JULIANO MALINVERNI DA SILVEIRA
PERSPECTIVAS DE GÊNERO NA DISCOGRAFIA DOS MUTANTES (1968-1976)
Monografia apresentada como trabalho de Conclusão de Curso de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina Orientadora: Profª. Drª. Joana Maria Pedro.
Florianópolis
2008 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PERSPECTIVAS DE GÊNERO NA DISCOGRAFIA DOS MUTANTES (1968-1976)
Monografia apresentada como trabalho de Conclusão de Curso de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina Orientadora: Profª. Drª. Joana Maria Pedro.
2
Florianópolis 2008
AGRADECIMENTOS
Traz a mim um grande sentimento de alegria ter a agradecer sinceramente a tantas pessoas de grande força transformadora cujos trajetos cruzaram-se com os meus. Dentre essas pessoas, destaco a Profª. Drª Joana Maria Pedro e todos que compõe ou compuseram os grupos de discussões do LEGH; as e os colegas de PRONERA e ao MST; ao quarteto pelo modelo de arte e Rory pelo modelo de vida; às e aos colegas de bandas, de aulas, de militância ou de fé; à família Malinverni e à família Silveira; a amizades e amores que nunca faltaram apesar de nossas faltas e, por fim, a todas as pessoas que fazem da vida uma aventura bonita. Agradeço também a Sérgio, Arnaldo, Rita, Liminha e Dinho por serem um assunto tão cativante e fazer da minha vida uma paisagem pouco mais colorida e vibrante.
3
4
“Pois é, sem querer me ‘gambá’, durante um tempão fui uma das poucas almas femininas brasileiras que compunham letra, música, arranjos e era figura de frente nos palcos da vida. Faz relativamente pouco tempo que esse panorama mudou. Querido, inventa bastante coisa sobre mim nessa minha matéria?” Rita Lee
5
RESUMO Este trabalho tem por objetivo compor associações entre os álbuns lançados pela banda de rock Os Mutantes no período delimitado – compreendido entre seu primeiro álbum autoral editado em 1968, até seu último registro oficial lançado em 1976 – e alicerces teóricos que discutam a categoria de análise gênero, estabelecendo assim uma leitura crítica que aborde não somente as palavras cantadas contidas nessas canções, mas também seus diálogos com outros elementos discursivos associados a essas letras, tanto sonoros quanto visuais, nas capas e contracapas dos discos.
PALAVRAS-CHAVE: Mutantes, Gênero, Tropicália, Imagem.
6
ABSTRACT This piece aims to compose associations between the albums released by rock band Os Mutantes in the elected period – comprehending from their first album issued in 1968 to their last official register, released in 1976 – and theoric bases interrelated to the gender analysis category, establishing this way a critical view that concerns not only to the words sung in these songs, but also to their dialogs with other discursive elements associated to these lyrics, coming both in sounds and images, in the front and back covers of the records.
KEY WORDS: Mutantes, Gender, Tropicália, Image.
7
SUMÁRIO Resumo............................................................................................................................06 Abstract............................................................................................................................07 Introdução .......................................................................................................................09 1. Capítulo 1: “Não Vá se Perder por Aí!”......................................................................14 1.1 “Tropicália ou Panis Et Circensis” (1968) ...................................................34 1.2 “Mutantes” (1969) .......................................................................................38 1.3 “Os Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets” (1972) .......................43 1.4 “Tudo Foi Feito Pelo Sol” (1974) ................................................................48 2. Capítulo 2: Pedras que Rolam Não Criam Limo.........................................................51 2.1 “Senhor F.” ..................................................................................................64 2.2 “Algo Mais” .................................................................................................70 2.3 “Rua Augusta” .............................................................................................75 2.4 “Tudo Foi Feito Pelo Sol” ...........................................................................79 3. Considerações Finais ..................................................................................................86 4. Referências Bibliográficas ..........................................................................................88
8
INTRODUÇÃO
O momento presente quando da escrita dessas linhas data, tomados alguns meses como margem de erro, do aniversário de quarenta anos da estréia da banda como figuras midiáticas, e de seu contato maciço com um grande público que tinha acesso a essas mídias – televisão, discos, fitas, jornais. Concomitantemente, é comemorado também o aniversário de 40 anos do movimento conhecido como Tropicalismo, ou Tropicália. Estas datas serviram como ganchos para que admiradores destas obras e/ou autores e autoras que acreditam que elas ainda são grandes referências para produções artísticas contemporâneas pudessem revê-las e revisitá-las em diversos veículos: televisão, jornais e discos, como há quarenta anos atrás, mas também em espaços a que antes elas não pertenciam, como trabalhos acadêmicos e internet, além da presença da banda e de seus colegas de movimento em mídias estrangeiras. Neste contexto, os Mutantes figuram em uma posição de grande destaque, devido principalmente ao polêmico retorno da banda aos palcos ocorrido na Inglaterra após quase 30 anos de inatividade. Estão prestes a se tornar assunto de vídeo-documentário1 – cujo trailer já está na Internet, que vem sendo o principal meio de divulgação da maioria das bandas de rock. E, veja só: o documentário não é brasileiro. Está sendo realizado nos Estados Unidos. Publicações que de alguma maneira abordem o tema “Mutantes” (ou temas diretamente relacionados ou que incluem a banda, como “Tropicália”, “Rock
1
“Bread And Circuses”, sendo realizado pela produtora estadunidense American Girl.
9
Brasileiro”, “Música popular Brasileira”, entre outros) não são grande novidade nas estantes das livrarias. Pode-se lá encontrar livros de memórias, obras que apresentam análises de fãs-admiradores, songbooks que trazem transcrições musicais dos nomes mais populares das épocas à qual a banda pertenceu, e mesmo livros didáticos que “contam o que aconteceu para leigos e curiosos”. De toda maneira, apesar de seu caráter informativo, nenhuma dessas obras caracteriza-se como uma boa referência acadêmica para estudos, com critérios de análise mais densos que “ouvi os discos e achei isso ou aquilo”; elas trazem outro tipo de informação, simplesmente. A maior parte dos trabalhos acadêmicos acerca do tema, por sua vez, certamente apresenta critérios teórico-metodológicos adequados dentro de suas propostas específicas, geralmente relacionados a questões estritamente políticas (como o AI-5, a censura, o exílio, entre outros marcos desse momento histórico), midiáticas (a importância dos tropicalistas como figuras de mídia, em grandes gravadoras, programas de televisão e festivais) ou artísticas, mas com ênfase em características estéticas isoladamente, e não como formas de discursos, relações. Igualmente, em sua grande maioria, tendem a tecer abordagens ignoram a categoria de análise gênero2 e grande parte do universo de idéias que ela permeia, além de não representar a grande diversidade discursiva contida nas obras em questão, a pluralidade textual que é essencial à sua compreensão, sob qualquer
2
Tendo aqui como referencial teórico o conceito de performatividade de gênero apontado por Judith Butler, que afirma que as identidades de gênero são definidas à partir de discursos e performances que se fazem presentes em todos os aspectos da montagem do indivíduo e de suas identificações. Dessa maneira, pode-se por exemplo considerar que um corte de cabelo, uma roupa, ou uma letra de música podem todas carregar discursos de gênero. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Em entrevista a Baukje Prins, da Universidade de Amsterdã, e Irene Costeira Meijer, da Universidade de Maastricht, Butler afirma que suas perspectivas de gênero em Gender Trouble se aproximam a de que “a construção de identidades de gênero deu-se não apenas pela repetição da diferença entre homens e mulheres, feminilidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação hierárquica entre feminilidade e falta de feminilidade, entre masculinidade e falta de masculinidade”. PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costeira. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, 2002, p. 164.
10
abordagem: uma idéia central da banda, afinal de contas, era a pluralidade em si, as mudanças e transformações. Não parece então de contento que no Brasil os estudiosos e estudiosas que voltam seus trabalhos à categoria de análise gênero ou ao estudo da música popular (particularmente História da Música) tenham de esperar por trabalhos estrangeiros para a realização de diversas leituras acerca da obra da banda, ou contentar-se com trabalhos superficiais, pouco específicos, ou focados em abordagens que não são as que procuram. Não por uma questão de resistência àqueles trabalhos, afinal não cabe aqui contestar sua validade, mas deve-se notar o fato de que se em outros países e outras abordagens existem condições para realizá-los, por que não no Brasil? E por que não em gênero? Que papéis a banda representou nesse sentido? De que maneira esses processos sucederam? Em seu artigo “Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978)”, Joana Maria Pedro conclui que “Hoje sabemos que, das utopias e projetos revolucionários do século XX, o que lhes sobreviveu foi o projeto feminista”3. Ora, podemos relacionar essa idéia às apresentadas por Marcus Preto ao descrever Rita Lee em seu artigo sobre Rita, “Não nasci para casar e lavar cuecas”, escrito para a revista Rolling Stone, em novembro de 2007 – parte da mencionada leva de abordagens midiáticas sobre os Mutantes e o Tropicalismo. Em suas falas um tanto excessivas ao ressaltar a importância dessas figuras, este artigo é feliz ao delinear que É inevitável. Uns mais, outros menos, todos os artistas brasileiros que vieram a empunhar uma guitarra a partir de meados dos anos 70, sobretudo as mulheres, foram diretamente influenciados pela música da ruiva. E se hoje o ofício de “intérprete”, o predileto entre as meninas até
3
PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). In: Revista Brasileira de História. São Paulo, 2006, v.26, nº. 52, p. 269.
11
os anos 70, deu lugar ao de ‘cantora e compositora’, também ela é a maior entre as culpadas.4
Se pudermos glosar que dentro do “projeto feminista” mencionado por Joana Pedro encontrem-se aberturas de espaços para mulheres em diversas atividades e sua exposição como seres atuantes, intelectuais e donas-de-si, então Rita e os Mutantes, mesmo já tendo afirmado não ser feministas, têm um papel relevante dentro desse projeto, ao menos dentro do Brasil. E como se deu esse processo? Através de performances de gênero, e de formações discursivas da identidade. O que este trabalho pretende é analisar de que maneiras essa questão se desenvolveu, que performances de gênero foram tomadas pela banda e de que maneiras essas discursividades desenvolveram-se, tendo como fonte a discografia da banda, realizada no período entre 1968 e 1976. Para tal, o trabalho foi dividido em dois capítulos. No primeiro, serão apresentadas informações biográficas sobre a banda e contextualizações historiográficas sobre o período em recorte e as transformações ocorridas tanto no panorama do Brasil quanto na estrutura interna da banda, além de ser realizadas apresentações de conceitos básicos como o de gênero e o de performance de gênero. Por fim, serão contextualizadas as principais inclinações de gênero tomadas pela banda, e serão apresentadas análises de capas de discos associadas a cada uma dessas inclinações performáticas. O segundo capítulo, por sua vez, tem por objetivo analisar fonogramas relacionados a essas inclinações: para tal, serão contextualizados aportes teóricos e metodológicos utilizados nessas análises. Em seguida, são desenvolvidas discussões
4
PRETO, Marcus. “Não nasci para casar e lavar cuecas”. In Rolling Stone. nº 15, novembro de 2007.p. 89.
12
acerca de quatro fonogramas selecionados para representar, cada um, uma das inclinações performáticas de gênero à qual se associa. Um traço comum às canções escolhidas é uma intertextualidade em suas letras, todas elas apresentando relações de seus personagens com carros – à exceção da última, “Tudo Foi Feito Pelo Sol”, que representa uma fase bastante distinta das construções identitárias da banda. Frequentemente associadas a papéis de gênero masculinos, sendo também em dadas abordagens apresentadas como referenciais fálicos, as figuras de carros nas letras dessas canções, as maneiras como essas se relacionam com personagens que as compõe e mesmo a sua ausência traçam diferentes construções de performances e múltiplas discursividades que refletem (e compõe por si mesmas) disputas de poder e identidades de gênero.
13
CAPÍTULO 1: “Não vá se perder por aí!”
(Epígrafe:)
A carreira dos Mutantes enquanto músicos profissionais e figuras midiáticas iniciou-se no ano de 1968 e teve seu fim dez anos depois5. Este intervalo foi um período de grandes mudanças – tanto para a banda quanto para o mundo que a rodeava – o que deve ser contextualizado. Além disso, as perguntas não param de aparecer: de onde os Mutantes vêm? Quem eram eles (ou, para simplificar a pergunta: o que se pode falar para apresentá-los como personagens dessa história)? Em que mundo viviam? Para trabalhar esta abordagem, faz-se necessário um recorte cronológico que nos permita centrar os esforços em assuntos a ela mais pertinentes. Com esse intento, faz-se a opção de trabalhar o período compreendido entre os anos de 1968 e 1976 (inclusive): 1968 é o momento em que a banda lança-se à grande mídia e torna-se conhecida de
5
Apesar de a banda ter permanecido em atividade até o ano de 1978, o período abordado por esse trabalho vai apenas até 1976, ano de lançamento do último álbum da banda.
14
maiores públicos, enquanto 1976 é o ano em que a banda encerra oficialmente suas atividades discográficas, desconsiderando o disco que apresenta a posterior volta aos palcos no ano de 2006, em retrospectiva da carreira, sem trazer músicas inéditas. Vamos então rumar ao começo da história, o ano era 19686. Bem... você deve saber o que aconteceu em 1968. Não? Superficialmente: em diversas partes do mundo (e o Brasil certamente é uma delas), este ano é lembrado como um momento de forte efervescência cultural (em países como, aqui apenas alguns exemplos) os Estados Unidos, França, Inglaterra e China. Certamente, esse panorama gerou consideráveis reflexos no Brasil, e na grande maioria dos países “menos desenvolvidos”. Nestes diversos mundos, haviam contraculturas ganhando espaço7. As "minorias" (mesmo que algumas delas não fossem verdadeiramente minorias, numericamente) organizavam-se ou reorganizavam-se em movimentos militantes – Black Power, Panteras Negras, Gay Pride, Hippies, feministas (em múltiplas inclinações filosóficas e políticas), entre muitas outras manifestações que lutavam por direitos, visibilidade, quebra de preconceitos e/ou outras motivações distintas. A Revista Manchete publicava a primeira foto do planeta Terra visto do espaço. Na França (simultaneamente à Espanha, Reino Unido, México, Chile e outros países) despontam grandes movimentos de contestação ao status quo – em Paris, ocorriam as barricadas, as greves estudantis e o famoso Maio de 68. As drogas alucinógenas ganhavam cada vez mais espaço em diversos segmentos sociais,
6
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, bem como RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA, Jorge, e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: Vol. 4 - O Tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Existem literalmente centenas de obras de diversos autores que atribuem a este período o teor de “momento de grandes mudanças”. 7 Ou, de acordo com o conceito de contracultura bastante simples defendido por Carlos Alberto Masseder Pereira, duas contraculturas: o autor defende que há dois significados para o termo “contracultura”: a surgida neste momento (que se caracteriza por ser extremamente visível e participativa) e um movimento qualquer de enfrentamento ao “sistema", aos valores tradicionais, luta por mudanças sociais. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1992.
15
como as comunidades alternativas, o “rock”, a cultura psicodélica, entre outros.8 A televisão ampliava-se, fortalecendo assim a indústria da cultura de massa. Cada vez mais, soldados americanos desembarcavam no Vietnã, enquanto suas esposas buscavam empregos para sustentar a casa. Ou seja: havia uma grande efervescência de acontecimentos, de cultura, e uma mídia com alcance suficiente para propagar estas informações. Há o claro – e válido – argumento de que a maioria destes feitos não se reproduziu com a mesma força no Brasil; dessa forma não chegando diretamente a tornar-se parte de do cotidiano do país. Por outro lado, lembrando tratar-se de um país de conjunturas tão heterogêneas, é interessante remontar que este trabalho refere-se a uma banda que, como afirmaram seus colegas de movimento (Tropicalista) Caetano Veloso e Gilberto Gil, estava “antenada” em acontecimentos que geravam repercussões no cenário internacional9, o que tornava grande parte destes adventos supracitados mais próximos de suas vidas e obras. Um bom indicativo disto pode ser percebido quando o autor Stuart Hall afirma, sobre o período em questão, que:
Sem dúvida, o domínio constituído pelas atividades, instituições e práticas culturais expandiu-se para além do conhecido. Ao mesmo tempo, a cultura tem assumido uma função de importância sem igual no que diz respeito à estrutura e organização da sociedade moderna tardia (...). A importância das revoluções culturais neste final de século XX reside em sua escala e escopo globais, em sua amplitude de impacto, em seu caráter democrático e popular.10
8
FRITH, Simon. Sound effects: youth, leisure, and the politics of rock 'n' roll. New York: Pantheon Books, 1981. 9 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 10 HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. In Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº2, p. 15-46, jul./dez. 1997. p.17
16
Desta maneira, todo o panorama apresentado gerou claras repercussões no Brasil, e mais especificamente, nos Mutantes.11 Encontrando-se em período de ditadura militar, o país passava pelo seu momento de maior compressão, com o AI-5, que representou o ápice da radicalização do Regime Militar iniciado em 1964 e inaugurou o período em que as liberdades individuais foram mais restringidas e desrespeitadas no país. Foi um momento de forte repressão policial, de torturas e grande coerção de manifestações ideológicas, o que influenciou a inclinação de artistas a “desbundar” (ou seja, focalizar seus esforços em espaços artísticos, drogas, comunidades alternativas e pequenas transgressões12) para não arriscar-se em militâncias que apresentassem maior risco de serem coagidas A respeito dessa conjuntura e de suas relações com a produção cultural, Luiz Tatit afirma, em seu “O Século da canção” que
Quando nos debruçamos, retrospectivamente, sobre a incontrolável ebulição cultural que atingiu o mundo durante os anos sessenta, somos forçados a reconhecer que qualquer década que viesse depois dessa ficaria atônita diante dos desafios ali propostos.13
Da mesma maneira, por vias muitas vezes conturbadas, aconteceu uma revolução de gênero – ou talvez diversas revoluções de gênero. Uma famosa “liberação sexual”, onde diferentes movimentos feministas e movimentos de mulheres (que não se consideravam feministas) aos poucos conquistavam, através de diversas lutas, ações
11
Como referência a essas mudanças de panorama, indico o seguinte texto: ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de, e WEIS, Luiz. “Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição da classe média ao regime militar”. In: NOVAIS, Fernando A. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 12 GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. 13 TATIT, Luiz. “O século da canção”. São Paulo: Ateliê, 2004. p. 227.
17
afirmativas, e mudanças em seus cotidianos, diversos direitos, aos seus corpos, ao prazer sexual, à independência financeira. Os feminismos se diversificavam cada vez mais, e os movimentos por eles deflagrados (ou mesmo influenciados) acompanhavam essas múltiplas correntes de pensamento e ação, algumas voltadas à valorização de suas igualdades, outras voltadas a uma diferenciação entre homens e mulheres, outras com inclinações socialistas, são exemplos que ilustram apenas algumas entre as muitas diversidades de disposições. Movimentos gays e lésbicos reivindicavam seus direitos na sociedade, o fim de preconceitos, a busca de novas identidades e espaços sociais. No Brasil, pouco ou nada se fez sentir destes movimentos até a segunda metade da década de 1970, notadamente após o ano de 1975, declarado pela ONU o Ano Internacional da Mulher, enquanto a década que o seguiria (de 75 a 85), seria a Década Internacional da Mulher. Igualmente a militância feminista (ou ligada a causas que remontassem a feminismos) no Brasil se deu, durante a maior parte do recorte cronológico adotado, de maneira mais inclinada à discussão de ações ocorridas nos EUA e em países da Europa, assim como de casos mais pontuais discutidos internamente por grupos que praticavam outras militâncias e por grupos de discussão feminista.14 Embora antenados à maioria dos elementos dessa conjuntura, os Mutantes – Sérgio, Arnaldo e Rita – eram, antes de tudo, fazedores de música, o que também gera uma necessidade de contextualização. A quantas andava a música popular no Brasil
14
Aponto aqui dois trabalhos bastante distintos como referências desse processo de formação. PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). In: Revista Brasileira de História. São Paulo, 2006, v.26, nº. 52, p. 249-272. Trata-se de uma abordagem contemporânea que visa observar não necessariamente uma data “verdadeira” para o renascimento de um feminismo, mas sim as disputas que o constituíram no Brasil. Há também: GOLDBERG, Anette. Feminismo em Regime Autoritário: a Experiência do Movimento de Mulheres no Rio de Janeiro. Trabalho apresentado no XII congresso mundial da Associação Internacional de Ciência Política, em 1982. Este texto, por sua vez, tem valor como documento de época que relata essas experiências, sendo assim uma leitura bastante interessante apenas se historiograficamente contextualizada.
18
naquele ano? Sem dúvida era um cenário bastante peculiar, ao mesmo tempo que tratava-se de um momento de fortes mudanças. Faz-se necessário explicar: Até o ano anterior, 1967, a tônica na cena musical era de uma marcante segregação: os admiradores da Bossa Nova (que se caracterizava em linhas gerais por uma retomada de valores básicos do samba modernizados e relidos de uma maneira mais “cool”, bastante influenciada pelo jazz norte-americano) não se davam com as “turmas” da Jovem Guarda (caracterizados por importar canções e atitudes da cultura rock e pop americanas e européias, geralmente traduzindo suas letras de maneira auto-referente sem maiores acréscimos), que por sua vez se estranhava com os esquerdistas politizados (ou pseudo-politizados – musicalmente, defendiam ater-se ao o uso de letras panfletárias para as canções, além de circunscrever-se às raízes folclóricas do Brasil, a negação de qualquer mudança importada). Contestando essa segregação, houve o movimento chamado de Tropicália, ou Tropicalismo. Participavam do movimento, entre outros, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Nara Leão, Gal Costa, Tom Zé, os escritores Torquato Neto e Capinam, o maestro Rogério Duprat e os Mutantes Arnaldo, Sérgio e Rita. Cabem algumas linhas sobre estes três personagens – nosso tema central. Apesar de um tanto extensa, segue a impressão apresentada por Caetano Veloso, em 1997, por seu caráter descritivo convincente e sua pertinência e importância imprescindível no correr deste trabalho:
Os Mutantes eram três adolescentes da Pompéia, bairro de São Paulo – de classe média, mas com áreas operárias e velhas fábricas sucateadas – que então começava a tornar-se célebre como celeiro de roqueiros. Dois irmãos – Arnaldo (que tocava baixo e teclados) e Sérgio Dias Baptista (que tocava guitarra) – e uma garota – Rita Lee Jones (que cantava, tocava percussões eventuais e um pouco de flauta). Os três eram extraordinariamente talentosos. Se os Beat Boys já tinham se profissionalizado na noite tocando covers dos Beatles, dos Rolling Stones, ou do The Doors, os Mutantes, ainda semi-amadores, pareciam não copiadores dos Beatles (muito menos de nenhum desses outros
19
grupos de menor popularidade ou importância), mas seus pares, criativos na mesma linha. Quando [o maestro e arranjador – nota minha] Rogério Duprat os apresentou a Gil, este comentou comigo, assustado: “são meninos ainda, e tocam maravilhosamente bem, sabem tudo de música, parece mentira”. Eles pareciam três anjos. Sabiam tudo sobre o rock renovado pelos ingleses nos anos 60, tinham a cara da vanguarda pop da época. Diferentemente dos roqueiros dos anos 50, eles eram refinados, tinham um estilo de comportamento cheio de nuances e delicadeza. Sérgio, de apenas dezesseis anos, exibia uma técnica guitarrística de primeira linha, em nível internacional. Rita e Arnaldo eram namorados desde a infância e tudo em volta deles tinha um sabor a um tempo anárquico e recatado. Ela era extremamente bonita, e sua porção americana muito evidente (era filha de um imigrante americano com uma descendente de italianos) lhe dava um ar em que se misturavam liberdade e puritanismo. Os três eram tipicamente paulistas – o que, no Brasil, significa uma mescla de operosidade e ingenuidade – e talvez nós, baianos, lhes parecêssemos involuntariamente maliciosos (...). Era, no entanto, prazeroso, além de espantoso, tê-los por perto. E o resultado do trabalho com eles – e do trabalho subseqüente deles como grupo e como artistas individuais (Rita tornou-se e é até hoje a maior estrela feminina do rock brasileiro) – foi entusiasmante.15
Os seus primeiros contatos com a grande mídia (e, consequentemente, com um grande público) se deram, dessa maneira, através das associações a este movimento que se constituía no Brasil daquele momento, e ficou conhecido como Tropicália ou Tropicalismo – movimento que completou 40 anos de seu início em 2007, voltando com força ao cenário de discussões midiáticas e acadêmicas. Exemplos não faltam: neste ano, foram lançados documentários cinematográficos acerca dos Mutantes e de Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil ganharam especiais de televisão na Rede Globo, dezenas de revistas de circulação nacional trouxeram em suas capas referências ao movimento ou seus participantes. Como já referido a Introdução, publicações que de alguma maneira abordem o tema “Tropicália” também não são grande novidade nas estantes das livrarias: pode-se
15
VELOSO, Op. Cit, p. 84.
20
encontrar livros de memórias de artistas que participaram do movimento, obras que apresentam análises de fãs/admiradores, songbooks que trazem transcrições musicais dos nomes mais populares entre os tropicalistas, e mesmo livros didáticos que “contam o que aconteceu”. Apesar disso, como também já mencionado anteriormente, a maior parte dos trabalhos acadêmicos acerca do tema, ignoram a categoria de análise Gênero ou parte do universo de idéias que ela permeia, além de não representar a ampla diversidade discursiva contida nas obras em questão e a pluralidade textual que é essencial à sua compreensão sob qualquer abordagem, pelo fato de que a conceito mais fundamental para a compreensão da Tropicália é justamente o sincretismo, a assimilação e associação de idéias diferentes e a criação de novos valores a partir da desconstrução não das estéticas, mas de suas fronteiras. Explicações acerca das idéias tropicalistas são extremamente fáceis de encontrar em bibliografias como as mencionadas, embora possam nos conduzir a descrições rasas e um tanto equivocadas, como a de Gláucia Costa de Castro Pimentel em seu “Mutações em Cena: Rita Lee e a resistência contracultural”:
No final dos anos 60, sob a forte repressão ditatorial com a vigência do AI-5 e vivendo a luta armada, o Brasil presenciou o surgimento de um movimento que buscou no humor e na irreverência munição para discutir um vasto espectro de códigos de conduta e valores. Esse movimento foi chamado de Tropicalismo.16
Esta descrição, embora acertada ao afirmar que o termo Tropicalismo é de origem externa ao próprio movimento quando afirma que ele “foi chamado” e não se autodenominou Tropicalismo, falha ao afirmar que este é posterior ao AI-5 – que data 16
PIMENTEL, Gláucia Costa de Castro. Mutações em cena: Rita Lee e a resistência contracultural. Revista Publicatio. UEPG, Ponta Grossa, 2003. p.7.
21
de 1968, ao passo que o Tropicalismo data de 1967 – e também ao apontar o humor como característica definidora: embora bastante presente em muitas produções tropicalistas, o conjunto de obras que compõe o acervo tropicalista não é em sua maior parte caracterizado pelo humor. Talvez a descrição mais concreta tenha sido trazida pelo próprio Caetano Veloso, novamente em sua obra “Verdade Tropical”, que de maneira autobiográfica, mas ao mesmo tempo analítica e articulada com princípios teóricos trata do processo de surgimento e fim do movimento.
A palavra chave para se entender o Tropicalismo é sincretismo. Não há quem não saiba que esta é uma palavra perigosa. E na verdade, os remanescentes do tropicalismo nos orgulhamos mais de ter instaurado um olhar, um ponto de vista do qual se pode incentivar talentos tão antagônicos quanto o de Rita Lee e o de Zeca Pagodinho, o de Arnaldo Antunes e o de João Bosco, do que nos orgulharíamos se tivéssemos inventado uma fusão homogênea e medianamente aceitável.17
Assim, sem voltar-se a uma unidade estética, mas a uma derrubada de fronteiras que permitissem novas sínteses, os e as tropicalistas agiam de maneira similar a (e decorrente da) proposta do movimento Antropofágico da famosa Semana de Arte Moderna da década de 20: assimilavam elementos diversos das culturas brasileiras, e os associavam a outros elementos advindos de culturas estrangeiras. Resultado disso era uma grande multiplicidade de sons, estéticas e estilos. Sobre as apropriações de elementos estrangeiros, “Comemo-os porque somos fortes”, redige Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago, sobre quem Caetano Veloso aponta que, em 1966, “eu que, a essa altura, pouco conhecia de Mário e nada de Oswald, não poderia imaginar que este último seria o ponto de união entre todos os tropicalistas e seus mais antagônicos
17
VELOSO, Op. Cit. p. 165.
22
admiradores”18. Dessa maneira, atingir, expor, ou ainda valorizar essa diversidade expositora da veia da multiplicidade que encaravam como sendo a característica brasileira, eram, então, a meta do Tropicalismo. Assim, mesmo após o fim do movimento, essas diversidades e transformações estiveram presentes na carreira dos Mutantes. De acordo com uma atitude que é possível se esperar de uma banda que traz em seu próprio nome sua inclinação a mudanças, uma longa jornada se traçou até que se decretasse seu fim, dez anos mais tarde, tal qual – e possivelmente de maneira relacionada – aos câmbios que se traçaram também para o panorama do Brasil e do mundo. O contexto referente a esse período é bastante diferente. Remonta a um início do processo de “despressurização” da Ditadura Militar; o presidente Ernesto Geisel envia emenda ao congresso para acabar com o AI-5, restaura o habeas-corpus e abre caminho para a volta do regime mais aberto que se convencionou chamar democracia. Movimentos de mulheres (e mesmo determinados movimentos feministas) que já haviam se articulado têm seus espaços em expansão (e defendidos pela ONU, após o já mencionado Ano Internacional na Mulher, em 1975)19. As comunidades alternativas, o uso de drogas para a “ampliação da mente” e o culto às bandas de rock também cresceram, bem como a televisão, os cinemas e as publicações de revistas e jornais. Incontáveis (e por vezes indefiníveis) traços característicos das culturas pop, das militâncias e do conjunto de resistências aos padrões sociais chamado Contracultura se fazem, dessa forma, cada vez mais presentes em imaginários populares.20 Já na
18
Idem, p. 192. Conforme pode-se perceber no já mencionado “Narrativas fundadoras do feminismo”, de Joana Maria Pedro. 20 Conforme aponta VENTURA em seu já mencionado “1968: o ano que não terminou”. 19
23
conjuntura musical do período, novamente pode-se recorrer à obra de Tatit, quando esse afirma que as leis “frias” do mercado fonográfico passaram a determinar o andamento da música popular, e que houve relativamente poucas revelações durante a década de 1970. Por outro lado, prossegue afirmando a importância da abertura tropicalista para a música na década:
Foi a nova mentalidade urdida nos tempos tropicalistas que, após uns quatro anos de ‘tenebrosas transações’ – das quais resultaram baixas, exílios, perseguições e outras atitudes obscurantistas de triste memória – vingou na música popular dos anos 70: a música sem fronteiras rítmicas, históricas, geográficas ou ideológicas. (...) Mas a década primou mesmo por consolidar a libertação da canção dos gêneros rítmicos predefinidos. A conduta de assimilação contumaz das dicções, que surgira como prática tropicalista, passou a caracterizar naturalmente o trabalho de criação de boa parte dos cancionistas.21
Nem sempre de acordo com as tendências apontadas pelo panorama musical em que se incluíam, mas sempre de maneira transitória como ele, a carreira da banda atravessa, então, diversos processos de mudança que acompanham as transições que permeiam determinados cotidianos brasileiros, resultando em uma obra que em diversos momentos traça retratos – em letras, músicas e performances – de experiências que eram vividas por seus membros. Para adotar uma explicação de como se deu esse processo no campo de interesse que concerne a este trabalho – as performatividades de gênero –, adoto aqui esse critério, a partir do qual subdivido a carreira discográfica da banda, fonte primária que será analisada, em quatro períodos que apontam inclinações a
WEISS, Luiz, e ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de.Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. Coleção História da vida privada no Brasil, volume IV, Companhia das Letras, 2000 TAVARES, Carlos A. P. O que são comunidades alternativas. São Paulo: Brasiliense, 1983, Estas obras, entre muitas outras de fácil acesso em bibliotecas e acervos, trazem uma breve noção sobre o tema. De qualquer forma, acredito ser necessária uma leitura mais aprofundada sobre o assunto. 21 TATIT, Op. Cit. p. 227-229.
24
determinadas performatividades de gênero nas textualidades que foram apresentadas a um grande público: por imagens (manifestadas nas fotografias e palavras escritas que compunham as capas de discos) e por sons (nas letras e músicas que eram apresentados por estes discos). Estes quatro momentos, que serão mais bem apresentados adiante neste capítulo, serão chamados de “performance de crítica”, “performance de embate”, “performance de afirmação” e “performance impessoal”. Descritos brevemente no trecho introdutório desse trabalho, os conceitos de performance de gênero e da construção de discursos e identidades merecem aqui explicações algo mais esclarecedoras, por serem os principais elementos formadores da ótica através da qual a fonte primária acima descrita será analisada. Esses conceitos aqui desenvolvidos são apropriados da obra “Gender Trouble”, “Problemas de Gênero”, no Brasil. Nele, Butler desenvolve a idéia de que as identidades de gênero são definidas a partir de discursos e performances (concebidos como toda forma de expressão e interlocução) que se fazem presentes em todos os aspectos da montagem do indivíduo e de suas identificações. Dessa maneira, pode-se por exemplo considerar que um corte de cabelo, uma roupa, ou uma letra de música carregam discursos de gênero (e, por conseguinte, elementos formadores de identidade), de maneira consciente ou não. Assim, o gênero, como constituinte de identidade, está condicionado à situação nômade dessa. Em palavras da autora,
(...) o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero. Consequentemente, o gênero mostra ser performativo no interior do discurso herdado da metafísica da substância – isto é, constituinte da identidade que supostamente é. Nesse sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra.
25
(...) afirmamos como corolário: não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados. 22
Em entrevista a Baukje Prins, da Universidade de Amsterdã, e Irene Costeira Meijer, da Universidade de Maastricht, Butler afirma que suas perspectivas de gênero em Gender Trouble, ao tratar de suas relações como discursivas, consequentemente, relações de poder, denota sinteticamente que seu processo originário decorre da seguinte maneira:
(...) a construção de identidades de gênero deu-se não apenas pela repetição da diferença entre homens e mulheres, feminilidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação hierárquica entre feminilidade e falta de feminilidade, entre masculinidade e falta de masculinidade. 23
Desta maneira, ao analisar a fonte primária tomada (a obra discográfica da banda), foi imperativo manter a atenção em como as performatividades de gênero se dão dentro do universo em recorte, como formadoras de identidades e de subjetividades. Dentro desta abordagem, torna-se inútil ater-se a aspectos descontextualizados da fonte deixando-se de lado elementos discursivos (e, por conseqüência, performativos) definidores dos conjuntos de discurso. Nesse sentido, vem a calhar o exemplo que defende Adalberto Paranhos na introdução do texto “Saber e Prazer”, que corre por esses caminhos quando afirma que a música em determinados momentos fala por si só, sem recorrer a palavras impressas e cantadas, dando como exemplo as guitarras que deram impulso à Tropicália, afirmando que em seu contexto, “valeram por mil palavras
22
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 48. 23 PRINS e COSTEIRA, Op. Cit. p. 164.
26
no combate à estreiteza nacionalista que dominava um determinado projeto político”24. Ora, ao tomar-se por princípio que as guitarras do exemplo são carregadas de valor discursivo, elas tornam-se também elementos constituidores de performances e de identidades – o que é também válido para outros elementos discursivos musicais e imagéticos. Partindo deste imperativo, estrutura-se o texto de maneira a abordar as já mencionadas diversas fases atravessadas pela produção artística da banda (no recorte temporal adotado) através dos dois veículos de comunicação que a compõe: a imagem e o som. Este capítulo desenvolverá uma apresentação destas fases, além de análises sobre as performances de gênero que podem ser encontradas em imagens e textos escritos dos discos, ou seja, das textualidades de imagem, enquanto o capítulo seguinte tratará das letras e músicas que se referem aos mesmos períodos, ou seja, das textualidades sonoras. Se tomado por fonte primária o conjunto da obra oficialmente registrada pela banda, ou seja, seus discos, pode-se perceber que eles não se constituem apenas pelas músicas contidas em registro físico, mas também pela embalagem – sua capa e seus encartes – que em determinados casos – e esse é um deles – também são veículos discursivos da banda, e não meramente um pacote para proteger o disco. Exemplo disso é a capa do disco lançado em 1968 “Tropicália ou Panis Et Circensis”, que será mais densamente discutida adiante, apresentada pelos autores do disco (os integrantes do movimento da Tropicália) como parte fundamental da obra, dialogando diretamente com as canções contidas no registro sonoro. Dessa maneira, essa abordagem toma as
24
PARANHOS, Adalberto. Saber e Prazer: A Música como recurso didático-pedagógico. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 1995. p. 9-10.
27
capas como partes integrantes do conjunto da obra realizada pela banda, como meio discursivo, performativo e também constituidor de identidades, o que justifica de maneira bastante clara a sua adoção como importantes fontes primárias. Isso leva à questão da importância e da metodologia para adoção do uso de imagens, música e audiovisuais como fontes primárias na historiografia. Dentro dessa discussão, merece destaque a abordagem tomada por Marcos Napolitano em seu “A História depois do papel”:
Vivemos em um mundo dominado por imagens e sons obtidos ´diretamente´ da realidade, seja pela encenação ficcional, seja pelo registro documental, por meio de aparatos técnicos cada vez mais sofisticados. E tudo pode ser visto pelos meios de comunicações e representado pelo cinema, com um grau de realismo cada vez mais impressionante. Cada vez mais, tudo é dado a ver e a ouvir, fatos importantes e banais, pessoas públicas e influentes ou anônimas e comuns. Esse fenômeno, já secular, não pode passar despercebido pelos historiadores, principalmente para aqueles especializados em História do século XX. As fontes audiovisuais e musicais ganham crescentemente espaço na pesquisa histórica. Do ponto de vista metodológico, são vistas pelos historiadores como fontes primárias novas, desafiadoras, mas seu estatuto é paradoxal. Por um lado, as fontes audiovisuais (cinema, televisão e registros sonoros em geral) são consideradas por alguns, tradicional e erroneamente, como testemunhos quase diretos da história (...). Por outro lado, as fontes audiovisuais de natureza assumidamente artística (filmes de ficção, teledramaturgia, canções e peças musicais) são percebidas muitas vezes sob o estigma da subjetividade absoluta, impressões estéticas de fatos sociais objetivos que lhe são exteriores. A questão, no entanto, é perceber as fontes audiovisuais e musicais em suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade..25
Dessa maneira, a perspectiva adotada deriva da de Napolitano ao apontar para um conjunto de possibilidades metodológicas pautadas por uma abordagem
25
NAPOLITANO, Marcos. .Fontes audiovisuais: a história depois do papel. IN:. PINSKY, Carla (org). Fontes históricas. São Paulo, Contexto, 2005. p. 235-237. (grifos do autor)
28
frequentemente enfatizada por historiadores especialistas em fontes de natureza não-escrita: a necessidade de articular a linguagem técnico-estética das fontes audiovisuais e musicais e as representações da realidade histórica ou social nela contidas. Essa abordagem nos leva a uma associação entre as linguagens adotadas pelas fontes (ou seja, as linguagens musicais e as linguagens visuais) à representação de realidades históricas nelas contidas (ou seja, os discursos performativos e as identidades de gênero por eles apresentadas). É necessária atenção ao fato de que tratamos das representações de realidades históricas contidas nas linguagens, e não a pretensas realidades históricas absolutas. Desse modo, os papéis e representações de gênero que os membros da banda realizavam fora do universo da obra recortada como fonte primária não é tão interessante a essa associação quanto o que era passado através das músicas e imagens. Por exemplo, as relações que os membros da banda tinham entre si não são interessantes a esta análise caso não estejam representadas nas fontes selecionadas, ou, nas palavras de Napolitano, caso não sejam “representações da realidade histórica ou social nela contidas”. Esse capítulo, como já mencionado, trabalhará com as discursividades contidas nas imagens veiculadas pela banda em sua obra, o que leva à discussão mais específica do uso de imagens como fonte histórica. Nesse contexto, partimos de conceitos defendidos por Dumolin em seu ”O Monumento”:
Com o tempo, o historiador tomou consciência que o documento é um monumento, dotado de seu próprio sentido, a que não pode recorrer sem precaução. Cumpre então restituí-lo ao contexto, aprender o propósito consciente ou inconsciente mediante o qual
29
foi produzido diante de outros textos e localizar seus modos de transmissão, suas sucessivas interpretações.26
Porém, a idéia de um documento que “fale por si” é completamente inadequada ao conceito trazido por Napolitano, o qual procura sentido no documento através de uma interpretação baseada na já mencionada “representação de realidade”. Conforme aponta Jacques Le Goff em seu “Documento/Monumento”27 ao apresentar as significações dadas pela Eccole de Annalles aos documentos históricos, Lucién Febvre questiona:
Toda uma parte, e sem dúvida mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para constituir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entreajuda que supre a ausência do documento escrito?28
Por sua vez, ainda conforme trecho apontado por Le Goff, o historiador também constituidor da Eccolle de Annalles Marc Bloch segue os questionamentos e responde-nos, em seu “Apologia da História ou ofício de Historiador”:
Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um único tipo de documentos, especializado para esse uso... que historiador das religiões se contentaria em consultar os tratados de teologia, ou das recolhas de hinos? Ele sabe bem que sobre as crenças e as sensibilidades mortas, as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição imobiliária das tumbas, têm pelo menos tanto pra lhe dizer quanto muitos escritos.29
26
DUMOLIN, O. “O Monumento”, apud NAPOLITANO, Op. Cit. p.239. LE GOFF, Jacques. "Documento/ Monumento". In: História e Memória. 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1994, pp. 535-553. 28 FEBVRE, Lucien. La naissance de l´historiographie moderne. Apud LE GOFF, Op. Cit. p. 539. 29 BLOCH, Marc. Apologie pour l´histoire ou métier d´historien. Apud LE GOFF, Op. Cit. p. 540. 27
30
Nessa acepção, a imagem é, enquanto documento, uma fonte primária que adquire sentido através de uma análise, é um discurso imbuído de sentidos que se fazem a partir da sua associação a referenciais, a “pontos de vista”. Não obstante, é comum a idéia de que, para o historiador ou historiadora, a imagem é dotada de textualidade, e conseqüentemente, passível de discurso e performance. Roger Chartier denota a falsa “transparência” ao afirmar que a imagem é simultaneamente “transmissora de mensagens anunciadas claramente” e “tradutora de convenções partilhadas que permitem que ela seja compreendida, recebida, decifrável”30, o que desloca a atribuição de significado aos olhos de quem a interpreta, decifra as textualidades nela contidas. Nesse sentido, sintetiza Paulo Krauss no texto “o desafio de se fazer História com imagens: Arte e cultura visual”:
Desprezar as imagens como fontes históricas pode conduzir a deixar de lado não apenas um registro abundante (...), como pode significar também não reconhecer as várias dimensões da experiência social e as multiplicidades dos grupos sociais e seus modos de vida. O estudo das imagens serve, assim, para estabelecer um contraponto a uma teoria social que reduz o processo histórico à ação de um sujeito social exclusivo e define a dinâmica social por uma direção única. Essa postura, que compreende o processo social como dinâmico e com múltiplas dimensões, abre espaço para que a História tome como objeto de estudo as formas de produção de sentido. O pressuposto de seu tratamento é compreender os processos de produção de sentido como processos sociais Os significados não são tomados como dados, mas como construção cultural. (...) É nesse terreno que se estabelecem disputas simbólicas como disputas sociais.31
30
CHARTIER, Roger. Apud NAPOLITANO, Op. Cit. p. 239. KRAUSS, Paulo. “O desafio de se fazer História com imagens: Arte e cultura visual”. In: Artcultura v., n.12. Uberlândia, Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2006. p. 99-100. 31
31
Seguindo esta linha metodológica, retoma-se o trabalho de Stuart Hall quando este afirma que
A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias.32
Em síntese, adota-se para esta discussão o conceito da imagem como fonte primária para o trabalho historiográfico dotada de textualidade. Consequentemente, é em potencial constituidora de discursividade e de performances de gênero, sendo comunicadora enquanto dotada de sentido, o que se dá através de disputas sociais e construções culturais, aqui articuladas com a realidade histórica contida em cada imagem, a da performatividade de gênero (assim, pode ser mais bem compreendida a epígrafe presente neste capítulo: é dotada de textualidade, e, de acordo com Hall, gera compreensão em razão do olhar interpretativo que lhe atribui sentidos através de um código de significados). Essas performatividades, aqui classificadas para fins de explicação em quatro inclinações mais marcantes dentro da obra da banda, serão expostas a seguir. Antes de apresentá-las, no entanto, torna-se interessante acrescentar que essas subdivisões não têm necessariamente ligação com diferentes alternâncias de formação da banda, nem com a estilística musical adotada pelos seus componentes, embora por vezes estas relações se façam visíveis. Da mesma maneira, as divisões adotadas por este critério não obedecem estritamente a períodos cronológicos, embora
32
HALL, Stuart. Op.Cit, p.16.
32
elas se encadeiem de maneira a associar-se fortemente a determinados momentos de sua trajetória, se vista de maneira linear. Estes pontos virão a ser mais bem explorados em suas associações com as fontes primárias, mas cabe aqui uma breve apresentação das quatro inclinações de performance: A primeira tendência de performatividade se faz mais presente no ano de 1968, embora também se encontre em momentos posteriores. Trata-se de um trio que faz apresentações alegres que contrastam com seu desempenho de um certo papel de críticos sociais no que diz respeito a questões de gênero, papel esse que se demonstra em diversas textualidades, em palavras, imagens e música. Têm por praxe apontar os pontos de discordância com o que acreditam ser o sistema social vigente, ao mesmo tempo que não parecem fazer nada para (ou capaz de) causar-lhe mudanças. Para referir-se mais facilmente a essa inclinação, este trabalho usará o termo sintético “performance de crítica”. A seguir, bastante presente nos anos de 1969 e 1970, tem-se uma banda que demonstra em todas as esferas de textualidade apontadas anteriormente uma maior dinamicidade (ou: uma maior ação) a respeito de suas críticas e insatisfações: ao invés de apenas apontar elementos sociais que lhes desagradem, vemos as vozes, imagens e instrumentos narrando os enfrentamentos, as oposições e as subversões de valores e instituições que criticam, fazendo dessa maneira narrativas de um processo de transformação. Para referir-se a esta inclinação, usar-se-á adiante o termo “performance de embate”. Nos anos de 1971 e 1972, faz-se mais presente uma atitude de afirmação das mudanças já conquistadas no momento anterior: trata-se de um período em que as
33
textualidades confluem para traçar personagens que se opõe firmemente e com sucesso aos valores criticados em primeiro momento, ao contrário daqueles e daquelas personagens que fracassavam em suas tentativas de mudanças. Esta inclinação será referida adiante como “performance de afirmação”. Por fim, no período entre 1973 e 1976, as textualidades não remetem a praticamente nenhuma performance de gênero de maneira direta – muito embora se possa argumentar que o não-falar também é discurso33, da mesma maneira que uma tentativa de não-performance seria também uma diferente performance. Nesse ponto, os e as personagens, assim como as figuras apresentadas nas imagens das capas, usualmente não têm gênero, sendo quase sempre tratadas de maneiras impessoais através de termos que remetem a coletividades. Esta performance será referida adiante como “performance impessoal”. Tendo em vista as principais categorias de análise e estas quatro subdivisões da obra, é momento de voltar-se às fontes primárias, que neste capítulo são compreendidas por textualidades imagéticas e escritas da obra da banda, ou seja, as capas de discos e respectivos textos escritos que as acompanhem. Para tal, associar-se-á a cada uma destas inclinações performáticas de gênero uma capa de disco que de alguma maneira pareça-me representá-la de melhor forma.
33
O termo discurso refere-se aqui como elemento formativo do conceito de performance.
34
1.1 – “Tropicália ou Panis Et Circensis”
35
Para representar a “performance de crítica” característica do início da carreira da banda, opto por apresentar a capa do álbum “Tropicália ou Panis Et Circensis”, disco coletivo, concebido e apresentado por diversos dos tropicalistas em 1968 com intuito de ser o manifesto do grupo como movimento. Apesar de sua natureza coletiva, o teor das performances apresentadas na fotografia da capa do disco converge diretamente às que a banda então apresentava. Articulando-a com a metodologia proposta por Napolitano, volto-me à “realidade histórica” que ela traz à abordagem aqui adotada – discursividades e performances de gênero. Por que esta capa representa um discurso de gênero constituído como “crítico social”? O refrão da música título do disco, “Panis et Circenses”, refere-se diretamente às “pessoas na sala de jantar”. Da mesma maneira, a capa do disco retrata essas pessoas: em seu livro “a divina comédia dos Mutantes”, Carlos Callado a descreve da seguinte maneira:
A capa do álbum já dizia quase tudo. Parodiando a pose fotográfica de uma ‘respeitável’ família brasileira, os tropicalistas aparecem unidos no jardim de inverno de uma mansão, decorada por plantas tropicais. Gil e Caetano mostram retratos emoldurados de Capinam e Nara Leão; os Mutantes empunham suas guitarras elétricas; Tom Zé carrega uma valise de couro; Duprat segura um urinol como se fosse uma xícara de chá.34
Dessa maneira, a capa estabelece diálogos que já foram diversas vezes apontadas para duas de suas referências estéticas mais evidentes, os Beatles – pelas similaridades com a capa do disco Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band – e o Movimento
34
CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1996. p. 122.
36
Antropofágico da década de 20 – pelos motivos tropicais na mansão tradicional. Porém, além destas textualidades, traçam-se individualmente discursividades referentes a cada participante retratado na fotografia: é o caso de Tom Zé que, ao segurar sua sacola de couro típica das regiões áridas do Nordeste brasileiro, afirma sua identidade como nordestino em meio àquele ambiente que lhe é estranho. Da mesma maneira agem os Mutantes, que em meio a uma situação traçada de forma a representar uma família tradicional, empunham as guitarras que exprimem sua rebeldia e sua identificação com um meio alienígena ao que se encontram no retrato. Pode-se afirmar que os tropicalistas não estavam sós em suas opiniões acerca do papel da família tradicional no Brasil da década de 60. Fernando Novais discorre sobre as transformações sofridas pelas estruturas familiares tradicionais no Brasil do período em seu texto “Capitalismo tardio e sociedade moderna”:
Este quadro de transformações não poderia deixar de repercutir intensamente no seio da família. (...) Este desenvolvimento foi impulsionado, da classe média pra cima, pelo acesso mais amplo da mulher à universidade, pela aceleração de sua entrada no mercado de trabalho, pela disponibilidade da pílula anticoncepcional – já difundida nos países desenvolvidos a partir de 1960, mas que só chegou ao Brasil quatro ou cinco anos depois –, e pelo avanço do ceticismo e mesmo do ateísmo. Há, nestes ambientes sociais, uma valorização do prazer sexual e do amor-paixão; a educação dos filhos torna-se mais liberal. É evidente que essa tendência se articula à “revolução sexual” que estava ocorrendo nos países desenvolvidos nos anos 60. Dos estratos sociais “superiores”, a modernização da família e da moral sexual vai se espraiando para a base da sociedade.35
Apesar de equivocado ao localizar cronologicamente a chegada da pílula ao Brasil em 1964 ou 65 – e este equívoco pode ser percebido conforme apontado por Joana Maria Pedro em seu texto “A experiência com contraceptivos no Brasil: uma
35
NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociedade moderna. Coleção História da vida privada no Brasil, volume IV, Companhia das Letras, 2000, p. 643.
37
questão de geração”36, onde a autora localiza esta chegada em 1962 através de estudos em periódicos daquele momento, o panorama apontado por Novais é bem-sucedido ao narrar que as conquistas representadas pela abertura destas possibilidades refletem-se na abertura de portas para uma postura contestadora dos valores mais tradicionais, embora esta possivelmente não se desse de uma maneira muito clara. Em entrevista a revista ShowBizz, Rita afirma, sobre o período, que “éramos do contra. Só não sabíamos exatamente contra o que”37. Em dezembro de 2007, e entrevista à Revista Rolling Stone, descreve sua postura no período de uma maneira mais elucidativa, que condiz com as aberturas sociais apontadas por Novais:
Não nasci pra casar e lavar cuecas. Queria a mesma liberdade dos moleques que brincavam na rua com carrinho de rolimã. Quando entrei pra música, percebi que a ´tchurma´ dos culhões reinava absoluta, ainda mais no rock. ‘Oba’, dizia eu, ‘é aqui mesmo que eu vou soltar a franga e, literalmente, encher o saco deles’. Depois que provei a mim mesma que era capaz de várias vitórias, sosseguei um pouco o facho.38
Falando sobre o papel social da postura de gênero crítica, Judith Butler aponta a importância das representações e das performances dadas através de múltiplos campos de linguagens que se posicionam compulsoriamente dentro do campo das disputas de poder: As estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo do poder; consequentemente, não há posição fora desse campo, mas somente uma genealogia crítica de suas próprias práticas de legitimação. (...) E a tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam.39 36
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh/Humanitas, vol.23, n° 45, 2003, p. 239-260. 37 Entrevista à revista SHOWBIZZ, 1992. p. 48. 38 Entrevista à ROLLING STONE nº 15, Novembro de 2007. p. 89. 39 BUTLER, Op. Cit, p.22
38
Seguindo a linha desenvolvida por Novais, em 1968, quando este afirma que no Brasil “da classe média pra cima” (referindo-se às classes média e alta), havia, em contraposição ao panorama apontado por Butler acerca da contemporaneidade, um processo corrente de abertura para o que o autor considera um modelo familiar mais moderno. Nesse espaço de abertura encaixavam-se os Mutantes e os demais tropicalistas na capa do disco-manifesto, formulando críticas às categorias de identidade que as estruturas naturalizavam, como aponta Butler.
39
1.2 –Mutantes, 1969
A capa do LP “Mutantes”, de 1969, representa aqui uma performatividade discursiva adotada pela banda frequentemente no período imediatamente posterior a seus primeiros lançamentos fonográficos, em 1968. Já trazendo um caráter de transição em relação à postura crítica apresentada naquele momento sob a égide tropicalista – e desembocando no final do movimento, enterrado simbolicamente por seus participantes em um programa de televisão em 196940, a banda volta-se cada vez mais à procura de seus caminhos, na medida em que busca um maior desenvolvimento de sua
40
CALADO, Op.Cit. p.153.
40
personalidade musical, de sua individualidade. No que tange às performances discursivas de gênero contidas em sua obra, essa inclinação se dá a partir de uma atitude frente diferente em relação ao que antes costumavam criticar de maneira estática: neste momento, as canções, fotografias e demais linguagens assumem uma atitude dinâmica de enfrentamento perante os alvos de suas críticas, como se pode constatar ao analisar a capa do disco reproduzida acima. A capa do disco em questão trazia uma foto da banda em uma apresentação no terceiro Festival Internacional da Canção, mais especificamente na noite da final nacional. A contracapa, por sua vez, trazia um elogioso texto do jornalista Nelson Motta e uma foto do grupo fantasiado de alienígenas, reproduzida na epígrafe deste capítulo. Novamente de acordo com Carlos Calado,
A ocasião exigia uma performance41 muito especial e os três não deixaram por menos. Rita fez uma visita ao guarda-roupa da TV Globo e lá encontrou as roupas bizarras que precisava para causar o máximo de impacto. Surgiu no palco toda de branco, de véu e grinalda, com um vestido de noiva que já tinha sido usado antes pela atriz Leila Diniz. Serginho entrou de toureiro, com a mesma fita hippie-indígena da apresentação anterior, na testa. Arnaldo foi fantasiado de arlequim, inclusive com um penacho azul na cabeça. E, para completar a série de provocações, uma sacada multimídia avant la lettre: além de seus tradicionais pratos de metal, Rita levou também ao palco um gravador cassete. A idéia era responder às esperadas vaias com a gravação do polêmico discurso de Caetano, em É Proibido Proibir.(...) A imagem da irreverente apresentação do conjunto no FIC – com Rita vestida de noiva, Arnaldo de Arlequim e Sérgio de toureiro – foi escolhida para a capa do álbum, intitulado apenas de Mutantes. Porém, por pouco o disco não foi chamado de O Sexto Dedo. Esse era o nome de um filme de ficção científica que inspirou a estranha foto da contracapa, que trazia os três mutantes transformados em misteriosos alienígenas – sem cabelos, com as cabeças repletas de veias salientes, orelhas pontiagudas e seis dedos nas mãos.42 41
Repare que o uso do termo “performance” aqui não se iguala ao termo “performance” utilizado por Butler, uma vez que aqui ele aponta para uma aparição artística específica enquanto no contexto apontado por Butler ele refere-se a manifestações discursivas de qualquer natureza; todavia, a atitude tomada pela banda ao apresentar sua canção no Festival é uma performance nas duas compreensões da palavra. 42 Idem, p. 138 – 139 e 158
41
Dessa maneira, dando lugar à foto escura e sem movimento que estampava a capa do primeiro LP da banda, que os expunha com ar de uma inocência um tanto séria, sisuda, aqui a banda estava com grandes sorrisos em suas feições, em uma foto um tanto mais clara que os exibe tocando seus instrumentos, em poses que denotam movimentos corporais. Suas roupas, principalmente o vestido de Rita, apontam um enfrentamento consciente quando surgem com o propósito de causar impacto, causar reações na platéia – o que de fato aconteceu no Festival. Escolhendo esta imagem para a capa do disco, a banda expande essa provocação para além do público que os assistiu naquela ocasião: cada cópia do disco em cada loja, cada casa, estaria carregando esse discurso, essa performatividade. O vestido de noiva, antes usado por Leila Diniz, suscita uma discussão por si só: O já referido texto “Mutações em Cena: Rita Lee e a resistência contracultural” apresenta uma forte associação entre as figuras de Rita e Leila, ao apontar que esta segunda foi dotada de um grande diferencial frente a muitas feministas brasileiras do período, relacionando suas posturas, embora afirme que Diniz nunca tenha “encampado a bandeira”. Aponta que
Exatamente nesse ponto o grande avanço que foi o comportamento pessoal, a liberdade pessoal que Leila imprimiu na revolução que apenas se iniciava. ‘É o poder da ação, o poder da mudança que você introduz através do seu próprio comportamento e não através da retórica desvinculada da coragem de agir’ (Pitanguy, Diniz, 1994, p.481). Essa alegre coragem tornou essa personagem o paradigma de um novo comportamento feminino. A imagem da mulher que tem seu domínio sobre seu desejo era veiculada pela imprensa, delimitando e conformando as novas conquistas.43
43
PIMENTEL. Op. Cit. p. 10-11.
42
Essa questão do domínio sobre seu desejo será retomada adiante, no capítulo seguinte, ao discutir-se as letras das músicas desse momento. Retomando as colocações de Pimentel a respeito de Leila e Rita:
Leila Diniz e a geração do Tropicalismo, logo em seguida, irão redesenhar novos comportamentos femininos que alteram lentamente os fazeres convencionais, modificando indelevelmente a face da cultura nacional. Carnavalização, coloquialismo e irreverência acabam por invadir a área sagrada da alta cultura e do conhecimento canônico. (...) Se o feminismo no Brasil só se fez movimento aberto e exposto às forças políticas públicas após 1975, nem por isso ações significativas deixaram de apontar os novos tempos. As pegadas de Leila Diniz, especulando liberdades para além da palavra morta em propostas partidárias, marcarão, com irreverência e rebeldia, o Tropicalismo e em especial Rita Lee, que reconheceu nela um marco dessas mudanças. Indumentárias, linguagem, canções, arranjos e performances Mutantes foram diretamente endereçados a ela.44
Apesar de parecer a esta abordagem estar um tanto equivocada em alguns pontos, como ao definir feminismo como uma singularidade e na excessiva associação entre elementos discursivos dos Mutantes e a figura singular de Leila, percebe-se que a autora contribui com a idéia central desta abordagem ao relacionar as posturas e suas importâncias para o período (que caracteriza como “ações significativas”) não através do que ela chama de “palavra morta”, de uma retórica específica, mas através do que aqui categorizam-se como performances de gênero. Note-se que no texto de Gláucia Pimentel surge novamente o termo “performance” em uma conotação diferente da apresentada por Butler, ao passo que neste trabalho a performance é associada ao conceito apresentado em “Gender Trouble”, passando assim a problematizar outros aspectos de sua discursividade. Como o próprio livro aponta,
44
Idem.
43
Mostraremos que o sexo, já não mais visto como uma “verdade” interior das predisposições da identidade é uma significação performativamente ordenada (e portanto “é” pura e simplesmente), uma significação que, liberta da interioridade e da superfície naturalizadas, pode ocasionar a proliferação parodística e o jogo subversivo dos significados do gênero. O texto continuará, então, como um esforço de refletir a possibilidade de subverter e deslocar as noções naturalizadas e reificadas do gênero que não dão suporte à hegemonia masculina e ao poder heterosexista, para criar problemas de gênero não por meio de estratégias que representem um além utópico, mas da mobilização, da confusão subversiva e da proliferação precisamente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o gênero em seu lugar, a posar como ilusões fundadoras da identidade.45
Essa “mobilização”, essa “confusão subversiva” e “proliferação das categorias constitutivas” apontadas por Butler parecem ali ser facilmente apontadas ao tratarem das posturas delineadoras de identidade adotadas: os papéis de gênero, como o da esposa, estavam sendo subvertidos – e neste ponto, estamos de acordo com a abordagem de Pimentel, quando esta indica que as posturas subversivas de identidades eram tomadas de maneira parecida por Leila Diniz e os Mutantes, sobretudo Rita Lee.
45
BUTLER, Op. Cit, p.60
44
1.3 – Os Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets, 1972
Após a inclinação de “enfrentamento”, os discursos de gênero adotados pela banda – agora um quinteto, com a adesão do contrabaixista Liminha e do baterista Dinho (que já acompanhava o grupo desde 1969 como músico de apoio, mas somente foi oficializado como membro da banda em 1970) – tornaram-se gradualmente mais voltados a uma outra postura. Já estabelecidos como uma banda respeitada, com vendagens sólidas no mercado fonográfico e shows aclamados no Brasil e na Europa46,
46
CALADO, Op. Cit. Por dezenas de vezes o autor refere-se aos Mutantes como detentores da “fama de melhor banda do país do período”, como nas páginas 273 e 279. Traz também trechos de periódicos
45
os Mutantes entram em uma fase em que se fazem necessárias não contestações, mas uma afirmação do que foi conquistado com os enfrentamentos anteriores. Em se tratando de performances de gênero, Rita destaca-se por ocupar os espaços já conquistados – adotava agora uma outra postura de gênero em seu modo de caracterizar-se como mulher, não sendo bastante ter transgredido um modelo, mas tornando-se necessário continuar apresentando discursos e performances que a constituíssem identitariamente de maneiras diferentes das que questionava. Butler trata deste processo quando afirma que
Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria ‘cristalização’ é uma prática insistente e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se uma mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturação e construção. O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.47
Dessa maneira, podemos pensar aqui em uma cristalização de um papel de mulher, de uma identidade determinada de gênero que Rita passa a sedimentar a partir de atitudes que fazem valer os direitos e espaços por ela conquistados – o que ocorre de forma semelhante com os papéis identitários representados por Arnaldo e Sérgio, e em menor escala por Liminha e Dinho: enquanto Rita afirma-se como mulher livre,
brasileiros, europeus e norte-americanos daquele momento que os definiam com adjetivos similares, principalmente nas páginas 164 e 165. 47 BUTLER, Op. Cit, p.59
46
transgressora e insubmissa, seus colegas de banda afirmam-se de maneira parecida, mas com menor impacto de em suas relações de gênero frente às suas audiências. Ao aplicar esse olhar à capa do disco “Os Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets”, pode-se perceber vários elementos discursivos que caracterizam a banda dentro desses papéis. Enumerando-os: - os Mutantes são desenhados de maneira estilizada, parecendo super-heróis de quadrinhos. Dessa maneira, tornando-se personagens de uma figura, a representação de suas personalidades é uma construção clara e voluntária de um discurso definidor de suas identidades, onde fica arbitrariamente decidido o que se quer ou não demonstrar nos símbolos que compõe o desenho. - Cada personagem é apresentado com características próprias, mas Rita Lee tem asas de ave, ou de anjo, e de barata; dessa maneira, insinua-se a capacidade de voar, o que simbolicamente pode representar a liberdade, a capacidade de ir mais alto – ou mais longe, mas também pode representar uma figura angelical, terna. Além disso, Rita é disposta em uma posição central na figura, o que traz por conseqüência um destaque visual de sua representação. - Os instrumentos musicais aparecem novamente, como nas capas dos outros dois discos apontados: porém, aqui eles remontam a armas de ficção científica, devido a seus formatos e às posições. Isso pode ser lido como uma insinuação de que os instrumentos musicais são as armas que a banda detém, e, no caso, as armas mais avançadas, vindas do espaço, ou do futuro. Essa estética que remete à ficção científica dialoga com a figura na contracapa do segundo álbum, “Mutantes” em que o trio está vestido como alienígena. Talvez estes elementos remetam à grande sofisticação técnica
47
da aparelhagem musical da banda (ostentada na contracapa do LP anterior, “Jardim Elétrico”, em uma foto que a dispõe ao lado de seus orgulhosos proprietários), ou refiram-se a um sentimento de não inclusão, de ser “alienígenas” no meio social em que se encontram. - Sérgio tem seu peito aberto e seu coração exposto, e dele saem headphones que ele escuta. Uma leitura fácil é de que essa imagem representa que a música vêm do coração, imagem poética que ressalta uma sensibilidade artística por parte do músico. De toda forma, sendo a música uma maneira de expressão e um campo discursivo, esta imagem sugere que estes discursos musicais são feitos “de coração”, ou seja, com sinceridade, honestidade, constituindo uma performance de gênero “sincera”. - As fotos da contracapa identificam cada um dos membros individualmente. Isso acaba por reforçar a identidade individual de cada membro, não apresentando-os somente como parte de um todo, a banda – curiosamente, este seria o último lançamento trazendo nome da banda em que estes membros estão reunidos. No lançamento seguinte sob o nome Mutantes, apenas Sérgio está presente entre os membros dessa formação, ao passo que os lançamentos seguintes de Rita e Arnaldo trazem apenas seus nomes na capa. - O título do disco faz referência à banda. Os álbuns anteriores, chamados “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado” e “Jardim Elétrico” remetem-se a canções presentes no disco, mas neste caso a banda foi auto-referente ao escolher o título do LP, que também é o título de uma das canções – a mais longa. Esta auto-referência pode ser lida como uma auto-afirmação, no sentido de que eles são assunto de suas próprias músicas e discos. De todo modo, a auto-referência é uma afirmação consciente de que
48
os discursos trazidos na obra referem-se aos próprios autores. Ora, tratam-se então de performances constitutivas de identidade de gênero, reafirmando as rupturas feitas em momentos anteriores, gerando um processo de tentativa de “cristalização” que como aponta a citação de Butler acima, se dá a partir de uma “prática insistente”, uma “estilização repetida do corpo” – o que ocorre esteticamente ao representar esse corpo de uma maneira carregada de discursos formadores de identidade, como no caso do desenho desta capa. Se há algo de coerente na afirmação de Pimentel de que Rita Lee representou, “sem bandeiras” e “embora não advogando a causa do feminismo” e que através de sua imagem representou uma referência e padrão para debates feministas48, então concordamos com Mavis Bayton quando este afirma, em seu “Feminist Musical Practices: Problems and Contradictions”, que
Feminist Musicians have been acutely concerned with the implications of their appearance and stage presentation. They have chosen to disrupt, subvert or challenge the hegemonic discourse of female rock sexuality. (…) However, the semiotics have proved highly problematic for the female musicians. What a particular item of clothing ‘says’ depends on a shifting context of meanings and, of course, all signs are polysemic. 49
Dessa maneira, tendo em vista uma multiplicidade de sentidos em cada significante – ou seja, em cada elemento discursivo –, estas práticas de performance tomadas pela banda através da imagem podem ser analisadas através de uma perspectiva de gênero que aponte diversos sentidos, mas, no entanto, fazem menção de “romper,
48
PIMENTEL, p. 08. BAYTON, Mavis. Feminist Musical Practice: Problems and Contradictions. In BENNETT, Tony (et al). Rock and Popular Music: Politics, Policies, Institutions. London: Routledge, 1993. p. 181. Em tradução livre: “Musicistas feministas tem estado fortemente preocupadas com as implicações de sua aparência e apresentações em palco. Elas optaram por romper, subverter ou desafiar o discurso hegemônico da sexualidade feminina no rock. Contudo, a semiótica da imagem tem se provado altamente problemática para a mulher musicista. O que ‘diz’ determinada roupa depende de um contexto de significados, e, é claro, todos os significantes são polissêmicos”. 49
49
subverter ou desafiar” os papéis de gênero hegemônicos, tornando-se performances de gênero. Contudo, essas práticas de gênero voltam-se à reafirmação dessa construção de identidades, ou seja, voltam-se ao estabelecimento de identidades já previamente bosquejadas.
50
1.4 – Tudo foi feito pelo Sol, 1974
Passando por incontáveis mudanças, os Mutantes do lançamento do quarto álbum apresentado neste trabalho (“Tudo Foi Feito Pelo Sol”, de 1974) traziam identidades bastante distintas das mencionadas nos discos anteriores. Dentre os membros da banda pode-se sentir que as mudanças foram drásticas: dos cinco componentes presentes no disco anterior, apenas Sérgio Dias prosseguiu na banda até o lançamento deste. Composto e concebido por personagens diferentes, não parece grande surpresa que as textualidades líricas, sonoras e imagéticas deste álbum acompanhem
51
estas diferenças – ainda mais ao se tratar da banda cujo próprio nome estampa a tendência a mudanças. Ao analisar a capa do disco, percebe-se diversas mudanças fundamentais. Talvez a mais emblemática seja a de tratar-se de uma figura que não representa os membros da banda, e sim um misto de sol, ovo e Santo Graal50 – nome de uma canção do grupo no período. Apesar de sua estética moderna para o contexto do Brasil da época, trata-se de uma figura que não apresenta qualquer relação direta com a banda – pela primeira vez, poderia facilmente tratar-se de uma capa de outro conjunto, não fosse pelo logotipo com o nome “Mutantes”. Podendo facilmente ser associada a capas de bandas de rock “progressivo” populares na época, como o Yes e o King Crimson, a figura trazida na capa aponta para uma idéia de contemplação de realidades mais amplas, no caso, articulada ao título do álbum, refere-se a temas universais, à existência de todas as coisas. A partir desses elementos, a textualidade estética central trazida pela gravura faz referência às bandas mencionadas, gerando uma tentativa de aproximação de identidade visual a estes conjuntos. A contracapa, por sua vez, apresenta os músicos executando seus instrumentos em uma dicção típica do rock, com posturas corporais majestosas ou exuberantes, da mesma forma bastante similares às mencionadas bandas de rock progressivo. Os pouco numerosos discursos e performances que refiram-se à categoria gênero apresentados nesta embalagem apontam para um problema que será ainda mais importante no capítulo seguinte: a construção das masculinidades. De que maneira apresentar em sua textualidade elementos que simplesmente associem suas identidades
50
CALADO, Op. Cit, p. 319.
52
a outras é também uma construção de gênero e uma disputa social: como o trecho já apontado de Butler,
(...) a construção de identidades de gênero deu-se não apenas pela repetição da diferença entre homens e mulheres, feminilidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação hierárquica entre feminilidade e falta de feminilidade, entre masculinidade e falta de masculinidade. 51
Que masculinidades a identidade visual trazida por essa embalagem está (enquanto discurso e performance) ajudando a construir? A inexistência de uma figura feminina em toda a parte de imagens trazida pelo disco diz alguma coisa? Ao se discutir questões de gênero, o que pode significar essa insistente afirmação de identidades referentes a determinadas bandas? E aqui também vem ao caso: de que maneira essas questões de formação de identidade através de intersecções de elementos culturais discursivos como a música, o modo de vestir, falar, etc., podem dialogar com o conceito de performance de gênero de Butler enquanto esta afirma que se tornou impossível separar a noção de gênero das intersecções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida52? Para dialogar acerca dessas questões, faz-se necessário analisar outros elementos além dos poucos trazidos pela capa deste disco: o que, em termos de gênero, pode-se dela afirmar além das bandas a que ela se refere e da ausência de um discurso que aponte diretamente a questões de gênero? Dessa maneira, ao analisar as músicas e letras do período, no capítulo seguinte, essas questões serão mais desenvolvidas.
51 52
PRINS e MEIJER, Op. Cit. p. 164. BUTLER, Op. Cit.
53
54
CAPÍTULO 2: Pedras que rolam não criam limo.
No capítulo anterior foram apresentados importantes referenciais teóricos, como o conceito de performance de gênero e as discussões acerca do uso da imagem na historiografia. Foram apresentados também as principais modos como a banda traçou essas performances de gênero através de performances artísticas, subdivididos em quatro fases53 e, por fim, o texto trouxe uma discussão de algumas das imagens utilizadas pela banda nas capas e contracapas de seus álbuns – o que é fundamental porém não suficiente para se traçar uma análise das performances de gênero delineadas nesses álbuns, mantendo-se a lacuna da análise dos discursos compostos pelas músicas e letras que esses contém. Esse é o tema central deste segundo capítulo. Para trabalhar esse tema, fazem-se necessárias algumas elucidações acerca de conceitos utilizados, além de discussões prévias sobre o trato historiográfico dessas fontes. Assim, primeiramente será apresentado o conceito de discurso associado às disputas de poder na categoria gênero, e em seguida serão discutidas as maneiras como as textualidades constitutivas desses discursos musicais serão interpretados nesse trabalho, para por fim apontar os devidos comentários e conclusões acerca dessas músicas.
53
Talvez o termo fases não seja o mais adequado, por conotar um princípio de temporalidade. Dessa maneira, indico que não entendo o termo “fase” como um período cronológico apenas: trata-se, nesse caso, de uma inclinação a determinados tipos de discursividade e performance.
55
O conceito de discurso conforme apresentado por Michel Foucault em sua aula “a ordem do discurso” é definido em linhas gerais como uma produção social e um campo de disputas:
Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade. (...) uma vez que o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objecto do desejo; e porque — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos. 54
Dessa maneira, o que “controla, seleciona, organiza e redistribui” a produção do discurso, ou seja, compõe suas áreas constitutivas, não é necessariamente a retórica que representa ou omite os desejos, mas sim o próprio campo onde ocorrem as disputas e o poder pelo qual essas se dão. As atitudes, as ações adotadas, todos os aspectos abarcados por campos de disputa compõem, então, discursos. Dentro dessa acepção, as fontes primárias adotadas nesse capitulo são claramente composições discursivas não só nas letras cantadas como também em tantos outros aspectos da produção musical, das ações e procedimentos que as constituem. Isso remonta à citação de Adalberto Paranhos, ao afirmar que
Como se sabe, a música fala sem recorrer necessariamente a palavras impressas e cantadas. Retomando um exemplo já clássico na história da MPB: o discurso sonoro pronunciado pela estridência das guitarras elétricas que deram impulso à Tropicália valeu por mil palavras no 54
FOUCAULT, Michel. L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971.
56
combate à estreiteza nacionalista que dominava um determinado projeto político.55
É possível depreender desse trecho elementos que constituem a fonte primária que compõe esse capítulo conjugados às idéias apresentadas na citação de Foucault quando esse aponta os discursos como “aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos”. As performances de gênero conforme apresentadas por Butler são constituídas por discursos e também, nesse caso, campos de disputa. Novamente na mencionada entrevista a Baukje Prins e Irene Costeira Meijer, Butler afirma que
Acho que discursos, na verdade habitam os corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte do seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Então, não quero afirmar que haja uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro.
Combinando esse conceito à fonte primária, associamos também à já mencionada citação de Rita Lee em entrevista à revista Rolling Stone, ao afirmar que encarava a música (espaço onde a “tchurma dos culhões reinava absoluta”) como um ambiente em que poderia se afirmar e “conquistar várias vitórias”. Dessa forma, os espaços compreendidos pela música popular (e mais especificamente pela música Rock, principal elemento constitutivo da estética musical adotada pela banda) demonstram-se campos de disputas discursivas de gênero. O conceito da arte como campo de disputas de gênero associado a um momento de “abertura sexual da mulher” já se fazia familiar
55
PARANHOS, Op. Cit. p. 9-10. (grifos do autor)
57
no campo da literatura feminista do período, como é possível perceber no artigo “Mulheres: a revolução mais longa”, de Juliet Mitchell, publicado no Brasil em 1967:
Em muitas sociedades a abertura sexual foi acompanhada de uma forma de expressão poligâmica que a tornou na prática simplesmente uma expressão da dominação masculina. Já que a arte era também um campo do homem, esta liberdade encontra uma expressão natural e frequentemente poderosa na arte.56
Porém, expressão dessa liberdade como expressão da dominação masculina pode ser contestada ao se analisar de que maneiras ela foi apresentada na arte dos Mutantes e de diversas outras personalidades daquele momento. Mavis Bayton, ao analisar em seu já mencionado “feminist musical practice: problems and contradictions” a questão específica da presença de mulheres no mundo do rock – problemática que se faz intensamente presente ao se tratar da figura de Rita Lee como uma das figuras centrais da banda, afirma que
Women has been largely excluded from popular music-making and relegated to the role of fan. Women performers have been more prominent in commercial ‘pop’ and ‘folk’ then in ‘rock’, but their place in all these worlds has been predominantly that of vocalist rather than instrumentalist. A range of material and ideological forces have kept women in this circumscribed space. Those few women who have become musicians have somehow managed to find a way through these constraints.57
56
MITCHEL, Juliet. Women: The longest revolution. N.York: New Left Review, 1966. p. 22. BAYTON, Op. Cit. p.177. Em tradução livre, “Mulheres têm sido amplamente excluídas dos fazeres da música popular, e relegadas ao papel de fãs. Performers femininas têm sido pais proeminentes na música pop comercial e no folk do que no rock, mas seus espaços em todos esses mundos têm sido predominantemente como vocalistas, e não como instrumentistas. Uma amplitude de forças materiais e ideológicas manteve as mulheres nesse espaço cinrcunscrito. As poucas mulheres que se tornaram musicistas conseguiram, de alguma maneira, encontrar caminhos para além desses obstáculos”. 57
58
Para analisar de que formas pode-se abordar a discografia da banda em busca dessas “way through these constraints”, é necessária uma discussão metodológica sobre o uso da música como fonte primária em um trabalho historiográfico, associada à abordagem de gênero tomada por este trabalho. John Shepherd faz uma associação nesse sentido em seu livro “Music as social text”, que afirma que da mesma maneira que não é possível estudar processos sociais de maneira independente das questões de gênero, não é possível estudar as questões de gênero de maneira independente das questões sociais, o que influi diretamente ao se tratar de questões de gênero na música, particularmente ao se trabalhar no sentido de retificar um “silêncio” social através desse estudo:
Rectifying a silence involves not only contextualizing a new body of knowledge (or, more accurately, a new, public body of knowledge) within the pre-existing intellectual terrain. It also involves renegotiating the pre-existing intellectual terrain in such a way that the new body of knowledge can be accommodated appropriately. The study of gender does not simply involve the study of women. Neither does it simply involve the addiction of the study of women to the study of men. It involves a reconceptualization of the study of humanity so that the rectification of this particular silence (itself a consequence of a particular political agenda) results in a different understanding of the social world. To study the situation of women is, in other words, to challenge the political domination of men. As moments of sociality, music and its study have been shot through the consequences of this dominance. This chapter argues that occupying a position within the structures of industrial societies not totally dissimilar to the traditionally occupied by women, music has been subject to similar processes of control and domination.58 58
SHEPHERD, John. Music As Social Text. Londres: Publity Pr, 1991. P. 153. Em tradução livre, o trecho afirma: “Retificar um silêncio envolve não somente contextualizar um novo corpo de saber (ou, mais especificamente, um corpo de saber novo e público) dentro do terreno intelectual pré-existente. Isso também envolve renegociar esse terreno intelectual pré-existente de modo a que esse novo corpo de saber possa ser apropriadamente acomodado. O estudo de gênero não envolve simplesmente o estudo das mulheres. Da mesma forma, não envolve simplesmente a adição do estudo das mulheres aos estudos dos homens. Envolve uma reconceitualização dos estudos de humanidades para que a retificação desse silêncio (ele próprio uma conseqüência de um concepção política) resulte em uma compreensão diferenciada do mundo social. Estudar a situação de mulheres é, em outras palavras, desafiar a dominação política de homens. Como momento de socialização, a música e seus estudos têm sido atingidas pelas conseqüências dessa dominação. Esse capítulo argumenta que ao ocupar uma posição não totalmente
59
Desse modo, Shepherd classifica a música como um momento de socialização, e, como tal, associa sua compreensão à de processos sociais mais amplos, como, no caso, a dominação de gênero exercida por homens. Porém, em trecho já apontado, Butler responde que os processos sociais não decorrem simplesmente de uma relação binária de dominação homem-mulher. A respeito dessa, Butler afirma que
O poder parecia ser mais do que uma permuta entre sujeitos ou uma relação de inversão constante entre um sujeito e um Outro; na verdade, o poder parecia operar na própria produção dessa estrutura binária em que se pensa o conceito de gênero. Perguntei-me então: que configuração de poder constrói o sujeito e o Outro, essa relação binária entre ‘homens’ e ‘mulheres’, e a estabilidade interna desses termos? Que restrição estaria operando aqui? (...) Qual a melhor maneira de problematizar as categorias de gênero que sustentam a hierarquia dos gêneros e a heterossexualidade compulsória? Considere o fardo dos ‘problemas da mulher’, essa configuração histórica de uma indisposição feminina sem nome, que mal disfarça a noção de que ser mulher é uma indisposição natural.(...) Embora afirmar a existência de um patriarcado universal não tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a noção de uma concepção genericamente compartilhada das ‘mulheres’, corolário dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil de superar.59
Assim, temos a concepção de que a idéia de hierarquização social universal entre masculino e feminino é uma idéia que atualmente já não conta com muita aceitação por pressupor uma noção de universalidade entre as mulheres, entendendo-as como uma categoria estável e cristalizada dentro de um sistema binário. Ao pressupor que esse binário homem-mulher seja ficcional, ocorre um deslocamento do espaço discursivo de disputas de poder, que sai do simples masculino oposto a feminino e, ainda segundo
dissimilar às tradicionalmente ocupadas por mulheres dentro das estruturas de sociedades industriais, a música tem sido sujeito a processos similares de cultura e dominação”. 59 BUTLER, Op. Cit. p.8-11.
60
Butler, translada a uma noção de que há diversos papéis – e múltiplas masculinidades e feminilidades, hierarquicamente estruturadas dentro de meios sociais. Aqui, a abordagem desse trabalho retorna o diálogo com Shepherd para, dessa vez, concordar com a idéia de música como espaço de socialização – e, consequentemente, espaço de disputas de poder e hierarquizações de gênero. Mas de que maneira a música, e mais especificamente a música popular, como meio discursivo e performativo pode ser adotada em um trabalho que pretenda analisá-la dentro dessas categorias? Com que abordagens a desse trabalho pode dialogar nesse intento? De maneira um tanto generalizante, a autora Eliane Robert Moraes, em seu artigo “a Musa Popular Brasileira” afirma em sua abordagem do tema, que
“Quem canta seus males espanta” – diz um velho ditado popular, provavelmente na tentativa de desvendar este poder mágico do canto, que aciona no ser humano outro tipo de prazer: o imaginário. Assim, o momento da música parece ser, na maioria das vezes, caracterizado por uma espécie de transição para o extraordinário: a possibilidade da fruição. O canto tenta dizer o interdito.60
Se por um lado a abordagem adotada por Moraes generaliza o canto como uma tentativa de discurso velada, há por outro lado o estudo “Bossa Nova” de Brasil Rocha Brito (presente na compilação de Augusto de Campos “Balanço da Bossa” que trata sobre a música moderna no Brasil) onde o autor apresenta uma abordagem que aponta para uma disposição a seu modo destoante à de Moraes:
Os textos cantados não são valorizados apenas pelo que conteriam como expressão de idéias, pensamentos, ou por obedecer o verso de uma forma determinada. Incorpora-se a esses aspectos o valor musical portado pela palavra. Os atributos psicológicos que surgem ao se cantar 60
MORAES, Eliane Robert. A Musa Popular brasileira. In: BARROSO, Carmen, e COSTA, Albertina. Mulher Mulheres. São Paulo, Cortez, 1983. p. 55-56.
61
a sílaba, o vocábulo, são considerados em sua totalidade e complexidade. A palavra cantada ganha um valor pelo que representa como individualidade sonora.61
Ainda assim, apesar acrescer à metodologia a ser adotada a valorização de uma individualidade do discurso da voz cantante, e, por sua vez, por ser portadora de um discurso, produtora de identidade, o autor atém-se aqui a apenas (embora suficientemente) ao uso da palavra cantada. Mantém-se evidente o problema de trabalhar com a produção musical na amplitude de seus horizontes discursivos e performáticos. O já referido texto de Marcos Napolitano, “A História Depois do Papel” traz uma sucinta análise de apropriações de música como fonte primária nos estudos da história até então, além de apontar diversas problemáticas e metodologias para o uso da música popular como fonte primária de maneira a abarcar nas análises diversos elementos discursivos, centrando sua atenção principalmente na musicalidade propriamente dita do fonograma, às texturas, ritmos e outros elementos musicais que o compõe. Ao traçar uma genealogia dos trabalhos que define como estudos sobre a música popular, o autor afirma que No campo dos “estudos em música popular”, os historiadores de ofício mais uma vez chegaram atrasados. A área de Letras e as Ciências Sociais já haviam descoberto a canção e consagrado algumas abordagens antes dos historiadores utilizarem a música como uma fonte para a História. Aqui não estamos considerando a vasta produção das “Histórias da Música”, erudita ou popular, muitas vezes escritas por jornalistas diletantes ou eruditos.62
Conforme apontado por Napolitano, desde a década de 1970 começaram a traçar-se trabalhos historiográficos como os de José Ramos Tinhorão, historiador e
61
BRITO, Brasil Rocha. Bossa Nova. In: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.. p.34 62 NAPOLITANO, Op.Cit. p. 254-259.
62
crítico musical, que se constituíam como uma tentativa de estabelecer uma historiografia da música popular mais ancorada em fontes primárias, em sua maior parte das fontes de natureza escrita, que permitiram ao autor e a trabalhos influenciados por sua abordagem apontar discussões de ordem sociológica e ideológica que são muitas vezes desvinculadas da análise do material musical e artístico. Por isso, a abordagem de Napolitano segue afirmando que
Obviamente, não se trata de menosprezar as fontes escritas não-musicais para o estudo da música, sobretudo a música popular, mas de destacar a importância da incorporação do material musical em forma de partitura, fonograma ou vídeo pelos historiadores, operação que não é tão simples do ponto de vista metodológico. No caso da música popular, uma mesma canção assume significados culturais e efeitos estético-ideológico diferenciados, dependendo do suporte analisado (...) Na análise da chamada ‘música popular’ produzida pela indústria fonográfica e audiovisual, a questão das fontes coloca-se de outra maneira. O suporte privilegiado de boa parte da produção musical urbana, voltada para o mercado, é o fonograma.
Nesse ponto, o presente trabalho adota a metodologia apontada por Napolitano: conforme já apontado anteriormente, o uso dos fonogramas como fonte primária foi aqui adotado aqui, voltando a questão a como interpretar, ou, como aponta Lucién Febvre, faze-los falar o que não dizem por si sós? Essa questão, por sua vez, remonta a outra: Que abordagens já foram tomadas nesse sentido? No Brasil, a área de Estudos Literários e as Ciências Sociais consagraram certas formas de analisar a canção ainda nos anos 1970 que acabaram influenciando os primeiros trabalhos historiográficos: a primeira destacou o parâmetro poético da canção – a ‘letra’ – o foco privilegiado de análise, enquanto a segunda enfatizou o estudo dos atores sociais envolvidos na criação, produção e consumo da música. Em muitos trabalhos de análise histórica por meio da canção, a ‘letra’ funciona como simulacro de um documento escrito – crônica de época ou tentativa de crítica social feita por um autor –, sendo analisada em sua significação puramente verbal, com alguns elementos de análise poética. Os historiadores, lentamente, vêm tentando encontrar caminhos
63
próprios de análise, na medida em que não têm formação em crítica literária/poética, nem são treinados em pesquisas de campo e conceitos sociológicos, correndo o risco de fazer péssima análise poética e má sociologia. Sem falar da dificuldade para quem não tem formação em música, na análise da linguagem musica, escrita em partitura ou registrada em fonograma. Para complicar ainda mais a situação, a área de musicologia não se pautou pela reflexão sistemática em torno da canção urbana e comercial enfatizando o estudo da tradição erudito ou ‘folclórica’ (bases da etnomusicologia atual). A música popular como um todo, e a canção em particular, até bem pouco tempo ficou órfã de reflexão teórico metodológica mais consistente e ampla. 63
Tomando por imperativo que as questões de análise poética levantadas não são pertinentes a nesta abordagem – além de considerar-se a imperícia do autor para realizá-las com destreza –, toma-se por imprescindível remontar aos procedimentos apontados anteriormente, que indicam a leitura de outras linguagens e outros discursos presentes no fonograma. O texto de Napolitano aponta, adiante, questões pertinentes a essa abordagem: A questão central é que, em que pese a estrutura interna da obra e as intenções subjetivas do compositor, o sentido social, ideológico e histórico de uma obra musical, reside em convenções culturais (...) O sentido sociocultural, ideológico e, portanto, histórico, intrínseco de uma canção é produto de um conjunto indissociável que reúne: palavra (letra); música (harmonia, melodia, ritmo); performance vocal e instrumental (intensidade, tessitura, efeitos, timbres predominantes); veículo técnico (fonograma, apresentação ao vivo, videoclipe). Particularmente, para o caso de a pesquisa histórica, defendemos essa última abordagem, pois ela permite situar uma canção objeto da cultura, não isolando aspectos literários, lingüísticos ou tecnológicos que podem ser muito importantes em outras áreas de pesquisa”.64
Em suma, além de apresentar a prudência para evitar o uso das fontes como mera crônica de época transmitida através da letra, são pontuados procedimentos metodológicos que até aqui vêm sendo ou serão seguidos nesse trabalho, como a adoção
63 64
Idem. Idem.
64
de fonogramas como fonte para o estudo da música popular (as apresentações ao vivo das músicas analisadas e videoclipes sugeridos como fonte não cabem a esse estudo: a banda não publicou em fonograma versões ao vivo das canções analisadas em sua discografia, e não gravou videoclipes para essas canções); a apropriação de diversos elementos musicais como harmonia, melodia, ritmo e tessituras, relacionando-as; a não limitação do uso da palavra cantada, a ‘letra’, como referência. Ainda tratando dos procedimentos metodológicos para essa abordagem, a pertinência ao contexto histórico trabalhado faz-se fundamental, sendo descrita como
Ainda do ponto de vista da abordagem, há uma regra básica para a análise da canção como documento histórico: delimitar historicamente o fonograma ou partitura analisados. Se o pesquisador se propõe a analisar a canção Aquarela do Brasil como monumento do Estado Novo, é preciso ir diretamente à gravação coetânea, aos marcos cronológicos da pesquisa, à fonte ‘de época’, como se diz: a gravação clássica de Francisco Alves, em 1939. Qualquer outra gravação dessa mesma canção, mesmo apresentando a mesma letra, a mesma melodia e harmonia, não permitirá uma análise histórica acurada. Nada impede o historiador de analisar as diversas releituras de uma canção, mas sempre as relacionando com as questões mais amplas do período e do objeto em questão da pesquisa.65
Esse procedimento impede a adoção, neste trabalho, das versões ao vivo das canções gravadas em 2006, na turnê de retorno da banda: conforme afirmaria Novais, trata-se de uma análise anacrônica ao escapar – de longe – do período histórico delimitado: trata-se das canções em um contexto bastante diferente. Prosseguindo com os procedimentos metodológicos apontados pelo autor, temos por fim a audição sistemática da canção:
No plano dos procedimentos de análise, o documento fonográfico exige uma audição sistemática, repetida diversas vezes. Há o momento inicial 65
Idem.
65
da análise da fonte, na qual aqueles elementos indissociáveis, já aludidos, são momentaneamente decupados pelo pesquisador: letra, estrutura musical, sonoridades vocais e instrumentais, performances visuais e outros efeitos extra-musicais. Essa decupagem é puramente instrumental e provisória, pois o sentido de uma canção gravada deve ser buscado na rearticulação desses elementos, formando uma crítica interna ampla.66
Esse procedimento foi adotado na realização da análise aqui tomada. Toda a discografia da banda foi ouvida diversas vezes, e as canções que apontaram mais acentuadamente discursividades e performances voltadas à formação de identidades foram reavaliadas e decupadas conforme o procedimento apontado. Dentre essas, foram escolhidas quatro canções que serão associadas às inclinações performativas apresentadas no capítulo um. Essa opção se deu como uma maneira de poder aprofundar um pouco mais a análise de cada peça, visto que em toda sua carreira, os Mutantes registraram aproximadamente cem fonogramas. De toda maneira, esses procedimentos e embasamentos apontados por Napolitano coexistem com outras análises que apontam métodos bastante coerentes com sua abordagem, como é apresentado em “Aesthetic Decomposition”, de Joanna Hodge, “Understanding Humour and Music”, de Kendall Walton, e “Âncoras de Emoções”, de Maria Izilda Santos de Matos, onde, ao trabalhar com História e Música Popular, pretende
(...) dar historicidade ao acontecimento musical, fugindo de uma História da Música linear, ou até progressista, para discutir tensões entre vários aspectos como: o artista, sua formação, obra e produção; estilos e movimentos musicais; circuitos culturais, boêmios, e de sociabilidade; o consumo das canções, recepção e gosto musical como elementos constitutivos de diversos momentos históricos e estratégicos na construção das subjetividades.67
66
Idem. MATOS, Maria Izilda dos Santos de. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, EDUSC, 2005. 67
66
Apesar de adotar fontes primárias e categorias de análise divergentes às utilizadas aqui, a abordagem de Matos é concomitante na tensão de esquivar-se de uma história linear da música para “dar historicidade ao acontecimento musical”. Essas divergências, por outro lado, não cabem ao trabalho apresentado por Joanna Hodge, quando ela afirma que
The Theme, or Sentence, works as a construct of elements, made available by a certain style of music making, or language use, and the theme itself is understandable by contrast to other actual and possible sequence of such elements.68
Por esse mesmo viés, a afirmação é seguida pelo texto de Kendall Walton, complementar ao afirmar que, em desacordo com o que defende Matos,
To be interested in how a piece works, is not to be interested in listeners’ experiences, construed merely as experiences they have as results of listening to the piece. Their experiences are experiences of the music, and to understand them one must understand what they are experiences of – the music.69
Ou seja: não seria suficiente, então, entender o que os ouvintes interpretaram na música, ou, a compreensão de quem a escutou (mesmo por este não ser o principal
68
HODGE, Joanna. Aesthetic Decomposition. In: KRAUSZ, Michael (org.). The Interpretation of Music. New York, Oxford United Press, 1995. p. 248. Em tradução livre, o trecho afirma que “O tema, ou sentença, funciona como um construto de elementos, que se faz disponível por um determinado estilo de fazeres musicais, ou uso de linguagem, e o próprio tema é compreensível pelo contraste com outras seqüências destes elementos, existente ou de possível existência.” 69 WALTON, Kendall. Understanding Humour and Music. In: KRAUSZ, Michael (org.). The Interpretation of Music. New York, Oxford United Press, 1995. p. 262. Em tradução livre: “Estar interessado em como uma peça musical funciona não significa ter interesse nas experiências dos ouvintes, construídas meramente como experiências que tiveram como resultados ao ouvir a peça. Suas experiências são experiências referentes à música, e para entendê-las, é preciso entender de que elas são experiências: de música”.
67
enfoque desta pesquisa), ou mesmo o que se passava na cabeça dos autores enquanto eles a registravam ou compunham: é preciso entender a música em si (ou seja, o fonograma, conforme aponta Novais), e os discursos e performances que a compõe, bem como as identidades que são formadas através dessas performances (conforme apontado por Butler). Dessa maneira, tendo apresentado a metodologia adotada e os conceitos básicos apontados, o trabalho pode agora debruçar-se sobre a parte restante da fonte primária: as músicas.
68
2.1 – Senhor F.
O senhor F Vive a querer Ser Senhor X Mas tem medo de nunca voltar a ser o senhor F outra vez. O Senhor X É o herói Que na TV Nunca perde o seu chapéu, e faz o senhor F sonhar Sonhar em ter Pros outros ver Olhos azuis Ter um carro igual ao de X E conquistar a mulher do patrão Dê um chute no patrão Você também Quer ser alguém - Abandonar Mas tem medo de esquecer o lenço e o documento outra vez.
A canção “Senhor F”, de autoria dos Mutantes, data de 1968 e pode ser encontrada no primeiro LP da banda, “Os Mutantes”70. Neste contexto, foi escolhida para representar um conjunto de inclinações discursivas que constituem identidades de gênero bastante presentes neste período inicial da carreira discográfica da banda. Os elementos que levaram à sua escolha como exemplo das performances que Arnaldo, Sérgio e Rita adotaram durante esse momento são bastante objetivos: a canção não é uma das mais populares da banda, não é facilmente encontrada em compilações de sucessos, não é uma das mais apreciadas pelos fãs e não tem relevância histórica de destaque em relação a outras canções dessa fase, mas apesar disso, traz uma grande carga discursiva que alude a uma crítica social estática, conforme apresentado no
70
Para não gerar confusões acerca de nomenclaturas, explico: o primeiro álbum da banda, de 1968, chama-se “Os Mutantes”, enquanto o segundo, de 1969, chama-se “Mutantes”. A exclusão do artigo definido pode ter uma grande diversidade de significados, que podem ser discutidos em trabalhos futuros.
69
primeiro capítulo. Como se discutirá adiante, o conteúdo dessa crítica não é particularmente notável enquanto exemplo de performance de gênero (muito embora apresente discussões acerca de diferentes masculinidades e de como
uma figura
feminina é equiparada a um bem de consumo aos olhos de um dos personagens), mas o fato de que ela está sendo feita por um determinado grupo de indivíduos em um determinado meio social certamente o é. A letra da canção, bem como alguns de seus elementos não-verbais, traz em sua estrutura interna (permeada por uma postura crítica) embriões de todas as inclinações de gênero seguintes tomadas pela banda: apresenta os elementos que posteriormente serão confrontados e traços da impessoalidade que será adotada em última instância. Um primeiro ponto a ser ressaltado é o fato de a composição ser de autoria da banda, o que é exceção no contexto de suas primeiras incursões no mercado fonográfico. Das onze faixas que compõe o primeiro LP da banda, apenas quatro são de sua autoria – e uma delas foi composta em parceria com Caetano Veloso. Esse dado pode ser tomado como um ponto desfavorável à tomada desta canção como exemplo, levando-se em conta o válido argumento de tratar-se de uma situação incomum dentro desse contexto: porém, ao interpretar uma canção de sua própria composição, a banda se faz presente em diversos níveis de autoralidade dentro do universo desta canção. Assim, ao desempenhar sua “performance crítica”, a banda tem a oportunidade de realizá-la com suas próprias palavras. O mote da canção orbita dois personagens que não têm nome, sendo referidos apenas por suas iniciais, ganhando assim um tom de impessoalidade. Essa impessoalidade facilita o processo de identificação do personagem com outras figuras reais ou ficcionais, o que realça a linguagem de crítica aberta não a um indivíduo
70
específico, mas a um modelo de conduta. Repare que ao não dar nomes específicos aos personagens, o campo de possibilidades de associações a esses modelos torna-se aberto em um leque bastante amplo: pode-se por exemplo, tratar-se de duas figuras brasileiras ou de outros países – ou uma brasileira e uma estrangeira, o que daria uma conotação de crítica bastante forte a segunda e terceira estrofes. De toda maneira, a respeito desses modelos de conduta, o veredicto dado pela última estrofe é o do medo, da impotência atribuída ao ou à ouvinte de abandonar esses padrões. A respeito do que aqui se atribui como valores relacionados a essa crítica, encontra-se referências bastante concisas no texto já referido de Fernando Novais, “Capitalismo Tardio e sociedade Moderna”, que refere-se ao Brasil daquela conjuntura histórica:
Alguns valores substantivos, o do trabalho como fim em si mesmo, ou o da necessidade de cuidados de si, ainda encontram amparo na industrialização acelerada, na mobilidade ascendente e até na modernização dos padrões de consumo. No entanto, outros valores modernos secularizados, como o da autonomia do indivíduo, o dos direitos do cidadão, o do desenvolvimento espiritual e do acesso ao mundo da cultura, não encontram pontos de apoio para se desenvolver. Ao contrário, colidem com os valores utilitários difundidos pelos meios de comunicação em massa.71
Curiosamente, o parágrafo citado de Novais parece referir-se exatamente aos mesmos temas abordados pela letra dessa canção, e com concepções parecidas acerca desses temas: repare como ambos acenam ao desejo da mobilidade social (o senhor F quer ser senhor X), aos padrões de consumo (o carro do senhor X e a mulher do patrão, apresentada como um desejo igual ao do carro, ou seja, de consumo), a falta de pontos de apoio para desenvolver suas ansiedades de crescimento (ao afirmar que “você
71
NOVAIS, Op. Cit. p. 643.
71
também quer ser alguém, abandonar, mas tem medo”) e aos valores utilitários difundidos pelos meios de comunicação em massa (o senhor X é o herói de televisão, que nunca perde o chapéu). Ao adotar essa postura crítica, a banda adota discursos que a caracterizam identitariamente – não só pela letra da canção, mas por diversos de seus elementos musicais e tessituras, além de sua interpretação vocal. Apresentando a canção com um arranjo referente à música popular norte americana da década de 40, com fortes influências de jazz tradicional (principalmente pelos arranjos de metais que dialogam em frases curtas e ajudam a tecer o campo harmônico, pelos fraseados de piano característicos do jazz tradicional anterior ao jazz moderno inaugurado pelo estilo bebop, pelo andamento das estrofes que obedece ao compasso 7/4, e, por fim, pela levada de bateria que marca a batida na tercina, forte característica do jazz tradicional e da maioria de seus subgêneros posteriores) e dos musicais dançantes (pelas vocais harmonizados e dialogados e pela melodia alegre, em escalas maiores) e que ao final, com um final falso e arranjos de metais dissonantes, junto à guitarra elétrica e ao vocal distorcido por efeitos de estúdio remetem à psicodelia nos moldes apontados pelos Beatles no ano anterior, a banda acaba por delinear uma identidade adequada aos padrões do grupo tropicalista do qual faziam parte. Os vocais da canção assumem, por sua vez, um caráter descontraído que combina com a melodia alegre que a música toma, ao passo que ao cantar o refrão “dê um chute no patrão”, tornam-se mais fortes e impositivos. Os membros da banda tecem assim discursos não somente através das suas palavras, mas através de todos os elementos musicais e líricos que compõem a canção, no sentido de assumir uma postura de gênero que os define como jovens críticos de determinados valores sociais com os
72
quais não se identificam – ao referir-se aos personagens pelo termo “senhor”, apontam a formalidade com a qual seus discursos não condizem – e da impossibilidade de causar-lhes mudanças. Onde essa constituição identitária dialoga com as relações de gênero? A canção apresenta a formação de duas diferentes masculinidades (a do personagem “F”, e a do personagem “X”), além de uma apontar uma figura feminina (a “mulher do patrão”). Esse processo formativo se dá de maneira visivelmente atrelada a uma hierarquia social, onde o homem hierarquicamente superior em sua posição social é também hierarquicamente superior em sua masculinidade. O personagem em situação de inferioridade anseia atingir a masculinidade de seu antagonista através de conquistas sua posição social. Essa circunstância dialoga com a afirmação já apontada de Butler de que a hierarquização social não se dá simplesmente através da dicotomia masculino-feminino, mas através das relações entre masculinidade e falta de masculinidade. No texto “A Dominação Masculina”, de Pierre Bourdieu, há também a descrição desse processo, ao afirmar:
Os efeitos da posição social podem, em certos casos, como os citados [referindo-se à pequena burguesia], reforçar os efeitos do mesmo gênero ou, em outros casos, atenua-los, sem nunca, ao que parece, chegar a anulá-los.72
Dessa maneira, os Mutantes realizavam uma prática de rejeição aos processos de formação de masculinidades de personagens pertencentes a um meio social pequeno-burguês, ao qual a banda, segundo Calado, pertencia. Ainda segundo Bourdieu, há processos interiores a esse espaço social que determinam em mulheres que
72
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de janeiro, Bertrand, 2002.p. 83.
73
dele fazem parte a “forma extrema de alienação simbólica”. Porém, aponta que as práticas que as façam
Deixar existir apenas para o outro, (...) isto é, apenas uma coisa feita para ser olhada, ou que é preciso olhar visando a prepará-la para ser vista, a converte de corpo-para-o-outro em corpo-para-si-mesma, isto é, de corpo passivo e agido em corpo ativo e agente. (...) a afirmação da independência intelectual, que se traduz também em manifestações corporais, produz efeitos em tudo semelhantes.73 Dessa maneira, pelos discursos trazidos pela letra da música e por seus componentes não-verbais, Rita enquadra-se, como parte do conjunto que compôs e cantou a obra, no que Bourdieu categoriza como afirmação de independência intelectual (pelas críticas transmitidas em meios verbais e pela capacidade de assimilação de linguagens musicais tão diversas e sofisticadas em uma produção estética nova). Essa consignação é uma performance de gênero enquanto a transforma de corpo-para-o-outro para corpo-para-si, processo dado ao criar uma identidade discursiva capaz criticar – embora incapaz de modificar – uma formação de masculinidades presente no meio social em que se encontra e ao apontar a identificação da única personagem mulher, a “mulher do patrão”, como um objeto que faz parte dessa formação, equiparada a um carro. De toda maneira, o veredicto final da canção indica uma frustração do interlocutor ou da interlocutora pela incapacidade de mudar essa situação, causada pelo medo. Esse impulso em busca de dinamizar uma situação estanque se fará mais presente adiante, na fase seguinte das performances da banda. O carro também.
73
Idem.
74
2.2 – Algo Mais.
Olha, meu irmão Vamos passear Vamos voar Dê a partida Acelere a vida Vamos amar. Ande depressa, A vida tem algo mais para dar Giro aflito, beijo e grito: Algo mais. Olha, meu irmão Vamos passear Vamos voar Vida no tanque Subiu no sangue Vida no ar. Giro aflito, beijo e grito: Algo mais.
A canção “Algo Mais”, também de autoria da banda, pode ser encontrada no segundo LP de sua discografia, o álbum “Mutantes”, de 1969, cuja capa foi analisada no capítulo anterior. Da mesma maneira que a capa apontava em sua textualidade visual para performances de gênero, essa canção o faz em seu fonograma. Um dos primeiros pontos a ser elencados em sua análise é o fato de a música ter sido composta como um jingle para a empresa de combustíveis Shell, tendo sido veiculada nacionalmente em uma massiva campanha de marketing via televisão. Ao ser contratados para tornar-se garotos-propaganda da marca, os Mutantes tiveram a oportunidade de expor a um público massivo as suas performances constituidoras de identidades através das quais
75
gostariam de ser conhecidos: tiveram a possibilidade e a responsabilidade de construir os papéis identitários que queriam representar. Essa canção faz parte desse contexto, e por isso foi escolhida como emblemática das inclinações de gênero desse período: foi possivelmente a canção na qual a banda teve que expor de maneira mais consciente seus discursos estéticos e intelectuais – o que, da mesma maneira que apontado anteriormente, pode ser lido como um processo de transformação de corpo passivo e agido para corpo ativo e agente. Contudo, neste segundo momento, as performances tomadas para a formação dessas identidades divergem das tomadas anteriormente em suas discursividades formativas. Mais ao final desse tópico, esse processo será dialogado com identificações de gênero conforma apontadas por Butler – mas antes, é pertinente uma análise de seus elementos constitutivos. As inquietações causadas por essa faixa não se limitaram ao seu conteúdo discursivo: ela foi também utilizada como um elemento discursivo por si próprio. Ao lançá-la em disco, os Mutantes causaram mais uma das polêmicas com as quais a essa altura já estavam habituados. Conforme afirma Carlos Calado em seu “a divina comédia dos Mutantes”.
Provocativa também era a inclusão no disco de Algo Mais, um jingle que o trio acabara de compor para uma campanha da Shell. Naquela época, as músicas feitas para publicidade ainda eram vistas como uma atividade inferior e mercenária, que nada teria a ver com a verdadeira ‘arte musical’. Mas os Mutantes não deram a mínima para esse preconceito. Fizeram a canção com a mesma atitude e compromisso musical que tinham com qualquer outra peça de seu repertório. Prevendo a polêmica, a Phillips acabou incluindo na contracapa do LP um texto do jornalista Nelson Motta, que defendia a atitude contemporânea dos garotos.74
74
CALADO, Op. Cit. .p 156
76
Dentro dessa postura tomada pela banda, pode-se começar a entender a conjuntura de suas atitudes nesse momento: a busca por independência, o enfrentamento dinâmico do que infringisse suas liberdades, a ruptura – dessa vez funcional – com os valores que até então criticavam de maneira estática75. Sintomaticamente, ao se pensar nessa busca por independência e construção de uma identidade musical mais sólida é a inclusão de nove composições autorais no disco, muito mais numerosas do que as quatro presentes no primeiro. Nesse momento, então, novas atribuições constituíram-se como momentos de definição de discursos e, consequentemente, identidades para a banda: apresentar sua imagem por vídeo e som na campanha publicitária da Shell, compor a grande maioria das canções de seu álbum e sustentar os elementos performáticos apresentados anteriormente. Pode-se perceber no mencionado texto de Nelson Motta (presente na contracapa do disco) a maneira como os Mutantes faziam desses enfrentamentos definidores de suas identidades midiáticas e musicais:
Com raro sentido de invenção e liberdade, eles compuseram um jingle para a Shell. É preciso ter coragem de ouvir claro e saber com certeza que aquele som é novo, limpo, inventivo e livre. Mas ainda há gente que tem arrepios ao ouvir a palavra jingle e se horroriza com a idéia de ganhar dinheiro com música, embora ganhe muito dinheiro com música. Quem vive numa sociedade de consumo tem duas alternativas: ou participa, ou é devorado por ela. Não há saída fora desta opção. O jingle dos Mutantes, que prefiro chamar simplesmente de ‘música’, é melhor, infinitamente melhor, que a maioria das canções que andam pelas praças e paradas. Por que não gravá-la em disco?
Como descrito por Motta, o som proposto aqui pela banda é “novo, limpo, inventivo e alegre”, bem como a letra cantada. É cantada com uma grande variação de
75
Uso aqui – e adiante – o conceito de “estática” em oposição ao conceito de “dinâmica”, com fim de acentuar a diferença entre as críticas apresentadas nesse período, que têm por via de regra a incapacidade de gerar mobilidades hierárquicas, bem com mobilidades físicas: é o caso da canção analisada anteriormente, ao indicar que o movimento de “abandonar” não ocorre em função do medo. Por outro lado, esta canção não remete a essa incapacidade, remete-se a “passear”, “rodar”.
77
intensidade, do vocal quase sussurrado da estrofe, até o gritado “algo mais” do refrão, que reafirma sua força musical. Repare que a letra da música apresenta um caráter iminentemente dinâmico: fala sobre locomover-se, sobre “dar a partida, acelerar a vida”, que contrasta fortemente com a situação proposta na canção anterior, onde o personagem F deseja um carro que não tem. O carro, antes apresentado como um elemento de desejo virtualmente irrealizável e associado a uma identidade de gênero hierarquicamente inferior, é apresentado neste segundo momento como uma realidade táctil que dialoga com um conceito de liberdade, com o conceito de corpo ativo e agente conforme apresentado por Bourdieu. Prosseguindo por essa leitura, ambas as canções falam diretamente com o ou a ouvinte: porém, na primeira, o elemento interlocutor é criticado por “querer ser alguém, abandonar, mas ter medo”, ao passo que na segunda o ouvinte é convidado a “dar a partida”, andar depressa. Enquanto na primeira letra os elementos externos são expostos como apresentadores de uma frustração, parte de uma vida que está fora do alcance, na segunda o ouvinte é lembrado que “a vida tem algo mais para dar”, mas que depende da formação dessa vida como corpo agente. Os elementos de construção musical também remetem-se a essa dinâmica: a canção é mais rápida, mais fluida (efeito causado por sua batida mais reta e menos sincopada, por suas linhas de contrabaixo marcadas no tempo forte do andamento de 4/4 com as notas tônicas do campo harmônico) e mais dançante. A guitarra aparece com seu timbre fortemente distorcido (efeito provavelmente obtido através do uso de um pedal de Fuzz), principalmente no refrão, discurso que contribui com o tom de rebeldia juvenil que se associava à distorção de guitarras naquele momento – hoje, mesmo bandas de música tradicional e de música infantil utilizam frequentemente as guitarras
78
elétricas, que perderam em muito sua matiz rebelde. De toda maneira, Calado aponta que Sérgio Dias chegou a ser injuriado e apedrejado nas ruas por andar com uma guitarra elétrica. De qualquer forma, percebe-se fortemente as cargas performáticas presentes nestes usos instrumentais, que, uma vez que causavam polêmica e revolta em segmentos da população, condizem com estratégias apontadas por Butler quando esta afirma que Como estratégia apontada para descaracterizar e dar novo sentido às categorias (...), descrevo e proponho uma série de práticas parodísticas baseadas em uma teoria performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, ocasionando sua re-significação subversiva e sua proliferação além da estrutura binária.76
Pode-se aqui contra-argumentar que essas performances musicais não estavam relacionadas com a categoria sexo apontada por Butler. Deve-se então levar em consideração todo o longo histórico de associações entre a música rock e a sexualidade (apontada pertinentemente por Simon Frith em obras como Sound Effects77) e a vaia que Calado afirma que direcionou-se a Sérgio quando este subiu ao palco com uma guitarra no Festival Internacional da Canção: “Bicha, Bicha, Bicha...”. Esta vaia foi incluída ao final deste segundo disco dos Mutantes. O quão definidora de um papel de gênero que se faz ausente da mencionada estrutura binária essa inclusão pode ser? De que maneira esses papéis foram sustentados e reafirmados? Através das “performances de afirmação”, exemplificadas aqui através da releitura da canção “Rua Augusta”.
76
BUTLER, Op. Cit, p.11 FRITH, SIMON. Sound Effects. Youth, Leisure, and the Politics of Rock'n'Roll. New York, Pantheon Books, 1981. Trata-se de uma obra altamente referenciada no estudo da música rock, que define a existência de relações bastante estreitas entre sexualidade e rock, principalmente neste período abordado. 77
79
2.3 – Rua Augusta
Entrei na Rua Augusta a cento e vinte por hora Deixei a turma toda do passeio pra fora Fiz a curva em duas rodas sem usar a buzina Parei a quatro dedos da vitrina (...legal!) Bye, bye Johnny, Bye bye, Alfredo: Quem é da nossa gang não tem medo. Meu carro não tem luz, não tem farol, não tem buzina Tem três carburadores, todos os três envenenados Só paro na subida quando acaba a gasolina Só passo se tiver sinal fechado.
A canção “Rua Augusta”, presente no quinto disco dos Mutantes, “Mutantes e Seus Cometas No País dos Baurets” (cuja capa também já foi previamente analisada no primeiro capítulo), não é de autoria da banda. Apontada por Carlos Calado como um “clássico do rock nacional, que recebeu uma versão debochada”, Rua Augusta é, em sua versão original, um rock que segue a estética padrão da jovem guarda, composto por Hernê Cordovil. Assim como decorrido na última canção analisada, o fonograma dos Mutantes para “Rua Augusta” traz discursos de gênero fortemente associados com a capa do disco. A canção, com a voz principal cantada por Rita, dialoga com todo o momento vivido pelos Mutantes que se associa fortemente à terceira inclinação de gênero apontada no capítulo anterior: a “performance de afirmação”. Partindo de um momento em que já haviam adotado firmes ações de ruptura para com os valores e instituições de que discordavam, os Mutantes alcançaram conquistas que precisaram ser reafirmadas e sedimentadas: conforme já apontado anteriormente por
80
Butler, uma aparente cristalização de papéis de gênero se dá a partir de práticas insistentes:
Como uma prática discursiva contínua, o termo [gênero] está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria ‘cristalização’ é uma prática insistente e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. (...) O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.78
Dessa maneira, fez-se necessário para a cristalização de suas performances de gênero delineadas a partir das inclinações anteriormente citadas a reafirmação desses valores e dessas identidades. No caso desta canção, as discursividades tomadas como afirmação dos papéis de gênero se deram novamente em palavras cantadas e em elementos de construção musical. Um aspecto a ser considerado é que trata-se de uma adaptação de uma canção que foi feita para traduzir fazeres completamente voltados a papéis de gênero iminentemente masculinas em seu ambiente original, que aqui foi adaptada à voz de Rita sem nenhuma alteração na letra. Dessa maneira, a personagem feminina está adotando as práticas parodísticas “baseadas em uma teoria performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade”, conforme apontou Butler, ao adotar esses fazeres supostamente masculinos, da mesma maneira que a banda parodia a versão original da canção em sua versão “debochada”. Por sua vez, para os rapazes da banda, a canção também funciona como uma afirmação de seus discursos de gênero, uma vez que reafirmam os ideais de rebeldia com os quais eles
78
BUTLER, Op.Cit. p.59
81
vinham construindo uma forte identificação, através de suas atitudes interiores e exteriores à música. Para acentuar essas performances, todos cumpriram seus papéis: em seus vocais, Rita adotou um tom bastante agudo, marcadamente associado a voz feminina, como uma maneira de exaltar o fato de que era sim uma mulher que estava vivendo aquelas rupturas e transgressões; já os vocais de apoio acentuavam a coletividade sugerida no refrão (“quem é da nossa gang não tem medo”) e eventualmente respondendo às transgressões narradas pela voz principal de maneira assertiva (“...legal!”). Por sua vez, o instrumental é marcado por fortes influências da black music norte americana, com acentos fortes referentes aos grooves característicos da Soul Music e do Funk. Esses gêneros ganhavam progressivamente espaço nos meios musicais norte-americanos, e eram muitas vezes associados a movimentos negros voltados ao Black Power e os Panteras Negras. Essa apropriação pode ser tomada por parte da banda como uma maneira de reafirmar sua rebeldia, associando a releitura da canção a estilos que, naquele momento, faziam-se mais relacionados a posturas rebeldes do que o rock de jovem-guarda que caracteriza a versão original. Ao encarar a transformação da canção a partir desse pressuposto, percebe-se uma mudança de discurso estético que não reflete uma mudança do discurso identitário: a alteração nos arranjos vem como uma maneira de manter seu impacto, de atualizar sua identidade. Sobre isso, a autora Suely Rolnik afirma em seu texto “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização” que
A globalização da economia e os avanços tecnológicos, especialmente a mídia (...) aproximam universos de toda espécie, situados em qualquer ponto do planeta, numa variabilidade e numa densificação cada vez maiores. As subjetividades, independentes de sua morada, tendem a ser povoadas por afetos dessa profusão cambiante de universos; uma
82
constante mestiçagem de forças delineia cartografias mutáveis e coloca em cheque seus habituais contornos. (...) Essa nova situação, no entanto, não implica forçosamente o abandono da referência identitária. As subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna, ignorando as forças que as constituem e as desestabilizam por todos os lados, para organizar-se em torno de uma representação de si a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma essa representação.79
Assim, através de sua versão da jovem-guardista “Rua Augusta”, os Mutantes reafirmaram-se em suas construções identitárias de rebeldia e liberdade, e seus discursos e performances transformaram-se como uma maneira de cristalizar determinadas identidades propostas previamente, através da alteração de princípios estéticos para “atualizar” as propostas da banda. Essa estratégia foi uma das diversas discursividades musicais definidoras de identidade correntes na carreira dos Mutantes desde a sua fase tropicalista, e nesse disco foi apropriada diversas vezes, como é o caso dessa faixa. Porém, em sua fase seguinte, quando a banda se amolda aos padrões estéticos e discursivos do rock progressivo, essa passaria a ser virtualmente a única estratégia discursiva da banda: a adequação a uma estética sonora com a qual encontraram-se identificações. Em 1973, Rita Lee e os demais Mutantes rompem. Rita passa a se dedicar, primeiramente, à dupla Cilibrinas do Éden, para em seguida integrar outra banda, o Tutti Frutti, com quem teve uma produtiva, elogiada e rentável carreira durante a década de 70, quando partiu para suas incursões como cantora solo e como dupla de seu marido Roberto de Carvalho.
79
ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: Subjetividade em tempo de globalização. In LINS, Daniel (Org). Cultura e subjetividade: Saberes Nômades. Papirus, Campinas 1997. p. 19-20.
83
Os Mutantes, por sua vez, voltaram-se à estética do rock progressivo, a qual definiria toda sua carreira discográfica até seu último disco, em “Mutantes ao vivo”, em 1976.
2.4 – Tudo foi feito pelo Sol
Ande sempre para o sol Olhe sempre para o sol E tudo que você quiser, e tudo que você pensar será Iluminado como um sol, Brilhante como um sol. E tudo que você encontrar, e tudo que você amar será Iluminado como um sol. Viva sempre em sua luz Tudo foi feito pelo sol.
A saída de Rita pode ser vista como um marco de uma nova fase na carreira dos Mutantes. Conforme já mencionado, a partir de então, a banda passa a buscar identificações com os padrões estéticos das bandas de rock progressivo, passando por um processo de estabelecimento de uma nova identidade artística, constituição que envolveu diretamente todas as suas discursividades e performances de gênero que podem ser encontradas em disco. Em termos de linguagem, de palavra cantada, os pronomes e artigos femininos simplesmente sumiram do mapa. Não há mais notáveis referências diretas a personagens femininas nas letras das músicas. Por outro lado, há freqüentes referências a coletividades e a um “todo” universal, além de referências diretas ao ou à ouvinte em situação de interlocução – da mesma maneira como em
84
“Senhor F”, o primeiro fonograma analisado neste trabalho. Dessa maneira, pode-se argumentar que não se está referindo, nesses casos, a figuras especificamente masculinas ou femininas, mas que pretende referir-se a todas as pessoas, independentemente de questões de gênero. Esse é o caso da canção “Tudo Foi Feito Pelo Sol”, faixa-título do primeiro álbum lançado sob o nome da banda nessa nova fase, em 1974 – o álbum “O A e o Z” foi gravado em 1973, mas não foi lançado no período, vindo à luz do dia somente em 1992, já em formato CD. Nesta análise, a canção foi escolhida para representar esse período de inclinação à “performance impessoal” de gênero da discografia da banda por dois principais motivos: Em primeiro lugar, o fonograma apresenta de maneira bem clara as principais escolhas estéticas tomadas pela banda, trazendo em evidência suas características discursivas mais marcantes. Além disso, ela foi tomada como mote dentro do conceito do trabalho apresentado pela banda para caracterizar sua nova imagem frente ao mercado fonográfico em sua primeira incursão nessa nova fase: a idéia de que “tudo foi feito pelo sol” aparece conjugada como faixa-título (e faixa mais longa) do disco, além de ser referida em outros momentos do álbum; aparece também como nome do LP e como elemento central do conceito gráfico da capa. Bastante ao gosto das estéticas arquetípicas do rock progressivo, diversos elementos dentro de um álbum dialogam em torno de um mesmo conceito – idéia essa de certa forma avessa ao que se propunha em sua primeira fase, a de conjugar elementos estéticos e culturais dessemelhantes rompendo as fronteiras estilísticas, anseio tipicamente tropicalista. Ao se analisar a letra da canção, pode-se conceber que as frases cantadas no imperativo, como “ande sempre para o sol” e “viva sempre em sua luz” são referentes a um ou uma interlocutor ou interlocutora impessoal, e, consequentemente, sem gênero.
85
Da mesma maneira segue a maioria das canções desse período, de maneira que as análises de gênero tornam-se bastante imprecisas ao se tratar desses diálogos. Por outro lado, as estéticas sonoras são bastante precisas em suas referências. No fonograma “Tudo Foi Feito Pelo Sol”, escutamos o grande destaque das “camas sonoras” constituídas pelos teclados Hammond e Mini Moog com timbres bastante similares às referidas bandas de rock progressivo; da mesma maneira que os timbres agudos e com saturação em boost adotados pelas linhas de contrabaixo, os vocais agudos e harmonizados que remetem diretamente aos da banda inglesa Yes, bem como as marcações de bateria bastante fraseadas características desses mesmos padrões. Dessa maneira, a mudança discursiva das letras parece acompanhar uma mudança discursiva em todo o conjunto da identidade artística, que acompanha a caracterização de identidades de gênero. As masculinidades dos membros da banda parecem aqui se caracterizar dentro de um processo apontado por Antônio Carlos Miguel em seu texto “Em busca do aqui e agora” como tipicamente hippie, que no Brasil ganhou espaço nos anos 70, como conseqüência das possibilidades de aberturas de comportamento apontadas anteriormente por Novais em seu “Capitalismo tardio e sociedade Moderna”. Bom exemplo de texto que trata do tema é o de Heloísa Buarque de Holanda em seu “Impressões da viagem”80. Miguel, por sua vez, define esse processo a partir de um conjunto de Slogans e palavras chave:
Uma revolução individual. De dentro pra fora. A partir de cada um, o todo. Subvertendo as regras do sistema. Rompendo as amarras. Cabelos compridos. Orientalismo. Expansão da mente. Cada pessoa uma bandeira. O Nirvana aqui e agora. Muito som e sol. Curtir a pele. Viajar.
80
Hollanda, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de janeiro: Aeroplano, 2004. Trata-se de uma conceituada obra de referência acerca do tema.
86
Abandonar as cidades. Paz, amor e arroz integral. Vai por aí a trilha da contracultura tupiniquim.81
Por sua vez, Ana Maria Bahiana, em seu texto “Inocente desobediência civil”, posiciona as apropriações dessa identidade tomadas pela banda durante o período, relacionando-as às características de outras bandas de rock brasileiras atuantes durante o período: A característica mais básica da segunda geração roquenrol é levar-se a sério. O punhado de grupos que emergiu na seqüência da abertura provocada pelo Tropicalismo – Mutantes à frente (...), era a primeira leva a definir-se claramente, contra toda a oposição, como músicos de rock. Não pessoas que estavam ou não na moda, mas artistas que haviam feito uma opção por um estilo (...) Seu som começou pesado e acabou progressivo, obedecendo as marés que vinham de fora. Frequentemente, produziam um som híbrido de ambos, com a metaleira do pesado à solta nas guitarras, mas costurando longos temas onde todo mundo tinha um solo (...) e onde as letras falavam de esoterismos. (...)82
A respeito de uma reflexão posterior acerca dessas tendências e de como elas permeavam seus conceitos de identidade, o “Divina comédia dos Mutantes” traz uma declaração de Sérgio Dias ao jornal O Globo:
A gente foi vendo que não fazia sentido, que bastava colocar o um disco do Yes ou da Mahavishnu Orchestra do nosso lado, que eles davam um banho na gente. Estava faltando... não propriamente uma música das raízes brasileiras, não, não era bem isso. Era um... filtro brasileiro. Não renegar todas as coisas de rock, todas as informações lá de fora que a gente já tinha dentro de nós e que, afinal, eram verdadeiras porque faziam parte da gente. Era colocar tudo isso segundo um filtro brasileiro. Como Caetano Veloso. Caetano sempre fez isso.83
81
MIGUEL, Antônio Carlos. Em busca do Aqui e Agora. In: BAHIANA, Ana Maria (org). Rock: A música do século XX. Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1983. p.95-96. 82 BAHIANA, Ana Maria. “Inocente desobediência civil”. In: Rock: A música do século XX. Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1983. p.143-144. 83 CALADO, op. Cit.p. 322-323.
87
Lê-se, principalmente no trecho “...que a gente já tinha dentro de nós, e que, afinal, eram verdadeiras porque faziam parte da gente” uma inclinação a assumir essas informações como constituidoras de identidade, coerentemente com o que aponta Bahiana quando afirma que “falar de seu estilo de vida lhes parecia importante e suficiente”. Da mesma maneira, Rita Lee aponta essa tomada estética como questão de identidade em entrevista à revista International Magazine:
Eles vieram com uma coisa não machista, mas musical, mesmo. (...) Criou-se uma discussão nesse sentido, porque eu queria os Mutantes, gostava deles, mas eu os queria naquele esquema gostoso, continuando a coisa da gente. Fazendo solo com tampinha de garrafa, saca? Sabe: misturar, esculhambando com os clássicos da MPB; enfim, ser maldito. Mas eles queriam ser eruditos.84
A questão do uso da música como expressão de individualidade é bastante discutida em “Perspectives on Musical Aesthetics”, de John Rahn – e sua abordagem é coerente com a deste trabalho ao apontar as questões musicais a quem as produz, e não a quem as consome. De maneira sintética, o autor afirma que
Many who have approached the questions from another perspective, that of the producer of music rather than its receptors, have asserted that the value of music lies in its ability to function as a medium in which the producer can express himself. (…) Expression is often parsed as reference. Thus, music that expresses an emotion does so by referring to that emotion.85
84
FROÉS, Marcelo, e PETRILLO, Marcos. Entrevistas: International Magazine. Rio de Janeiro, Gryphus, 1997. 85 RAHN, John. Perspectives on musical Aesthetics. Nova Iorque, Norton & company, 1994.p. 57-58. Em tradução livre, “Muitas pessoas que abordaram a questão da música à partir de outro ponto de vista, de quem a produz ao invés de quem a recebe, tomaram a assertiva de que a música tem valor em sua habilidade de médium, através da qual quem a produz pode expressar a si mesmo. A expressão é frequentemente tida como referência. Por exemplo, a música que expresse uma emoção o faz referindo-se a essa emoção.”
88
Esse fazer é adotado constantemente durante essa fase da carreira da banda – a da expressão de si mesmo na música através de referências. Porém, como aponta Bahiana, essas referências dirigem-se quase que unicamente a seu modo de vida e suas e a estéticas que eram ambos reproduções de um padrão progressivo, conforme aponta Sérgio ao dizer que “Não eram os Mutantes que estavam progressivos: O mundo estava progressivo naquela época”. Por outro lado, Pierre Bourdieu, em seu texto já referido, aponta muitos dos elementos apresentados nessa letra – bem como em outras do disco – como sendo pertinentes a esquemas de pensamento binários (alto/baixo, claro/escuro, direita/esquerda, etc.) que naturalizam metaforicamente aparentes diferenças entre homens e mulheres, baseadas em estudos etnográficos que buscavam compreender sistemas de cognição de grupos humanos androcêntricos. Nas palavras do autor:
Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as ‘naturalizam’, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência. (...). Assim, não vemos como poderia emergir na consciência a relação social de dominação que está em sua base e que, por uma inversão completa de causas e efeitos, surge como uma aplicação entre outras, de um sistema de relações de sentido.86
Dessa forma, o autor associa conceitos organizados em estruturas binárias como significantes que referem-se a masculinidade e feminilidade. Por exemplo, tomando-se em conta o binário úmido/seco, a umidade se incorre como significante relacionado à idéia de feminino, enquanto o seco remete à idéia de masculino. Outros exemplos são os conceitos de fora (masculino e dentro (feminino), ou Cheio (masculino) e Vazio (feminino).
86
BOURDIEU, Op. Cit. p. 16-17.
89
Dentro destas associações de conceitos, ao buscar os termos utilizados na letra da canção, como “Sol”, “Luz”, “Andar” e “Iluminado”, são todos referentes a significantes de masculinidade. Se relacionarmos essas significações à passagem de uma demarcação identitária vivida pela banda, e a pensarmos como sendo feita, conforme o que foi apresentado anteriormente, através das discursividades presentes nas canções, temos aqui elementos que indicam formações de identidades que, possivelmente de maneira não-voluntária, não referem-se à uma neutralidade de gênero, mas a significantes inclinados a conceitos masculinos. De certa maneira, essas construções de identidade se relacionam, por seu afã de constituir
discursivamente tentativas cristalização de identidades previamente
apresentadas, com as “performances de afirmação” discutidas anteriormente. Porém, a diferença jaz nas estratégias discursivas que são adotadas para defini-las, além de que identidade elas visam construir. E quais eram, então, essas identidades? Partindo dessas referências adotadas, que são subscritas pelas declarações dos ex-membros da banda, transparece uma idéia de que os valores que estas performances pareciam excluir não eram os valores de gênero relacionados a feminilidades, mas sim as performances relacionados a identidades musicais menos eruditas e sofisticadas, bem como a identidades de gênero que, em sua fase liderada por Sérgio Dias, parecem refletir em diversos aspectos os valores traçados por Miguel e Bahiana – e apresentados por Bayton em seu texto já mencionado como diretamente ligados a papéis masculinos de gênero: música pesada e voltada a eruditismos87.
87
BAYTON, Op. Cit., p. 183-187 traz uma discussão mais ampla sobre que estéticas dentro da música pop são frequentemente associadas a papéis de gênero masculinos e femininos, voltando suas principais discussões às idéias do que classifica como “essencialismo musical” .
90
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como talvez não pudesse deixar de ser, os Mutantes transformaram-se com o passar dos anos, juntamente com seus componentes, discursos, suas performances – de gênero ou não – e identidades. Se o tempo foi (ou as pessoas ao passar do tempo foram) responsável por mudar o panorama enfrentado pela banda ao longo de sua carreira, também é justo afirmar que a própria banda construiu em sua discografia diferentes representações de si mesma através de imagens e sons para relacionar-se com esse panorama. Eram outras identidades, até outras pessoas: membros se foram, e mesmo os que ficaram possivelmente já não tinham as mesmas ambições, posturas, convicções e demonstram ter mudado suas opiniões sobre música... e sobre carros. A princípio, ao criticar valores sociais (caso do carro do Senhor X que proporcionaria um modelo de masculinidade inatingível para o Senhor F), converteram suas identidades, principalmente Rita, de “corpos para o outro” a “corpos para si”, e usaram essa postura crítica para atenuar ou reforçar suas características de gênero, conforme os conceitos apresentados por Bourdieu. Em seguida, afirmaram através de suas performances que era possível fazer conquistas e transformar o que antes apenas criticavam, afirmando como que em um comercial de televisão (e de fato o era) que a vida oferecia “algo mais”, papéis e identidades de gênero não subordinados ou hierarquicamente inferiores como o Senhor F citado previamente. A figura do carro já não apontava papéis de gênero
91
hierarquizados e imutáveis, mas a potencialidade de redefinição dos sujeitos subvertendo esses papéis. Para tal, seria necessário o que Butler define como “uma série de práticas baseadas em uma teoria performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, ocasionando sua re-significação subversiva”. A seguir, voltaram suas performances para a consolidação dessas identidades que haviam conquistado através de uma tentativa de cristalização de novos papéis de gênero, apontando ao que Butler resume como “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida”. E o carro, por sua vez, é uma ferramenta utilizada para realizar alguns desses atos. Ironicamente, talvez a última grande mudança sentida na discografia dos Mutantes seja a seqüência radical dessa tentativa de cristalizar-se em uma só identidade, uma só performance. Nela, já não parece do interesse de Sérgio e dos outros muitos membros que compuseram a banda nessa última fase definir-se através de papéis que remetessem diretamente à categoria gênero: talvez a descrição mais clara das identidades que os Mutantes construíram – ou esforçaram-se para construir – seja delineada, no texto de Bahiana, quando esta define o estereótipo das bandas de rock dessa “leva” da década de 1970:
Tudo o que faziam era em nome do rock: esse era o tamanho de sua devoção. Falar de seu estilo de vida lhes parecia suficiente e importante. Essa devoção, que os manteve vivos, foi, a longo prazo, a causa de sua morte.88
88
BAHIANA, Op. Cit, p. 144.
92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de, e WEIS, Luiz. “Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição da classe média ao regime militar”. In: NOVAIS, Fernando A. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia, Ano 1, nº1, maio de 1928. BAHIANA, Ana Maria. “Inocente desobediência civil”. In: Rock: A música do século XX. Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1983. BAYTON, Mavis. Feminist Musical Practice: Problems and Contradictions. In BENNETT, Tony (et al). Rock And Popular Music: Politics, Policies, Institutions. London: Routledge, 1993. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de janeiro, Bertrand, 2002. BRITO, Brasil Rocha. Bossa Nova. In: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1996.
93
DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995. FEBVRE, Lucien. La naissance de l´historiographie moderne. E BLOCH, Marc. FOUCAULT, Michel. L’Ordre du discourse: Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2 décembre 1970. Éditions Gallimard, Paris, 1971 FRITH, Simon. Sound effects: youth, leisure, and the politics of rock 'n' roll. New York: Pantheon Books, 1981. FROÉS, Marcelo, e PETRILLO, Marcos. Entrevistas: International Magazine. Rio de Janeiro, Gryphus, 1997. GALVÃO, Luiz. Anos 70: novos e baianos. São Paulo: Ed.34, 1997. GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. GOLDBERG, Anette. Feminismo em Regime Autoritário: a Experiência do Movimento de Mulheres no Rio de Janeiro. Trabalho apresentado no XII congresso mundial da Associação Internacional de Ciência Política, em 1982 HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº2, p. 15-46, jul./dez. 1997. HODGE, Joanna. Aesthetic Decomposition. In: KRAUSZ, Michael (org.). The Interpretation Of Music. New York, Oxford United Press, 1995. Hollanda, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de janeiro: Aeroplano, 2004. KRAUSS, Paulo. “O desafio de se fazer História com imagens: Arte e cultura visual”. In Artcultura v., n.12. Uberlândia, Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2006.
94
LE GOFF, Jacques. "Documento/ Monumento". In: História e Memória. 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p. 535-553. LEE, Rita. Build Up. São Paulo, Phillips, 1970. _______. Hoje é o Primeiro Dia do Resto de sua Vida. São Paulo, Phillips, 1973. MATOS, Maria Izilda dos Santos de. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, EDUSC, 2005. MIGUEL, Antônio Carlos. Em busca do Aqui e Agora. In: BAHIANA, Ana Maria (org). Rock: A música do século XX. Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1983. MITCHEL, Juliet. Women: The longest revolution. N.York: New Left Review, 1966 MOORE, Allan F; EBRARY, Inc. Analyzing popular music. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2003. MORAES, Eliane Robert. A Musa Popular Brasileira. In: BARROSO, Carmen, e COSTA, Albertina. Mulher Mulheres. São Paulo, Cortez, 1983. MOTTA, Nelson. Noites Tropicais - solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000. MUTANTES, Os. A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado. São Paulo, Phillips, 1970. _____________. Jardim Elétrico. São Paulo, Phillips, 1971. _____________. Mutantes. São Paulo, Phillips, 1969. _____________. Mutantes Ao Vivo. São Paulo, Som Livre, 1976. _____________. Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets. São Paulo, Phillips, 1972. _____________. O A e o Z . São Paulo, Phillips, 1990.
95
_____________. Os Mutantes. São Paulo, Phillips, 1968. _____________. Technicolor. São Paulo, Phillips, 2000. _____________. Tudo Foi Feito Pelo Sol. São Paulo, Som Livre, 1974. NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In:. PINSKY, Carla (org). Fontes históricas. São Paulo, Contexto, 2005. NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociedade moderna. História da vida privada no Brasil, volume IV, Companhia das Letras, 2000. PARANHOS, Adalberto. Saber e Prazer: A Música como recurso didático-pedagógico. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 1995. PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). In: Revista Brasileira de História. São Paulo, 2006, v.26, nº. 52 _____________. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh/Humanitas, vol.23, n° 45, 2003, p. 239-260. _____________. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História (São Paulo), v. 24, p. 77-98, 2005. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1992. PIMENTEL, Gláucia Costa de Castro. Mutações em cena: Rita Lee e a resistência contracultural. Revista Publicatio. UEPG, Ponta Grossa, 2003. p.7.
96
PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, 2002. RAHN, John. Perspectives on musical Aesthetics. Nova Iorque, Norton & company, 1994. RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA, Jorge, e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: Vol. 4 - O Tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: Subjetividade em tempo de globalização. In LINS, Daniel (Org). Cultura e subjetividade: Saberes Nômades. Campinas: Papirus, 1997. SHEPHERD, John. Music As Social Text. Londres: Publity Pr, 1991. SOUZA, Antonio Marcus Alves de. Cultura rock e arte de massa. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. SOUZA, Pedro de. Enunciação cantada: o sujeito feito nas vibrações corporais. IN: Revista de estudos poéticos e Musicais. Florianópolis, 2004. TATIT, Luiz. “O século da canção”. São Paulo: Ateliê, 2004 TAVARES, Carlos A. P. O que são comunidades alternativas. São Paulo: Brasiliense, 1983 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. WALSER, Robert (org). Running with the Devil: power, gender, and madness in heavy metal music. Middletown: Wesleyan University Press, 1993.
97
WEISS, Luiz, e ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de.Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. Coleção História da vida privada no Brasil, volume IV, Companhia das Letras, 2000. ZÉ, Tom. Tropicalista, lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003.
98