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2.3 “Rua Augusta”

2.2 – Algo Mais.

Olha, meu irmão Vamos passear Vamos voar Dê a partida Acelere a vida Vamos amar. Ande depressa, Avida tem algo mais para dar Giro aflito, beijo e grito: Algo mais. Olha, meu irmão Vamos passear Vamos voar Vida no tanque Subiu no sangue Vida no ar. Giro aflito, beijo e grito: Algo mais.

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A canção “Algo Mais”, também de autoria da banda, pode ser encontrada no segundo LP de sua discografia, o álbum “Mutantes”, de 1969, cuja capa foi analisada no capítulo anterior. Da mesma maneira que a capa apontava em sua textualidade visual para performances de gênero, essa canção o faz em seu fonograma. Um dos primeiros pontos a ser elencados em sua análise é o fato de a música ter sido composta como um jingle

para a empresa de combustíveis Shell, tendo sido veiculada nacionalmente em uma massiva campanha de marketing via televisão. Ao ser contratados para tornar-se garotos-propaganda da marca, os Mutantes tiveram a oportunidade de expor a um público massivo as suas performances constituidoras de identidades através das quais

gostariam de ser conhecidos: tiveram a possibilidade e a responsabilidade de construir os papéis identitários que queriam representar. Essa canção faz parte desse contexto, e por isso foi escolhida como emblemática das inclinações de gênero desse período: foi possivelmente a canção na qual a banda teve que expor de maneira mais consciente seus discursos estéticos e intelectuais – o que, da mesma maneira que apontado anteriormente, pode ser lido como um processo de transformação de corpo passivo e agido para corpo ativo e agente. Contudo, neste segundo momento, as performances tomadas para a formação dessas identidades divergem das tomadas anteriormente em suas discursividades formativas. Mais ao final desse tópico, esse processo será dialogado com identificações de gênero conforma apontadas por Butler – mas antes, é pertinente uma análise de seus elementos constitutivos. As inquietações causadas por essa faixa não se limitaram ao seu conteúdo discursivo: ela foi também utilizada como um elemento discursivo por si próprio. Ao lançá-la em disco, os Mutantes causaram mais uma das polêmicas com as quais a essa altura já estavam habituados. Conforme afirma Carlos Calado em seu “a divina comédia dos Mutantes”.

Provocativa também era a inclusão no disco de Algo Mais, um jingle que o trio acabara de compor para uma campanha da Shell. Naquela época, as músicas feitas para publicidade ainda eram vistas como uma atividade inferior e mercenária, que nada teria a ver com a verdadeira ‘arte musical’ . Mas os Mutantes não deram a mínima para esse preconceito. Fizeram a canção com a mesma atitude e compromisso musical que tinham com qualquer outra peça de seu repertório. Prevendo a polêmica, a Phillips acabou incluindo na contracapa do LP um texto do jornalista Nelson Motta, que defendia a atitude contemporânea dos garotos. 74

74 CALADO, Op. Cit. .p 156

Dentro dessa postura tomada pela banda, pode-se começar a entender a conjuntura de suas atitudes nesse momento: a busca por independência, o enfrentamento dinâmico do que infringisse suas liberdades, a ruptura – dessa vez funcional – com os valores que até então criticavam de maneira estática . 75 Sintomaticamente, ao se pensar nessa busca por independência e construção de uma identidade musical mais sólida é a inclusão de nove composições autorais no disco, muito mais numerosas do que as quatro presentes no primeiro. Nesse momento, então, novas atribuições constituíram-se como momentos de definição de discursos e, consequentemente, identidades para a banda: apresentar sua imagem por vídeo e som na campanha publicitária da Shell, compor a grande maioria das canções de seu álbum e sustentar os elementos performáticos apresentados anteriormente. Pode-se perceber no mencionado texto de Nelson Motta (presente na contracapa do disco) a maneira como os Mutantes faziam desses enfrentamentos definidores de suas identidades midiáticas e musicais:

Com raro sentido de invenção e liberdade, eles compuseram um jingle para a Shell. É preciso ter coragem de ouvir claro e saber com certeza que aquele som é novo, limpo, inventivo e livre. Mas ainda há gente que tem arrepios ao ouvir a palavra jingle e se horroriza com a idéia de ganhar dinheiro com música, embora ganhe muito dinheiro com música. Quem vive numa sociedade de consumo tem duas alternativas: ou participa, ou é devorado por ela. Não há saída fora desta opção. O jingle dos Mutantes, que prefiro chamar simplesmente de ‘música’ , é melhor, infinitamente melhor, que a maioria das canções que andam pelas praças e paradas. Por que não gravá-la em disco?

Como descrito por Motta, o som proposto aqui pela banda é “novo, limpo, inventivo e alegre”, bem como a letra cantada. É cantada com uma grande variação de

75 Uso aqui – e adiante – o conceito de “estática” em oposição ao conceito de “dinâmica” , com fim de acentuar a diferença entre as críticas apresentadas nesse período, que têm por via de regra a incapacidade de gerar mobilidades hierárquicas, bem com mobilidades físicas: é o caso da canção analisada anteriormente, ao indicar que o movimento de “abandonar” não ocorre em função do medo. Por outro lado, esta canção não remete a essa incapacidade, remete-se a “passear” , “rodar” .

intensidade, do vocal quase sussurrado da estrofe, até o gritado “algo mais” do refrão, que reafirma sua força musical. Repare que a letra da música apresenta um caráter iminentemente dinâmico: fala sobre locomover-se, sobre “dar a partida, acelerar a vida”, que contrasta fortemente com a situação proposta na canção anterior, onde o personagem F deseja um carro que não tem. O carro, antes apresentado como um elemento de desejo virtualmente irrealizável e associado a uma identidade de gênero hierarquicamente inferior, é apresentado neste segundo momento como uma realidade táctil que dialoga com um conceito de liberdade, com o conceito de corpo ativo e agente conforme apresentado por Bourdieu. Prosseguindo por essa leitura, ambas as canções falam diretamente com o ou a ouvinte: porém, na primeira, o elemento interlocutor é criticado por “querer ser alguém, abandonar, mas ter medo”, ao passo que na segunda o ouvinte é convidado a “dar a partida”, andar depressa. Enquanto na primeira letra os elementos externos são expostos como apresentadores de uma frustração, parte de uma vida que está fora do alcance, na segunda o ouvinte é lembrado que “a vida tem algo mais para dar”, mas que depende da formação dessa vida como corpo agente. Os elementos de construção musical também remetem-se a essa dinâmica: a canção é mais rápida, mais fluida (efeito causado por sua batida mais reta e menos sincopada, por suas linhas de contrabaixo marcadas no tempo forte do andamento de 4/4 com as notas tônicas do campo harmônico) e mais dançante. A guitarra aparece com seu timbre fortemente distorcido (efeito provavelmente obtido através do uso de um pedal de Fuzz), principalmente no refrão, discurso que contribui com o tom de rebeldia juvenil que se associava à distorção de guitarras naquele momento – hoje, mesmo bandas de música tradicional e de música infantil utilizam frequentemente as guitarras

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