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2.1 “Senhor F.”
próprios de análise, na medida em que não têm formação em crítica literária/poética, nem são treinados em pesquisas de campo e conceitos sociológicos, correndo o risco de fazer péssima análise poética e má sociologia. Sem falar da dificuldade para quem não tem formação em música, na análise da linguagem musica, escrita em partitura ou registrada em fonograma. Para complicar ainda mais a situação, a área de musicologia não se pautou pela reflexão sistemática em torno da canção urbana e comercial enfatizando o estudo da tradição erudito ou ‘folclórica’ (bases da etnomusicologia atual). A música popular como um todo, e a canção em particular, até bem pouco tempo ficou órfã de reflexão teórico metodológica mais consistente e ampla.
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Tomando por imperativo que as questões de análise poética levantadas não são pertinentes a nesta abordagem – além de considerar-se a imperícia do autor para realizá-las com destreza –, toma-se por imprescindível remontar aos procedimentos apontados anteriormente, que indicam a leitura de outras linguagens e outros discursos presentes no fonograma. O texto de Napolitano aponta, adiante, questões pertinentes a essa abordagem:
A questão central é que, em que pese a estrutura interna da obra e as intenções subjetivas do compositor, o sentido social, ideológico e histórico de uma obra musical, reside em convenções culturais (...) O sentido sociocultural, ideológico e, portanto, histórico, intrínseco de uma canção é produto de um conjunto indissociável que reúne: palavra (letra); música (harmonia, melodia, ritmo); performance vocal e instrumental (intensidade, tessitura, efeitos, timbres predominantes); veículo técnico (fonograma, apresentação ao vivo, videoclipe). Particularmente, para o caso de a pesquisa histórica, defendemos essa última abordagem, pois ela permite situar uma canção objeto da cultura, não isolando aspectos literários, lingüísticos ou tecnológicos que podem ser muito importantes em outras áreas de pesquisa” . 64
Em suma, além de apresentar a prudência para evitar o uso das fontes como mera crônica de época transmitida através da letra, são pontuados procedimentos metodológicos que até aqui vêm sendo ou serão seguidos nesse trabalho, como a adoção
63 Idem. 64 Idem.
de fonogramas como fonte para o estudo da música popular (as apresentações ao vivo das músicas analisadas e videoclipes sugeridos como fonte não cabem a esse estudo: a banda não publicou em fonograma versões ao vivo das canções analisadas em sua discografia, e não gravou videoclipes para essas canções); a apropriação de diversos elementos musicais como harmonia, melodia, ritmo e tessituras, relacionando-as; a não limitação do uso da palavra cantada, a ‘letra’, como referência. Ainda tratando dos procedimentos metodológicos para essa abordagem, a pertinência ao contexto histórico trabalhado faz-se fundamental, sendo descrita como
Ainda do ponto de vista da abordagem, há uma regra básica para a análise da canção como documento histórico: delimitar historicamente o fonograma ou partitura analisados. Se o pesquisador se propõe a analisar a canção Aquarela do Brasil como monumento do Estado Novo, é preciso ir diretamente à gravação coetânea, aos marcos cronológicos da pesquisa, à fonte ‘de época’ , como se diz: a gravação clássica de Francisco Alves, em 1939. Qualquer outra gravação dessa mesma canção, mesmo apresentando a mesma letra, a mesma melodia e harmonia, não permitirá uma análise histórica acurada. Nada impede o historiador de analisar as diversas releituras de uma canção, mas sempre as relacionando com as questões mais amplas do período e do objeto em questão da pesquisa. 65
Esse procedimento impede a adoção, neste trabalho, das versões ao vivo das canções gravadas em 2006, na turnê de retorno da banda: conforme afirmaria Novais, trata-se de uma análise anacrônica ao escapar – de longe – do período histórico delimitado: trata-se das canções em um contexto bastante diferente. Prosseguindo com os procedimentos metodológicos apontados pelo autor, temos por fim a audição sistemática da canção:
65 Idem. No plano dos procedimentos de análise, o documento fonográfico exige uma audição sistemática, repetida diversas vezes. Há o momento inicial
da análise da fonte, na qual aqueles elementos indissociáveis, já aludidos, são momentaneamente decupados pelo pesquisador: letra, estrutura musical, sonoridades vocais e instrumentais, performances visuais e outros efeitos extra-musicais. Essa decupagem é puramente instrumental e provisória, pois o sentido de uma canção gravada deve ser buscado na rearticulação desses elementos, formando uma crítica interna ampla. 66
Esse procedimento foi adotado na realização da análise aqui tomada. Toda a discografia da banda foi ouvida diversas vezes, e as canções que apontaram mais acentuadamente discursividades e performances voltadas à formação de identidades foram reavaliadas e decupadas conforme o procedimento apontado. Dentre essas, foram escolhidas quatro canções que serão associadas às inclinações performativas apresentadas no capítulo um. Essa opção se deu como uma maneira de poder aprofundar um pouco mais a análise de cada peça, visto que em toda sua carreira, os Mutantes registraram aproximadamente cem fonogramas. De toda maneira, esses procedimentos e embasamentos apontados por Napolitano coexistem com outras análises que apontam métodos bastante coerentes com sua abordagem, como é apresentado em “Aesthetic Decomposition”, de Joanna Hodge, “Understanding Humour and Music”, de Kendall Walton, e “Âncoras de Emoções”, de Maria Izilda Santos de Matos, onde, ao trabalhar com História e Música Popular, pretende
(...) dar historicidade ao acontecimento musical, fugindo de uma História da Música linear, ou até progressista, para discutir tensões entre vários aspectos como: o artista, sua formação, obra e produção; estilos e movimentos musicais; circuitos culturais, boêmios, e de sociabilidade; o consumo das canções, recepção e gosto musical como elementos constitutivos de diversos momentos históricos e estratégicos na construção das subjetividades. 67
66 Idem. 67 MATOS, Maria Izilda dos Santos de. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, EDUSC, 2005.
Apesar de adotar fontes primárias e categorias de análise divergentes às utilizadas aqui, a abordagem de Matos é concomitante na tensão de esquivar-se de uma história linear da música para “dar historicidade ao acontecimento musical”. Essas divergências, por outro lado, não cabem ao trabalho apresentado por Joanna Hodge, quando ela afirma que
The Theme, or Sentence, works as a construct of elements, made available by a certain style of music making, or language use, and the theme itself is understandable by contrast to other actual and possible sequence of such elements.68
Por esse mesmo viés, a afirmação é seguida pelo texto de Kendall Walton, complementar ao afirmar que, em desacordo com o que defende Matos,
To be interested in how a piece works, is not to be interested in listeners’ experiences, construed merely as experiences they have as results of listening to the piece. Their experiences are experiences of the music, and to understand them one must understand what they are experiences of – the music. 69
Ou seja: não seria suficiente, então, entender o que os ouvintes interpretaram na música, ou, a compreensão de quem a escutou (mesmo por este não ser o principal
68 HODGE, Joanna. Aesthetic Decomposition. In: KRAUSZ, Michael (org.). The Interpretation of Music. New York, Oxford United Press, 1995. p. 248. Em tradução livre, o trecho afirma que “O tema, ou sentença, funciona como um construto de elementos, que se faz disponível por um determinado estilo de fazeres musicais, ou uso de linguagem, e o próprio tema é compreensível pelo contraste com outras seqüências destes elementos, existente ou de possível existência. ” 69 WALTON, Kendall. Understanding Humour and Music. In: KRAUSZ, Michael (org.). The Interpretation of Music. New York, Oxford United Press, 1995. p. 262. Em tradução livre: “Estar interessado em como uma peça musical funciona não significa ter interesse nas experiências dos ouvintes, construídas meramente como experiências que tiveram como resultados ao ouvir a peça. Suas experiências são experiências referentes à música, e para entendê-las, é preciso entender de que elas são experiências: de música” .
enfoque desta pesquisa), ou mesmo o que se passava na cabeça dos autores enquanto eles a registravam ou compunham: é preciso entender a música em si (ou seja, o fonograma, conforme aponta Novais), e os discursos e performances que a compõe, bem como as identidades que são formadas através dessas performances (conforme apontado por Butler). Dessa maneira, tendo apresentado a metodologia adotada e os conceitos básicos apontados, o trabalho pode agora debruçar-se sobre a parte restante da fonte primária: as músicas.
2.1 – Senhor F.
O senhor F Vive a querer Ser Senhor X Mas tem medo de nunca voltar a ser o senhor F outra vez. O Senhor X É o herói Que na TV Nunca perde o seu chapéu, e faz o senhor F sonhar Sonhar em ter Pros outros ver Olhos azuis Ter um carro igual ao de X E conquistar a mulher do patrão Dê um chute no patrão Você também Quer ser alguém -Abandonar Mas tem medo de esquecer o lenço e o documento outra vez.
A canção “Senhor F”, de autoria dos Mutantes, data de 1968 e pode ser encontrada no primeiro LP da banda, “Os Mutantes” . 70 Neste contexto, foi escolhida para representar um conjunto de inclinações discursivas que constituem identidades de gênero bastante presentes neste período inicial da carreira discográfica da banda. Os elementos que levaram à sua escolha como exemplo das performances que Arnaldo, Sérgio e Rita adotaram durante esse momento são bastante objetivos: a canção não é uma das mais populares da banda, não é facilmente encontrada em compilações de sucessos, não é uma das mais apreciadas pelos fãs e não tem relevância histórica de destaque em relação a outras canções dessa fase, mas apesar disso, traz uma grande carga discursiva que alude a uma crítica social estática, conforme apresentado no
70 Para não gerar confusões acerca de nomenclaturas, explico: o primeiro álbum da banda, de 1968, chama-se “Os Mutantes” , enquanto o segundo, de 1969, chama-se “Mutantes” .Aexclusão do artigo definido pode ter uma grande diversidade de significados, que podem ser discutidos em trabalhos futuros. 69