A Divina Comédia dos Mutantes
14. NASCE UMA ESTRELA MUTANTE Algumas surpresas aguardavam Arnaldo, quando ele desembarcou no aeroporto de São Paulo, já em meados de abril de 70, semanas antes da motocicleta, que veio despachada por navio. Rita tinha se tornado a protagonista do novo show desfile da Rhodia, apresentado durante a 11ª UD, no Pavilhão do Ibirapuera. E os planos da garota não paravam por aí. Além de um novo espetáculo marcado para agosto, ela já começara a compor e escolher canções para seu álbum solo, que André Midani, presidente da Philips, se mostrava interessado em gravar o quanto antes. Amigo de Lívio Rangan, o chefão da Rhodia, Midani costumava se reunir com ele para sugerir nomes de artistas, sempre que uma nova superprodução da empresa era planejada. Num desses encontros, no início do ano, ao sentir um especial interesse de Rangan pelos dotes artísticos da garota, Midani percebeu que chegara o momento de investir na carreira individual de Rita. O big boss da Philips já sabia que as coisas não andavam bem entre os Mutantes e, apesar de ser fã do trio, calculou que a separação poderia ser boa para todos os envolvidos. O show Nhô Look era mais uma prova de que Rita levava mesmo jeito para o palco. Elogiada por seu desempenho, ela teve nesse espetáculo a chance de mostrar seu talento extramusical. Além de cantar e dançar, interpretava o papel de uma garota caipira, Ritinha Malazarte, acompanhada por uma bandinha interiorana com 14 músicos. A coleção exibida por Rita e as manequins do elenco (entre elas Mila Moreira, que depois veio a se tornar atriz) adaptavam para o contexto brasileiro a moda paysan, inspirada no vestuário das camponesas europeias. Porém, se no palco desfilou vestidões confortáveis, nos bastidores Rita enfrentou o que se chamaria hoje de saia justa. Zé da Clarineta, um dos músicos da bandinha com quem ela contracenava, acabou confundindo ficção e vida real. Apaixonou-se de verdade por Rita e, depois de se declarar, chegou até a pedi-la em casamento. Um sufoco. A direção musical do projeto levava as assinaturas dos maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia, que durante dois meses pesquisaram musica sertaneja em várias cidades do interior paulista, como Piracicaba, Guaratinguetá e Santa Rita do Passa Quatro. Surpreso com o que encontrou, Medaglia dizia ter ouvido violeiros utilizarem inesperadas mudanças de andamento — recurso musical que, uma década antes, contribuíra para a fama internacional do erudito pianista de jazz Dave Brubeck. Já Duprat, com o bom humor de sempre, explicava que aquela nova incursão musical, baseada no cancioneiro sertanejo, não se tratava de uma variante do tropicalismo, muito menos do iê-iê-iê: “É hê-hê-hê”, batizou o maestro. Além de Rita e da bandinha de coreto, o sofisticado público que costumava frequentar os desfiles da Rhodia também pôde ver, no palco, violeiros, dançarinos folclóricos e cinco duplas sertanejas, com destaque para Tonico e Tinoco. Naquela época já com 27 anos de estrada, entre seus números a famosa dupla cantava uma quadrinha que servia de slogan para o espetáculo: “O home já foi pra Lua / O home sabe avoá / Mas a moda foi pra roça / É chique sê populá.” Qualquer relação com 2001, a canção de Rita e Tom Zé, não era mera coincidência. Mas a nova estrela tinha mais com que se preocupar: além do próximo show desfile da Rhodia, na Fenit, do qual seria novamente a protagonista, Rita também foi convidada a criar roupas para uma grife jovem, que levaria seu nome. Se os Mutantes não se cuidassem rápido, corriam o risco de perder sua vocalista. 107