Jornal Samambaia - Abril de 2019

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jornal laboratório do curso de jornalismo da Universidade Federal de Goiás goiânia, abril, 2019

nº 83/ ANO XIX

ESPORTE torcedores fiéis, arquibancadas vazias

acessibilidade os obstáculos de quem não é prioridade

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VISIBILIDADE A LIBERDADE DE SER QUEM SE É

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O LUTO QUE NINGUÉM VÊ

Histórias de maternidades interrompidas p. 9

Arte: Isabela Silva | Diagramação: Ysabella Portela | Capa: Turmas de Jornalismo Impresso, Jornal Impresso I e II

samambaia


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Goiânia, abril de 2019

- OPINIÃO -

INFORMAÇÃO ACIMA DE TUDO

RUMO R

Por Janaína Oliveira e Sara Andrade | Diagramação: Maryana Souza

E D I T O R I A L

assusta as estudantes, a sororidade constrói grupos de carona entre mulheres (p.11). Não estamos sozinhos, nem quando uma das poucas oportunidades é trabalhar nas ruas (p.13). Enquanto jornalistas, precisamos recordar constantemente que é nosso dever mediar realidades de forma justa e ética. A luta por uma sociedade melhor não será eficaz sem a presença de um jornalismo livre de censuras. Prova dessa luta, travada através da escuta atenta e mãos apressadas em contar histórias de pessoas reais, se faz presente neste jornal que se desafia a viver 2019, escrevendo e sonhando com um tempo novo. Enquanto tivermos essa sede de futuro, estaremos vivos. Estaremos escrevendo. Estaremos sonhando. O SAMAMBAIA é a personificação de um sonho coletivo, de sonhos distintos que precisam se fundir num só para que existam. Talvez o Brasil, um dia, assim como esse jornal laboratorial, se faça um. Até lá, os pequenos “cada um de nós” vão se reconstruindo, perdendo pedaços e se remontando. Tudo, para que sejamos como um grande coro, em que as vozes diversas ousem cantar a mesma canção.

Arte: Caroline Mota e Lara Fernandes

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sta edição é composta por treze reportagens que dialogam sobre a importância da multiplicidade de vozes e do respeito às diferenças. O SAMAMBAIA, construído coletivamente por estudantes de Jornalismo, propõe contrapor o crescimento de ideologias que agridem pessoas e as exclui. Nossas matérias retratam inquietações pessoais e coletivas. O luto interrompido de mães (p.9), a falta de acessibilidade em espaços públicos (p.10) e a incessante busca por apoio psicológico (p.8) são sofrimentos que lutam por visibilidade. No âmbito coletivo, apresentamos recortes de uma Goiânia que sobrevive em meio a um processo de fortalecimento e adaptação. Enquanto estádios se esvaziam (p.3), a Rua 44 entra em superlotação (p.5) e o Centro da capital sintetiza esses dois momentos, vivendo entre o barulho e o silêncio (p.4). Mas, como em todo processo, a força é uma alternativa para sobreviver em meio ao caos. Se a união chegar em nossos lares, podemos combater a lgbtqfobia (p.7). Quando a violência

- CRÔNICA -

ARMÁRIO DE VIDRO

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os 12 anos comecei uma nova amizade. Ao me perguntar meu nome, prontamente respondi: Lucas, mas me chamam de frutinha. “Frutinha? Como assim? Ah, entendi”, ela disse depois de me olhar dos pés à cabeça. Fiquei dias pensando sobre o que ela havia percebido e que eu não. O que ficou tão evidente depois de apenas alguns segundos de observação que eu não enxergara em uma vida inteira? Antes que eu percebesse minha existência presa em um armário, já haviam aberto a porta. A homofobia estava intrínseca em minha vivência. Os anos passavam e os apelidos aumentavam e frutinha se tornou o menos ofensivo de todos. Viadinho, bixinha, GAY. Resolvi olhar para mim, algo que nunca tinha feito antes, pois me achava perfeito - era o que minha mãe dizia e percebi o que todos já apontavam, eu sou gay. Gayzão mesmo. Era o que hoje chamam de poc, derivado do apelido de bicha pão com ovo, inicialmente usado como ofensa. Comecei os enfrentamentos, antes mesmo de me entender como homossexual: sou gay mesmo e daí? Resolvi o problema do preconceito. Na época ainda não conhecia a palavra homofobia, mas já

Por Lucas Cândido | Diagramação: Maryana Souza lutava contra ela. Aos 16 anos, com o que parecia ser o ápice do meu amor próprio e da minha aceitação, vislumbrei o amargo fel que é ser gay em uma sociedade homofóbica. A marginalização e a violência psicológica causam danos irreversíveis. Salvavam meu número como Lucas Gay, como se tudo se resumisse à minha sexualidade, como se minha existência começasse e terminasse em um corpo gay. Mas, desde aquela época, eu era muito mais. O isolamento novamente me alcançou. Há quatro anos, enquanto tentava entender o óbvio, em uma bolha onde eu estive boa parte da minha vida, desenvolvi uma consciência de classe. Percebi que estava marginalizado por ser quem eu sou, por não estar nos padrões que alguém arbitrariamente criou para tentar impor alguma superioridade. Durante o ensino médio em Anápolis, pensei que por estar envolto em um contexto adoles-

cente, seria tratado como igual entre meus colegas, mesmo que ninguém ali se parecesse. Porém, em uma aula de Geografia, o professor disse que eu deveria ir a sua igreja, pois em mim existia uma legião de demônios. Rimos muito, levei como brincadeira, ainda sem entender o que aquele discurso trazia. Em outro dia, numa aula de História, a turma contou o ocorrido a um dos meus professores favoritos, que sempre me dava conselhos sobre a vida. Ao final do relato, esperávamos mais risos, como tinha acontecido em outras ocasiões em que narramos o episódio. Mas ele não deu uma única risada, me olhou com os olhos cheios de lágrimas, foi até o meu lugar e me abraçou dizendo que aquilo era homofobia, que estávamos rindo de algo sério. Na semana seguinte, o professor de Geografia não apareceu, algo havia acontecido. Ele foi demitido.

O meu mundo caiu outra vez. Abriu-se um abismo entre mim e o resto do mundo. Por que eu não percebia a malícia nas palavras e olhares que me eram dirigidos? Por que eu deixava que fizessem isso comigo? O mundo era cruel demais e eu idiota o bastante para não notar. Nesse isolamento refleti sobre minha vida novamente e, em minha fragilidade, achei que a solução seria interromper o sofrimento, colocar um fim nas aflições - um fim na minha vida. Algumas pílulas mais tarde e eu me encontrava caído no banheiro. Eu havia saído do quarto inconsciente e tentava desesperadamente vomitar - mas não era eu, era minha resiliência falando mais alto, era a esperança querendo me mostrar algo que novamente eu não enxergava. Quase perder a vida faz com que você a veja de uma forma diferente. Nos faz perceber nossa fragilidade e como os discursos homofóbicos exploram essa fraqueza para nos fazer pensar que não devemos existir. Foi quando percebi que a minha existência é um ato de rebelião. É ir contra o sistema. Viver é lutar, é resistir. Meu nome é Lucas, 22 anos, estudante de jornalismo, filho, neto, irmão, amigo, namorado e muitas outras coisas.

samambaia Edward Madureira Brasil reitor Ano XIX - Nº 83, Abril de 2019 Jornal Laboratório do curso de Jornalismo Faculdade de Informação e Comunicação Universidade Federal de Goiás

Angelita Pereira de Lima diretora da faculdade informação e comunicação Salvio Juliano Peixoto Farias coordenador do curso de jornalismo e editor de diagramação

Luciene Dias coordenadora geral do samambaia

Janaína de Oliveira edição executiva

Denise Soares produtora executiva

Turma de Jornal Impresso I, Jornal Impresso II e Jornalismo Impresso produção e diagramação

Beatriz de Oliveira editora gráfica


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Goiânia, abril de 2019

- ESPORTE -

o sumiço da torcida goianos estão abandonando os templos do futebol em goiás

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Reportagem Fabrício Vera e Marcelo Augusto Edição e Diagramação Giovanna Campos

Segurança Na questão da segurança, criou-se um medo de frequentar estádios totalmente justificado. Em 2017, 11 pessoas foram assassinadas e 104 sofreram agressões sérias nos estádios brasileiros, segundo dados de um levantamento anual realizado pela pesquisa de mestrado coordenada pelo sociólogo Maurício Murad, professor da Universidade Salgado Filho do Rio de Janeiro. Sobre esse problema, Helton Nunes, assistente de comunicação, destaca: “A violência no futebol não é causada pelo futebol em si, seria um reflexo do aumento da criminalidade urbana”, o que tem sentido se observarmos que o país registrou 63 880 homicídios em 2017, segundo a ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para melhorar o público nos estádios, Diego sugere não só melhorias nas estruturas das arenas, mas também organizar o acesso com transporte público e um trânsito livre. João Vítor acredita que os times goianos já começaram a se mobilizar para atrair a torcida de volta, com construções de estruturas físicas própria, como o

Com os movimentos bairristas e um fortalecimento do futebol dos times daqui, conseguimos alavancar um crescimento no número de torcedores joão vitor lopes Autônomo e torcedor do Goiás

Atlético/GO e o Goiás que estão reformando suas casas, o Antônio Accioly e a Serrinha, respectivamente. Outro ponto são os programas de sócio torcedor, uma espécie de programa de fidelidade entre torcedores e clube, sendo uma forma de baratear a ida aos jogos e de ajudar o próprio time do coração, segundo Alessandro Portela. No assunto conforto, além de reformas estruturais, podemos citar outras questões, incluindo comidas e bebidas. Para Alex Rodrigues, os preços praticados nesses serviços “assustam” os fanáticos por futebol. Muito relacionado ao conforto, está o custo benefício, como exemplifica Diego Stanescon: “Você paga R$25,00 em um ingresso de cinema e não reclama que está caro”, em seguida ele próprio justifica: “Você pode não gostar de filmes, mas não reclama porque você senta em uma cadeira confortável, em uma excelente

visão da tela e o banheiro é a coisa mais linda do mundo”. Em comparação, no jogo Goiás e Londrina no dia 02 de outubro de 2018, por exemplo, o preço do ingresso foi R$ 40,00 a inteira. soluções Na questão da violência, Ricardo Rodrigues pede uma cultura mais pacífica entre os torcedores, enquanto Diego Stanescon também sugere um melhor preparo dos profissionais que realizam segurança nas partidas, sejam eles policiais militares ou seguranças privados. Como última ideia, João Vítor sugere uma fortalecimento de clubes locais: “Creio que com os movimentos bairristas e um fortalecimento do futebol dos times daqui, conseguimos alavancar um crescimento no número de torcedores de times Goianos”. Esse é um movimento que engatinha e precisa crescer para as torcidas goianas serem mais fortes.

Foto: João Paulo di Medeiros e Rosiron Rodrigues Montagem: Fabrício Vera

no de 1999, sexta rodada do campeonato goiano, Goiás e Vila Nova travam mais uma batalha no estádio Serra Dourada. A equipe esmeraldina ostentava uma grande força ofensiva para a partida. Jogadores como Fernandão, Araújo e Aloísio, posteriormente conhecido como Chulapa, fechavam uma trinca de ataque. O Tigre da Vila também era feroz, liderava o torneio com 100% de aproveitamento e estava de garras afiadas para o confronto. Fora do gramado, outra disputa entre as duas torcidas. O Serra Dourada estava de casa cheia, metade verde e metade vermelha, para um público de 47.712 pagantes que lotava tribuna, cadeiras, arquibancadas e a geral. Bandeirinhas, bandeirões, sinalizadores, fumaça e fitas de todos os tipos endossaram o apoio das torcidas junto com os cantos, sejam provocativos ou de apoio para o time. “Naquela época era um ambiente tranquilo, um ambiente para torcer”, relata o torcedor do Vila, Alessandro Portela, profissional de educação física e um dos fundadores da torcida organizada Camisa 12. Pelo lado verde, o estudante de engenharia civil Diego Stanescon afirma que nessa época o futebol era “raiz”, com liberdade para torcer. O repórter e narrador da CBN Goiânia, Alex Rodrigues, lembra que, no passado, os torcedores eram amigos, acima da rivalidade: “O fato de um torcer para clubes diferentes, era apenas um motivo a mais para que eles incentivassem suas respectivas equipes, no intuito de poder um pegar no pé do outro ao final da partida”, ele ainda conta que os rivais assistiam juntos na arquibancada e iam embora no mesmo transporte coletivo. No final do clássico, apenas a metade vermelha festejou após uma virada histórica, transformando um 3 a 0 esmeraldino para um 5 a 3 colorado. Quase 20 anos depois, em 2018, os estádios não estão sendo ocupados como antes. Os dérbis - duelos entre clubes da mesma cidade - estão sendo disputados com torcidas úni-

cas. No dia 25 de agosto de 2018, o clássico Goiás x Vila contou apenas com vilanovenses, com um total de 9.364 pagantes no Serra Dourada. Se os clássicos decaem, o público do campeonato goiano caminha para o mesmo sentido. De 2008 para 2018, as médias do campeonato caíram de 5.466,6 pessoas para 3.093,4 expectadores, uma queda de 43% em dez anos. Os próprios torcedores evidenciam em seus discursos as razões dessa redução. O vileiro Ricardo Rodrigues, advogado, afirma que as principais causas são a segurança e o financeiro, muito por conta da recente crise econômica que o Brasil passou. Outro esmeraldino, o autônomo João Vítor Lopes, acredita que a crise corrobora com outro problema, a qualidade das estruturas das arenas, afetando o conforto. Ainda sobre os estádios, Diego ressalta: “querem transformar os estádios em teatros, para espectadores”, o que acabaria com a graça de torcer, segundo o estudante. Ainda dentro desse assunto, André Rodrigues de Oliveira, apoiador do Atlético/GO e representante comercial, expõe as transmissões esportivas via televisão, que são indiscutivelmente mais confortáveis e práticas.

os Torcedores

Em 2018, o público do Goianão chegou a 3.093 pessoas por partida


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Goiânia, abril de 2019

- BAIRROS -

DISTANCIAMENTO CENTRAL QUE EMPOBRECE O VALOR SIMBÓLICO DO CENTRO Reportagem Marina Viana Edição E Diagramação Gianna Clara

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INVERSÃO Bancas montadas e ambulantes nas calçadas, músicas vindas de dentro

comerciantes não percebem que, na época de hoje, não precisa de letreiros tão grandes para chamar a atenção de compradores”. A própria arquitetura do prédio que abriga a loja poderia – e deveria – ser o atrativo principal para os clientes. POTENCIAL O panorama cultural do centro de Goiânia é de uma carga subjetiva intensa e muito particular, moldado em composição com as ruas, as construções, os monumentos e a própria vivência das pessoas. Sobre esse aspecto, Maria Lemke admite que o centro ainda é mágico: “Se a gente parar para olhar, a história pode ser contada a partir dali e é uma pena que as pessoas, na correria do dia-a-dia, por exemplo, não enxerguem o que significa aquele Anhanguera olhando para o oeste”. À medida que o olhar se aproxima da vida do centro de Goiânia, fica Foto: Giovana Paula

contexto político e econômico dos anos 30 – com a marcha para o oeste de Vargas, o deslocamento de poder da Cidade de Goiás e a nomeação de Pedro Ludovico Teixeira para interventor federal – compôs o cenário para o nascimento de Goiânia, em 1932. A elaboração do projeto urbanístico da nova capital, feito por Attilio Correia Lima, configurou uma estética moderna à Goiânia, com bases no estilo Art Déco. Uma parte da cidade, entretanto, teve relevância fundamental: o centro. Essa região foi o núcleo de povoamento a partir do qual cidade se desenvolveu. A configuração urbanística do centro foi planejada sob aspectos políticos, para que tudo pudesse irradiarse a partir dele; tanto que as principais avenidas dessa região – Goiás, Tocantins e Araguaia – convergem para o Palácio das Esmeraldas, a sede do Governo Estadual, desde 1937. A setorização dentro do próprio centro é uma característica determinante: existe a parte administrativa, comercial e uma terceira para moradia. De acordo com a professora de História, Maria Lemke, essa divisão é o que faz do centro de Goiânia uma das melhores representações da ideia de ordenamento. Tudo é pautado pela ordem. Na década de 50, o centro já se destacava na arquitetura brasileira, pelo estilo específico dos prédios que foram construídos. Foi também durante esse período que as taxas demográficas dessa área começaram a aumentar. De acordo com o IBGE, o planejamento inicial da cidade – que era de 50 mil habitantes – foi ultrapassado em quase três vezes quando chegou a década de 60, chegando a mais de 150 mil pessoas. Desse número, cerca de 75% viviam no território urbano que, entre outros setores, englobava o centro. Esse crescimento demográfico foi um dos elementos que fortificou o aspecto comercial e de prestação de serviços do centro de Goiânia.

das lojas, pessoas entrando e saindo do eixo, indivíduos apressados pelas ruas e o típico tráfego lento ocupa as avenidas do setor. Esse é o panorama do centro entre segundas e sextas-feiras, a partir do momento que os comércios abrem até o horário de pico quando, em geral, fecham as portas. Por outro lado, nos finais de semana ou feriados, o cenário que fica é de um acentuado abandono. Sobre a sensação de isolamento do centro fora dos horários comerciais, a graduada em Direito, Camila Borges – que é moradora do setor há 2 anos e meio – pontua: “Acho que o maior contraste é no horário de verão; quando eu não morava aqui, eu vinha muito no centro, nessas livrarias e eu esperava dar umas sete horas, porque o eixo das seis era sempre muito cheio, e eu via esse esvaziamento”. Camila ainda ressalta: “Acho que é um movimento até meio poético que diz muito sobre

O Bandeirante passa despercebido em meio ao movimento comercial a própria estrutura de abandono”. Um dos grandes problemas sobre essa desvalorização do centro está no fato de as pessoas o enxergarem como um local de passagem e não de permanência. O comerciante José de Almeida, feirante há 34 anos na Rua do Lazer, ressalta que, em geral, as pessoas vão ao setor para fazer somente uma atividade específica e depois retornam para seus respectivos bairros. É o caso da também comerciante Maria José Ferreira, que possui uma banca há 25 anos na mesma feira: “Durante a semana costumo vir aqui nas terças e quintas, para resolver coisas de banco e ir na igreja”. Outro ponto é a própria estética que os comércios do centro carregam, em função da mentalidade dos empresários mais tradicionais. De acordo com o comerciante Luís Carlos dos Santos, trata-se de uma concepção cultural; ele afirma: “grande parte dos

mais evidente como isso contribui para o entendimento histórico da cidade. Camila Borges, por exemplo, revela que atravessa o centro para tudo e tem prazer de andar pelo setor; com relação às atividades culturais do centro (teatros, cinemas, exposições), ela afirma que pode não ser muito comunicado mas, por outro lado, há uma questão de desigualdade, pois “nem para todo mundo é tão fácil chegar até o centro”, comenta Camila. De acordo com o estudante de Engenharia de Produção Matheus Naves,

morador da região há 3 anos e meio, o centro de Goiânia é um espaço subutilizado, sub-ocupado e cujas atividades culturais têm caráter de nichos. “Acho que o ideal seria fomentar um pouco mais a vida noturna do centro”. Além disso, os espaços que o centro oferece têm potencial para serem muito mais bem utilizados, como a própria avenida Goiás que, nas palavras de Maria Lemke, possui o formato de boulevard francês. Sobre isso, Matheus ressalta que o espaço dessa avenida poderia ser usado tanto para atrair pessoas quanto para girar a economia dessa região. A sexta-feira é literal e, metaforicamente, o intermédio entre o fluxo agitado nos “dias úteis” e o abandono nos fins de semana. Entre 19h e 22h, na calçada do Grande Hotel, acontece o Chorinho – um projeto com atrações musicais e entrada gratuita – quando o centro de Goiânia tem sua subjetividade lembrada, mesmo que temporariamente. “É um momento em que a gente vê pessoas de várias idades; já levei minha irmã de 10 anos pro Chorinho. A gente vê uma variedade de pessoas e uma ocupação muito grande do centro”, comentou Camila Borges, que frequenta o local desde 2010. Em março deste ano foi criado um projeto de lei que promove alterações no Plano Diretor da capital; uma das propostas do projeto é revitalizar o centro. Segundo a estudante Thelma Rocha: “o pedido do projeto já foi deferido pela Secretaria de Cultura e agora o processo segue, com trâmite normal para tombamento”. Além disso – numa tentativa de estimular as habitações no centro – moradias que forem construídas nesse setor não terão cobrança de IPTU caso seja aprovado o projeto do novo Código Tributário Municipal (CTM), que já está em tramitação na Câmara. A configuração urbanística do centro permite que seus espaços possam ser mais bem aproveitados. Algumas atividades destacadas pelos entrevistados foram: a realização de feirinhas e sarais na avenida Goiás, a exploração dos pólos gastronômico e turístico e performances nas ruas. Na questão turística, por exemplo, Camila Borges ressalta: “Morando em Goiânia a gente não consegue conhecer nossa própria cidade”.

O COMÉRCIO

Morando em Goiânia a gente não consegue conhecer nossa própria cidade camila borges Moradora do Centro


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Goiânia, abril de 2019

- MODA -

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DOIS CABIDES, DOIS PREÇOS OPOSTaS COEXISTEM NA CAPITAL DO VESTUÁRIO Reportagem Lara Fernandes e Maryana Souza Edição E Diagramação Marina Viana

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INSUSTENTÁVEL Contudo, essa rotina não traz vantagens para todos envolvidos no ciclo das roupas. Fátima Silva, faccionista que costura peças para lojas da região, trabalha em casa e consegue cuidar da família ao mesmo tempo em que produz até 100 peças por dia. Ela garante que com a remuneração “não dá pra ter luxos, mas dá pra viver”. Por baixo do cansaço do cotidiano, Joelma Ferreira confidencia o quanto ser vendedora na região é difícil: administrar sozinha a loja, exercer muitas funções, trabalhar nos finais de semana por um salário que não compensa. “Na 44 você não tem vida social”, ela desabafa.

tural Cora Coralina e as pessoas se espalham pelas bancas que participam de mais uma edição do Mercado das Coisas. Alguns aproveitam o passeio para visitar as exposições de arte sediadas na Vila Cultural, enquanto outros passeiam com o cachorro e as crianças brincam livremente. Na contramão de lojas nas quais o foco é o incentivo ao consumo em excesso, os eventos que fomentam a economia criativa procuram conquistar cada vez mais espaço em Goiânia. O perceptível contraste entre os dois ambientes mostra duas vertentes distintas na indústria da moda. Localizadas em um espaço onde o tempo parece adquirir um ritmo desacelerado, as feiras de consumo consciente ocorrem mensal ou semanalmente e buscam

O ambiente agradável e confortável também faz parte do processo de consumo greice aguiar Professora

Manter um negócio nessa região ocupa uma carga horária bastante alta na vida de uma pessoa. Carla Felipe, formada em publicidade e sócia da marca autoral Duo47, conseguiu manter a rotina frenética exigida pela região por apenas três meses. Os dias eram resumidos a acordar sempre cedo para tentar conciliar as obrigações profissionais com a maternidade, no entanto, a loja a consumia de uma maneira que não restavam tempo ou energia para fazer nada para si mesma. Carla comenta que a região da 44 é um mercado que “só funciona para a China” e onde é impossível ser um produtor pequeno, já que os preços devem estar sempre baixos e as roupas passam por um ciclo muito rápido. Além disso, Carla ressalta que o trabalho de uma marca autoral não é só vender, mas gerenciar todos os processos envolvidos. Isso inclui desenvolver o conceito, escolher tecidos, criar uma peça do zero, conviver com fornecedores, divulgar as coleções e apresentar a história por trás de cada roupa. Esse compromisso também engloba valorizar cada pessoa que essa produção abrange. “Quando você pede para faccionistas locais cobrarem três reais, você promove uma mão de obra escrava na sua própria cidade, uma espécie de ‘escravo legalizado’”, ela denuncia. sustentável Enquanto uma banda performa um show ao vivo, o cheiro de pipoca toma conta do corredor da Vila Cul-

promover um contato afetivo entre quem compra e vende as peças. “O ambiente agradável e confortável também faz parte do processo de consumo”, afirma a professora Greice Aguiar. O segredo para essa expansão é pensar sempre em proporcionar satisfação ao consumidor. Manter um contato com o cliente, apresentar os modos de produção e trazer itens com maior qualidade são a base dos valores sustentados por marcas que promovem o consumo consciente. Para valorizar esses processos, o preço das peças de produtores locais se torna mais alto do que as pessoas estão acostumadas a pagar, seja na região da 44 ou nas lojas de departamento de shoppings. A publicitária Carla enfatiza que busca sempre estabelecer valores justos e acessíveis, mas que “o acessível não quer dizer que é barato, quer dizer não é super caro”.

A consciência, no entanto, não fica só no âmbito da fabricação das peças. Muitas dessas marcas também trazem um pensamento ambiental ao reaproveitar todos os rastros da produção. Na Duo47, retalhos de tecido viram itens de decoração, bolsas e novas roupas. Luana Marques, estudante de moda que criou o próprio atêlie, explicita que aproximadamente 80% das suas criações também são feitas de retalhos. Já Isabella usa nas embalagens de sua marca, a Capitonê, sobras de papel da papelaria artesanal Velame Branco. Essa parceria entre criadores também é reflexo dessa consciência: ninguém é visto como concorrência, mas como um aliado no crescimento desse mercado. Futuro Marcas autorais são um mercado novo em Goiânia. Como Isabella conclui, em São Paulo, Brasília e outras cidades maiores, já existem mais feiras e mais oportunidades, enquanto “aqui, você ainda está arrumando a casinha”. Para a estudante, o objetivo é conseguir se sustentar com as próprias criações, sem precisar de trabalhos paralelos. No entanto, o limite para o comércio consciente não é o céu, mas sim o próprio comércio da região. Luana pontua que existem dificuldades em encontrar bons fornecedores, e ao mesmo tempo, manter o preço e obter margem de lucro. Carla acredita que é possível que todos cresçam ao apoiar uns aos outros e, especialmente, com apoio entre mulheres, que representam uma parte dos criadores dessas marcas. Como mulher, ela declara que se sente feliz de acrescentar e aprender com as experiências de outras mulheres, porque “quando uma cresce, todas crescem”. Ao falar da 44, a sócia da Duo47 demonstra que não tem vontade de fechar a loja no Setor Sul e retornar para lá. Contudo, não deixa de acreditar no potencial da região de continuar como pólo de moda, mas frisa que uma mudança na mentalidade de quem produz, vende e compra é necessária para que a 44 também seja um comércio mais justo. Foto: Lara Fernandes

que mais se escuta na rua 44 é “vamo dar uma olhada nas roupas, estão de promoção”. As vozes dos vendedores ambulantes ecoam nas calçadas e tentam chamar a atenção das pessoas que passam pelo local e se misturam com o barulho de trânsito da cidade e com as conversas dos consumidores. Goiânia é conhecida como a capital da moda pela alta concentração de confecções de vestuário, principalmente na região da 44. No entanto, existem marcas que fazem o contrário do que é realizado nessa confecção de massa. Dentro das lojas, cubículos abarrotados de roupas, coexistem preços de atacado e varejo e, apesar de ser um ambiente interno, o barulho e a sensação abafada permanecem. A rua 44 em si tem 700 metros, mas forma, com as várias ramificações, uma região que comporta milhares de lojas. Esse espaço menor que 1 km comporta um tráfego de milhões de clientes, de acordo com a Associação Empresarial da Região 44 (AER-44), principalmente nos finais de semana e em datas comemorativas. Consumidores andam com rapidez nas ruas internas das galerias, o que leva o mercado e a produção a se mover no mesmo ritmo. Para lojistas, isso é bom, pois move a economia. Neuma Santos, dona de uma loja na região, afirma que é importante “ter um produto de qualidade… e o preço também ser acessível, né?”. Além disso, a comerciante também ressalta que é necessário trazer sempre novidades e roupas que estão na moda para atrair a clientela. A cliente Evellyn Guedes coleciona várias peças da região. Nos sábados em que deseja complementar o guarda-roupa, ela encara a estrada que separa Anápolis de Goiânia, a dificuldade de estacionar o carro e a multidão de clientes para conquistar ótimos “achados”. “Eu gosto da 44 porque é barato, mas sei que a qualidade é inferior às demais lojas”, ela conta. O baixo valor dos itens também é o que atrai o público de outros estados, que viaja diversas horas, ou até mesmo dias,

exclusivamente para comprar grandes quantidades em atacado.

tendências

Consumidores buscam formas alternativas de consumir conscientemente


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Goiânia, abril de 2019

- COMPORTAMENTO -

Instagram contra a parede MAIS CRESCE NO MUNDO PODE AFETAR A SAÚDE MENTAL REPORTAGEM Sara Andrade EDIÇÃO Gustavo Paiva DIAGRAMAÇÃO Sabrinna Coutinho

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uas tardes preguiçosas foi o tempo necessário para que uma enquete deixasse cem pessoas mais pensativas. Era como se uma moça, sua caderneta e suas perguntas desagradáveis tivessem o poder de extinguir a leveza alegre de um papo depois do almoço e deixasse como legado, uma cabeça baixa, alguns olhos distantes e uma ou duas risadas de desespero. Mas havia nobreza que justificasse o constrangimento de quem perguntava - com os olhos mirando a folha de papel - e de quem respondia, com o olhar fugaz de um passarinho de pescoço ligeiro. “O Instagram pode ser prejudicial à saúde mental e autoestima dos usuários?”. A enquete, feita no Campus Samambaia da Universidade

Federal de Goiás, na cidade de Goiânia, se propunha a descobrir. Investigado O Instagram é uma rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos. Criada em 2010 por Kevin Systrom e pelo brasileiro Mike Krieger, hoje pertence ao grupo Facebook Inc., de Mark Zuckerberg. Em junho de 2018, o Instagram anunciou a marca histórica de 1 bilhão de usuários mensais no mundo todo. É teoricamente dizer que uma em cada sete pessoas do planeta são ativas no aplicativo. O Brasil tem lugar de destaque nesses resultados: é o 2º país mais presente na rede, com 50 milhões de usuários (quase ¼ da população brasileira), ficando atrás somente dos Estados Unidos. Pesquisas realizadas em 2017 pela Royal Society of Public Health, instituição de saúde do Reino Unido, em parceria com o Movimento de Saúde Jovem britânico, avaliaram o Instagram como a rede social mais danosa à saúde mental de seus usuários, impactando o sono, a autoimagem e aumentando o medo dos usuários de estar fora dos acontecimentos recentes. Essa realidade, segundo a pesquisa feita pelo Samambaia, não é, nem de longe, exclusiva dos jovens britânicos. Inquérito

Ilustração: Abner Marcelo

Após 105 pessoas serem paradas com um “Boa tarde, você pode me ajudar?”, 100 delas disseram usar o Instagram. Autodeclararam-se entre 57 mulheres e 43 homens, de 16 a 51 anos, com faixa etária média de 20,4 anos de idade. No segundo e ainda leve momento, os participantes calcularam o tempo diário passado no aplicativo. Dos entrevistados, 67% se dividiram entre “uso o dia todo” e “sempre que tenho tempo livre”. E enquanto 12% por cento se posicionavam contra a maioria, alegando o “não uso todos os dias”, outros

21% se moderaram entre “30 minutos e 1 hora”, de uso. “Você já se comparou fisicamente com alguém no Instagram?”. Essa pergunta parece engraçada? Algum humor demasiadamente inteligente? Pois as pessoas riram e quase em consenso. Pode ser que de algum modo improvável elas combinaram reações. E, claro, as respostas. 78% das pessoas responderam que sim, e se justificaram sem que nada de concreto lhes exigisse: “sempre né, aquele cara sarado, aquela blogueirinha fitness”. Patrícia Grilli, psicóloga e fundadora da empresa Psicologia Empreen-

já afetou sua autoestima?”. Sobreviventes, 66% disseram que sim, sendo 41 mulheres e 25 homens. Entre os cem, uma enchia a boca de comida e ia contando: “tem uma menina linda que eu sigo e olho fotos dela todos os dias. Só pra sofrer”. Grilli analisa que se trata do “princípio de prazer e morte”. O psicanalista Sigmund Freud e a neurociência explicam que dor e prazer seguem o mesmo caminho no corpo até o cérebro. Literalmente, são os mesmos nervos. O cérebro, então, tem dificuldade de distinguir. Seria o Instagram um espelho

REDE SOCIAL QUE

Você tem o poder de mudar a chave do seu raciocínio Patrícia Grilli Psicóloga

dedora, justamente no Instagram, explica que o fenômeno de comparação com outro indivíduo parte da falta do que chama de autoconhecimento. “As pessoas não se percebem. Por isso precisam terceirizar responsabilidades. Eu me separo do outro; eu não sou o outro”. A pergunta seguinte da enquete qualifica os efeitos possíveis dessa comparação. “Já se sentiu insatisfeito com sua aparência ou estilo de vida, enquanto olhava publicações no Instagram?”. Os risos aqui, já mais quietos, davam um tom de conformidade pesarosa às respostas. Os 28% de cabeças erguidas - e vozes similares - que responderam com uma negativa, contrastavam com os 72% que assumiram, quase em confissão, que sim, estiveram insatisfeitos consigo enquanto acompanhavam as publicações de outras pessoas. Lara Satler, professora na UFG e Doutora em Arte e Cultura Visual, explica que a imagem é uma ferramenta de afirmação. “O objetivo é que você se mostre. Não é um espaço de facilidade de pertencimento para muitos, mas quanto maior a diversidade de imagens no Instagram, mais fácil será para que você se sinta ali”. Patrícia Grilli, pela psicologia, dialoga com Satler: “Nós subjetivamos do mundo tudo o que vem de fora. Colocamos pra dentro da gente. Quando você cria o conteúdo e se coloca na plataforma, o nome disso seria que você também se objetiva no mundo”. Veredicto A última pergunta já não parecia causar espanto, risos ou desvios de olhares. E matava a questão: “Você acha que o Instagram, de maneira negativa,

da realidade? “Sim!”, enfatiza Grilli. “Como qualquer outra coisa que o ser humano criou! A plataforma pode abaixar a autoestima de uma pessoa? Pode! Assim como ler um livro ou ver alguém na rua”. O Instagram, na análise da profissional, é apenas um lugar. “Existe um livre arbítrio ali e você não é um coitado bombardeado. Você só segue quem quer!”. A neurociência afirma que a maturidade cerebral, responsável pela compreensão e tomada de decisões, só é alcançada aos 21 anos no ser humano. “Não se desespere com seus comportamentos. Os processos de autoestima vão se fortalecer sem que você perceba”, conforta a psicóloga. Na enquete, todos os entrevistados acima de 40 anos responderam que não se comparam, não se sentem insatisfeitos e nem acham que suas autoestimas são afetadas pelo uso do aplicativo. O mais velho dos entrevistados, um homem de 51 anos, interrompe seus assuntos de mesa redonda e dispara: “Olha pra mim! Eles é que devem se comparar comigo!”. “Você tem o poder de mudar a chave do seu raciocínio!”, incentiva Grilli. E sobre a exigência dos padrões de perfeição: “Aonde está escrito isso? Resignifique”. Ela aponta para a falta de propósito na vida das pessoas: “O que você tem feito para deixar a sua vida mais interessante?”. Usuários do Instagram também desenvolvem perfis que falam de bem-estar, saúde, empoderamento, estudos e autoestima. São alternativas para um uso benéfico e positivo de uma rede social que, segundo estimativas do mercado, ainda crescerá muito. As palavras finais ficam por conta de Grilli: “Se não quer ser entendido por suas fotos, não esteja no Instagram”. Sinta-se provocado.


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- HOMOFOBIA -

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Além do arco-íris abrigo familiar como alicerce no coração De todos Reportagem Ysabella Portela Edição E Diagramação Tainá Azevedo

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nada, na verdade só melhorou”, relata.

Felizmente, essa estrada pode ser acolhedora em outro núcleo familiar, como a casa com três mulheres. A liberdade ali está sempre na primavera. As duas maiores flores se encontraram e se apaixonaram, a terceira - fruto de uma relação anterior - compreendeu com simplicidade a leveza do amor. “Minha relação com a minha mãe é incrível, somos muito próximas, conversamos sobre tudo, sem exceções! Somos melhores amigas! De início eu não entendia muito bem sobre o assunto, mas mesmo não sabendo direito do que se tratava eu achei algo super normal, e acredito que ela se sentiu muito aliviada de ver que mesmo depois dela ter me contado sobre sua sexualidade, a nossa relação não mudou absolutamente em

pela Diversidade - Goiás, Lilian Olga Oliveira sobre a experiência com o filho. Para ela o fundamental é o bom diálogo dentro de casa. Ela conta que o filho um dia chegou para conversar com ela e disse “mãezinha, eu sou um homem trans” e ela sem saber o que isso significava perguntou o que era, pois até então nunca tinha escutado falar sobre. “A todo momento meu filho me respondeu tudo o que eu o perguntava e sempre de uma forma paciente. A minha dificuldade foi em relação ao preconceito que ele sofreria na sociedade, pois todos os dias matam a população dessa comunidade, além dos altos índices de suicídios”. Lilian fala que se calará apenas quando morrer, pois a batalha é diária. “Não peço somente pelo meu filho, porque eu

sinto que todos os LGBTI+ são meus filhos e eu luto por todos”. Quando questionada sobre o melhor caminho para conscientizaçãodas pessoas quanto a intolerância sexual, a afirmação foi certeira: “mostrar o amor”. E o amor, de fato, nos faz verdadeiramente livres. “Eu quero gritar, eu quero falar pras pessoas sobre respeito e paz, eu quero que meu filho saia de casa, mas quero principalmente que ele volte. Unidos somos mais fortes!”

ACOLHIMENTO O “Mães pela Diversidade” é um coletivo com a finalidade de oferecer suporte aos jovens que fazem parte desse mundo e seus familiares. Esse grupo possui um cunho político mas também inspira afeto. Faixas com mensagens “Tire seu preconceito do caminho, queremos passar com nosso amor” e “Pais, saiam do armário. Seus filhos precisam de vocês!” marcam presença nos trios elétricos das paradas LGBTI+ por todo o Brasil. Além do posicionamento político em reivindicar direitos, essa ociação promove eventos com a participação de mães, pais, filhas e filhos para que assim possam conversar sobre sexualidade e a importância do apoio familiar. “Eu achava que estava sozinha no mundo, que era a única mãe que lutava pelos direitos do meu filho. Gostaria de ter tido as informações que tenho hoje quando ele ainda era criança” diz a coordenadora do Mães Imagem: Ysabella Portela

oiânia, domingo de manhã. Na Praça Cívica uma multidão se reúne para participar da 23° Parada do Orgulho LGBTI+. Um dia festivo para celebrar o amor. A principal praça da cidade estava tomada pelas cores do arco-íris, um fenômeno que de acordo com a física ocorre quando a luz do sol se divide nas gotas de chuva, durante uma tempestade. O que impossibilita de ver esse arco colorido é a nebulosidade causada pelo temporal, podendo ser visto apenas na presença da luz. Sendo assim, a bandeira representativa da diversidade sexual pode ser observada como um simbolismo de algo que sempre existiu, mas que é turvado por tanto preconceito. Esse mundo ideal e colorido foi vivenciado na última edição da Parada do Orgulho LGBTI+ com o lema Vote Diversidade, Eleja LGBT, entretanto nos outros dias a realidade é bastante diferente. Segundo o relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) de 2017, naquele ano foi registrado o maior número de assassinatos de homossexuais desde que começou esse monitoramento anual há 38 anos. A média é de uma pessoa morta a cada 19 horas. O primeiro Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, realizado por um grupo de pesquisa que estuda o assassinato de mulheres lésbicas – As histórias que ninguém conta, aponta o crescimento dessa violência, revelando 180 homicídios entre os anos 2000 e 2017. E quando esse sofrimento começa na família? A verbalização acerca da sexualidade resulta em um caminho que pode ser custoso quando se convive com pessoas homofóbicas dentro de casa. O tempo nublado é presente na vida de muitas pessoas. Mas hoje, um feixe de luz surgiu, e com ele trouxe ela, uma mulher, com suas roupas coloridas, piercings, anéis e um grande sorriso enfeitandoa. “Quando me assumi em 2007 aos 15 anos, as coisas não foram fáceis. Passei cerca de um mês ensaiando para contar pra minha mãe, mas os meus amigos da época diziam que ela surtaria e que me maltrataria. Infelizmente foi o que aconteceu. Era hora do almoço quando minha mãe começou a dizer algumas coisas

soltas, mandando indiretas sobre minha sexualidade e eu confirmei. Foram os piores anos da minha vida, pois fui obrigada a frequentar igrejas, ter pessoas vigiando meus passos quando eu saía de casa e quase um ano de castigo sofrendo as piores ofensas imagináveis, como a que o demônio estava no meu corpo falando por mim ou que eu estava doente. Minha mãe tentou me expulsar de casa e o meu irmão deixou de me apoiar, assim tudo se transformou em uma desavença na família”, relata a publicitária que pediu anonimato. Sua luz conseguiu transcender junto com o arco-íris e ela diz que hoje a relação com a mãe é harmoniosa. “Ela tem orgulho de mim e me trata como o ser mais precioso da vida. Aceita a presença da minha namorada em casa, me ajuda com eventuais roupas pra eu ir em Paradas do Orgulho LGBTI+ e me aconselha. Ainda temos nossas diferenças, mas nada relacionada à minha sexualidade”, conta.

a IMPORTÂNCIA DO

Eu quero que meu filho saia de casa, mas quero principalmente que ele volte Lilian Olga Oliveira Coordenadora do Mães pela Diversidade - Goiás

LUTA “O ativismo hoje é questão de sobrevivência”, essa fala ilustra o que deve ser feito nesses tempos difíceis, segundo Michely Coutinho, advogada e militante. “É inegável a ampliação de direitos a LGBTI+, mulheres, indígenas, negras/os e outras populações. E também é inegável entender que esta agenda pertence a uma plataforma política específica e progressista, pois um governo sem compromisso, é capaz de jogar por terra toda uma centena de direitos em poucos meses.” Além da luta de todo dia, ela acredita que a publicidade destinada a essa comunidade e a presença de casais homossexuais nas novelas ajudam a criar o debate dentro de casa, pois a visibilidade é fundamental para quebrar o tabu e naturalizar as formas de se vivenciar a sexualidade. “Isso é respeito, cidadania e civilidade”, afirma Michely. Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia 2016 - Hábitos de Consumo de Mídia pela População Brasileira, feita pela Secretaria de Comunicação Social do governo, 63% dos brasileiros tem a televisão como o principal meio de informação, consequentemente influenciador de opinião. A militante diz “aw mídia, portanto, tem o dever de cumprir sua função social de promover um debate saudável, respeitoso e sem preconceitos sobre todas as formas de sexualidade, ressaltando a diversidade como pilar civil social. Muitas vezes, é a partir de um programa de TV ou uma novela que o debate se inicia em um lar onde tenha um membro homossexual. Se aquele programa traz estigmas, preconceitos e desinformação, o que poderia ser um ponto inicial de diálogo, se torna um entrave na comunicação familiar”. Como sinaliza a advogada, a população precisa estar em alerta a rejeitar os discursos de ódio e fake news. Essa onda de desinformação deixando explícito que a trajetória para uma cidadania íntegra passa pela agenda da tolerância e respeito midiático. Os conceitos de representatividade e visibilidade precisam ocupar espaços sociais na atual conjuntura pública. “Ser visto” é necessário, e dessa forma a camisa da luta por direitos é vestida, assim como o trabalho das Mães pela Diversidade, pressionando o Estado por políticas públicas com o intuito de garantir a respeitabilidade desses grupos.


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- SAÚDE -

Não pereça À Primeira Recusa suporta demanda, mas há outras saídas para conseguir o auxílio Reportagem Caroline Mota e Sabrinna Coutinho Edição E Diagramação Marina Viana e Lucas Humberto

L

igia Montagna, de 33 anos, conta que um dia estava muito mal e foi ao Saudavelmente para conversar e pedir ajuda. “Fui procurar atendimento de emergência. Cheguei tentando segurar as lágrimas para conseguir falar. Me olharam com cara estranha, não me atenderam e ainda disseram que eu teria que voltar outro dia pra colocar o nome na lista de espera”. Andando pelos campi, buscando histórias e descobrindo vivências, é fácil ter uma percepção do quão comum são narrativas como a de Ligia. O garoto que não consegue mudar sua dosagem medicamentosa por falta de retorno, a moça que não pôde esperar pelo atendimento, a aluna que não teve, sequer, as ligações atendidas. É,

Além da enorme fila para quem tenta ser atendido, outro detalhe que assusta é o primeiro contato com o programa. Ligia conta que a primeira reunião, que eles fazem em grupo, não é nem um pouco convidativa para quem está sofrendo e precisando de uma pessoa de confiança para conversar. “Ninguém quer se expor em uma roda de alunos. Tenho colegas de classe que realmente precisam de tratamento, com pensamentos suicidas e coisas do tipo, mas não vão pela demora e pelo fato de ter que passar por essa triagem em grupo”. Não é normal se sentir insuficiente em um ambiente voltado para a construção de uma profissão. Isabella Andrade, de 19 anos, comentou que, hoje em dia, você vê facilmente um aluno reclamando de ansiedade, dizendo que o período das provas faz mal, que a carga horária é muito puxada… Segundo ela, isso cria certa banalização em relação à esse mal estar. “Eu sempre pensava que o meu problema estava ‘controlado’, eu poderia deixar a minha vaga para outras pessoas”, completou. A quantidade de salas para as consultas também não supre a demanda de alunos que necessitam do auxílio. Assim sendo, o Saudavelmente requer maior atenção da comunidade acadêmica.

Saudavelmente não

Os problemas sempre parecem piores quando estamos sozinhos.

Ligia Montagna Estudante de Artes Visuais da UFG

Lígia, você não está sozinha. O ambiente acadêmico é considerado, por muitos, ambíguo. Ele molda e amadurece desejos profissionais mas, ao passo que o crescimento intelectual acontece, também acontecem as frustrações. “As formas que eles administram o processo acadêmico, é completamente equivocada. Toda a cobrança desnecessária que eles jogam em cima da gente é um peso errado.” destaca Priscila Lima, de 32 anos. Motivados pelo desejo de dar assistência na área da saúde mental no decorrer desse período, a PróReitoria de Assuntos Estudantis da UFG (PRAE) desenvolveu o Saudavelmente. O projeto foi criado com o intuito de oferecer atendimento sem custo aos estudantes de graduação e pós-graduação. A oferta, contudo, não condiz com tamanha procura. As filas não cessam. A lista de espera não chega ao fim. Muitos alunos não são atendidos.

SaudaVELMENTE Em frente à praça Universitária, ao lado da Casa dos Estudantes, está a PRAE. Ali, realiza-se o projeto Saudavelmente. O programa possui 648 prontuários ativos - pacientes em tratamento - e, acolheu 351 alunos, de janeiro a setembro de 2018; segundo Viviane Ferro, coordenadora do Saudavelmente. A equipe conta com seis psicólogos - cinco atendendo no Setor Leste Universitário e apenas uma profissional no Centro de Saúde Samambaia para ser capaz de atender aos universitários nesse campus. Além disso, a equipe conta com quatro psquiatras. Estes, “não dariam conta de todo mundo”, como afirma a própria coordenadora do projeto. Existem dois tipos de atendimento no Saudavelmente: o de emergência - quando se precisa conversar com alguém no momen-

to e o acolhimento para entrar, de fato, no programa. São realizados dois acolhimentos ao mês, em que os alunos tentam a oportunidade. Após isso, os profissionais constroem o plano terapêutico e a escala de risco para o atendimento. “O que a gente tem percebido é que têm tido casos cada dia mais graves. Então a demanda de atendimentos de emergência, que precisa de um acompanhamento mais imediato, tem aumento consideravelmente”, conta Viviane Ferro. A coordenadora ainda delineia que é uma questão política muito maior. Ela diz que a saúde mental, realmente, está precisando ser cuidada: “É um serviço público que deve ser oferecido”. Nesse viés, é necessária a promoção do bem-estar, para o desenvolvimento adequado do curso e do plano de vida do estudante. ALTERNATIVAS A arte da escuta pode ser a cura que tanto se precisa: “Pouca gente gosta de escutar e, quando escuta, traz julgamentos e opiniões. A Psicologia proporciona que o sujeito entre em contato com a sua própria opinião, com seus próprios conceitos.”, como interpreta Marina Magalhães, diretora da Rede de Psicologia. Uma questão é o próprio momento de quando se buscar por terapia, a resposta é: a qualquer instante, de acordo com Magalhães.

“Quando você estiver sentindo dificuldade com uma situação, qualquer que seja ela; ou quando você quer desenvolver em algum aspecto”, complementa. A psicóloga acredita que a terapia pode transformar vidas, na perspectiva das relações e olhar sobre a realidade. “O ideal é que a nossa sociedade modifique, só que enquanto ela ainda tem muita exclusão e tantos outros problemas, as pessoas adoecem”, completa. O atendimento psicológico é elitista. “Uma sessão custa, em média, hoje, de 150 a 200 reais”, completa Magalhães. Nesse sentido, a Rede de Psicologia, assim como outras clínicas na capital, trabalha em função do atendimento psicológico social: compreende uma triagem para escutar as demandas do paciente e avaliar as necessidades socioeconômicas a fim de definir o valor de sua sessão. Independentemente do atendimento ser realizado no Saudavelmente, ou não, percebe-se que o importante é buscar esse apoio. Segundo a psicóloga, o amparo do profissional ajuda as pessoas a lidarem com o mundo de forma mais leve, fazendo com que busquem a felicidade, não só quando há transtornos, mas problemas de qualquer tipo, porque todo mundo passa por dificuldades. “Como é que cuidamos do outro, se não cuidamos de nós mesmos? Não faz sentido”, conclui a estudante Jéssica Maboni.

onde conseguir atendimento? GRATUITO (62) 3209-6243 SAUDAVELMENTE - PRAE/UFG (62) 3272-5089 CLÍNICA ESCOLA - UNIALFA (62) 3946-1198 CLÍNICA ESCOLA - PUC/GO (62) 3238-3719 NÚCLEO DE PSICOLOGIA APLICADA / UNIVERSO (62) 3281-8581 NÚCLEO DE PSICOLOGIA APLICADA - UNIP

VALOR SOCIAL (62) 3922-3204 REDE DE PSICOLOGIA (62) 3609-0942 INSTITUTO SKINNER (62) 3922-3902 ARMAZÉM DE DENTRO (62) 3941-9030 SOCIEDADE GOIANA DE PSICODRAMA - SOCEP (62) 3204-2565 INSTITUTO OLHOS DA ALMA SÃ


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- CICATRIZES -

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sofrimento encubado a invisibilidade e o desrespeito à dor em perdas gestacionais e neonatais Reportagem Tainá Azevedo Edição E Diagramação Ysabella Portela

T

estatísticas Kelly Carolina Frauzino se casou aos 24 anos, após se formar em enfermagem, e depois de três anos juntos, ela e o marido decidiram ter um filho. No segundo ultrassom, o médico explicou que se tratava de uma gravidez anembrionária (150 casos/ano no Brasil), como se ela tivesse “botado um ovo e o pintinho não tivesse desenvolvido”. Kelly nunca se esqueceu dessas palavras e da falta de tato do médico. Kelly procurou sua ginecologista de costume, que perguntou a ela se queria expelir naturalmente ou passar por uma curetagem. Abalada e sem pensar no que seria melhor para o próprio corpo, Kelly optou pela segunda forma. Ela chorava, estava frustrada e sofrendo pela perda. As enfermeiras diziam para que ela se acalmasse, pois engravidaria novamente. Mas isso a machucava. Não era o que ela precisava ouvir naquele momento. Três meses depois, Kelly descobriu a segunda gravidez. Receosa, compartilhou a notícia apenas com o marido. Fazia ultrassons a cada semana. Descobriram o sexo do bebê, Pedro. Próximo à décima segunda semana, Kelly acordou no meio de um pesadelo e sofreu um sangramento. Dessa vez, resolveu esperar e expelir naturalmente, mas precisou tomar remédios e passar por uma aspiração. Sofrera agora um aborto retido (estatísticas insuficientes). O centro cirúrgico tinha paredes finas e ela ouvia os partos ao redor. O choro das outras crianças despertava devaneios de que era seu filho.

Kelly apelou ao marido para que nunca mais a obrigasse a passar por aquilo e procurou por ajuda psicológica. Voltaria a tomar anticoncepcionais, mas antes que isso acontecesse, descobriu uma nova gravidez. No primeiro ultrassom, o bebê estava perfeito, mas isso não acalmou o coração da mãe. Os três meses chegaram e, após um ultrassom morfológico, a gravidez começou a fluir. Era uma menina, Lia. Kelly então contou à família. Com 41 semanas, Kelly se dirigiu à maternidade. Lia nasceu, mas aspirou mecônio e foi para UTI. Kelly não a segurou no colo, mas já sentia como se a tivesse perdido. Após dois anos, decidiram ter um novo filho. Em agosto de 2018 ela estava grávida e decidiram manter segredo. Ela sentia muita dor e enjoo. A dor persistia e os hormônios de Kelly estavam anormalmente elevados. Kelly pensava que podia se tratar de uma gravidez molar (uma a cada duas mil gestações). Um novo ultrassom foi feito e constatou que a placenta se transformara em tumor, com um embrião mal formado. Se tratava de uma gravidez molar parcial, com 2% de chance de evoluir para um câncer. Ela ainda está enfrentando os desdobramentos e aumentou a terapia para tentar lidar com mais essa estatística da qual agora faz parte. arco-íris Juliane Colombo é psicóloga e em 2016 criou um grupo de Apoio a Perdas Irreparáveis (API). O grupo tem recebido muita adesão, mas ainda não o suficiente pelo alto número de casos. Ela conta que o luto da mãe é muitas vezes menosprezado, já o do pai é inibido, pois a pressão pelo apoio e por “ser forte” é maior. Também existe um grupo de apoio em Brasília, chamado Mães de Estrelas. Segundo Juliane, os pais deixam de procurar ajuda, pois desvalorizam a própria dor, afinal “Foi tão pouco tem-

po”. Eles são estimulados a ignorar a dor e tentar um novo filho. Juliane explica que as pessoas não fazem isso por mal, elas simplesmente não estão preparadas para lidar com a dor do outro. Mas, independente do tempo de gestação, isso não pode ser diminuído. Nasce ali um bebê arco-íris, representando a esperança da maternidade completa. Muitos relatos de mães incluem violência obstétrica. Os traumas se acumulam e levam ao medo, à vergonha e ao sentimento de fracasso em gerar uma vida. A perda deixa marcas físicas e psicológicas. O vazio no ventre também é uma queixa comum e muitas vezes é somado ao de fora, quando quartos e guarda-roupas são esvaziados na tentativa de amenizar a dor. Para Juliane, em casos de aborto provocado tem mais um agravante. No Brasil, uma mulher que decide fazer um aborto é considerada criminosa, então não procura ajuda e nem divide o fardo com os mais próximos. A escolha não a isenta da dor, mas a sociedade a condena e aumenta a sensação de culpa. Juliane morou por dois anos na Itália, onde tanto o aborto quanto o acompanhamento psicológico da mãe são questões de saúde pública. Ocupar a mente e se distrair não impedem que em algum momento essa dor precise ser vivida e, então, ressignificada. Algumas pessoas passam por isso com mais facilidade, enquanto outras não. Em alguns casos ter outro filho ajuda sim, não por substituir a falta do que fora perdido, mas por validar o sentimento de maternidade. Quando perguntadas se são mães, elas poderão dizer que sim, sem maiores explicações. Em algumas situações, a nova criança enfrenta as expectativas e superproteção dos pais que buscam um vínculo com o outro filho. Em todos os casos, os sentimentos mal resolvidos só geram mais sofrimento. Imagem: Tainá Azevedo

ânia da Silva tinha 16 anos quando descobriu que engravidara de seu primeiro namorado. Filha de mãe adolescente, que gerou e criou três filhas sozinha, sentiu que a história estava se repetindo. Morava em Mineiros, no interior de Goiás, cursava o terceiro ano do ensino médio e trabalhava à noite. Demorou três meses para contar à mãe, agora também avó, que ofereceu apoio e carinho, pois sabia que a sociedade se encarregaria das broncas e lições. Sofria com enjoos intensos. Emagreceu e teve anemia, mas sua bebê estava saudável. Com oito meses e meio, Tânia começou a sentir dores, chamou a mãe e juntas foram ao pronto socorro. A decisão do médico plantonista foi manter o bebê no útero, mas uma semana depois as dores voltaram. “É mamãe, vai nascer.”, foram as palavras do médico de plantão. Sua médica, que fora chamada às pressas, estourou a bolsa com as mãos para acelerar as contrações. Sem o líquido a criança poderia morrer e Tânia consentiu com uma cesárea. A anestesia. O corte. O choro. Tânia viu sua filha, Sofia, mas não pôde tocá-la. Como criança prematura, Sofia foi imediatamente para UTI Neonatal, mas não apresentava problemas maiores. Tânia amamentou desde o primeiro dia. Sofia saíra da UTI e, no quarto dia, o pediatra anunciou que ela teria alta em breve. A criança não mamou naquela manhã e quando Tânia voltou à tarde haviam médicos e enfermeiros em volta de sua filha. O pediatra chegou apressado, estabilizaram a criança e a transferiram para a UTI. O diagnóstico foi uma pneumonia que avançou silenciosamente pelo pulmão ainda “verde”. Tânia não pôde acompanhar a filha na transferência para Santa Helena (GO), o namorado escolheu ficar ao lado dela e a avó se prontificou a ir na ambulância com a neta. Sofia sofreu duas paradas cardíacas e morreu na madrugada de 20 de outubro de 2012. Tânia não reconhecia o próprio choro, que lembrava um uivo rasgando a garganta. Seu namorado a abraçava e chorava em silêncio. A avó já começa-

ra os preparativos para o velório. Ainda anestesiada pelo choro que agora escorria silencioso assim como o leite de seus seios, a “recepção” foi um dos piores momentos da sua vida. Muitos familiares e amigos foram confortá-la, como se pudessem. Outras pessoas entravam e quando entendiam quem era a mãe logo apontavam “Uma criança tendo criança!”, “É muito nova, foi melhor assim.”. Eram como abutres se banqueteando em sua dor. Após o sepultamento, foram para a chácara da bisavó. Quando voltaram, o enxoval havia sido doado. Os móveis seriam vendidos em breve. Era preciso seguir em frente, mas o leite demorava a secar e era como um lembrete, assim como as cicatrizes e a dor da cesariana. O Enem. A formatura. O término. A mudança. Em menos de três meses, Tânia foi admitida na Universidade Federal do Mato Grosso. Hoje ela vê que deveria ter vivido aquele luto, mas não culpa as pessoas que a estimularam a silenciá-lo. Seis anos depois, ela ainda convive com o medo de gerar outra criança. Tânia vive no meio, entre ser e não ser. Opta por dizer que “foi” mãe, afinal, se sente mãe.

Feito a partir de relatos, com colaboração de Juliane Colombo


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- MOBILIDADE-

ALÉM DAS rampas Foto: Camila Lopes

COMO LIDAR COM AS BARREIRAS ARQUITETÔNICAS, PEDAGÓGICAS E URBANÍSTICAS

ssim como a maioria dos estudantes, Diogo Batista Meneses, estudante de Letras/Português da UFG, chega ao Campus Samambaia por meio do transporte público. 200 pessoas para 46 cadeiras. 1 ônibus a cada 40 minutos. O cenário não é dos melhores, quem dirá para Diogo, que é cadeirante e enfrenta todos os dias a labuta das rampas de acesso, a escassez dos bancos acessíveis, a incerteza de conseguir sequer entrar no coletivo e os olhares nada empáticos de alguns passageiros. “Tem gente que finge que dorme, você tem que pedir licença, a pessoa sai com cara feia. Eu ignoro, porque é meu direito. Não tem nem o que falar, né?”, responde ao ser questionado se há casos de falta de respeito. Além de ser direito, é lei promulgada. E não é de hoje. Desde 6 de Junho de 2015, a Lei 13.146, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, passou a ter vigência no país. A acessibilidade avança a passos largos e a conscientização da população, bom, nem tanto. “Nós que somos deficientes, sofremos mais porque, somos a classe mais estigmatizada, esquecida e colocada de lado. E a política pública não tá interessada em pessoas com deficiência, apenas em eleitores. Porque, muitas das vezes, o deficiente nem vota”, relata com indignação. Mas apesar dos pesares, Diogo ainda tem esperança de mudança. Às vezes é a única coisa que resta. SINACE O Sistema Integrado de Núcleos de Acessibilidade - SINAce - da Universidade Federal de Goiás tem como objetivo planejar e implementar ações de acessibilidade dentro das 4 regionais (Goiânia, Goiás, Jataí e Catalão). A disponibilidade de acesso é entendida de maneira ampla, como explica Vanessa Dalla Déa, diretora do núcleo. “Acessibilidade está longe de ser apenas rampa, a gente também tem que proporcionar aos nossos estudantes acessibilidade pedagógica, curricular, comunicacional, tecnológica, informacional e atitudinal”,

Diogo Meneses chegando ao campus Samambaia explica. O SINAce, em parceria com a biblioteca, criou o Laboratório de Acessibilidade Informacional (LAI) em 2016. O laboratório fornece serviços e equipamentos de tecnologia assistiva para pessoas com deficiência. Um grande avanço situado na parte de baixo da Biblioteca, de fácil acesso, porém passado despercebido por grande parte dos estudantes. Assim também como o piso tátil que sai do Instituto de Informática até o Restaurante Universitário e a escada da xerox do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA). Essas são conquistas do SINAce juntamente com os alunos cegos, baixa visão e cadeirantes do Campus Samambaia. Dentro do Campus, o SINAce se esforça para que os alunos com defici-

é clássica. Já se passaram cinco rotatórias, apenas mais duas e está na hora de descer. É assim que Robson Soares da Silva, de 21 anos, estudante de ciências da computação na UFG se guia para saber onde desembarcar. Ele possui apenas 2% de sua visão e precisa lidar diariamente com os desafios de um transporte coletivo pouco acessível e o desrespeito de outros passageiros. Robson está cursando o segundo período do curso. Naquela manhã, ele estava sentado no pátio do Instituto de Informática (INF). Debruçado sobre a mesa, lia sobre conjuntos numéricos. O conteúdo da folha era ampliado para se adaptar às necessidades de leitura do estudante, esse que leva aproximadamente

A acessibilidade tem sido

construída a passos possíveis

A

Reportagem Lucas Humberto Giovanna Campos Edição Matheus de Oliveira Diagramação Verônica Aragão

Vanessa Dalla Déa Diretora do Núcleo de Acessibilidade da UFG ência tenham todo o suporte que precisam, mas para isso, eles precisam chegar até o Campus. A cidade não é planejada para receber essas pessoas, a sociedade também não, tampouco o transporte público. Há anos, a pessoa com deficiência tem se adaptado à uma sociedade que não está apta a recebê-la. VIVÊNCIA O ônibus arranca em meio aos outros veículos, a catraca gira uma, duas... 100 vezes. Dentro do coletivo, algumas pessoas teclam incansavelmente em seus celulares, do lado de fora as buzinas seguidas de gritos e pneus cantando soam como uma sinfonia, essa que definitivamente não

45 minutos para ler uma página. Com uma voz calma e serena, como quem fala de um causo diário, ele conta que algumas pessoas já passaram informação errada com relação ao ônibus que deveria pegar. Não é incomum que elas deem as costas para ele, fingindo não ouvir. Robson diz que utilizar o transporte público é bastante complicado, principalmente nos momentos de superlotação. “Teve uma vez até que eu acabei topando naquele ferro que divide a última porta, porque as pessoas estavam tentando entrar muito rápido e eu fiquei com medo de cair, então acabei indo muito rápido também e topei lá.”, conta o estudante. Para a arquiteta Érika Cristine

Kneib, a acessibilidade precisa ser universal. “No transporte coletivo, o município não o vê como prioridade. Isso pode ser constatado nos pontos de embarque que não possuem calçadas adequadas, abrigos ou informação”. CMTC O Serviço Acessível consiste em ônibus 100% adaptados para pessoas com deficiência. Ao todo cinco rotas são oferecidas, e essas levam as pessoas cadastradas para 13 entidades como centros de tratamento, de reabilitação, fisioterapia e clínicas em geral. Cada coletivo do serviço possui 18 assentos disponíveis, sendo 9 para cadeirantes. Segundo Danielly Silva Gonçalves, assessora do diretor da Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), o motorista busca a pessoa em casa, ou em um ponto combinado. Para realizar o cadastro no Servi-ço, a pessoa deve procurar a assistência social do local onde faz tratamento, que por sua vez fica responsável de enviar para a CMTC um encaminhamento com o laudo do paciente, um atestado médico, documentos pessoais e comprovante de renda. Esse último que serve para analisar o grau de necessidade da pessoa que deseja usar o serviço, uma vez que para utilizá-lo é necessário comprovar ter renda mensal igual ou inferior a um salário mínimo. O Serviço Acessível atende ao todo 180 pessoas em Goiânia e região metropolitana, mas a demanda é ainda maior, por isso existe uma lista de espera para as rotas que já estão com a lotação máxima. Para Robson, uma das possíveis soluções para melhoria do transporte coletivo, seria ampliar o serviço acessível para que esse funcionasse em toda cidade, e não apenas para as entidades específicas de tratamento. Segundo Danielly, essa ampliação do serviço ainda não aconteceu por falta de verba do governo. Assim como Robson e Diogo, existem mais 329 estudantes com alguma deficiência na UFG. Desses, 114 possuem deficiência física. “A acessibilidade tem sido construída a passos possíveis”, como apontou Vanessa. Porém, de nada adianta os mais diversos avanços, enquanto não houver acessibilidade atitudinal, que nada mais é do que a percepção do outro sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações. Todos os demais tipos de acessibilidade estão relacionados a essa, pois é a atitude da pessoa que impulsiona a remoção de barreiras.


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- TRÂNSITO -

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rota alternativa Ela completa afirmando que no campus Samambaia tem-se quase dois estacionamentos por prédio, mas ainda assim existe o mau uso, as pessoas chegam e estacionam fora do lugar devido. Dessa maneira, tornase quase impossível em determinados horários a passagem pela via, e, é necessário encontrar formas extras para se deslocar. Além disso, já foram feitas intervenções da Secretaria Municipal de Trânsito (SMT) no Campus Samambaia, devido ao grande número de veículos que estavam infringindo as leis de trânsito. Realizaram duas ações no local, as blitz de conscientização e a distribuição de panfletos que simulavam multas. Ainda para a Professora Lisbeth, o problema do aumento de veículos em circulação e transtornos no trânsito vem de uma questão social impregnada na sociedade: “Essa necessidade do carro foi criada e está alcançando todas as camadas da população. Todos se acham no direito de ter um carro, não se pensa no coletivo, pensa-se na resolução do problema individual. É

mento do campus: a melhoria do transporte público e o incentivo da realização de grupos de caronúmero de carros na. “Se pensar em um problema maior, seria a melhoria do transnos campi abre porte público; mas uma solução a curto prazo seriam realmente discussão sobre as caronas, que não fossem apenas para as universidades, mas grupos de carona que fossem organizadas também para outros destinos”, declarou a Reportagem Giovana Paula Correia estudante de jornalismo Marina Edição E Diagramação Gabriel Vilela Viana na pesquisa. A Rede Metropolitana de cenário de cidade pequena e Transporte Coletivo (Rmtc) prepacata durou pouco tempo tende lançar até o fim de 2018 na capital goiana. Com apeseis novas linhas de ônibus na nas 84 anos, a cidade ícone da Art cidade: serão 229 km de extenDéco passou a ter mais de 1,4 misão de linhas, 11.500 km rodalhões de habitantes segundo a estidos por dia útil e 44.000 novos mativa do IBGE em 2018. Suas casas lugares ofertados por dia. grandes deram espaço para construSegundo o site oficial da ção de edifícios, entre eles o maior Rmtc, as novas linhas que visam prédio comercial do Brasil, o Órion ampliar as ligações entre os bairGrupo de Carona em aplicativo de celular Business. As ruas de terra batida se ros e possibilitar mais acessos e tornaram vias asfaltadas para passadizendo que algumas mulheres dispontos de integração no sistema gem de mais de 1,1 milhões de veíseram que não gostariam de pegar de transporte. Além disso possuem a culos, de acordo com o Denatran. caronas com homens iguais a esse finalidade de melhorar a mobilidade Conforme a Confederação Napor medo, principalmente no períurbana e facilitar o acesso ao transporcional de Municípios (CNM), Goiâodo noturno. nia possui a 6ª maior frota de veícuAs duas amigas criaram um grupo los do país, o que afeta diariamente de WhatsApp somente com mulheres, É muito arraigada a ideia de que nós quase todos os habitantes da cidae colocaram todas como administratemos que pensar individualmente de. As complicações também chedoras para que elas pudessem adiciogam nos Campi da Universidade nar outras. A iniciativa funciona de em relação à mobilidade Federal de Goiás, que estão a cada maneira simples: a pessoa posta se está dia mais cheios de automóveis, esprocurando ou oferecendo carona, o tacionamentos lotados, congestiohorário que deseja e se ela cobra ou lisbeth oliveira namentos nas redondezas e consnão pela ajuda. Professora de Jornalismo tantes infrações de trânsito. A estudante de Arquitetura e UrPor ser uma região central, o Setor banismo Amanda Moreira dá caronas Universitário usualmente está cheio dumuito arraigado a ideia de que nós tee defende essa ideia, acreditando que te público, acompanhando o desenvolrante os períodos de aula e horário comos que pensar individualmente em é uma boa maneira para desafogar o vimento da cidade. mercial. O Samambaia, mesmo sendo relação a mobilidade”. transporte público e que também conPara Camilla de Castro, estudante mais afastado já enfrenta algumas destribui para o meio ambiente, pois, desse de farmácia, as novas linhas de ônibus sas dificuldades, como explica a ProfesÔnibus modo, são menos carros nas ruas emipodem sim contribuir para o desconsora de Jornalismo Ambiental Lisbeth Uma pesquisa feita pelo Jornal Satindo poluentes. “Os grupos de carona gestionamento do trânsito.“Nesse caso Oliveira: “No campus cada vez mais a mambaia com 47 estudantes, apontou não só ajudam no descongestionamennão seria necessário o uso de carro pargente perde em área verde e em área de como soluções para o descongestionato do trânsito como também no finanticular, já que muitas vezes transporta lazer para fazer um estacionamento”. ceiro de cada um e na segurança dessas apenas o motorista. Assim diminuiria pessoas. Também é uma boa maneira o número de tráfego nos campi”. de fazer amigos”, acrescenta. Além das caronas há uma outra Caminhos maneira de contornar os contratemGabriela Aimée, estudante de pos causados pelo trânsito. Foi criado, Engenharia de Software, foi uma em 2012, um projeto de ciclovia pela das pessoas que tiveram a iniciaUFG, que liga o Campus Colemar Nativa de criar um grupo de carona. tal e Silva até o Campus Samambaia e Em 2016 ela e uma amiga criaram o vice versa. O projeto já foi desenhado e “Carona das Minas”, exclusivo para aprovado, porém ainda não foi execumulheres. A ideia do grupo surgiu tado pois a Prefeitura de Goiânia não quando houve um - suposto - estudeu encaminhamento. pro no campus Samambaia. “É uma tradição do Brasil de “Eu estava em três grupos de muito comodismo. A nossa sociecarona pra UFG e em um deles houdade é uma sociedade que prega o ve uma discussão sobre o caso. Um individualismo”, afirma Lisbeth. A cara comentou que já havia deixado professora ainda acrescenta que a a namorada no meio da marginal universidade deve ser um local onde porque ela estava problematizando esse pensamento tem potencial para muito a situação do estupro”, conta ser mudado. Gabriela. A estudante complementa Estacionamentos do Campus Samambaia apresentam superlotação

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Foto: Giovana Paula

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- SOCIEDADE -

habitar a insegurança situação de rua revela mais do que o drama pessoal Reportagem Renato Silveira Edição E Diagramação Taissa Gracik

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abitar a insegurança das ruas é uma situação limite! Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as brasileiras e brasileiros nesta situação, em 2015, somavam quase 102 mil pessoas. Em 2017, 26,5% da população vivia abaixo da linha da pobreza, o que equivale a uma renda de R$ 406 ao mês. Goiânia, por sua vez, em 2018 contava com cerca de 1700 pessoas expostas à insegurança própria de suas ruas. No balanço de 2018 espera-se números ainda mais alarmantes. Neste ano, em que a situação de rua se impõe como fato social, o aumento ocorre de modo sensível principalmente nas grandes cidades. Segundo o IBGE, o desemprego já atinge 13,7 milhões de pessoas. Analisar este dado concreto revela uma tendência da insegurança econômica se generalizar e levar ainda mais brasileiros à vulnerabilidade extrema. Pelas expectativas em torno de novos levantamentos, o Brasil terá quase 10% de sua população sem mo-

radia, e também sem trabalho. Cidadãos brasileiros a quem o direito a ter direitos foi negado. A insegurança individual agravada pela crise macroeconômica, pelas políticas de austeridade em todos os níveis do serviço público e pelo desmonte do estado de direito, leva à crise da ordem pública e determina negativamente a vida de seus integrantes. Em um contexto amplo como o brasileiro, a cidadania mantém relações instáveis com as instituições representativas. A insistência pela garantia do acesso a direitos públicos é apontada pelos movimentos sociais da população de rua organizada como o único meio de emancipação coletiva e individual. O Comitê de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno foi criado em 2016 com uma articulação de cerca de oitenta movimentos e organizações po-

relatório de estudos com vinte casos emblemáticos de violação de direitos humanos. Entre eles aparece a própria situação de rua como violação dos direitos à cidadania. Em determinados casos, o serviço público é omitido por pudor em relação às condições de higiene das cidadãs e cidadãos nessa situação. Outro fator que contribui para o desamparo é a dependência química como risco ao suministro de medicamentos ou à realização de cirurgias. “Falta abrigo, atendimento médico, acompanhamento e denúncia”, acrescenta Ângela Cristina Ferreira, integrante da coordenação do Comitê. Violado o direito a moradia, outros direitos lhes são automaticamente vedados. Sem endereço, o acesso ao trabalho e à saúde são burocratizados. Some-se ao quadro a violação do direi-

aumentar e as poucas políticas existentes serem extintas pela Emenda Constitucional 95, que congela os gastos públicos por vinte anos”. O comitê Dom Tomás Balduíno representa forças políticas entorno da Comissão Pastoral da Terra e congrega movimentos populares com diferentes reivindicações. Em relação à situação de rua, a coordenadora do comitê explica que os movimentos, constituídos pela própria população, são os protagonistas na luta por melhores condições de vida e que os avanços se devem à pressão que eles mesmos exercem sobre o poder público. O perfil da população de rua demonstra uma complexa convergência entre biografia, vida comum, luta por direitos humanos e busca por pertencimento social. Uma leitura desse perfil pode guiar as questões micro e macropolíticas dos desafios em jogo nas determinações institucionais e a luta por suas apropriações populares.

atenção à

Acho bom demais depender do suor meu, cara! Quando eu não estou podendo depender do meu suor, eu estou dependendo do suor do povo de bom coração daniel silva Morador em situação de rua pulares do estado de Goiás sob o lema “Direitos Humanos não se pede de joelhos, exige-se de pé!” Por meio desta articulação, foi assinado um manifesto de adesão coletiva e elaborado um

to à mobilidade! Uma verdadeira intersecção de vulnerabilidades. Segundo Ângela, “é crescente o número de pessoas em situação de rua no município de Goiânia e no Brasil. A tendência é Foto: Janaína de Oliveira

Pessoas em situação de rua na capital goiana se encontram em circunstâncias vulneráveis

perfil De aparência tranquila, Daniel Silva, 32 anos, se aproxima das pessoas que passam por ele. De acordo com a boa recepção, pede um cigarro, uma ajuda para comprar um prato de comida. Matogrossense, Daniel veio direto da terra natal, Tapurah, em busca de trabalho em Goiânia. No Mato Grosso, a cada quatro meses era chamado para trabalhar ensacando grãos ou carregando os caminhões, doze horas por dia durante um mês, nas lavouras de milho e soja. Sem estabilidade e segurança, trabalhar por temporadas para ele era tão difícil quanto a rua. Segundo Daniel, sua moradia era uma “casa muito ruim” e era necessário passar os dias na praça da cidade em busca de trabalho ou na expectativa de algum favor. Para ele, conquistas a partir de seu próprio esforço são as melhores. “Acho bom demais depender do suor meu, cara! Quando eu não estou podendo depender do meu suor, eu estou dependendo do suor do povo de bom coração”, comenta. Depois de abandonar as colheitas intermitentes, entrou em um ônibus e veio para Goiás. O rapaz passou uma semana buscando trabalho e fazendo bicos de limpeza. Conseguiu se instalar em um pequeno barracão em Aparecida de Goiânia, mas em alguns meses já não conseguia seguir pagando o aluguel. Hoje, Daniel recolhe materiais recicláveis pelas ruas do centro da capital goiana. De acordo com ele, o pouco dinheiro que consegue, lhe permite comprar comida, cigarros e “a branquinha da Bahia”, forma como ele apelidou a cachaça.


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- RUA -

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no vermelho uma alternativa para renda e liberdade Reportagem Gabriel Vilela Edição E Diagramação Fabricio Vera e Marcelo Augusto

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asta andar pelas ruas de Goiânia e parar em um semáforo, que logo alguém passará pela janela do seu carro oferecendo algum produto ou serviço. Água, frutas, petiscos, pano de chão, acessórios para celular, “posso limpar o vidro do seu carro?”, “tenho sua atenção para um número artístico em troca de algumas moedas?”. Grande é a variedade de atividades exercidas, e é cada vez maior o número de pessoas tirando seu sustento quando o sinal fecha. No vermelho é quando eles entram em ação, 50, 49, 48, 47... o tempo é curto, os vendedores passam correndo para mostrar seus produtos ao maior número de pessoas e aumentar suas chances de fechar uma venda. A interação dura um instante, mesmo quando há uma venda, é sempre muito rápida, pois o trânsito urge, e a cidade tem pressa. Foto: Gabriel Vilela

Aimer, em apresentação no vermelho está verde. Vendidos os últimos pacotes da manhã. “Eu faço meu horário, vou embora pra casa na hora que eu quero. Meu salário é eu que tô fazendo. Se eu fizer mil reais no mês, eu trabalhei pra mim, não tem patrão, não tem horário pra chegar no serviço e horário pra sair”, comemora o vendedor, satisfeito com a venda. O casal de artistas tira todo o ganho para pagar o aluguel. Mas o malabarista insiste que o principal não é o dinheiro, estão ali por um sonho. “Se a pessoa fala: ‘não tenho dinheiro’, tudo bem, mas achou legal, achou bom o que eu fiz ali. ‘Nó parabéns’ e tal, essas palavras dá um reconforto, uma vontade de seguir. Porque tem vezes no sinal que, não dá moedas, ninguém deu nada. Tem meia hora que você está fazendo e ainda não recebeu nada e chegou alguém e falou algumas palavras pra você, ‘vai em fren-

semáforos,

Essa cena se repete por toda Goiânia, pisamos no freio na Praça Genaro Maltês, uma rotatória com cinco semáforos no setor Sul. No canteiro, o vendedor Iris Fernandes, de 40 anos, arruma seu estoque de petas e separa três pacotes para mais uma investida. Ele chega às sete da manhã e trabalha focado, no pique, até a mercadoria que trouxe acabar. O outro semáforo fecha, Aimer Xavier, de 27 anos, caminha pela faixa de pedestres e para no meio da rua. Ele pede a atenção das pessoas nos carros e começa a lançar seus malabares ao céu. Os objetos formam um arco em perfeita sincronia. 35, 34, 33... o tempo está acabando e ele lança uma bola na cabeça para o clímax, ela quica algumas vezes e tudo pousa em suas mãos, “tadam!” 15, 14, 13... é hora de passar o chapéu. Iris trabalha com a esposa no sinal, ambos vendem petas. Nas palavras do vendedor: “Meu sonho, de verdade mesmo, é que Deus me abençoe, que eu crie meu filho, que ele seja alguma pessoa na vida. Que eu dê conta de pagar os estudos dele. Não quero que ele seja igual eu sou hoje. Eu conseguindo isso na minha vida, pra mim tá tudo bem.” Nascido em um vilarejo chamado Porto Triunfo, no interior da Colômbia, Aimer é mochileiro. De família humilde, perdeu o pai quando criança e teve que trabalhar desde cedo para ajudar sua mãe nas despesas. “Eu gostava muito da música, na verdade, quando era pequeno. Aí tinha certo problema, era a condição econômica, só podia tocar flauta, ai foi bem, toquei flauta. Depois de muitos anos peguei um violão. Sempre tive essa conexão com a arte.” Antes de vender peta, Iris trabalhava com carteira assinada entregando panfletos no semáforo e ganhava um salário na empresa.

Foto: Dheniffer Wagatta

trabalho em

Eu faço meu horário, vou embora pra casa na hora que eu quero. Meu salário sou eu que tô fazendo

Alejandra contabiliza o dinheiro do dia

iris fernandes Vendedor

“Como eu ganhava um salário mínimo lá, não dava pra minha despesa. Não dava pra fazer nada. Eu pegava o salário, pagava o aluguel, pagava energia, água, e não sobrava quase nada, tinha que comer né”, comenta o vendedor afirmando que trabalha no sinaleiro por escolha própria e não por falta de opção. Alguém passa buzinando, querem comprar peta. Iris acena para encostar mais na frente, pois o sinal

te, siga com seu trabalho, você é artista’”, explica Aimer com brilho nos olhos. O sol está a pino. O limite dos artistas é a resistência do corpo, o número que apresentam requer muito treino e preparo físico. Aimer também encerra seu expediente, precisam fazer almoço e descansar, à noite eles treinam no Basileu França. “A gente vai atrás, com as coisas e oportunidades que a vida vai dando, no tempo certo. É preciso ter muita

esperança no sinal, às vezes o clima não ajuda, está muito quente, final de mês, ninguém quer nada, só quer passar por cima de você. Então é paciência, de nós e do resto das pessoas que estão transitando. Porque a rua é difícil”, desabafa o malabarista enquanto guarda seus pertences em um caixote decorado na traseira de sua bicicleta. Eles montam e pedalam. Motorista Amélia Rodrigues dirige um Celta preto e passa todos os dias pelo cruzamento. Cliente assídua de Iris é viciada em suas petas, “tem dias que desvio minha rota para passar aqui só pra comprar peta. Muitas vezes me decepciono, pois ele não está”. Amélia acha cômodo comprar no semáforo, pois não precisa desviar sua rota diária. “Também sou fã desse menino dos malabares, sempre com figurino diferenciado e um número novo” afirma a biomédica, de 32 anos sobre Aimer. Sempre que pode a motorista contribui com o artista, pois, segundo ela, a apresentação do malabarista contrasta com a rotina maçante do trânsito. INFORMALIDADE A taxa de desemprego no Brasil passou de 12,0% no trimestre encerrado em novembro de 2017 para 13,1% no fechado em março de 2018, ou seja, 13,7 milhões de pessoas desempregadas, de acordo com dados divulgados pelo IBGE. O confronto entre os dois semestres ainda revelou uma redução de 408 mil pessoas no total de empregos com carteira assinada. O IBGE calcula que quase 40% da força de trabalho no Brasil estão na informalidade, incluindo trabalhadores por conta própria, sem carteira assinada no setor privado, trabalhador familiar auxiliar e pequenos empregadores.


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- CULTURA -

Onde o Underground ainda resiste completa 15 anos de rock independente Reportagem Gustavo Paiva Edição E Diagramação Lara Fernandes e Maryana Souza

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Todxs Juntxs Fest trouxe bandas e público underground em 2013

Foto: Alvaro Sasaki

um sábado normal em Goiânia. Em uma rua estreita e mal iluminada, no Setor Norte Ferroviário, uma porta preta semelhante a uma de distribuidora de bebidas se abre, despejando na rua um som pesado e um ar quente, com cheiro de cigarro e suor. Pessoas tomam conta da rua, após o fim da apresentação de uma banda de punk rock no Capim Pub. Inaugurado em 2003, por Afonso Moreno, 52 anos, mais conhecido como Afonsim, o Capim Pub está localizado na Rua 5, uma viela com pouco mais de 100 metros de comprimento, conectando as Avenidas Leste-Oeste e a Independência. O bar fica próximo ao Córrego Capim Puba, que deu origem a seu nome. Ninguém nem notaria sua existência, se não fosse um bando de jovens tatuados que tomam conta da ruela nas tardes de sábado, bebendo, conversando e fazendo barulho à espera do show que está para começar. Ali foi, por mais de uma década, um dos pontos principais de encontro do rock underground goiano. Ao passar pela porta de metal, que nunca chegou a ser realmente um pub, você se depara com uma rampa que te leva a um cubículo apertado, com pouco mais de 80 metros quadrados, onde uma banda se apresenta em um palco minúsculo. Se o grupo tem mais de quatro integrantes, um precisa tocar no chão, junto da galera. Um ar-condicionado velho falha miseravelmente em deixar o ar fresco para as dezenas de pessoas que compõe o público. Para quem não quer ficar na sala onde o show acontece, um corredor de luz vermelha, com

Show no Capim Pub em 2013 Estados Unidos, Finlândia e México. Mas o Capim não é o Capim sem o Afonsim. É impossível falar no Pub e não vir imediatamente sua imagem à cabeça. Não é exagero dizer que o bar é sua casa. Afonso Moreno nasceu ali mesmo. É o irmão mais novo de sete filhos e todos foram criados por seus pais

dos rejeitados,

dois sofás velhos, leva até o quintal, onde algumas mesas são colocadas para o pessoal sentar e desfrutar do ar livre. Mas, ninguém se importa se o lugar é mal ventilado e pouco iluminado. O aspecto subterrâneo que traz ao ambiente, em vez de torná-lo desagradável, aumenta a felicidade dos presentes. “Ainda bem que nunca tive que chamar o Samu para socorrer ninguém”, afirma Afonsim, assumindo preocupação devido à precariedade da estrutura. Mas logo em seguida se lembra de um acidente que aconteceu em um show. “Ah não... teve um louco que pulou a rampa da entrada e quebrou a perna. Foi o único que precisou ser levado de ambulância daqui”. “O Capim é o lugar mais legal para se fazer show em Goiânia. É tosco, mas é legal”, conta Wander Segundo, dono do selo musical Two Beers or Not Two Beers. Wander já organizou mais de cem shows no Pub e lembra que, mesmo tosco, o local trouxe bandas internacionais para Goiânia, do Japão, Canadá, Suécia,

Foto: Alvaro Sasaki

capim pub, O bar

O Capim é o lugar mais legal para se fazer show em Goiânia. É tosco, mas é legal

Wander segundo Dono do selo Two Beers or Not Two Beers

naquele lote da Rua 5. Há 15 anos, ele administra o Pub. Do outro lado da parede do palco, toma conta do bar. Está sempre se mexendo, procurando manter tudo dentro do cronograma, “é um cara que dá o sangue pela cena”, descreve Jorge Afonso, ex-músico e frequentador da casa. Comunicativo e elétrico, mesmo com todas as dificuldades, espaço e verba limitada, Afonsim faz de tudo para o rock underground ir em frente. “O Afonsim é um cara bacana, verdadeiro e um nome importante na história do underground goiano”, define Fredy Fernandes, frequentador do local desde 2005. “Ele é um cara insano, que já deu o sangue para que muita coisa legal acontecesse na cidade, para a alegria de nós que vivemos a cena independente goiana. Alguém que faz jus à ideologia Do It Yourself (Faça Você Mesmo)”, explica. Contudo, o espaço onde antes eram organizados os shows, agora está em reforma. Afonsim explica que, quando estava empregado, trabalhando em cargo comissionado na Prefeitura de Goiânia, o Capim Pub era um hobby, mas agora precisa utilizá-lo para trabalho. Por isso, montou um estúdio nos fundos. “Mas continuo organizando shows. Geralmente ensaios abertos e gratuitos para o público”, informa. As apresentações, agora, são feitas no quintal, onde o bar também foi improvisado. O espaço, mais amplo e arejado, conta inclusive com uma árvore bem em frente ao novo palco. O ambiente subterrâneo foi retirado do cardápio, mas a atitude e a vontade de manter o underground ativo permanecem.

Libertário O Capim Pub, sob a direção do Afonsim, é a materialização do Do It Yourself em Goiânia. É o palco do underground goianiense. Era normal as pessoas se juntarem para alugar aparelhos de som e bateria, emprestavam instrumentos para quem estava sem e o show acontecia. “Conheci ali muitas bandas, tanto do hardcore como da cena alternativa”, conta Jorge. Para Afonsim, o Capim Pub é libertário e aberto para todos os músicos, para composições novas e, principalmente para as que estão à margem da mídia tradicional. Não é a toa que foi tomado pelos rejeitados: punks, metaleiros, psicodélicos, entre outros grupos alternativos. O dono explica que lá nada é proibido e todos são bem-vindos. “O Capim é importante para o meio underground em vários aspectos. Ele sempre deu espaço para bandas começarem e mostrarem sua arte. Aquele garoto que sempre teve um sonho de montar uma banda e nunca teve espaço na cidade para tocar, lá no Capim conseguiu realizar um sonho”, diz Fredy Fernandes. “Apesar de ser simples, é um lugar que tem história para mim. Mesmo pequeno e um pouco apertado, tenho boas memórias dos shows naquele lugar quente”, relembra. Wander reforça essa importância do Pub, afirmando que sem ele, o underground goiano estaria mais de 10 anos atrasado. “O Capim é essencial para o rock de Goiânia e vem sendo desde que abriu. Fiz uma porrada de show lá e ele foi palco das bandas mais importantes do rock underground brasileiro”, completa. Portanto, nesses 15 anos de Capim Pub, ficou claro que ali o underground resiste.


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- ALTERNATIVAS DE ENSINO -

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NO CAMINHO DO APRENDIZADO SISTEMA DE ENSINO LEVA ESTUDANTES A BUSCAREM AULAS DE REFORÇO Reportagem Gianna Clara Edição Camila Lopes e Taíssa Gracik Diagramação Fabrício Vera

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estudei não puxavam muito, não cobravam tanto do aluno, então fui deixando de lado, falando: ah não vou precisar disso. Quando eu mudei de escola, teve esse choque”. Desde que começou a ter aulas de reforço, seus resultados melhoraram na escola, não apenas em re-

estudantes do ensino médio da rede pública de Anápolis apontou que 73% dos participantes da pesquisa já sentiram necessidade de fazer aulas de reforço em algum momento da sua vida estudantil. Destes, 89,5% na área de Exatas, que engloba matemática, química e física.

O aprendizado vem de dentro e não de fora Ana Maria Itagiba Estudante de Letras/Inglês

lação a notas, sua possibilidade de ajudar os colegas também aumentou. “Quando eu comecei a ter aulas particulares, tudo que me foi passado aqui e eu consigo aprender de uma maneira melhor, que foi mais fácil, eu tento passar pros meus colegas que estão com dificuldade. A Tátila me ajuda, eu ajudo eles e eles ajudam outros.” Ambas concordam que a sintonia que construíram faz com que o trabalho realizado em conjunto produza frutos. Assim como com outros de seus alunos, Tátila acredita que Micaelly esteja passando por um processo de aprendizagem que compreende não só entender o conFoto: Gianna Clara

pós um dia intenso na faculdade, Tátila Tuanny, 19 anos, começa outra jornada. Deixa de ser estudante de Engenharia Civil e se torna professora particular de matemática e física. Ela pega o ônibus das 17h20 no campus Henrique Santillo da UEG, em Anápolis. São 10 minutos até que todos os estudantes embarquem no ônibus e mais 35 minutos até o terminal urbano. O ônibus passa por várias das principais avenidas da cidade e no trajeto vai se enchendo de trabalhadores, chegando no terminal com vários passageiros em pé. Lá, Tátila se incorpora à multidão de trabalhadores e estudantes ávidos por chegarem ao seu destino. Ela começou a trabalhar como professora particular por necessitar de uma fonte de renda e não possuir muito tempo disponível, uma vez que seu curso de graduação é integral. “Eu fazia unha antes pra ganhar dinheiro, mas eu gosto de ensinar”, comenta a jovem, que apesar de não fazer um curso de licenciatura, atualmente atende três alunos fixos. Segundo ela, o diferencial de suas aulas é a maneira simplificada de ensinar o conteúdo visto pelo aluno na escola. As aulas de reforço ofertadas por Tátila são uma alternativa não apenas para ela conseguir trabalhar no pouco tempo que tem disponível, mas também seus alunos que recebem reforço por um preço acessível. “Eu levo em consideração que eu não sou uma pessoa com habilitação para dar aula, por isso o valor da minha hora aula é bem menor que o de professores graduados ou empresas especializadas”, explica. Além do preço, ela tenta assinalar os fatores que levam os alunos a contratarem alguém ainda na graduação como professor particular, “acredito que também pela forma mais próxima de explicar, porque querendo ou não, nossa linguagem é mais próxima deles, e nossa realidade. Eu vim de escola pública

como a maioria dos meus alunos”. Com a mochila nas costas e garrafinha de água na mão, Tátila pega o ônibus das 18h24 para a casa de sua aluna do dia, Micaelly Morais, chegando com alguns minutos de antecedência para a aula marcada às 19h. “Preciso sair sempre uma hora e meia antes do horário marcado para conseguir chegar a tempo”, explica. Ela depende exclusivamente do transporte público para dar suas aulas, realizadas nas casas dos alunos ou, quando solicitado, na residência da professora. A proximidade que Tátila assinala como essencial para o sucesso do trabalho que desenvolve foi o que fez com que Micaelly a contratasse. “Eu vi uma oportunidade dela me entender, de virar pra ela e dizer: olha, não consigo entender por isso e isso e ela não me julgar porque também já viveu aquilo ali”, explica a estudante do 2º ano do ensino médio da rede pública de Anápolis. No decorrer da aula, é perceptível a insegurança de Micaelly em relação à matéria estudada, no dia da entrevista, matemática. Trabalham exercícios que ela não conseguiu resolver sozinha. “Números sempre me apavoraram muito”, comenta. A confusão em seu rosto aliada ao movimentar constante das mãos em

Tátila, à direita, sempre se desloca até a casa de seus alunos direção aos cabelos ou à boca comprovam isso. Para Tátila, essa não é uma dificuldade que vem de agora, “a gente vê isso nos alunos do ensino médio, eles têm dificuldades que deveriam ter sido trabalhadas na época da alfabetização, na época do fundamental I e II e isso eles acabam levando durante a vida toda”. Por outro lado, Micaelly toma para si a culpa de ter dificuldade com as matérias da área de exatas, “eu sempre fui muito desinteressada, sabe? Todas as escolas onde eu

teúdo, mas passar a ter uma maior confiança em sua capacidade. POSIÇÕES Ao contrário do que pensa Micaelly, a professora e pesquisadora da área de políticas e gestão educacional, Marcilene Pelegrine Gomes, esclarece que muitas vezes a culpa da deficiência no aprendizado não é do aluno. “Há um mito que dificilmente os alunos vão aprender matemática, que o normal é não aprender matemática”, exemplifica. Uma enquete realizada com 60

INeFICIÊNCIA DO

De acordo com a pesquisadora, “às vezes o professor passa para o aluno essa ideia equivocada, que a matemática é um conhecimento inacessível e que só os bons aprenderão, aí esse aluno se culpabiliza”. Para ela, o aluno achar que não vai aprender já é um caminho para que não aprenda mesmo. “E aí o professor muitas vezes reforça esse senso comum até para não ter que mudar suas práticas”. Marcilene defende ainda que a contratação de aulas particulares não necessariamente contribui positivamente para o aluno que a procura e para o estudante que a oferta. “A dificuldade do aluno pode estar na metodologia, em como é ensinado esse conteúdo na escola. Muitas vezes esse graduando não consegue avançar na perspectiva metodológica e vai dar aula igual ao professor de ensino médio”, conclui. Ana Maria Itagiba, estudante do 6º período de Letras/Inglês na Universidade Federal de Goiás (UFG), já teve experiência como professora particular e de estágio em sala de aula, ela destaca que há um problema no sistema educacional: “temos 40 alunos para um só professor e a gente sabe que mesmo que o professor queira, se dedique, não vai conseguir atender esses 40 alunos com a mesma qualidade. A diferença é que na aula particular eu posso atender o aluno mais intimamente nas questões de dificuldade e orientar melhor”. A estudante defende que a situação vivenciada no país evidencia a necessidade de se discutir práticas e melhorias para a educação. Que tanto no âmbito público quanto no privado, o Brasil necessita de uma educação mais humanizada e crítica, que olhe os alunos como sujeitos participantes do seu processo de aprendizado e não apenas reprodutores de conteúdo. “O aprendizado vem de dentro e não de fora”, conclui Ana Maria.


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olhares fotos Abner Marcelo, Carolina Lucas e Camila Lopes texto Abner Marcelo Design Gianna Clara


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