DO CURSO DE JORNALISMO
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
GOIÂNIA, OUTUBRO DE 2016
ENTREVISTA
A imagem errônea que a mídia construiu sobre a AIDS
SAÚDE
Como a busca pelo corpo perfeito pode gerar distúrbios alimentares
nº 074/ ANO XVI
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Ilustração Caroline Brandão
JORNAL LABORATÓRIO
PERFIS
relatos de vida e histórias que fazem parte do nosso cotidiano
PERFIL EM DESTAQUE
“TEM TEM” história pra contar: Seu Vilmar e seu armazém p.15
Editores de Capa CAROLINE BRANDÃO E JULIE TSUKADA | Criação e Design de Capa CAROLINE BRANDÃO| Fotografia ABGAIL BOTELHO
samambaia NOVOS HORIZONTES NO OLHAR Indígenas vivem intensamente as dificuldades e encantos da vida universitária p. 8
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GOIÂNIA, OUTUBRO DE 2016
- OPINIÃO -
RUMOR
EXPERIMENTAR É POSSÍVEL
EDITORIAL
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POR Luciene Dias | DIAGRAMAÇÃO Julie Tsukada
empre que nos propomos a construir um laboratório de jornalismo impresso, somos instigadas a pensar e repensar os modelos, fechar em um padrão mínimo e replicar, na medida do possível, redações de jornal impresso. Esse é um exercício incrível, mas o que deve, de fato, orientar nossa perspectiva é a experimentação. O empenho, então, passa a ser trabalhar o laboratório no seu sentido mais stricto. Dessa forma, a prática laboratorial passa a ser o tempo e o espaço em que errar não nos é passível de punição. Ser errante, mais que andar e vaguear, é uma das características que marcam a pessoa que experimenta. Com essa perspectiva, apresentamos a primeira edição do Samambaia do semestre 2016-2. Estamos experimentando o fazer e queremos que todas as pessoas que acessam agora o nosso jornal também experimentem uma leitura prazerosa e crítica. Nosso trajeto
aqui quer alcançar desde a complexidade que marca os espaços e tempos das ações afirmativas num enlace entre estas e a própria noção de interculturalidade – o que pode ser comprovado em nossa matéria de capa –, até a marca que a festa do Divino Pai Eterno, em Trindade, impõe ao estado de Goiás – que pode ser conferida na sessão Olhares. Essa é uma edição especial, que começou a ser gestada por estudantes de Jornal Impresso I, ainda no primeiro semestre de 2016. Mesmo não contando com a garantia de uma plataforma de publicação, a turma dedicou-se a produzir crônicas e perfis com o objetivo de experimentar a escrita. Já em 2016-2, e diante da abertura para uma primeira impressão do Samambaia, essa mesma turma, agora na disciplina laboratorial Jornal Impresso II, se uniu no exercício de edição do material produzido. Como resultado, temos um jornal com textos reflexivos, interpretativos, muitas ilustrações, uma cuidadosa diagramação e uma boa dose de vontade de fazer um jornalismo mais humano. Para quem nos acessa, boa leitura!
- CRÔNICA -
O BRILHO ETERNO DA NOITE GOIANA POR Letícia Michalczyk | DIAGRAMAÇÃO Ana Luíza Andrade
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ela carrega um pouco de todos os mais variados estilos. Muito contorno ou nenhum, look pesado ou mais delicado, a complexidade de sua essência mora na versatilidade e na autenticidade. A escuridão da noite, porém, também possui seu lado ruim. Há quem se perca na admiração e no glamour, esquecendo-se das desavenças, mas é preciso lembrar que o preconceito também se fantasia em máscaras. Precariedade de incentivo cultural e omissão caminham lado a lado, e com a arte drag não é diferente. A falta de incentivo à cultura é geral, mas, com ajuda dos padrões normativos da sociedade, ela é maior no meio GLS, pois há maior marginalização. Mas a vida noturna da boemia associada ao prazer é lugar de aceitação e liberdade.
“Criatividade das pessoas aguça na noite”, Carlah diz, “lembro de ler isso em algum lugar”. Nas casas noturnas de Goiânia, há um brilho inconfundível. Elas estão por toda parte: hostess ou DJs, conquistando espaços que não lhes eram permitidos ocupar antigamente. A diversidade de queens contribui para a cena local com um elenco que ama a arte que expressa. Visivelmente, Carlah não é diferente.A intolerância e o desinteresse familiar dificultam, mas não destroem. Enquanto um lado se monta, outro tatua. O que uma faz, outro jamais faria. Não há como negar a distinção das vidas e de suas personalidades, mas é possível enxergar em ambas um caráter forte que não muda ou falha. Com satisfação, Carlah sabe que o que faz tem grande valor estético e político.
A noite acaba, mas a luta por representatividade é ininterrupta, num brilho inigualável que não há de se apagar.
Reprodução
uando o sol se põe, muitos veem o fim de mais um dia. Enquanto isso, para outros, é apenas o começo. O ápice da noite é o momento que dá vida ao que muitas vezes é ocultado à luz do dia. Nesse espaço, há um brilho. Forte e exuberante, o brilho da arte Drag Queen garante seu lugar e não passa despercebido. Desde sempre ser noturno, Carlah Yuvallac descobriu por brincadeira uma arte e, na arte, a materialização de seu alter-ego. Pontapé do movimento new drag goianiense, a construção profunda dessa personalidade levou tempo e aprendizado, guiada por Gareth Pugh, Masion Margiela, Balmain, Damien Hirst e tantos outros nomes presentes no cenário atual. Ora caricata, ora em função da beleza,
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FIC Ano XVI - Nº 74, Outubro de 2016 Jornal Laboratório do curso de Jornalismo Faculdade de Informação e Comunicação Universidade Federal de Goiás
Orlando Afonso Valle do Amaral REITOR
Magno Medeiros
DIRETOR DA FACULDADE DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO
Angelita Pereira de Lima
COORDENADORA DO CURSO DE JORNALISMO
Luciene Dias
Dayane Borges & Julie Tsukada
Julie Tsukada
Estudantes da disciplina Jornal Impresso II
COORDENADORA GERAL DO SAMAMBAIA E COORDENADORA DE PRODUÇÃO
MONITORIA
DIAGRAMAÇÃO
EDIÇÃO EXECUTIVA E PRODUÇÃO
Contato - Campus Samambaia | Goiânia-GO - CEP 74001-970 | Telefone: (63) 3521-1854 - email: samambaiamonitoria@gmail.com | Versão online no issu.com/jornalsamambaia | Impressão pelo Cegraf/UFG - Tiragem de 1000 exemplares
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- EXTENSÃO -
SAÍDAS INSURGENTES NA CRISE COMPARTILHADO LEVA NOVOS CAMINHOS ÀS COMUNIDADES
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REPORTAGEM Dayane Borges EDIÇÃO Arícia Leão DIAGRAMAÇÃO Dayane Borges
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PROPOSTA O jornalismo compartilhado se propõe a garantir as facetas democráticas do jornalismo e assim, trazê-lo para o século XXI. De acordo com o professor Nilton Rocha, não podemos pensar o jornalismo em uma esfera que tem a tarefa de fazer a mediação entre o poder e a sociedade. Nilton ainda afirma que nós não temos nada a ver com o poder e completa dizendo que “esse conceito é patriarcal e elitista. O jornalismo compartilhado implica o jornalista ser capaz, onde ele estiver atuando na sociedade, de ser articulador de possibilidades”. Assim como o professor Nilton, Vinicius concorda que o jornalismo compartilhado é o jornalista capaz de ser um articulador da produção da informação, dos bens culturais e do seu desenvolvimento. Ao se fazer uma proposta sobre o tema, faz-se,
Para além do discurso de que apenas os acadêmicos são detentores de conhecimento, o jornalismo compartilhado vem para quebrar barreiras de poder. ELISAMA XIMENES
Estudante de Jornalismo
Reprodução
ara além do conceito de jornalismo comunitário, daquele que é praticado por membros de uma comunidade, começa a ser discutido o conceito de jornalismo compartilhado. Este conceito tem sido usado pelo professor Nilton Rocha, da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) para desenvolver projetos e produtos comunicacionais, que priorizam temáticas sociais. Os projetos desenvolvidos são criados no laboratório Magnífica Mundi, que trabalha nessa perspectiva há 16 anos. Os estudantes compartilham experiências e vivências dentro de livros, revistas e a jornada magnífica, que ocorre anualmente. Eles têm em mente que essa forma de jornalismo vem mudando a concepção de notícia hegemônica dos atuais meios de comunicação, que se preocupam com imediatismo.
O jornalismo compartilhado produzido por estudantes da Magnífica Mundi leva, para as comunidades, assuntos que são significativos e fazem com que as pessoas se sintam pertencentes à universidade. O portal Berra Lobo, desenvolvido como projeto de conclusão de curso pelo estudante Vinícius Pontes (22), abarca produções de estudantes de Jornalismo e de pessoas das comunidades que dividem a mesma ideologia que o jornalismo compartilhado propõe. De acordo com Vinicius, o portal tenta colocar junto, em um só lugar, produções tanto de jornalistas como de pessoas que produzem conteúdos externos. “As produções são de pessoas que não têm diploma e que não, necessariamente, trabalhe em redação ou outro meio de comunicação, mas que na comunidade faz todo o sentido”, afirma Vinicius.
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JORNALISMO
Estudantes do coletivo Magnífica Mundi em reunião para discutir novos projetos de jornalismo compartilhado
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também, uma proposta de se intervir coletivamente no processo hegemônico. “Colocar produções de diferentes comunidades em um só lugar é proposto para uma conversa e uma troca cultural. E indo contra esse discurso que é dar voz, nosso papel é fazer circular informações nas comunidades, a partir da nossa formação”, afirma Vinicius. O portal Berra Lobo vem, então, de acordo com Elisama Ximenes (21), estudante do curso de Jornalismo, para desembocar as produções práticas de jornalismo compartilhado que são produzidos no laboratório da Magnífica Mundi e nos projetos que o coletivo desenvolve em comunidades como o Sertão (Terra Encantada), e Oziel (Berra Lobo). VANTAGENS O jornalismo compartilhado ainda é muito novo. De acordo com Nilton, não há teorias que discorram sobre o assunto. Segundo ele, a referência mais interessante, no Brasil, é o site Outras Palavras (http://outraspalavras.net/). Nilton ainda diz que o jornalismo compartilhado surge no bojo de dois movimentos importantes: a revolução tecnológica e as revoluções sociais contínuas na humanidade, que não aceita mais o jornalista falar por ela, ser porta voz dela. Para além do discurso de que apenas os acadêmicos são detentores de conhecimento, o jornalismo compartilhado vem para quebrar barreiras de poder. Elisama afirma que “é a gente entender que, enquanto acadêmicos, nós não somos os únicos portadores do conhecimento. Então, o conhecimento tem que ser compartilhado e entender que as vivências das pessoas também são produções de conhecimento”. O portal Berra Lobo vem nessa vertente de aglomerar as produções dos projetos acoplados na Magnífica Mundi e, segundo Elisama, as vantagens de se trabalhar com a perspectiva do jornalismo compartilhado é fugir da lógica hegemônica de jornalismo. “A gente foge da mania de procurar fontes oficiais, porque a gente tem essa mania de achar que elas são as detentoras de conhecimento e a gente começa a entender que a senhoria que rega as plantas todos os dias lá no Sertão tem o conhecimento dela sobre aquela horta e ela é uma fonte oficial se a gente quiser falar de planta, por exemplo,” afirma. O jornalismo compartilhado é capaz, ainda, de mostrar que a vivência jornalística pode ser trabalhada de diversas formas e em novas perspectivas. “O que mais me encanta ao trabalhar assim é ver que as crianças podem fazer jornalismo e que a gente pode fazer com elas”, afirma Elisama.
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- ESPECIAL -
AIDS NA MÍDIA LARISSA FARIAS
A IMPRENSA NA CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DE PRECONCEITOS DA DOENÇA REPORTAGEM Larissa Farias EDIÇÃO Karla Araújo DIAGRAMAÇÃO Julie Tsukada
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arília Almeida, jornalista graduada e mestranda pela Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da UFG, faz uma pesquisa sobre o impacto – as primeiras impressões e reações – que a produção jornalística traz na construção do preconceito com as pessoas que vivem com AIDS e os estigmas que essa produção gerou para alguns grupos, principalmente os homossexuais.
Então no primeiro momento, ele foi associado a outros tipos de enfermidade? Marília Almeida: Tanto os autores falam quanto percebemos pela análise dos jornais, que nós, os jornalistas, pegamos termos de outros grandes males, como a peste negra, que foi uma epidemia de proporções gigantescas no mundo. Então, uma das primeiras referências a AIDS foi chamá-la de peste rosa. Outro exemplo foi o caso do câncer, em que usaram a nomenclatura câncer gay para falar da AIDS. Foi usado o que estava no imaginário sobre outras doenças, que são extremamente estigmatizantes, para falar da AIDS. Logo as primeiras reportagens foram extremamente preconceituosas. Por causa desse conceito de grupo de risco, assouciou-se a AIDS à um estilo de comportamento desviante, que seriam os homossexuais, as prostitutas, os haitianos que eram imigrantes e foram culpabilizados por levar a doença para os Estados Unidos, por exemplo.
Marília Almeida é mestranda em Mídia, Cidadania e Preconceito pela Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) No seu trabalho você fala a respeito da importância da linguagem, da fonte e da estrutura da reportagem. Em que medida esses fatores foram determinantes na construção e desconstrução do preconceito? Marília Almeida: O que eu já percebi na pesquisa do jornal O Popular, por exemplo, é essa utilização de metáforas extremamente pejorativas que associam a AIDS tanto à um grande mal que já dizimou milhares de pessoas quanto a homossexualidade. Ela é obviamente muito forte e prejudicial, porque reforça o preconceito e prejudica a conscientização, porque os heterossexuais acham que podem ficar tranquilos, que não serão contaminados. Outra coisa que eu percebi no O Popular foi que por mais que a manchete fosse escandalosa, muito chocante e sensacionalista, a reportagem era boa. O que é ruim da mesma maneira, porque muita gente só fica na manchete, então do que adianta eu ter uma reportagem muito boa se a manchete, o título, é sensacionalista, se a foto que eu vou colocar lá passa uma imagem errada. O conteúdo, a forma, as palavras que escolhemos, as metáforas, tudo isso tem sentido. Qual o legado que essas abordagens deixaram para os dias de hoje? Quais estigmas e percepções a respeito da AIDS ainda permanecem por causa dessa abordagem descuidada? Marília Almeida: A imprensa tem participação nesse preconceito que nós vemos hoje. Do ponto de vista do estigma aos homossexuais, a mi-
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No decorrer da pesquisa, como você observou o comportamento da mídia no momento em que o vírus se tornou conhecido? Marília Almeida: A minha percepção é que a AIDS teve transmissão simultânea pela mídia. Na medida em que os primeiros casos foram diagnosticados, da ciência tentando descobrir o que era essa doença e os médicos tendo que responder, eles foram muito utilizados como fontes para isso. Da mesma forma foi com a mídia. As primeiras reportagens sobre o assunto tinham muitas informações erradas, mas naquela época não se sabia muito, o vírus da AIDS só foi isolado e a doença veio a receber um nome anos depois dos primeiros casos diagnosticados.
Quando você está falando de uma pessoa, é preciso lembrar que como tal, ela não é uma estatística nem um número. MARÍLIA ALMEIDA Mestranda pela FIC
nha defesa é que isso se deve muito a AIDS e ao trabalho da imprensa em construir essa imagem dela. Eu vejo que os prejuízos são inúmeros, para a comunidade homossexual, que sofre preconceito até hoje. As pessoas fazem essa vinculação, mas elas não não entendem que elas têm preconceito por conta dela. Em grande parte, isso é evidente, e causa prejuízo para as pessoas que convivem com a AIDS, que são duplamente golpeadas porque sofrem o preconceito por terem HIV e por todos acharem que são homossexuais. Isso prejudica as campanhas de conscientização e o controle da doença, pois passa a ideia de que a AIDS só atinge quem é homossexual e as pessoas que não se reconhecem como tal acabam por não se sentir vulneráveis a doença. Que evoluções podem ser percebidas mutuamente na imprensa e na sociedade nos últimos anos, no sentido de desfazer esses equívocos iniciais? Marília Almeida: Eu acho que a imprensa é muito mais consciente. Existe uma preocupação com os termos que
você vai utilizar para falar da AIDS, isso tem que ser uma preocupação dos jornalistas, tanto pesquisar como se atualizar, para não ser preconceituoso na fala. Por exemplo, hoje não falamos mais portador do vírus HIV, porque a palavra portador dá a impressão de que, como um celular, eu posso carregá-lo comigo e quando não quero, deixo em algum lugar, que é algo acessório. E não é assim, a pessoa que tem HIV, até o momento que se sabe, viverá com ele o resto da vida. Isso dá a ideia de que ela porta um mal, então é uma palavra que não se usa mais, hoje se diz que a pessoa vive com HIV/AIDS. Quando você está falando de uma pessoa, é preciso lembrar que como tal, ela não é uma estatística nem um número, no caso do termo soropositivo. Por ser um tema sensível, percebo que os grandes veículos têm tido essa preocupação. Apesar de ter havido uma melhora geral, ainda há muito o que ser feito, devendo-se permanecer constantemente atualizado para não cometer o mesmo erro novamente e fazer um jornalismo melhor, mais preocupado com sua responsabilidade social.
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- SAÚDE -
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DISTÚRBIO ALIMENTAR NA BUSCA PELA BELEZA Isadora Tristão
JOVENS E MULHERES SÃO OS GRUPOS MAIS AFETADOS POR ESSES TRANSTORNOS
studos de 2007 encontrados na revista Superinteressante já afirmavam que 1% da população mundial sofria com algum tipo de transtorno alimentar, especialmente jovens e mulheres. Os distúrbios alimentares mais conhecidos são a bulimia e a anorexia, que afetam em sua maioria mulheres, mas segundo uma pesquisa publicada pela American Journal of Psychiatry, 10% dos afetados são homens. Segundo a psicóloga especialista no assunto Luciana Martins, esses dois principais distúrbios são confundidos com muita freqüência, mas existem grandes diferenças. De acordo com Luciana, a anorexia caracteriza-se pelo baixo peso com recusa alimentar e pela distorção da imagem corporal. A pessoa adota estratégias purgativas (vômitos, laxativos) acompanhadas da distorção da imagem corporal na visão do afetado, longos períodos de tempos sem comer aliados a obsessão por um corpo extremamente magro. Já a bulimia é uma compulsão alimentar, que se caracteriza pela sensação de culpa depois de ter comido exageradamente. O bulímico provoca vômito, para compensar o peso que ganhou. A nutricionista Juliana Pulsena, professora da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Goiás (UFG), acrescenta que o anoréxico, além de não comer, pode também ter compulsão por exercícios físicos.
O culto ao corpo perfeito faz com que jovens recorram a atitudes não saudáveis para se enquadrarem constrói uma imagem do que seria um corpo ideal, excessivamente magro”, diz a estudante. Assim como Luciana, Ana Elisa acredita que os transtornos alimentares são construídos e que os jovens recorrem a isso para se enquadrarem e se enturmarem. Já a nutricionista Juliana crê que possam existir pessoas biologicamente propensas a sofrer transtornos alimentares, mas a ciência ainda não conseguiu comprovar essa hipótese como também não existem dados concretos de quantas pessoas têm alguma dessas doenças, já geralmente os pacientes escondem pelo que estão passando.
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A estudante afirma que “isso é muito comum em uma companhia de balé. Devido a uma exigência muito grande de uma imagem de perfeição, longilínea, que é esperada de uma bailarina clássica”. Ana Elisa explica também que dentro do mundo do balé, muitas garotas são incentivadas pelas próprias professoras a fazer dietas malucas para conseguirem o papel principal. A bailarina acompanhou alguns casos de colegas da companhia de balé, “uma amiga minha só ingeria líquido um mês antes da apresentação. Não comia nada para não ganhar peso e caber dentro do figurino”, conta.
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REPORTAGEM Isadora Tristão EDIÇÃO Ana Clara DIAGRAMAÇÃO Dayane Borges
O nutricionista é o profissional vilão, que vai obrigá-lo a comer. JULIANA PULSENA
Nutricionista e Professora da UFG
IDEALIZAÇÃO Isadora Tristão
A mídia, na visão da psicóloga Luciana Martins, criou o culto ao corpo magro e esguio e isso acaba por atormentar aquelas pessoas que não têm o biótipo padrão. A mídia dispara muitas imagens apelativas ao corpo perfeito e a concepção de que “pessoas magras são mais felizes e saudáveis, e essa falsa ideia tem afligido a vida de muitos” afirma ela. Na opinião da bailarina e estudante, Ana Elisa Fernandes, o que leva uma pessoa a recorrer a medidas drásticas que desencadeiam esses distúrbios é a vontade de ter um corpo de acordo com os padrões de beleza impostos pela mídia e pela sociedade. “A mídia
A balança é uma inimiga para muitas pessoas
TRATAMENTO As pessoas afetadas com essas doenças têm muita dificuldade de assumir que estão com um problema e podem levar isso adiante por anos a fio.“Muitos [jovens] escondem da família, tem vergonha de pedir ajuda, e recorrem de última hora quando já estão com desgaste muito grande no organismo, nos dentes e no estômago” afirma a psicóloga. Luciana diz que seu trabalho é uma forma de conscientizar os pacientes do problema que eles estão vivendo e ajudá-los a buscar uma solução. Juliana afirma que os pacientes têm que ser acompanhados por um nutricionista desde o momento do diagnóstico, mas com a devida cautela por causa da resistência do paciente. “O nutricionista é o profissional vilão, que vai obrigá-lo a comer”, diz a professora. Cada caso é específico, mas em regra geral o tratamento para solucionar transtornos alimentares consiste em acompanhamento psicológico, nutricional e principalmente familiar. A nutricionista Juliana acredita que, “com tantos novos casos de distúrbios de ansiedade, estresse e cobranças sociais”, o número de pacientes com distúrbios alimentares tende a aumentar. No entanto, os casos de pessoas que sofrem com esses transtornos atendidos no ambulatório da UFG são muito poucos, cerca de, apenas, um ou dois por ano, segundo Juliana. Embora não exista a necessidade de se criar uma área de atendimento específica, os pacientes que procuram o ambulatório da Universidade recebem atendimento especializado.
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- ENGENHARIA -
NÚCLEO ENGRENA ROBÓTICA EM GOIÁS SE PREPARA PARA PARTICIPAR DE TORNEIOS REPORTAGEM Amanda Calazans
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Cainâ Borges DIAGRAMAÇÃO Larissa Ariel
ATIVIDADES O motor do PMec é sua participação na Competição Latino-Americana de Robótica (Larc) em cinco categorias. Na Standard Educational Kit (SEK), a equipe recebe um novo desafio a cada dois anos para ser resolvido utilizando kits educacionais de robótica, como o LEGO Mindstorms. “Neste ano, o desafio é realizar o resgate de vítimas em um ambiente de desastre”, informa Hudson. Há também a Very Small Size Soccer (VSSS), a categoria de futebol de robôs cúbicos de 8cm. “Cada equipe deve levar um time composto por três robôs, geralmente um goleiro e dois jogadores de linha. O jogo é composto por dois tempos de dez minutos e tudo deve ser executado sem a interferência humana. Ganha quem marcar mais gols ao final.” Já a equipe da Simulation Soccer 2D deve criar algoritmos para um jogo de futebol simulado, sem hardware. Na categoria Humanoid
Cainã Borges
riado em 2011, a partir da iniciativa de sete estudantes de Engenharia Elétrica motivados pela participação em torneios de robótica nacionais, o Núcleo de Robótica Pequi Mecânico (PMec) é dividido em equipes de cinco categorias de competição, cujos membros também atuam na gestão do grupo. O PMec realiza o Torneio de Robótica Embarcada (Trem) e participa da organização da etapa regional da Olimpíada Brasileira de Robótica (OBR), com recursos vindos de rifas, minicursos ou dos próprios estudantes e sob orientação do professor Marco Antonio Assfalk, da Escola de Engenharia Elétrica, Mecânica e de Computação (EMC). Segundo o mentor do grupo, 78% da EMC pediu por atividades práticas em uma pesquisa realizada em 2013, sobre a quantidade de carga teórica ofertada às engenharias. Gerenciado pelos próprios alunos, o Pequi Mecânico veio preencher
Robô humanoide andará cinco metros em competição
A categoria de futebol conta com um time de três robôs cúbicos Robot Racing, o time deve fazer um percurso de cinco metros com um robô no formato humano em menos tempo. Por fim, a categoria Open propõe desafios baseados no mundo real, com liberdade para a escolha do material. “Os problemas geralmente são bem complicados”, explica Hudson. “Neste ano, por exemplo, as equipes devem montar
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satisfatórias, porém pretendemos alcançar mais pessoas para as próximas edições”, anuncia Hudson. ENGENHEIRAS Dos quarenta membros atuais, apenas sete são mulheres. O presidente do grupo atribui a ausência ao baixo interesse feminino por robótica, o
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MEMBROS, GRUPO
essa lacuna. A estruturação do grupo contou com a eleição de uma diretoria e a divisão de cargos administrativos. Mesmo sem incentivar diretamente o empreendedorismo, a busca pela aproximação com a UFG resultou em parcerias com diversas iniciativas que estimulam a prática. “O que acaba influenciando os membros do PMec. Um exemplo é de que dos quatro últimos presidentes do Pequi, três se tornaram empreendedores”, conta o atual presidente Hudson Martins.
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COM NOVOS
Depois de entrar no núcleo, eu me apaixonei ainda mais pela robótica. THAIS MENDES
diretora de marketing do PMec robôs que ordenhem vacas em um pasto e levem o leite coletado até um tanque.” O PMec é aberto a todos os estudantes de graduação da UFG. Quanto ao processo seletivo, há realização uma vez ao ano, geralmente no primeiro semestre e o número de vagas varia, de acordo com o presidente. Cada equipe determina a quantidade de membros que entrará, tendo ao todo quarenta membros. No entanto, vale ressaltar que não existe número máximo. Uma atividade proporcionada pelo grupo e que dialoga com o estado é o Torneio de Robótica Embarcada (Trem), que depende de patrocinadores para ser realizado. O evento é marcado por dificuldades, devido à falta de verba e tempo exigido para a realização das provas, salienta Hudson. O maior objetivo da organização é influenciar a prática da robótica, que ainda é fraca no estado do Goiás. “As últimas edições foram bem
que não foi o caso de Thais Mendes, diretora de marketing do Pequi Mecânico. “Desde pequena sempre achei robótica interessante, por isso escolhi um curso que abriria portas para uma carreira nessa área. Quando entrei na faculdade e fiquei sabendo do núcleo, sabia que precisava participar. Depois de entrar, eu me apaixonei ainda mais pela robótica”, conta a também membra da equipe VSSS, responsável por cuidar da estratégia que irão usar durante a partida de futebol. No ano passado Thais participou da equipe SEK, que atualmente tem uma capitã. “Pelo que já presenciei no núcleo, posso dizer que não existe preconceito de gênero nem de sexualidade. Todos os membros são tratados com respeito”, atesta. No último processo seletivo, três das sete vagas ofertadas foram preenchidas por mulheres. “Há uma sensação muito boa em ver o seu robô funcionando, especialmente depois de passar meses e meses trabalhando no projeto”, recomenda Thais.
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- CULTURA -
MUSICALIDADE FRUTIFICA NA UFG
Carlos Siqueira
BANDA PEQUI MANTÉM
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AÇÃO DE EXTENSÃO QUE PROJETA MÚSICA ERUDITA PARA O ESTADO REPORTAGEM Isadora Tristão
Banda Pequi é um projeto de extensão criado pela Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC) da Universidade Federal de Goiás (UFG). A banda é uma orquestra de música popular brasileira formada por 22 músicos, alunos e ex-alunos da faculdade, e é regida pelo professor Jarbas Cavendish. Ela foi criada a partir da disciplina prática em conjunto, também ministrada pelo professor Jarbas. Como projeto de extensão de cultura, a banda recebe incentivo da Reitoria da universidade como bolsas para manutenção dos instrumentos e estruturação, de acordo com Flávia Maria Cruvinel, pró-reitora de cultura. Em contrapartida o grupo faz apresentações gratuitas em eventos, principalmente, da UFG. Segundo o maestro Jarbas, a Banda Pequi tem o objetivo de estender a prática feita dentro da escola e produzir música para tocar para toda a comunidade. PEQUI O nome da banda remete à fruta típica do Cerrado, o pequi, fazendo uma caracterização bastante goiana da banda, embora não toquem músicas próprias da região, como o estilo sertanejo. A Banda Pequi surgiu a partir de uma ideia da professora Glacy Antunes, que era diretora da EMAC em 2000. Segundo Jarbas, ela sentiu a necessidade de começar um projeto relacionado à música popular. O maestro conta que Glacy sugeriu formar uma big band de música brasileira, a qual ela também sugeriu o nome. “Na hora eu achei um nome de mídia muito bom” contou o regente ao dizer que topou o projeto na mesma hora. Apesar de gostar do nome escolhido, ele afirma que os alunos não acharam muito legal, “mas aí pegou e ficou bem conhecido com esse nome Banda Pequi”. A Escola de Música da UFG está mais ligada à formação de música erudita e à produção de projetos de pesquisa sobre música. Com isso, para o professor Jarbas, a formação
Professor e maestro Jarbas Cavendish rege a gravação do CD da banda que ganhou a simpatia nacional
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Larissa Ariel EDIÇÃO Érica Reis DIAGRAMAÇÃO Alline Flores
O público alvo é o aquele que esteja disposto a ouvir. JARBAS CAVENDISH Professor e maestro
de uma big band é muito importante para desenvolvimento da música popular porque, segundo ele, uma escola de música deve formar músicos, e não só ficar no âmbito de trabalhos Deve-se exercer a atividade de músico, segundo o maestro. A banda, que já existe há dezesseis anos ininterruptos, possui uma grande rotatividade de músicos, porque muitos terminam sua graduação e consequentemente saem do grupo. No entanto, o professor Jarbas contou que os alunos se apaixonam pelo projeto e muitos voltam à faculdade para fazer pós ou mestrado e acabam retornando para a banda. Segundo ele, ainda existem outros que são ex-alunos e nunca deixaram de participar, mesmo depois de graduados. Ele afirmou que no início essa rotatividade era muito perigosa, porque o estudante se formava e não tinha ninguém para substituí-lo. “Então formava três trompetistas e saiam três trompetistas e não tinha ninguém pra colocar com experiência, a partir do momento que já era um grupo se profissionalizado” conta o regente.
Pela banda já passaram cerca de 150 alunos e, atualmente, 22 pessoas fazem parte desse projeto. O grupo resiste ao mercado graças ao apoio da faculdade. “A gente foge totalmente da ideia do mercado, tanto é que a gente não é um grupo viável porque são 22 pessoas. Não é barato, então a gente se estabelece pelo fato de estar dentro da academia. Fora da academia esse projeto não duraria um ano”, comenta Jarbas. Quanto ao público alvo, Jarbas afirma que “o músico vai onde o povo está”. O grupo não tem um público restrito, e a música que fazem é para todos. Um dos integrantes da banda, Nivaldo Júnior, 32 anos, concorda com o maestro e disse que a Pequi traz “outras possibilidades para se ouvir música” de tão boa qualidade quanto qualquer outro grupo musical que existe no mercado. PROJETOS O professor Jarbas acrescenta que antes de entrar na Banda Pequi os músicos têm a oportunidade de aprender e praticar um pouco mais em uma outra versão da banda, a Pequi B. Esse
projeto paralelo é “muito interessante para o grupo porque não expõe o grupo profissional ao músico inexperiente que vai tocar ali e nem expõe esse músico inexperiente. Então a Pequi B serve pra isso, pra fomentar os músicos a entrarem na Pequi”. É uma forma de fazer os músicos buscarem mais experiência antes de ingressarem em um grupo mais profissional. Nivaldo conta que para ingressar na banda o instrumentista é convidado a fazer uma audição. Integrante da banda desde 2012, ele comenta que uma das grandes preocupações do grupo é a formação de plateia. O “objetivo e levar ao público de maneira geral uma música mais elaborada, diferente do que se tem oferecido na mídia, na maioria das rádios”, afirma Nivaldo Júnior. O instrumentista também comentou da grande importância que a Banda Pequi tem em sua formação como músico. Ele afirma que estar no grupo trouxe um “contato maior com a música popular brasileira e a Banda Pequi vem preenchendo esta lacuna na minha formação como músico pesquisador e profissional também”. Atualmente, a Banda Pequi está se preparando para o lançamento do novo DVD em parceria com o músico João Bosco. “João Bosco é um ícone da música popular brasileira já há muito tempo. Então, ele ter cedido e aceito fazer esse trabalho com a gente é uma honra. É o reconhecimento da qualificação que a gente tem buscado” afirmou Jarbas. Ele contou também sobre a possibilidade de trazer o músico para Goiânia para um show de lançamento.
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- EDUCAÇ
UFGINCLUI ENTRELAÇA A Bruna Policena
AÇÃO AFIRMATIVA TECE UMA REDE ENTRE ETNIAS, CRIANDO NOVAS OPORTUNIDADES REPORTAGEM Amanda Soares
Amanda França Bruna Policena EDIÇÃO Victoria Dinizio DIAGRAMAÇÃO Roberta Rodrigues
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Alunos reunidos durante aula do curso de Educação Intercultural Indígena no Núcleo Takinahaky
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FGInclui carrega o total sentido da palavra “universidade”. O projeto foi criado em agosto de 2008 e, por meio do programa de inclusão, os estudantes indígenas, assim como quilombolas e pessoas de baixa renda, passaram a ter acesso à universidade. Com quase nove anos de história, o UFGInclui trouxe muitas conquistas, mas também muitas questões a serem pensadas e discutidas. Problemas financeiros, falta de moradia, didática de ensino excludente e preconceito são obstáculos constantemente enfrentados pelos estudantes indígenas da Universidade Federal de Goiás (UFG). No horário de almoço ou entre os intervalos das aulas, é raro ver um estudante indígena conversando com pessoas não indígenas. A aluna de Enfermagem Franca Tsipiradi, 39 anos, da etnia Xavante, afirma ter sido bem recebida pela comunidade universitária, porém a grande maioria das pessoas com quem ela se relaciona e troca afinidades são da mesma etnia que ela. Como Franca, diversos outros estudantes andam “em família” e impressionam com o modo rápido de falar, pois preferem dirigir-se uns aos outros pela língua materna, afirmando constantemente a força de sua identidade. Em seu português entrecortado e com traços de timidez e desconfiança, não aparentes quando se expressa na língua Xavante, a estudante indígena de Enfermagem lamenta ter reprovado mais de uma vez na matéria de anatomia. Mesmo com o auxílio de monitorias, ela confessa que não vai conseguir terminar o curso de cinco anos, em menos de oito. “Faço monitoria, mas tenho muita dificuldade com língua portuguesa”, afirma Franca. Ela relata ficar triste quando seus colegas de classe não a escolhem para fazer trabalhos. “Nem discutem o trabalho com a gente, acham que não tenho capacidade”, desabafa. Fabiana Fete Canela, 29 anos, da etnia Kanela, estudante da Licenciatura Intercultural para Formação de Professores Indígenas, também já passou por casos de discriminação no
Ser indígena é muito mais do que se pintar ou usar acessórios. Isso está dentro de você, no seu coração, no seu sangue. WAUTOMOTSIE TSERINHONHIMI Estudante de Administração
Restaurante Universitário (RU). “Já ouvi que lugar de índio é na tribo, não na cidade”, conta. Fabiana tenta ignorar esses comentários porque, segundo ela, quem fala isso não entende que ela tem os mesmos direitos que todos. “Eu tenho o meu caminho e um dia vou mostrar que nós indígenas temos capacidade, nós temos os nossos direitos. As cotas estão aumentando cada vez mais e eu sei me adaptar e me defender”, afirma ela. OBSTÁCULOS Outra indígena Xavante, Wautomotsie da Silva Tserinhonhimi, 28 anos, passou por casos parecidos de isolamento. A estudante de Administração teve que parar no ano de 2012, no primeiro período do curso, porque se sentia muito perdida. “Eu tinha dificuldade nas matérias e não conseguia acompanhar, estava muito isolada”. Além disso, tinha muita vergonha de conversar com os professores e perguntar sobre o conteúdo. De acordo com ela, essa é uma situação muito comum entre os estudantes indígenas. Wautomotsie vivia de favor na casa de uma amiga, porque não conseguiu vaga na Casa do Estudante (CEU) e, na época, não sabia como ir atrás de auxílios de permanência na universidade. Por essa razão, ela pre-
cisou trabalhar. “Por causa do trabalho eu chegava atrasada nas aulas. Fui conversar com um professor e ele não foi flexível, então reprovei na matéria. Não chegava atrasada porque estava vadiando. Eu estava trabalhando para me manter. A minha família não tinha condições para isso”, defende-se. Ela voltou a cursar Administração em 2014 e alega que o UFGInclui evoluiu muito desde sua primeira experiência de ingresso. Para ela, o programa está mais bem articulado. Agora a estudante participa da União dos Estudantes Quilombolas e Indígenas da UFG e está por dentro de seus direitos. Porém ainda critica o fato de ser tão complicado conseguir uma vaga na CEU, pois, além do aluguel, não dá para arcar com as despesas de alimentação, de vestimenta e compra de material escolar com os R$ 900,00 da bolsa auxílio. A aluna relata que a bolsa é outra dificuldade porque não tem data estipulada para chegar, o que pesa principalmente para quem precisa pagar aluguel. “Muitos indwígenas tem ido embora e deixado o curso porque não têm onde ficar. Não adianta ofertar vagas de cotas e não ajudar a manter o aluno. Ninguém arruma um trabalho e conhece uma cidade do dia para a noite. Deve haver realmente alguém para dar a mão”, afirma Wautomotsie.
O QUE FALTA O professor Sinval Martins Filho, líder do Grupo de Educação e Língua Indígena da UFG, defende que umas das falhas do ensino impede com que o UFGInclui funcione plenamente. Para ele, um dos grandes problemas é a tradicional didática dos professores que não considera os estudantes como sujeitos de níveis variados de entendimento, ritmo de aprendizado e cultura. “Deve-se tratar desigualmente os desiguais, olhar para o sujeito, perceber no que o estudante avançou e não avançou, perguntar se deve voltar na explicação de conteúdo. Será que eu não devo parar um pouco e ir na carteira daquele aluno para conversar e motivá-lo? “, explica Sinval. “Essa postura se aplica a qualquer sala de aula, independentemente se há estudantes indígenas ou não”, conclui o professor. Sinval também lembra que o conhecimento indígena é tão importante quanto o conhecimento tradicional da academia. O problema é que, como a sabedoria indígena não é sistematizada, há o risco de o UFGInclui forçar a assimilação, fazendo com que os estudantes se sujeitem aos valores da cultura dominante, ao invés de contribuir para que eles alcancem autonomia e preservem sua própria cultura. “É uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que podemos ajudar, também podemos acelerar o processo de desaparecimento da língua e da cultura”, diz Sinval. De acordo com o professor, são frequentes os casos de conflito em que os formandos indígenas regressam para a aldeia com outros valores e conduta, servindo de gatilho para a destruição da cultura.
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CAÇÃO -
A INTERCULTURALIDADE
DIREITO
Aluno indígena Leomar Wainê Para o universitário, a maior dificuldade que enfrentou quando saiu de sua aldeia, próxima à Palmas, no estado de Tocantins, e veio morar em Goiânia, foi o choque cultural. Os problemas vão desde a alimentação até a linguagem, pois a cultura indígena é consideravelmente distinta dos costumes urbanos. Wainê explica que, na aldeia, eles se alimentam de caça e pesca e só se comunicam pela lingua materna, que, no caso da etnia Xerente, é derivada do tronco linguístico Macro-jê Akwe. “Quando eu cheguei aqui em Goiânia, não tinha ninguém mais para conversar na minha linguagem, tinha que falar só o português. É a maior dificuldade que todo indígena enfrenta”, afirma. O estudante Xerente recebe, atualmente, Bolsa Alimentação, Bolsa Permanência, reside na CEU do Câmpus Colemar Natal e Silva e explica que o UFGInclui foi de grande importância para seu ingresso na universidade. Entretanto, ele afirma que não sentiu ter sido colocado “à frente” de outros alunos por ter entrado pelo programa, já que acredita na sua capacidade, independentemente de ser indígena. Quanto ao estudo acadêmico, Wainê conta que os jovens de sua etnia são incentivados a continuar os estudos além do básico oferecido na aldeia. “Hoje, na nossa aldeia, temos mais de quarenta escolas indígenas, e os alunos estão estudando, indo para a cidade, entrando nas universidades, faculdades... Isso para nós é um avanço muito grande”, comemora.
INTER CULTURAL Luciana de Oliveira Dias, 45 anos, é doutora em Ciências Sociais pela UnB e professora efetiva do Curso de Educação Intercultural Indígena da UFG. Este curso é ligado à Faculdade de Letras, tem foco em étnico-raciona idades e oferece cursos de capacitação para professores aos aldeados. Tem como sede o Núcleo Takinahaky – que na língua Carajás significa “estrela que mais brilha” – local onde são ofertados cursos de licenciatura para grupos étnicos, com disciplinas que trazem como foco as necessidades culturais de cada povo. Segundo ela, ao todo, a universidade recebe 305 grupos étnicos diferentes. O Curso de Educação Intercultural Indígena completa dez anos e oferece aos alunos, que já são professores em suas aldeias, maior sensibilidade para lidar com sua cultura e repassá-las às suas crianças, ensinando-as a língua mãe por meio da produção de materiais didáticos no seu dialeto. Essa formação de profissionais ocorre no período das férias, em que duas vezes por ano eles têm aulas presenciais e os seus professores também vão às aldeias fazer estágio-docência. Essa ação afirmativa visa, a partir das aulas e produções didáticas, o fortalecimento da cultura deles, além da valorização e representatividade do conhecimento étnico. Luciana não participa do projeto UFGinclui, mas tem grande proximidade na atuação e o acompanha desde o início. Ela relata que as primeiras experiências do UFGinclui, sobretudo, “tem uma dimensãomensão perversa para a gente tratar, e ainda sim ele é importante. Porque ele provoca mudanças na universidade e, assim, vão sendo geradas instâncias auxilia-
res das quais precisamos. Pois uma política pública sozinha e isolada não dá conta de mudar realidade nenhuma, isso é fato. Nós necessitamos de várias ações, e o UFG inclui acabou provocando várias delas para sustentar esse sujeito aqui, porque ele precisa de apoio em vários lugares, não somente em um”, esclarece ela. A professora ressalta que a graduação é muito importante para os aldeados, pois eles precisam de representação dentro da própria comunidade, e, no mercado de trabalho, esse nível de estudos é muito cobrado. Ela conta que após sua experiência com as aulas interculturais, mudou seu olhar, sua forma de atender e receber os alunos, e teve maior sensibilidade para dar aulas, seja no núcleo ou na graduação regular. “Eu sou testemunha de uma educação colonial possível. Ninguém que testemunha isso volta igual. É uma experiência de docência, mas também de sensibilização”, conclui. As ações afirmativas criadas pela UFG estão caminhando, mas Luciana acredita que ainda falta fomento para que professores e alunos sintam-se estimulados a dedicar-se às ações e projetos interculturais. “A universidade poderia se sensibilizar um pouquinho mais e aumentar os incentivos para que a educação intercultural indígena se realizasse de maneira menos cruel do que tem acontecido”, desabafa. Ela explica que dentro do curso, tem conseguido garantir os incentivos (bolsas) discentes, mas o que faltam são os incentivos docentes para que possam trabalhar com mais dignidade. A realidade de muitos estudantes indígenas de cursos regulares é a falta de acolhimento suficiente para se manter com a dedicação que exige uma graduação. Bruna Policena
O aluno indígena de etnia Xerente, Leomar Wainê Xerente, 23 anos, também estuda para defender os direitos do seu povo, está cursando o sexto período do curso de Direito na UFG. Segundo Leomar, que está se especializando em direitos indígenas, esta é uma urgência para eles. “É preciso ser indígena para defender o direito indígena verdadeiramente”, afirma ele, lamentando que a Fundação Nacional do Índio (Funai) não tenha uma direção que os represente. Nunca houve um presidente indígena neste órgão, que é de tamanha importância para os indígenas de todo o Brasil. “Estamos na luta por essa vaga na Funai, em busca de representatividade. Esse é um dos nossos principais objetivos”, comenta. Ao contrário de alguns colegas indígenas, ele afirma que nunca sofreu discriminação dos universitários não indígenas e atribui isso ao fato de sempre demonstrar orgulho da sua etnia. “Nós não podemos esconder a nossa origem, a nossa cultura; a gente tem que falar mesmo, ter orgulho”, reforça ele. Filho de cacique, Wainê é respeitado e reconhecido na Faculdade de Direito. Já foi chamado diversas vezes para compor mesas de debate sobre inúmeras questões indígenas, tanto na UFG quanto na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e, segundo ele, isso o deixa muito feliz.
Bruna Policena
A estudante Wautomotsie defende o acompanhamento indígena como orientação para o mercado de trabalho. Segundo ela, a maioria dos alunos não sabe como funciona um estágio e não aspira por um futuro de cargos de destaque. Ela explica que não é comum, para eles, pensar na evolução de suas carreiras profissionais. Outra reinvidicação da aluna Xavante é o acompanhamento psicológico dos indígenas em razão do choque entre culturas que enfrentam. Isso porque os estudantes indígenas deixam toda uma estrutura social e familiar para trás quando vêm estudar. Ela ainda acrescenta que é comum ouvir os grupos indígenas se perguntando o que vão fazer com o curso no futuro, quem são agora e se não estão perdendo sua identidade indígena. “Na minha cultura, eu era de uma forma, mas o que eu estou aprendendo é bem diferente”, declara Wautomotsie. Mas ela não deixa de acrescentar: “Ser indígena é muito mais do que se pintar ou usar acessórios. Isso está dentro de você, no seu coração, no seu sangue. Nada vai mudar se fizer um curso universitário. O fato de eu usar roupa, de falar inglês e trabalhar em qualquer lugar, não me faz menos indígena”.
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Luciana de Oliveira, professora de Educação Intercultural Indígena da UFG
REPORTAGEM Cláudia Castro EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Gabriela Campos
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Caique Alves
e alguma forma sinto que sempre estive aqui. Eu não nasci exatamente de úteros, mas do coração de mulheres. Dentre as minhas características, resistência é uma das principais, mas isso nem sempre era um bom caminho para elas. Os livros de História não foram fiéis a mim, muitas vezes me minimizaram, ridicularizaram ou simplesmente, me deixaram de fora. Não são todas as salas de aula que estudam minha trajetória e nem todos os professores desejam contá-la. Estou aqui para ocupar a lacuna que eles deixaram. Devo admitir que contar histórias não é algo propriamente fácil. No entanto, me honro em dizer que influenciei muitas mentes ao longo de todos esses anos. Mentes que inspiraram lutas e transformaram famílias inteiras, que representaram uma comunidade e enfrentaram a opressão, que lutaram e revolucionaram uma sociedade. Mentes que pertenciam à mulheres. Foram muitas gerações de Marias, Joanas, Camilles, Simones, Roses, Helenas, Abbys, Leilas, Agnes, Elianes, Iaras, Ashleys, Tamaras, Lis, Aishas, Claudias, Kênias, Iemanjás, Saras, Janaínas, Kims, Susanes, Adelaines, Magdas... Mulheres que cresceram entre pedras, mas juntas floresceram. Muitas vezes eu integrei a família inteira, lares liderados por mães solteiras, forçadas a serem fortes. Elas
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ELAS EXISTEM criam seus filhos sozinhas, carregando nas costas o julgo moral da sociedade. Verônica cresceu entre essas mulheres, observando a peleja enfrentada pela mãe, pela avó, pelas tias. Cresceu aprendendo a ser forte, e aprendeu. Infelizmente nem todos os lares me aceitavam. Dayane foi criada em um desses. Mulheres na cozinha, homens na sala. Cada um tem seu lugar! “Não!”, ela pensava, mas oprimida demais para realmente falar. Cresceu assim, calada. Aceitou o seu lugar, por mais frustrante que seja ter que consentir a algo tão injusto que ela não escolheu. Ela não queria o fogão, por isso, optou pela educação. “Eu vou pra faculdade!”, decidiu. Gritamos aos sete ventos que o lugar de mulher não é em casa! O lugar de cada uma deve ser, obviamente, onde elas bem preferirem. Os relacionamentos e suas transformações: poligâmicos, monogâmicos, tradicionais ou abertos, não importa em qual deles esteja, majoritariamente são as mulheres que sofrem. A violência doméstica é tão comum nos domicílios brasileiros que 56% dos homens admitem já ter agredido suas companheiras de alguma forma. O pai da Hellen se enquadra entre esses homens. Tão ingênua, Hellen acreditava, e perdoava, acreditava que podia ser diferente. Mas não era. A cada dia pelo menos 20 crianças são atendidas nos hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde) vítimas de violência sexual, Ane foi uma das infortunadas que teve esse direito arrancado de suas mãos. Sete anos e tudo que uma menininha quer é brincar, seja com seus amigos, bonecas ou carrinhos.
Corre descalça pelo asfalto, escala as árvores mais altas, ela é uma garota bem corajosa. Gargalha enquanto foge dos amigos no esconde-esconde. Um homem e um cômodo vazio foram suficientes para abalar sua vida completamente. Na sua inocência de menina, não conseguia entender o que havia acontecido ali, percebia que era ruim, sentiu que foi ruim, mas permaneceu em silêncio. Outros sete anos se passaram e nenhum detalhe foi esquecido, os impactos daquela violência eram ainda mais fortes.
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imaginava. Mas lentamente ela foi percebendo e cada uma daquelas feridas foram se cicatrizando e ela pode perceber que a beleza está no extraordinário. Ainda estamos em processo de aprendizagem, não é todo dia que a maquiagem é dispensada ou que o espelho reflete uma imagem tão atraente, mas com um passinho de cada vez, de mãos dadas, a gente vai aprendendo a se amar e passamos esse ensinamento para outras irmãs. A cada degrau que subimos, a cada nova companheira que se junta à nós, é uma pegada a mais
Rapidamente nós a despimos de toda aquela angústia e culpa que a perseguiram por tantos anos, eu a envolvi dentro de mim, nos tornamos uma só e então ela me prometeu nunca mais se calar.
Foi em meio a uma grande turbulência que finalmente nos conhecemos. Era uma manifestação secundarista, durante uma das reuniões, nos apresentaram. Rapidamente nós a despimos de toda aquela angustia e culpa que a perseguiram por tantos anos, eu a envolvi dentro de mim, nos tornamos uma só e então ela me prometeu nunca mais se calar. Entre os muitos desafios enfrentados por uma adolescente, a autoestima definitivamente é um deles. Elas crescem brincando com Barbies e tomam o estereótipo de uma boneca como aspiração. São ensinadas a admirarem um padrão estético imposto universalmente e qualquer tópico que foge desse modelo é abominado. Ser branca, magra, alta, cabelo liso, nariz afinado, quadris estreitos, seios grandes, pele de pêssego, são algumas das características impostas para alcançar o molde da “garota perfeita”. Sarah nasceu pequeninha, a pele escura e o cabelo enroladinho já demostravam que aquela bebezinha foi enviada para romper com os padrões. “Ei, cabelo ruim!”, “Psiu, cabeça de vassoura”, “O que esse Bombril tá fazendo na sua cabeça?”, eram frases comuns no dia-a-dia da pequena. O desejo de se sentir incluída aumentava ao passo que a adolescência chegava. As roupas justas foram cortadas do guarda-roupa, “elas destacam o quadril”, a base pro rosto era um tom mais claro, a progressiva no cabelo tinha de ser retocada de seis em seis meses, até o número do sapato causava insegurança. Demorou um pouco até que ela me aceitasse, demorou mais ainda para que ela se aceitasse, eu fui entrando bem devagarinho, pelos lados que ela nem
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de auto estima, é um tijolinho a mais para construir essa fortaleza de mulheres empoderadas. Estima-se que a população mundial em 2016 é de sete bilhões de habitantes, destes, quase metade são mulheres. Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas) existem 1,8% a mais de homens do que mulheres no mundo, porém, nos países do ocidente, elas são maioria. Toda essa insegurança imposta sobre as meninas as fazem acreditar que a segurança está nos homens, são levadas a crer que necessitam de cônjugue para serem completas. Submetendo-se a relacionamentos doentios e psicologicamente violentos por crerem que se não aquele abusador, ninguém mais irá aceitá-las. Letícia era uma dessas meninas, se envolveu em um relacionamento assim, depois em outro e depois outro, não importava quem, de algum jeito todos eles conseguiam manipula-la. A cada término, era uma erupção de lágrimas e sofrimento. Possuía um vazio, não percebia que apenas ela mesma poderia preenchê-lo. Nós já nos conhecíamos, ela já tinha plena consciência de suas amarras, mas se libertar daquela teia manipuladora não é simples. Confiamos, podemos ajudar outras, e enfrentaremos o mundo inteiro até que todas possam entender que são suficientes. Percebeu que tinha uma voz e decidiu que queria ser escutada, lado a lado, nós lutamos e vamos continuar lutando todos os dias até que todas possam ser livres. Porque eu sei quem eu sou. Na existência e Na resistência, na luta, no empoderamento, na esperança e na liberdade. Eu sou o Feminismo.
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TRIBUNAL DO JÚRI REPORTAGEM E EDIÇÃO Daniel Paiva DIAGRAMAÇÃO Julie Tsukada
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Cinco anos depois, os três tiveram direito a um julgamento totalmente diferente, respeitando o direito constitucional ao contraditório e a ampla defesa. Thiago nunca teve essa oportunidade.
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contratado pela família de Thiago. “Na cidade de São Paulo, por exemplo, no ano passado, um em cada três mortes violentas foi resultado de ação policial. Está na hora da população mostrar que não está de acordo com essa cultura de abuso policial e cabe a vocês, jurados, mandar essa mensagem às instituições policiais. Thiago não foi preso pelos seus crimes, ele não teve a oportunidade que esses três homens têm agora, de serem julgados perante seus iguais. Ele foi morto quando já estava rendido e se tornou mais um número nessa estatística horrível de abuso policial que vivemos no nosso país”.
caminharam para dar suas versões. Os três fizeram um discurso muito parecido. “A perseguição se iniciou na GO-060, em Trindade, quando a polícia foi alertada que um ônibus havia sido roubado no Terminal Padre Pelágio”. “Nós não fizemos parte do início da perseguição, só participamos a partir do Setor Campinas, em Goiânia”. “O ônibus estava em alta velocidade e já havia colidido em outros veículos antes de parar na marginal Botafogo”. “Disparamos na direção do ônibus durante a perseguição no intuito de atingir os pneus e o tanque de com-
Reprodução
m uma tarde de segunda-feira na cidade de Goiânia um ônibus passou em alta velocidade na Avenida Independência, no centro da capital, com viaturas policiais em seu encalço. Tiros eram efetuados em plena tarde em uma avenida movimentada da capital goiana, acertando a lataria do veículo de transporte público. Um dos projéteis atingiu o tanque de combustível do ônibus e a perseguição estava em seus últimos momentos. O motorista decidiu, então, entrar na Marginal Botafogo e notou que o ônibus que conduzia perdia velocidade. Por fim, chocouse com um outro veículo, e parou. Três policiais saíram de uma viatura e se dirigiram à frente do ônibus com armas levantadas e dispararam 16 tiros contra o jovem motorista. Cinco anos mais tarde, os três policiais se encontravam sentados no banco de réus, para serem julgados pelo suposto homicídio de Thiago Santos Viana, o jovem motorista. Os três foram denunciados pelo Ministério Público do Estado de Goiás, que entendeu que a ação foi abusiva e o desfecho da perseguição, desnecessária. “No Brasil vivemos uma cultura de abuso policial”, começou a discursar o promotor público, se direcionando aos jurados que decidiriam o destino dos policiais. O promotor atuou em conjunto com um advogado de acusação,
Do outro lado, os advogados de defesa dos policias, dois dos mais respeitados advogados penais do estado, se preparavam para seu discurso inicial. Os dois foram pagos pela Associação dos Policias e Bombeiros Militares do Estado de Goiás e eram assessorados por mais três advogados. “Os nossos clientes não podem ser punidos por exercerem sua profissão. No dia em questão, os três estavam em estrito cumprimento do dever legal e agiram em legítima defesa, deles mesmos e da sociedade, que se encontrava refém de um homem que dirigia um ônibus, de dezesseis toneladas, desgovernado por avenidas movimentadas da capital. A arma que Thiago tinha em suas mãos era muito mais poderosa e letal que as armas empunhadas pelos meus clientes”. A primeira testemunha chamada foi a mãe de Thiago, Sandra Gonçalves Santos, que, aos prantos, subiu para dar sua versão dos acontecimentos que levaram à morte de seu filho. “Thiago foi diagnosticado com bipolaridade desde criança”. O juiz Antônio Fernandes de Oliveira, que presidia a sessão, questionou se Sandra já tinha recebido ajuda do Estado para o tratamento de seu filho. “Nunca recebemos nenhum apoio psicológico do Estado. Thiago ficou muito depressivo depois que seu pai morreu em um acidente de moto e já tinha tentado se matar com remédios. Naquela manhã, enquanto tomávamos café da manhã, ele me disse que não tinha nenhuma razão para viver”. Em seguida os policiais acusados do homicídio de Thiago se en-
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bustível”. “Quando o veículo estava parado, Thiago estava com as mãos no volante e tentamos disparar na direção do motor para que ele não conseguisse fugir”. A motorista do último veículo atingido por Thiago, Carmem Sílvia Rochet, havia sido incluída na lista de testemunhas, mas não compareceu. O juiz ordenou, então, que seu testemunho colhido na fase inicial do processo fosse reproduzido na TV para os jurados. “Quando o ônibus colidiu com o meu carro ele já não estava em alta velocidade”. “Da maneira com que a batida ocorreu, o ônibus não podia se movimentar mais”. “Eu não tinha visão da cabine do motorista”. “Quando ouvi os disparos me abaixei para me proteger e não vi mais nada”. No final do julgamento, o promotor iniciou seu último discurso. Com um bloco enorme de folhas em suas mãos ele apresentou aos jurados a perícia realizada pela Polícia Civil do Estado de Goiás no caso. “Normalmente, os trabalhos das perícias não são tão detalhados como esse, mas como esse caso teve uma repercussão grande na mídia, a Polícia Civil fez um trabalho digno dos CSI americanos”. “Todos os projéteis analisados saíram das armas do Estado de Goiás, usadas pelos policias que estão sendo julgados aqui”. “A perícia confirmou que o tanque de combustível do ônibus havia sido atingido e que, no momento em que ele estava parado na Marginal Botafogo, o tanque estava vazio, o que impossibilitava a fuga de Thiago”. “O estudo das feridas letais ocasionadas pelos projéteis disparados, mostrou que, no momento em que Thiago foi atingido, ele estava
com as mãos levantadas, rendido, já que alguns disparos atingiram sua axila”. Para concluir seu argumento, o promotor levou um relatório escrito por um superior dos policias que chamou a abordagem de abusiva e de uso excessivo de força. A defesa, na sua última argumentação lembrou que desde que o ônibus foi roubado no terminal Padre Pelagio e sua parada na Marginal Botafogo, foram ocasionados cinco acidentes de trânsito. “Se o motorista não fosse parado naquele momento, quem sabe quantos inocentes ainda sofreriam? Vidas estavam em risco e esses policiais não podem ser punidos por fazerem seu serviço, por protegerem a sociedade”. Doze horas após o início do julgamento, os jurados tinham chegado à decisão. Eles reconheceram a materialidade e a autoria do crime, mas absolveram os policiais aceitando o argumento da defesa de que os agiram em defesa da sociedade e no cumprimento de seus deveres. A decisão foi recebida com gritos de felicidade por parte dos familiares e amigos dos policiais e tristeza pelos familiares de Thiago. Um jovem bipolar, que sofria de depressão após perder o pai, nunca recebeu apoio médico do Estado e morreu após uma crise emocional, que o fez cometer um ato de loucura. Os jurados que decidiram seu destino foram três policias que, após quase duas horas de perseguição, chegaram a um veredito, e executaram a punição. Pena de morte. Cinco anos depois, os três tiveram direito a um julgamento totalmente diferente, respeitando o direito constitucional ao contraditório e a ampla defesa. Thiago nunca teve essa oportunidade.
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- A Ç Õ E S A F I R M AT I VA S -
A RESISTÊNCIA DE UMA FLOR
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Na maioria dos casos, da dor das cicatrizes nascem raízes mais firmes.
relação da qual ele veio, porém, foi marcada por violência e tristeza. “Nossa criação patriarcal faz com que a gente ache que é amor”, reflete e, assim, explica não só seu relacionamento abusivo como tantos outros por aí. Aquele que parecia encantador, logo se mostrou controlador, sempre usando da chantagem emocional para manejar seu abuso psicológico. Ser feminista não te livra dos machismos e dos relacionamentos tóxicos, é o que dizem. A longa estrada de trabalhos sociais e culturais, assim como o curso de Sociologia e toda a desconstrução com a qual lidou, não
peito de cantadas ofensivas. Com tempo, surgiram os relatos de abuso. Foi ali que Fran diz ter “percebido o feminismo”. Foi o momento em que ela quis estudar, entender o assunto a fundo. Não é possível dizer quando uma mulher começa sua luta contra o abuso, mas é possível dizer quando ela busca conhecimento e se afirma nessa luta. Foi esse o ponto em que Fran começou a combater os relacionamentos abusivos. Chama o socorro que presta a vítimas de abuso de resgates, o que começou a fazer há aproximadamente dois anos.Começou com
Letícia Michalczyk
onfiar em mim mesma foi a forma mais bonita de resistência que encontrei”, é o que diz o texto da imagem que Fran vê, enquanto passeia pelas redes sociais, numa fresta de tempo livre no fim da tarde. Não hesita. Compartilha a mensagem com um dos grupos de mulheres que administra e logo são uma, duas, três... Trinta mulheres se sentindo contempladas pela postagem. Ao contrário do que muitos pensam, ela sabe que não é simples nem mesmo insignificante atuar por trás da tela do computador ou do celular, tem consciência de que é uma forma de resistência e, sobre resistir, Fran entende bem. O sorriso que resiste em seu rosto é tão forte quanto flor que floresce em terreno impróprio. Impróprio como terreno das periferias de São Paulo onde Francine Alves floresceu. Floresceu dos problemas em casa, dos choques culturais e dos abusos que enfrentou. Disse “quero voar mais longe!”, e foi. O apelido veio cedo, assim como suas poesias, logo, o nome artístico não poderia ser outro, Flor, Fran Flor. Solidária, engajada, sensível, amorosa e guerreira, é o que dizem sobre ela. Porém, adjetivos são insuficientes para contar sua história. História de luta e superação da adolescente que saiu de casa cedo, que teve um choque por ver o mundo como ele é, mas que aprendeu a resistir e re-existir ainda assim. Foi mãe aos 23 anos. Rudá, agora com 10 anos, é o broto mais precioso de sua vida. A
puderam salvar Fran da mira do abuso. Foi violentada, ainda grávida. Quando seu filho completou seis meses, ela decidiu procurar ajuda e deixar o relacionamento. “Ele era uma pessoa doente e estava me deixando doente”, afirma. Mesmo a descrebilidade e as agressões morais, Fran lutou contra as correntes do ex marido. Hoje, está livre, mas estar livre não é sinal de esquecimento. Ainda lida com o primeiro marido, seu principal abusador, e afirma: diferença é que hoje em dia não cai mais na conversa. Não é possível esquecer cicatrizes de feridas tão profundas. Na maioria dos casos, da dor das cicatrizes nascem raízes mais firmes. Fran se fortaleceu e está ciente disso. Seu laço com o filho é firme. Numa relação carregada de companheirismo e empatia, ela almeja criá-lo para que ele seja cada vez mais amigo, mais forte e mais independente. Rudá é especial, entretanto, não é o único que possui o luxo de receber o melhor de Fran. Ela aprendeu a semear tudo de bom que é capaz. “O conhecimento tem que ser compartilhado”, ela diz, quando para a refletir sobre a garota que sempre questionou, sempre quis atitudes, e sobre a mulher que se transformou. Mulher que não poupou, nem poupa, esforços para seguir em frente e sempre progredir, por si e pelas outras pessoas. Com a chegada do Facebook, conheceu o grupo “Cantada de rua - conte o seu caso”, onde mulheres compartilhavam depoimentos a res-
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REPORTAGEM Letícia Michalczyk EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Larissa Artiaga
as amigas, mulheres próximas. Compartilhava conheci- m e n t o sobre abuso em suas páginas nas redes sociais, como o facebook. Então, uma moça com quem estudou nos tempos do colégio a procurou, motivada pelas publicações. Pediu ajuda. Depois, uma colega da faculdade pediu conselho. Então, uma amiga foi estuprada e não conseguia falar sobre, sentia-se culpada. Fran Flor estava lá e a ajudou. Fala sobre o que faz com devoção. “Quando começamos a descobrir sororidade, é descobrir amor”. Sentir o virtual vir para o real a liberta. Quando a questionam sobre sua vertente feminista, brinca. Diz que tem “vertente não acadêmica”. O fato é que não tem, não está preocupada em ter. Afinal, a mulher que vê precisar de ajuda o tempo todo, a mulher da periferia, não está preocupada com qual vertente a outra segue. “Ela só precisa de uma amiga, que não vai julgar, que vai ouvir, que vai dar a mão”, diz. “A gente dá a mão uma pra outra”, é como enxerga o que faz. Quando reflete sobre seu feminismo, sonha e ri. Conta que tem vontade de fazer um grupo como os grupos de chá que via a mãe fazer com as vizinhas, “onde todas se juntavam para falar mal dos maridos”. Reconhece até nisso uma forma de empoderamento onde nunca tentaram reconhecer. Fran já é
peça importante em vários grupos atualmente. Há dois anos, faz parte do “Moça, seu relacionamento abusivo”, grupo no facebook focado em relacionamentos abusivos. Seus conselhos e seu jeito compreensivo e prestativo chamaram a atenção, logo, foi convidada a ser moderadora do grupo. Hoje possui uma rede de mulheres que ajudou e tem contatos com psicólogos e ajuda jurídica. Sempre a postos para os resgates. Por tudo que aprendeu e em todo o trabalho que faz, reflete sobre como todas já passaram pelo abuso, sobre como as histórias se repetem. Não deixa de reconhecer que é fruto da educação patriarcal em que “’a mulher é ensinada a oferecer, sem a menor liberdade e, por isso, quem tem liberdade é o abuso”. Guerreira, continua na luta e sabe que, assim como toda mulher, ainda está na mira do abuso. Por isso, é forte. Houve e sempre haverá quem tente a desmotivar, desmerecer, fazê-la acreditar que não é flor que se cheire. Porém, Fran Flor é, sim, muito flor que se cheire, mas só cheira quem merece. Fran Flor é flor bela. Quem pensa que ela nada faz é por querer freá-la ou porque, talvez, simplesmente “não conhece ela”.
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- PERFIL -
EU GOSTO É DE CONVERSAR
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cadeira de rodas trava no meio do caminho da sala à cozinha. A locomoção dentro de casa é difícil, ainda mais quando os movimentos estão limitados a olhar fixamente para tentar dizer algo. Era o recomeço de uma vida depois de sete longos dias na UTI. Incapaz de expressar qualquer sentimento, como se meu corpo estivesse em outra dimensão, em um mundo em que não há explicações racionais. Talvez o AVC veio para me mostrar que algo não estava bem. Quem sabe se não tivesse escutado os companheiros do trabalho, hoje estaria tocando teclado nos forrós de Goiânia. Eu trabalhava como pedreiro. Era quarta-feira e mais tarde eu iria a um forró tocar. Eu assentava cerâmica em uma universidade na saída do Jardim Balneário e meus companheiros, que trabalhavam comigo, paravam para tomar café. Enquanto eles davam uma pausa para o lanche, eu ia tomar remédio. Eram 15 comprimidos todos os dias para controlar a pressão.
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Eu não queria que a noite acabasse ali, mas tive que ir embora. Minha sobrinha, Daniele, que trabalhava na associação, me levou em casa. Quando eu cheguei já me sentia bem, já não estava passando mal. - Já estou bem. Pode voltar pro forró. -Você tem certeza, tio? -Eu tô bão! A sensação de não estar passando mal durou pouco. Eu estava enganando a mim mesmo com aquele papo de que estava tudo bem. Comecei a sentir dor de cabeça e dormência, entortando a boca e um lado do corpo. Tinha uma mulher que gostava demais de mim, vizinha minha, o apelido dela era Preta. Saí na rua e ela estava no portão, era costume dela ficar observando os passos lentos e os carros apressados. Decidi falar que não estava muito bem e ela chamou o filho. Ela mandou o filho dela ir em casa e buscar o carro e quando eu cheguei ao hospital já não aguentava mais andar. Foi tudo muito rápido. Já havia dado o AVC. As enfermeiras ligaram para os meus filhos. Na época eu morava sozinho. Ligaram para eles e não demorou muito para que estivessem todos ao meu lado. Eu fiquei
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REPORTAGEM E EDIÇÃO Dayane Borges DIAGRAMAÇÃO Julie Tsukada
Eu gosto de ouvir as histórias das pessoas e de contar a minha também. sete dias na UTI. Meu estado era de coma. Fiquei morto, entortei tudo. O meu filho nem me conhecia, o tanto que eu fiquei deformado. Quando eu sai da UTI fui morar com os meus filhos. Fiquei dois meses morando com eles e pedi para vir pra cá. Era estranho não poder conversar mais. Ou pelo menos, não conversar como era antes. Mesmo rodeado pelos meus filhos, a sensação de estar sozinho era inevitável. O silêncio me fazia mal. Quando eu pedi para ir para o asilo, meu filho mais velho, Valdeson, não gostou muito. Ele tinha vergonha de falar para os amigos que tinha um pai no asilo. Eu usava cadeira de rodas. Não conseguia me mover para nada. A cadeira me acompanhava por todas as partes, minha vida havia mudado . Eu gostava demais de conversar e lá na casa dos meus filhos não tinha ninguém e eu só ficava sentado na tal da cadeira. Quando cheguei aqui no Asilo Apóstolo Tomé, a moça que me recebeu, Cristina, disse que eu já estava quase morto. Ela espantava mosquito da minha boca e me dava comida. Eu não conseguia dizer quase nada. O tempo foi passando e, com a fisioterapia feita por estudantes, eu melhorei.
- Tem alguém no quarto com o senhor agora? - Tem. Meu companheiro, ele é engraçado. De vez em quando eu chamo ele: “ô seu Mané”. Só pra saber se ele ainda tá vivo. - “Oi!” - Tá vivo. Não, né nada não. Pode continuar com seu sono. Seu Mané tem alzheimer. Quando a gente deita passa um pouquinho ele pergunta assim: “João, cê já jantou? Porque eu não jantei ainda não”. E eu falo assim “Já jantou sim, rapaz”. O povo aqui gosta de vir conversar comigo. Eles dizem que eu sou o cartão postal desse asilo. Daqui a pouco o lanche chega. Sabe, eu gosto demais daqui. É difícil a gente se acostumar com um lugar né, mas aqui é bom demais. Olha aí, eu não disse que o lanche já estava quase chegando? Essa que trouxe o lanche é a Neide. - Ó, Neide, eu quero é pão de queijo viu? - Ah não, vai comer é pão. - Oh, Neide, mas você é ruim. Oh, Neide, eu falo pra moça que você é ruim. - Sou não, pode comer o pão. O dia que tem coisa boa o senhor não quer, uma fruta o senhor não quer. - Eu como três pães por dia. Anem, ela traz esse copo pra mim, é ruim esse copo, Deus me livre. - Por quê? - Ah, porque não tem asa pra segurar. Sabe do que eu mais sinto falta? É de tocar o meu teclado. De poder cantar nos forrós. Mas tá bom, to feliz assim. Ah, deixa eu te falar uma coisa, eu vou comer meu pão. Depois a gente conversa mais, mas se você quiser perguntar mais alguma coisa pode perguntar viu? Eu gosto é de conversar.
Reprodução
- Uai, João, para disso, isso aí não presta não. Você já tá sadio, rapaz, mais do que eu você já tá trabalhando aí ó. Eu não sentia mais nada mesmo. Parei de tomar o remédio achando que eu estava bom. Não queria tomar mais remédios com medo de uma possível dependência. Na semana da frente aconteceu o que já era esperado. O Acidente Vascular Cerebral começou a dar os seus primeiros sinais. Cheguei do trabalho. Ainda não sentia nada. Aprontei-me, vesti uma camisa xadrez com detalhes azuis e calcei uma botina que havia comprado alguns dias atrás. Ainda não tinha muitas pessoas quando eu cheguei à associação dos idosos, que ficava no setor onde eu morava mesmo, no Balneário. Aprontei os instrumentos para começar a tocar. Escolhi músicas do Tonico e Tinoco. Era pra ser uma noite animada. As pessoas começaram a chegar. Liguei a caixa de som e o teclado. A música começou. Enquanto dedilhava as teclas do instrumento as pessoas pareciam felizes e dançavam. Dois pra lá e dois pra cá. Todos sabiam a coreografia. Eu começava a me sentir estranho. A cabeça latejava e a música entrava de um jeito que me fazia ficar tonto. Eu estava passando mal.
Recuperei alguns movimentos. Foram seis meses fazendo fisioterapia. Da cadeira de rodas passei para o andador e fiquei por um ano. Depois eles voltaram e disseram “agora o senhor vai andar”. Fiz terapia de novo. Depois de dois dias fazendo terapia eu larguei o andador e passei a usar a bengala. E com ela eu estou há quase sete anos, mas eu vou largá-la. Você vai ver. Me perguntam porque eu sou tão animado. Animado eu sou toda vida. Antes de ter o AVC eu conversava demais. Tive que parar por um tempo. A voz não ecoava mais do jeito que eu gostaria. A vontade de falar ficava no movimento dos olhos agitados, esperando ansiosamente a voz voltar. Com a terapia pude, aos poucos, fazer o que me dava alegria, conversar. Eu gosto de ouvir as histórias das pessoas. E gosto de contar a minha também. Tudo amigo aqui? Não, tem uns inimigos também. Não é que é inimigo, é que não conversa direito. Você quer saber de uma coisa? Do jeito que você é no tempo de jovem, quando você fica adulta você é do mesmo jeito. Se você for bruta, se você for uma pessoa ignorante quando você ficar velha ninguém aguenta você. Ninguém aguenta velho rabugento. Sair da minha rotina foi o mais pesado. Parar de acordar cedo, entrar nos ônibus e ir trabalhar me fazia falta. Eu me aposentei e parei de trabalhar. Eu tinha 56 anos. O melhor é que eu sou fácil de adaptar. Minha cabeça é boa. Sabe o que me prejudicou? Só a lateral do meu olho esquerdo. Eu não consigo enxergar. Fora isso, tá tudo uma beleza. Não considero que tive nenhuma dificuldade. Tudo bom. Eu não acho dificuldade em nada.
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GOIÂNIA, OUTUBRO DE 2016
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ESTE LADO PARA CIMA Lucas Botelho
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nquanto o galo ainda nem cantou e a cidade inteira ainda dorme, Edinete já está de pé. Põe o pão de queijo, o bolo e as rosquinhas no forno pra assar, frita o pastel, passa os cafés e faz o chá que só ela sabe fazer; joga a cobertura no bolo, pega os sanduíches que fez na noite anterior e, então, guarda cada lanche na sua caixa, cada caixa numa das bolsas térmicas, pra tudo permanecer quentinho até mais tarde. Às sete horas ela sai de sua casa no Itanhangá, bairro da zona norte de Goiânia, e se dirige ao Campus Samambaia. Quem vir a cena talvez nem acredite: uma mulher, uma moto e muitas bolsas, penduradas nos braços, nas costas, no meio das pernas e até no pescoço se for preciso.
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pausa por volta de meio dia, quando volta pra casa pra fazer almoço, vai comprar as coisas que precisa para preparar a comida do dia seguinte e arruma os produtos que leva para vender a tarde, a partir das 15h, no mesmo local. Faz tudo sozinha, e a rotina é intensa. Mas é disso que Edinete gosta: de estar pra cima e pra baixo, trabalhando, e não parada em casa. – Eu me vejo como uma máquina. E se eu não fosse assim, eu não saberia como eu seria, porque eu gosto de ser assim, dinâmica. Gosto de ser essa mulher. – Apesar de ser assim, mulher-máquina, seus olhos também marejam. – Eu gosto disso, eu não sei o quê que é, mas eu abraço isso como a causa da minha vida, de que eu tenho que viver trabalhando. Edinete tem muita história pra contar, tanto que até já escreveu boa parte de uma autobiografia uma vez. Vinda do interior do Rio Grande do Norte, ela começou a trabalhar aos sete anos de idade,
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REPORTAGEM, EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO
Eu conheço tudo tudo tudo, trabalhando, vendendo e negociando. vendendo café na rua para ajudar a mãe. Desde então não parou de rodar o país por causa da família e do trabalho. Resumindo, é mais ou menos assim: – Eu sou Edinete Alves Batista de Morais. Edinete Canivete, põe no fogo não derrete. Ando de mobilete, já tive um Chevette. Nasci em 1964 na cidade de Serra Negra do Norte, no Rio Grande do Norte, mas já trabalhei em toda a região do estado de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul... Eu conheço tudo tudo tudo, trabalhando, vendendo e negociando. A jornada como vendedora sempre foi cheia de altos e baixos. Muitos negócios decolaram, mas foram seguidos de pequenas ou grandes tragédias e imprevistos que prejudicaram os planos da mulher, que em nenhum momento desistiu. –Será que isso é o quê, uma sina? Sina ou não, logo que encontra um revés, sempre aparece alguém que lhe estenda a mão. “Onde quer que eu tivesse, com qualquer dificuldade, eu não parava. Eu não ficava. Se meu pneu furava aparecia alguém pra trocar pra mim. As pessoas me davam dormida e comida sem cobrar de mim, aonde eu chegasse, em qualquer cidade. Quando eu vendia roupa por aí, minha mãe só me dava o dinheiro da passagem. Eu que tinha que me virar, com um mundo véi de mala nas costas. Sozinha no mundo. E eu dava conta. Trazia só as malas vazias e o dinheiro no bolso.” A Tia começou a vender no pátio esse ano, em 2016, e está bem feliz, obrigada. Contudo, há poucos meses atrás, no circuito de graças e infortúnios
Lucas Botelho
É o pátio da FIC/FCHF, na Universidade Federal de Goiás, o lugar onde Edinete encontrou o público fiel às suas maravilhas. Quem chega já vê de longe a mulher agitada que, com frio, veste um lenço cinza e branco por cima da touca que prende os cabelos. Usa uma regata preta e uma pochete grande na cintura. Por cima da regata preta, uma camisa social xadrez. Por cima da camisa, um blazer preto. A calça é de moletom e os pés, que estão protegidos por meias cinzas, calçam uma sandália de couro trançado: a cara das humanas. No meio do pátio, a Tia tem duas mesas dobráveis de ferro e um banquinho de madeira como vitrine de seus produtos. Por cima do forro verde de lã grossa se espalham as seis garrafas térmicas, com diferentes chás e cafés, uma caixa de leite, um pote de Nescau, um potinho de moedas, sachês de ketchup e maionese apimentada, álcool gel, copos descartáveis, um rolo de guardanapo e as cinco bolsas térmicas com todos os sagrados quitutes. Para os clientes-amigos-sobrinhos, ela é a Tia, sejam eles/elas alunos/as, técnico-administrativos/as ou funcionários/as terceirizados/as. Ela realmente conquistou cada um deles – pelo bolso e pelo estômago também, mas principalmente pelo coração. O carinho e a simpatia transbordam das sacolas, copos e vasilhas que Edinete carrega, e envolvem qualquer pessoa que chegue perto dela. Entre um pastelzinho de carne, um sanduíche natural e um copo de café, são centenas de “Oi lindinha”, “Fala meu rei”, “Como você tá, querida?”, todas as manhãs e todas as tardes. Ela só faz uma
de sua vida, as coisas estavam de cabeça para baixo. Ela tentou vender nos colégios que havia perto de sua casa. “Não deu certo, não vendia.” Foi pra porta de uma outra faculdade, cujo nome ela esqueceu. “Não gostei, além da distância, não foi legal. Caiu uma chuva lá que me espantou.” Depois disso, foi para o terminal do Itatiaia. Lá, não vendeu nada. Nesse mesmo dia, com o carro cheio de comida e a angústia nas mesmas proporções, a Tia resolveu ir pro campus. Ainda era recesso, e apesar do local quase vazio, encontrou quem quisesse comprar alguns quitutes. A chorosa Edinete que chegou ao campus já estava diferente ao sair. O primeiro dia aqui já evitou o que seria uma grande tristeza pra mulher que hoje parece estar sempre sorrindo. Não sobrou quase nada, e ainda recebeu a sugestão para voltar e oferecer pro pessoal dentro das faculdades. Ela aceitou. “Eu fui entrando bem tímida, bem no cantinho. O pessoal começou a pedir isso, pedir aquilo, e de março pra cá eu nunca mais passei prova. Aumentaram as vendas, e a Tia foi melhorando. Eu tô lutando. Tô feliz.” A lágrima, tão segurada e espremida no canto do olho, não segura mais e então se joga. “Porque eu não via retorno, não tinha dinheiro nem pra pagar a minha energia. E agora eu tô vendo essa mudança, tão boa. Eu tava deprimida, chorando em casa, sofrendo. Porque, uma lutadora fracassada... E as coisas foram mudando. Agora eu dou conta de cuidar da minha vida e da minha família. E vem gente querendo me derrubar? Vou deixar não.” Edinete pensa muito. Pra agora e mais pra frente. Agora que a vida virou de novo, pro lado certo, ela anda
de cabeça pra cima. A mulher-máquina tem olhos de águia. - Eu preciso conseguir um quiosque aqui, urgente. Você sabe que tem um aqui parado, né? Se isso sair pra eu, eu tô feita na vida. Você não tem noção. Logo que essa frase é proferida, surge como uma atração, uma grande ironia ou talvez aquela dita sina, uma corrente que tenta minar as esperanças de Edinete. No dia 13 de julho, dois guardas da UFG foram levar à ambulante o recado da reitoria: ela não poderia mais continuar vendendo os lanches dentro da área do campus, por não possui nenhum tipo de licença pra exercer a atividade. No mesmo dia, Edinete foi à reitoria e não conseguiu nenhuma informação sobre como obter a bendita licença. No outro, retornou ao pátio normalmente. O recado dos guardas, dessa vez, foi de que uma viatura viria apreender a mercadoria caso ela não se retirasse dali imediatamente. A reação foi imediata. Os estudantes se mobilizaram pela permanência de Edinete no campus através de um abaixo-assinado. No Facebook, um post que denunciou o caso em um grupo de alunos da UFG teve grande repercussão e obteve mais de mil e quinhentas curtidas e cem comentários que repudiaram a ação da reitoria. Nesse dia, aquela que distribuía carinho junto com os quitutes ficou abatida, mas colheu da seara que plantou, e foi consolada por muitas e muitos. Ainda hoje ela está lá no pátio. Edinete não quer sair dali, e ninguém que foi cativado pela Tia aceita sua expulsão. Ainda hoje temos a alegria de, antes da aula, despertar com um bom café, ouvir o “Bom dia, amor!” acompanhado de um sorriso, e até ganhar um abraço. E é no pátio que ela vai continuar, por muito tempo. Todavia, não é isso que a Tia quer pra a sua vida toda. Ela tem outros planos pro futuro, muito melhores do que podemos imaginar. – Sabe o quê que é minha ideia? Deixa eu te contar. Eu vou deixar meus filhos de boa nessa chácara, vou comprar um jipe pra mim e vou embora. Eu vou conhecer umas praias, saca. Vou montar um quiosque de coco, alguma coisa que eu consiga carregar, e vender um monte de bagulho que eu sei fazer. Vou dar uma ajeitada em mim, só pra mim ficar curtindo, vendo os gatinhos e vivendo outros ares.
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VILMAR “TEM-TEM” HISTÓRIA PRA CONTAR
ça (um menino de uns 6 anos) cumpre a ordem da mãe e ainda luta para tirar a bolsa da irmãzinha do carro. - Aaah! Tá pesado! – Diz ele, enquanto se esforça, puxando a sacola. Ainda assim ele recusa minha ajuda. Com um puxão, ele consegue e sai arrastando a mochila pelo chão do armazém. Pela primeira vez, reparo em um cartaz, confeccionado em uma folha A4 e afixado na porta de vidro em frente à loja, que anuncia: “Temos empada: 3,50; Temos empadão: 7,50; Temos pastel: 2,50”. O cartaz não é o único na pequena loja, construída em frente à casa da família. Durante o dia, é a porta de vidro que recepciona os clientes. Entre as duas passagens, uma pequena salinha, com cadeiras de plástico, separa a rua da mercearia. É nela que acontece essa entrevista. Nas segundas, quartas e sextas-feiras, quem chega pode se deparar com a porta fechada. O motivo? Nesses dias, seu Vilmar dedica seu tempo a sua chácara, onde pratica a pescaria. Mas, se a cena ocorrer em um dos outros dias da semana, com certeza seu Vilmar está em uma de suas andanças pela rua, em visita a um de seus velhos vizinhos. A “Tem-Tem”, porém, nunca está fechada. “Estamos abertos. Campainha ao lado”, avisa o segundo cartaz. É ele o responsável por manter o comércio funcionando, mesmo com a ausência de seu Vilmar. Nessas horas, os clientes são atendidos pela esposa ou pela filha do vendedor. - E foi passando, passando. Voltei a estudar. Com muita dificuldade, fiz o chamado exame de admissão, passei, estudei e fiz a segunda série ginasial. E fui obrigado a parar de novo. Aí larguei de estudar, sempre trabalhando para ajudar meus pais. Foi dessa busca incessante por trabalho que surgiram as primeiras oportunidades na vida de seu Vilmar. Ele começou a aceitar propostas em outros estados e, com isso, acabou conhecendo outras regiões do Brasil como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. Costumava ficar por
cerca de três, quatro, até seis meses trabalhando em bicos. E, apesar do foco nos empregos - “sempre honestos!” como ele reforça - foi essa a oportunidade de seu Vilmar, ainda adolescente, conhecer o mar no Rio de Janeiro. O esporte, visto como oportunidade na vida dos jovens, também representou uma na do vendedor., mas não da maneira comum. Nos fins de semana, costumava jogar futebol no campo da Vila Nova, setor das redondezas. Foi durante um desses jogos que o futebol ofereceu a seu Vilmar
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tre eles, o lápis, algo com o que o jovem Vilmar sonhou e que representou uma nova fase em sua vida. Foi em uma época em que, às margens do Córrego Botafogo, localizado nas proximidades da Vila Maria José, “existia apenas mato”, que o senhor teve a ideia de criar um comércio para os primeiros moradores. - Quando eu tinha um bom emprego e fui mandado embora. Isso porque era uma empresa multinacional e ela tinha as normas dela. Empregado administrativo ficava só cinco anos. Como todo ano tinha concurso a nível Brasil de melhor desempenho, e eu, durante sete anos e meio, ganhei, fui ficando. – conta seu Vilmar, com os olhos brilhando. - Arrumava uma coisa, trabalhava. Arruma outra, não dava certo. E aí minhas economias foram acabando. O buraco, quanto mais você tira terra, mais fundo vai ficando – filosofa o vendedor. - Aí fiz esse armazém aqui. - Esse nome “Tem Tem” foi um freguês quem pôs. – diz o senhor, se levantando e apontando a fachada Eu não tinha cadastro e nem nada. Então eu pegava, ia naqueles atacadistas e comprava duas, três unidades de cada coisa. E tinha um freguês que era vizinho e comprava as coisas aqui. Ele
Para ele, no futuro os filhos e os amigos resolverão por manter a antiga mercearia funcionando, guardando a ideia de loja caseira e de confiança.
a chance de uma bolsa de estudos em um colégio particular. - Eu morava no Setor Universitário e sempre ia pra Vila Nova pra jogar futebol. Lá tinha aquele time do macarrão Emegê. Eu joguei contra o time deles que, na época, tinha dois vereadores e dois professores do Colégio da Vila Nova. E eles propuseram me ajudar. – Emocionado, seu Vilmar conta que explicou não ter dinheiro nem para um lápis, quanto mais para pagar um colégio. Ainda assim, os professores insistiram para que ele fosse fazer um teste. - Isso foi no domingo e numa segunda-feira eu fui pra lá. Fiz o teste, passei, e fui estudar. - diz, com lágrimas nos olhos - Cheguei lá e tinha lápis, tinha caneta, caderno. Colégio Comercial de Vila Nova. Eu fico até emocionado de lembrar. Foi uma emoção muito grande. Hoje, curiosamente, para os que entram no armazém de seu Vilmar, os itens de papelaria são uma das primeiras coisas a que se tem acesso. En-
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sábado de manhã e, na capital, um senhor assiste TV na garagem de casa. Uma cena comum se fosse apenas isso. É na tranquila Rua Gercina Borges Teixeira, divisa entre a Vila Maria José e o Setor Pedro Ludovico que a pequena mercearia “Tem-Tem”, feita nos moldes dos antigos armazéns, resiste ao tempo. Seu Vilmar de Oliveira, idealizador e responsável pela lojinha, aproveita a ausência de clientes para descansar em uma de suas cadeiras de fio de nylon. Na TV, um programa sobre pescaria prende a atenção do senhor, revelando o primeiro de seus hobbys. - Em uma pescaria no Rio Araguaia – começa seu Vilmar - nós estávamos limpando os peixes na canoa, eu e o seu Eriberto, que morava ali no prédio. Aí, tinha um anzol grande na canoa e aquelas buchadas do peixe, sabe? E nós estávamos terminando. Daí a pouquinho, a canoa começou a balançar. Quando fomos ver um peixe grande chamado pirarucu, começou a arrastar a canoa. Aí o seu Eriberto foi lá no rancho e contou pros nossos companheiros. Eles correram e pegaram a outra canoa pra sair atrás. A sorte é que nos estávamos no lago e eles conseguiram pegar o peixe. E aí nós fizemos aquele retrato grande... É uma boa história. – conta ele Natural de Catalão, seu Vilmar se mudou para a Goiânia aos 12 anos. Aqui teve que começar a trabalhar para auxiliar no sustento de sua irmandade (termo que o vendedor usa para se referir à família composta por 10 irmãos). Apesar do começo difícil, foram o trabalho e a mudança que lhe fizeram chegar a “Tem-Tem”, curiosamente nascida da falta de oportunidade. Filho de um sapateiro e de uma dona de casa, seu primeiro trabalho foi o de auxiliar do pai. Com o tempo, foi buscando uma faxina aqui, uma oportunidade ali... Até que teve que escolher entre os estudos e o trabalho. - Eu lavava banheiros, arrumava a loja... O estudo meu foi muito difícil, porque meus pais eram pobres. Então, com 12 anos, eu estudava em um grupo escolar e também trabalhava arrumando faxina. Aí fiz o 1º ano e passei. Mas, com essa vida de trabalhar, eu fui obrigado a parar de estudar pra ajudar minha família. - narra Vilmar. Um carro para em frente à mercearia. Do carro, descem uma mulher e uma criança. Seu Vilmar pede desculpas, saindo para ajudar a nora com a retirada da neta do banco de trás. Assim que conseguem, eles entram na casa. Enquanto isso, a primeira crian-
Caroline Brandão
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REPORTAGEM Ana Carolina Jobim EDIÇÃO Isadora Tristão DIAGRAMAÇÃO Isadora Tristão
chegava e perguntava: “Você tem isso, Vilmar?” Tenho! “Tem isso?” Tem. Era pra ser Oliveira (o nome da mercearia), mas aí ele falou assim: “Vou te dar uma sugestão: Tem-Tem”. E ficou. Há 36 anos a mercearia e bar é a responsável por auxiliar os antigos moradores da Vila Maria José, Vila São João, Vila Isabel e Setor Pedro Ludovico nas horas de necessidade. Apesar do crescimento dos bairros e da concorrência dos mercados da região, seu Vilmar parece não se abalar. Para ele, no futuro os filhos, e os amigos resolverão por manter a antiga mercearia funcionando, guardando a ideia de loja caseira e de confiança. Agradecido, com a neta no colo, ele olha em volta. Na salinha entre as prateleiras e a rua, o canal de TV – que descubro ser especializado em pescaria - continua transmitindo dicas sobre fisgar peixes. Seu Vilmar se despede e volta a assistir ao programa. Mas, no fundo, ele sabe que não precisa disso, porque a vida já lhe ensinou a fisgar oportunidades como ninguém.
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OLHARES
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TEXTO, FOTOS E DIAGRAMAÇÃO Alline Flores
FÉ QUE ENCURTA DISTÂNCIAS
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Festa do Divino Pai Eterno é realizada em Trindade, no Estado de Goiás. A devoção começou em 1840, quando um casal de agricultores encontrou às margens do Córrego do Barro Preto um medalhão com a imagem da santíssima Trindade coroando a Virgem Maria. Todo ano, em meados de Julho, fiéis de vários cantos do Brasil partem com destino ao Santuário Basílica. Em 2016 a Romaria de carros de boi foi reconhecida pelo IPHAN como Patrimônio Cultural Brasileiro. Estas fotos foram tiradas no “pouso“ dos carreiros em Abadia, 2015.
GOIÂNIA, OUTUBRO DE 2016