz ao cérebro, como o aumento de massa negra no cortéx, região cerebral onde retém aprendizados e memórias. Os estudos de Sara foram feitos com um grupo de pessoas que não haviam praticaram yoga até o momento. No espaço de oito semanas, elas meditaram diariamente por 40 minutos, o que permitiu que a neurocientista concluísse que a meditação contribuiu para uma melhor reação frente aos momentos de estresse. Formada em medicina chinesa, Valéria Prates, recomenda a yoga como atividade complementar para pessoas que passam por transtornos psíquicos. “Yoga não é só uma atividade física, mas sim, uma disciplina da mente, esse foi um ponto de virada para quem realiza e para mim”, destaca a professora. Prates, porém, alerta que a atividade não dispensa o acompanhamento com os profissionais de psicologia.

Foto: Raissa Guadalupe

MEDICINA

Budistas e Bodisatva (CEBB). Se você já ouviu estas pequenas frases em algum momento de sua vida, provavelmente já participou de alguma aula de meditação ou yoga. Meditar é uma ferramenta de autoconhecimento e estabilidade mental. Hoje em dia há uma quantidade incalculável de variações dos métodos e escolas que possuem essa prática. Abundantes formas surgiram com a criação de smartphones. Aplicativos surgiram e com eles a facilidade de praticar essa modalidade em casa. Os que usam estas ferramentas digitais as percebem como uma maneira de ter acesso a um serviço no horário desejado e de uma maneira que seja de acordo com sua disponibilidade. Mas, a principal procura se deve em parte ao seu preço acessível, abaixo do que é cobrado por centros de práticas corporais presenciais dessas modalidades. “Eu uso aplicativos quando não consigo me concentrar, como o Viva a meditação ou Calm (calma, em tradução livre). O Viva é gratuito, mas também tem a opção de ser assinante. Eu recomendo por ter uma quantidade grande círculos de meditação”, diz Victor.


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- CULTURA -

ESPAÇO DE AFETO E CONSUMO SENSORIAL RECONFIGURA A EXPERIÊNCIA DE IR AO CINEMA REPORTAGEM Letícia Dias EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Débora Alves

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sala está semi-iluminada, você encontra seu assento em meio as poltronas vermelhas e as luzes se apagam. Pelas próximas duas horas seu único compromisso é deixar o mundo do lado de fora e, juntamente com várias silhuetas desconhecidas, participar desse momento puramente experiencial. A sonoplastia toma conta do ambiente e a tela, antes imaculada, começa a ganhar vida. O filme vai começar. Surgido no final do século XIX, na França, o cinema vem se desenvolvendo sincronicamente com a indústria, tecnologia e mercado, na medida em que estes avançam. Desde 2014, Goiânia esteve entre os vinte municípios com maior público consumidor de cinema. No entanto, de 2016 pra cá, o levantamento anual realizado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) registrou quedas em relação ao número de frequentadores de salas de exibição. No ano de 2017 houve uma redução de 27% no número de espectadores. A alteração midiática e a maior acessibilidade tem interferido na frequência com que o espectador vai ao cinema. A vastidão virtual proporciona ao consumidor um amplo catálogo de entretenimento. “As pessoas continuam assistindo bastante filmes e produções audiovisuais na internet, em casa, na televisão e tudo mais. Seja pelo meio que for, desde plataformas de streaming ou até baixando por vias questionáveis” explica o cineasta João Paulo Tito. LUZ O SAMAMBAIA realizou uma pesquisa que contou com 58 participantes. Quando perguntados sobre os fatores que impossibilitam sua ida ao cinema com maior frequência, 53 respostas estavam relacionadas à falta de tempo e ao valor do ingresso. Em outra pergunta, quando questionados a respeito da diferença entre assistir um filme no cinema e assisti-lo em casa, os resultados associaram a casa ao conforto e a distração, enquanto, 67% dos participantes destacaram o cinema como uma experiência mais imersiva. A apreciação fílmica em um ambiente próprio para tal exibição é praticamente

CÂMERA O cinema, tanto como produção artística quanto como espaço físico, tem essa maestria capaz de proporcionar um deslocamento metafísico, de te fazer sair da sala, após o filme, fascinado ou impactado de alguma forma. “No entanto, por trás de toda essa magia as pessoas não entendem que existe todo um suor, uma angústia, um estresse e toda uma lamentação para fazer essa magia acontecer”, relata Matheus Santos. Atualmente, ele trabalha como garçom, mas, trabalhou no cinema de 2013 a 2017 e atuou como porteiro, bilheteiro e bomboniere.

Laços afetivos se fazem presentes nas salas de exibição

soas que trabalham nele, de forma diferente. “Passei a cumprimentar, ser educado, a reconhecer a existência delas”. Paciência, calma e diálogo são, hoje, elementos fundamentais na interação dele com os funcionários do cinema. Quando perguntado se havia alguma história marcante do tempo em que trabalhou no local ele logo respondeu que nunca havia parado para observar a frequência de cadeirantes no cinema. Graças aos projetos inclusivos do Kinoplex ele pôde ter contato com essa experiência e compreender outra realidade “Em uma dessas sessões, havia um menino que tinha problemas não só de locomoção, mas de distúrbios sensoriais. E

O cinema nunca vai morrer, porque as pessoas gostam de entrar numa sala escura, deixar o mundo do lado de fora e participar daquela experiência coletiva JOÃO PAULO TITO Cineasta

Entrevistar Matheus foi um sopro de realidade. É comum pensar no cinema como arte, experiência ou instituição, mas é importante ressaltar que isso só se torna possível graças à pessoas. Desde o bilheteiro com quem você compra o ingresso, do bomboniere para quem você pede a pipoca e o refrigerante, do porteiro que libera sua entrada e indica a sala de exibição, até o pessoal que atua na limpeza do local que muitos utilizam como válvula de escape do estresse cotidiano. A experiência de trabalhar no cinema fez com que Matheus passasse a lidar com o espaço e com as pes-

DO STREAMING

impossível de ser recriada. Durante os anos de 1920 a 1950, mais de trezentos cinemas foram projetados pelo arquiteto Charles Lee. Ele acreditava que o cinema proporcionava às pessoas aquilo que lhes faltava em seu cotidiano: religião, consolo, estímulo, arte e, acima de tudo, um sentimento de importância. Bruna Chamelet, estudante do 4º Período do curso de Cinema e Audiovisual na UEG e estagiária no Cine Cultura, indica que nos meses decorrentes à produção de um filme, todos os detalhes são muito bem pensados. Esse fator auxilia a experiência de imersão do público. “Te deixar sem outra fonte de luz, com apenas uma imagem pra prestar atenção e o som 5.1, são fatores propícios pra te levar a se sentir tão presente naquela cena quanto é preciso estar. Ter um som chegando de todos os lados é pura sinestesia”.

Foto: Evelyn Alves

POPULARIZAÇÃO

a reação dele ao assistir o filme era muito bonita, ele segurava a mão da pessoa que tava com ele e às vezes comentava algo que eu não entendia, mas eu só observava as reações dele, o brilho nos olhos, a felicidade de estar lá. Era uma coisa realmente bonita de se ver”. AÇÃO A Lei 13.146/2015 fixou um prazo para que até 1º de janeiro de 2020, as salas de cinema brasileiras ofereçam, em todas as sessões , recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência. De acordo com a Ancine, as salas de cinema deverão dispor

dos recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Língua Brasileira de Sinais (Libras). Os recursos deverão ser providos na modalidade que permita o acesso individual ao conteúdo especial, sem interferir na fruição dos demais espectadores. Embora a transição de mídias seja irrefreável e esteja interferindo no consumo cinematográfico, o cinema, a sala de exibição, é uma experiência compartilhada. Assistir à um filme sozinho não proporciona a mesma onda de emoções que um ambiente devidamente adaptado preenchido por reações espontâneas e compartilhadas. “A reação do espectador em tempo real ainda conta muito, é uma experiência exclusiva da sala de cinema. É por isso que eu acredito que o cinema nunca vai morrer, porque as pessoas gostam disso, elas gostam de entrar numa sala escura, deixar o mundo do lado de fora e participar daquela experiência coletiva ali dentro, com aquelas pessoas” reafirma João Paulo. O mundo é marcado por dualidades, seja o cinema indústria, arte, rotina ou experiência. A prática de frequentar salas de exibição vai muito além do filme assistido, da resolução da tela, da qualidade sonora ou do conforto da poltrona. Entrar em uma sala de cinema é permitir-se ser afetado por uma onda transcendental de emoções que pode gerar desde o estranhamento à catarse. Uma adaptação estrutural é imprescindível, acessibilidade é necessária para que os cinemas não limitem o próprio público. Quanto à transição de mídias, essa não precisa ser encarada como uma ameaça. O cinema vai além do próprio consumo, é um espaço incomparável, é lugar de afeto, esfera de comunhão e, acima de tudo, templo de memórias.


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- MÚSICA -

SOFAR SOUNDS MAIS INTIMISTA ATRAI PÚBLICO NA CAPITAL GOIANA

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REPORTAGEM Gustavo Soares EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Paulo Emílio Medeiros

ORIGEM Os shows do Sofar começaram com um segredo londrino. Em 2009, na capital britânica, o plano se baseou em realizar apresentações organizadas em lugares íntimos e secretos onde o público se sentisse à vontade para tirar seus calçados, sentar-se no chão, esticar as pernas e apreciar, com proximidade, os artistas se expressando. Frequentado apenas por convidados, se evitava a genérica multidão de apresentações ao vivo. Em uma noite, há três apresentações sem nome e em local

INTUITO A proposta tem caráter voluntário, colaborativo e não possui fins lucrativos. Eulices e Joyce Magrini, sua parceira Relações Públicas, fazem a curadoria de todas apresentações em Goiânia. O processo de seleção do espaço é longo. Sugerido por interessados a acolher uma edição, os locais são visitados e analisados sob as condições que ali permitem acontecer o espetáculo. “Assumir tudo isso foi um ato selvagem! Nunca tinha feito nada parecido”, confessa Eulices. Hoje, o Sofar ocorre a cada quinze dias. A renda, que é voltada à estrutura das sessões, vem da taxa

cobrada como entrada. Nenhum dos organizadores é remunerado e toda a contribuição é direcionada para os encontros. Como capital de potencial artístico profundo, Goiânia fez os ingressos esgotarem na primeira sessão. “O Sofar não é só sobre música, mas sim sobre arte de maneira geral”, explica a professora, se referindo a adesão do público goianiense que se fez satisfatória.

briram. Os que se expõe, declaram paixão pela experiência de atenção, acolhimento e adrenalina, afinal, quem vai ali pra ouvir, vai de coração aberto. Jornalista e autônoma, Rosângela Aguiar confessa que nunca frequentou eventos de tal peculiaridade. Surpreendida, discorre sobre a experiência do desconhecido. “O respeito ao silêncio é irado”, afirma

O Sofar não é só sobre música, mas sim, sobre arte

EULICES MARIA City Leader do Sofar Sounds Goiânia

COMPREENSÃO A identificação que o programa gera advém das duas esferas presentes: público e artistas. Os que assistem morrem de amores pelo ambiente original, pela conexão estabelecida com a arte e com as novas personalidades que descoFoto: Divulgação do evento

entados em um manto sob a grama da empresa de comunicação em Goiânia, o público esperava ansioso pelas atrações da noite. Duas gêmeas, de cabelos longos e encaracolados, beliscavam pipocas doces de cima de suas almofadas. Ao fundo, no palco, músicos organizavam cabos embaraçados, testavam seus microfones, plugavam suas guitarras, conectavam seus amplificadores, e assim passavam o som. No ritmo do anoitecer, as luzes penduradas pelo único fio do cenário, entravam em contraste com o céu cheio de nuvens escuras, que surgiam por trás dos prédios do setor Bueno. O público, indeciso, demorava a decidir de onde iria prestigiar o que estava por vir. Cinegrafistas se ajeitavam em seus cantos estratégicos de gravação. Não existia diferença entre olhos e objetivas ou retinas e diafragmas. O fascínio era mútuo. Eulices Maria, professora de educação física, conheceu o projeto pelo YouTube. Procurou saber se o evento acontecia em Goiânia e descobriu que, na época, ainda não haviam feito. Um telefonema de sua prima de Brasília que disse “o programa é a sua cara” a convenceu a ir conhecer o evento. A iniciativa havia chegado ao Planalto. Apaixonada por música e cultura, Eulices resolveu clicar no botão “Leve o Sofar para sua cidade!” e se tornou a City Leader do Sofar Sounds Goiânia.

não revelado (até um dia antes). O ambiente, sempre variado a cada evento realizado, seria cotidiano como ateliês, livrarias, galerias ou coberturas oferecidas pela comunidade. Por conta da originalidade, a ideia tomou ares de sucesso, fazendo com que o programa se tornasse uma Startup. Desse modo, a programação se estendeu para outras metrópoles e hoje está presente em mais 412 cidades.

EXPERIÊNCIA

ela, com os punhos fechados. Bruno Nascimento, jornalista e acolhedor daquela edição como proprietário da empresa, relata que a ansiedade é combustível para a iniciativa. "O diferencial é não saber onde você vai estar e quem vai ouvir". Um dos artistas da noite, Fabiô, iniciou tímido. O mineiro cantou sambinhas autorais e clássicos da MPB. Conheceu o projeto pela internet e, até a hora, a ficha não tinha caído sobre ter sido um dos convidados. “Estou honrado demais! O Sofar é uma vitrine especial para artistas independentes”. Renato Enoch, de Belo Horizonte, cantou com outro aspecto. Confessa que por conta do extremo intimismo, sentiu tensão. Sua letras extravasadas o deixam vulnerável. “Meus versos são muito pessoais. Me sinto nu em cantar assim, para um público focado”. A mulher da noite estrondou seu agudo. Não satisfeita com seu solo, chamou os dois amigos, formando assim um quarteto - com o violonista - em coral. Camila Cavalheros vibra em uma frequência mais baixa e, com essa característica, se faz sensível aos ouvidos daqueles que nunca a ouviram cantar. “A troca de energia que se instala aqui é fantástica”. A braziliense estuda arquitetura, mas desde que colocaram um violão em suas mãos, desenvolveu talento. Ao fim, depois das guitarras desligadas, lâmpadas retiradas e decoração desmontada, a alma do Sofar descansa. Se leva para casa os artistas, as músicas, as novas pessoas e a experiência. O novo sempre vem. Se fosse possível definir o bem feito em uma palavra seria: íntimo. Assim como na fria Londres, aqui, no cerrado, o secreto sobrevive.


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- RA

O CENTRO CONQUISTA ESPAÇOS NA REGIÃO METROPOLITANA DE GOIÂNIA

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REPORTAGEM Augusto Oliveira e Paulo Emilio de Medeiros EDIÇÃO Gustavo Soares DIAGRAMAÇÃO Laura Chaud

dio. Além disso, como a maioria dos shows e viagens são no final de semana, dá pra ir organizando. No fim, eu amo cantar e amo advogar.” Outro rimador pioneiro com “vida dupla” é o conhecido Ivo Mamona. Dono de hits da década passada como “Na Periferia”, o artista atualmente divide seu tempo entre a assessoria parlamentar e a produção de conteúdo em seu canal no Youtube. Com um jeito simples

Nós estamos formando novos mundos, cada mente é um universo e nós estamos aqui pra mostrar os horizontes SAWL Rapper

‘’Você vê que hoje em dia, de tanto crescer, vai juntando cada vez mais gente. Antes nas batalhas você só via os mesmos rostos, hoje já cola muita gente diferente’’ afirma Paulista, rapper que participa do UFCentro desde a vigésima primeira edição do evento, duelando e até ajudando a ancorar, por vezes, as batalhas de MCs. Vant, outro MC que está desde o início ajudando e participando do UFCentro, afirma também que "antes você não via as batalhas. Hoje você pega seu celular, grava e põe na internet, então vai alcançar mais pessoas e gente que pode vir investir em você. Muita gente está tendo acesso a isso, coisa que eu não tinha e hoje nós temos. O rap tomou uma proporção que eu não sei te falar’’. RAPRESENTANTES Não é de hoje que há um cenário se desenhando no hip hop goiano. Há nomes antigos que serviram de inspiração para as novas gerações de rappers locais. Na conversa com os colaboradores do UFCentro, foram citados vários representantes, dentre eles S.C.A (Sociedade Clandestina), Boca Seca, Malik, Renachong, Patrick Horla e o Mortão VMG. Além desses, há outros nomes com trajetórias pavimentadas no panorama goiano de rap como Éder Porfiro, conhecido artisticamente como NB, que além de artista, é formado em Direito. Mesmo sendo autônomo, o rapper-advogado consegue com muito custo conciliar os poemas e os processos. “É uma correria louca. Mas sempre separo uns dias da semana para escrever ou ir ao estú-

e direto, o rapper-assessor resolveu inaugurar sua própria página de clipes no site após a perda de seu produtor Edison Cruzorff, falecido em decorrência de uma pneumonia em 2013. Tanto o rapper-assessor quanto o rapper-advogado consumiam rap em shows promovidos por colégios durante o período de contato inicial com o gênero. NB confirma a

tese levantada na UFCentro de que o gênero musical que mistura rimas e batidas tem decolado em zonas sertanejas nos últimos tempos. “Existem vários grupos e MCs que têm trabalhado de forma profissional e têm alcançado outros públicos e também outros estados”, comenta. Ao levantar os fatores que ocasionaram essa expansão, NB entende que “hoje se tem vários lugares e eventos que fortalecem a cena do rap como: Neo Pub, Galpão Complexo Criativo, Ideologia 62 e o Taberna Pub”. Francisco da Rocha Muniz, conhecido como Xico, é cofundador do primeiro local citado pelo rapper-advogado. Com apenas um ano de existência, a Neo Pub tem aberto as portas às apresentações de rappers goianos e não goianos, o que nas palavras de seu criador “fortalece o convívio entre simpatizantes da cultura hip hop”. RAPENSANDO A abertura de novos points de apreciação do hip hop é o que possibilita o surgimento de artistas e grupos inéditos dentro do gênero. Dentre os mais atuantes, é possível citar Criolin, de Trindade, Jordana Luz, Wu-Kazulo, Nós Por Nós e Controverso. O rapper e também colaborador do UFCentro, Sawl (nome inspiraFoto: Baú de Sereia

laranja da luz do poste é a iluminação. A música instrumental (chamada de beat) saindo da caixinha, misturado ao som dos carros que passam e aos murmúrios da cidade, preenchem os ouvidos do público e dos rappers. Os bancos da pracinha, o grafite e alguns skatistas compõem o cenário dos que estão por ali. Eles se encontram toda quarta-feira, na frente do Grande Hotel, no centro de Goiânia, para duelar nas batalhas de MCs do UFCentro, um dos principais eventos que representam a cultura do Hip-Hop que vem se desenvolvendo na capital de Goiás. A sua primeira edição foi realizada por volta da metade de 2017 e, no dia 12 de setembro (data em que foi feita a reportagem), já havia chegado à sua edição de número 58. "Tinham poucos shows por aqui, apenas em rolês muito pequenos e localizados ou em grandes eventos patrocinados. Sinto que esse panorama começou a mudar no início de 2017’’, diz Levi, o principal organizador e um dos âncoras das batalhas do UFCentro. A sua função é a de chamar os MCs que vão duelar no meio do círculo que se reúne ao redor dos dois duelistas da vez, animar os espectadores e propor a votação de quem foi o vencedor da batalha. A eleição é feita com base na força do som emitido pela platéia, ou seja, ganha quem ouvir um “Wow” mais potente após o anúncio de seu nome. As batalhas do UFCentro começam a partir das oito horas da noite, e costumam ser no formato "bate e volta", com o primeiro desafiante tendo 30 segundos para improvisar uma rima e entregar a palavra para o seu oponente. Este, por sua vez, faz o mesmo, sendo dois turnos para cada um. Ao fim do desafio, o público faz a votação e elege quem merece passar de fase. Chegando na final, o vencedor da noite leva um prêmio, que costuma ser a gravação

de uma música em estúdio e o lançamento sem nenhum custo. O evento é realizado em céu aberto, sendo livre para quem quiser chegar, assistir uma batalha e se divertir a qualquer hora. Apesar de não haver nenhuma estrutura fixa, além da que já se encontra na pracinha em frente ao Grande Hotel, o movimento costuma trazer um grande número de presentes, com média de 60 a 70 pessoas.

HIP HOP

Casas de show voltadas ao rap abrem portas para novos artistas


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AP -

O DE TUDO Foto: Baú de Sereia

O vencedor da noite tem como prêmio uma gravação em estúdio

do consolidado cenário do rap no sudeste, ele analisa que em Goiânia “marcas apoiadoras, projetos, eventos, distribuição nacional das músicas, agências, empresários e rádios são elementos quase inexistentes, o que complica quem tenta levar a música como única profissão”. Sobre a questão das emissoras radiofônicas, Ivo Mamona clama por “uma rádio daqui que toque rap o dia todo”.

Devito, que pretende cursar Publicidade e Propaganda, busca essa consolidação através de estratégias nas redes sociais. “Eu pago para aparecer em alguns lugares, faço posts e pago impulsionamento”. Esse pensamento no público é refletido de certa forma até no conteúdo de suas letras. “Eu mesmo coloco referências a Goiânia na tentativa de gerar uma identificação com o público que

do no personagem Jigsaw, da série de filmes Jogos Mortais) é um dos artistas que vem evoluindo junto com a cena do rap goiano. Com um skate no pé, retratando a sua origem no universo do hip-hop, ele serenamente explica como vem avançando o contexto do segmento em Goiás nos últimos anos. “Hoje a gente já pode montar uma playlist só de rap goiano, tem um cenário bom da galera toda", fala. Sawl também menciona que a nova geração de rappers ainda está se apropriando dos espaços de Goiânia e entendendo como funciona esse universo. "Nós estamos formando novos mundos, cada mente é um universo e estamos aqui para mostrar os horizontes’’. Entre os perseguidores desses novos horizontes, aparece o rapper Antoni Devito, que vem fazendo sucesso com o seu mais recente EP, extended play, Primavera. “Aquele moleque é um gênio”, exalta Vant ao se lembrar do garoto de 20 anos. “Decidir virar profissional foi um choque, inclusive eu ainda estou nesse choque. Mas, aos poucos, eu fui sacando que posso ser um DJ, eu posso tocar em casa noturna, posso ser um músico autoral, tocar em bar, tudo isso é uma vertente.” Mortão VMG, cujo nome verdadeiro é Fellipe Pereira, é um produtor musical goiano reconhecido nacionalmente. Tendo como base a sua interação com personagens

O crime tem em todo lugar, na política e até na polícia. Onde os caras mais nos reprimem é onde tem mais crime. Essa repressão vai revoltando. PAULISTA Rapper

RAPERCUSSÃO Na falta desses apoios, os artistas recorrem a profissionais como o Luccas Moreira, que além de fotografar e produzir artes gráficas para capas de disco, também pensa e executa clipes de grupos rappers goianos como o Blxxds VG e o Sã Consciência. Segundo o vídeomaker, encaixar as músicas dos rimadores em narrativas audiovisuais “consolida um perfil artístico, além de ser um grande complemento para o trabalho musical e, de certa forma, passa profissionalismo”.

está mais próximo. As pessoas escutam e falam ‘Poxa mano, isso faz sentido pra mim, até porque eu sou daqui'". RAPRESSÃO Entretanto, mesmo com a expansão do cenário local do rap, ainda há muito preconceito e repressão sofrida pelos membros da cultura hip-hop aqui em Goiânia. Levi conta que uma vez o pessoal do UFCentro foi abordado pela polícia, após uma troca de tiros que aconteceu algumas quadras acima de onde é realizado as batalhas. “Até disper-

sou um pouco a galera da batalha, mas depois eles voltaram. Só que teve uma denúncia, aí um policial confundiu com a gente’’. O rapper Paulista completou afirmando que o rap ainda é associado com o crime e sofre com o estigma desse preconceito.“O crime tem em todo lugar, na política e até na polícia. Onde os caras mais nos reprimem é onde tem mais crime. Essa repressão vai revoltando. Não posso fazer o que eu quero, não posso ir aonde eu gosto’’ desabafa. Apesar dessa associação que fazem do rap com o crime, a música e a arte acabam sendo uma forma de libertação pessoal para os membros dessa cultura que se manifesta principalmente nas periferias das grandes cidades. Eis o que conclui Vant, que quase começou a traficar entorpecentes, mas que foi salvo pelo grafite e pela música. O MC andava com um grupo de amigos que cometiam crimes e vendiam drogas, quando um dia, sem dinheiro, pensou em começar a também praticar atividades ilícitas para conseguir algum lucro. Foi quando um dos amigos dele disse "para quê você vai fazer isso, doido? Você sabe fazer grafite, sabe rimar, não precisa fazer isso aqui não". Vant revelou que hoje em dia, devido ao grafite e ao rap, os seus amigos não estão mais “nessa vida’’ e se libertaram do crime através da arte, junto com ele.


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