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4. Referências Bibliográficas

Lê-se, principalmente no trecho “...que a gente já tinha dentro de nós, e que, afinal, eram verdadeiras porque faziam parte da gente” uma inclinação a assumir essas informações como constituidoras de identidade, coerentemente com o que aponta Bahiana quando afirma que “falar de seu estilo de vida lhes parecia importante e suficiente”. Da mesma maneira, Rita Lee aponta essa tomada estética como questão de identidade em entrevista à revista International Magazine:

Eles vieram com uma coisa não machista, mas musical, mesmo. (...) Criou-se uma discussão nesse sentido, porque eu queria os Mutantes, gostava deles, mas eu os queria naquele esquema gostoso, continuando a coisa da gente. Fazendo solo com tampinha de garrafa, saca? Sabe: misturar, esculhambando com os clássicos da MPB; enfim, ser maldito. Mas eles queriam ser eruditos. 84

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A questão do uso da música como expressão de individualidade é bastante discutida em “Perspectives on Musical Aesthetics”, de John Rahn – e sua abordagem é coerente com a deste trabalho ao apontar as questões musicais a quem as produz, e não a quem as consome. De maneira sintética, o autor afirma que

Many who have approached the questions from another perspective, that of the producer of music rather than its receptors, have asserted that the value of music lies in its ability to function as a medium in which the producer can express himself. (…) Expression is often parsed as reference. Thus, music that expresses an emotion does so by referring to that emotion. 85

84 FROÉS, Marcelo, e PETRILLO, Marcos. Entrevistas: International Magazine. Rio de Janeiro, Gryphus, 1997. 85 RAHN, John. Perspectives on musicalAesthetics. Nova Iorque, Norton & company, 1994.p. 57-58. Em tradução livre, “Muitas pessoas que abordaram a questão da música à partir de outro ponto de vista, de quem a produz ao invés de quem a recebe, tomaram a assertiva de que a música tem valor em sua habilidade de médium, através da qual quem a produz pode expressar a si mesmo.Aexpressão é frequentemente tida como referência. Por exemplo, a música que expresse uma emoção o faz referindo-se a essa emoção. ”

Esse fazer é adotado constantemente durante essa fase da carreira da banda – a da expressão de si mesmo na música através de referências. Porém, como aponta Bahiana, essas referências dirigem-se quase que unicamente a seu modo de vida e suas e a estéticas que eram ambos reproduções de um padrão progressivo, conforme aponta Sérgio ao dizer que “Não eram os Mutantes que estavam progressivos: O mundo estava progressivo naquela época”. Por outro lado, Pierre Bourdieu, em seu texto já referido, aponta muitos dos elementos apresentados nessa letra – bem como em outras do disco –como sendo pertinentes a esquemas de pensamento binários (alto/baixo, claro/escuro, direita/esquerda, etc.) que naturalizam metaforicamente aparentes diferenças entre homens e mulheres, baseadas em estudos etnográficos que buscavam compreender sistemas de cognição de grupos humanos androcêntricos. Nas palavras do autor:

Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as ‘naturalizam’ , inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência. (...). Assim, não vemos como poderia emergir na consciência a relação social de dominação que está em sua base e que, por uma inversão completa de causas e efeitos, surge como uma aplicação entre outras, de um sistema de relações de sentido. 86

Dessa forma, o autor associa conceitos organizados em estruturas binárias como significantes que referem-se a masculinidade e feminilidade. Por exemplo, tomando-se em conta o binário úmido/seco, a umidade se incorre como significante relacionado à idéia de feminino, enquanto o seco remete à idéia de masculino. Outros exemplos são os conceitos de fora (masculino e dentro (feminino), ou Cheio (masculino) e Vazio (feminino).

86 BOURDIEU, Op. Cit. p. 16-17.

Dentro destas associações de conceitos, ao buscar os termos utilizados na letra da canção, como “Sol”, “Luz”, “Andar” e “Iluminado”, são todos referentes a significantes de masculinidade. Se relacionarmos essas significações à passagem de uma demarcação identitária vivida pela banda, e a pensarmos como sendo feita, conforme o que foi apresentado anteriormente, através das discursividades presentes nas canções, temos aqui elementos que indicam formações de identidades que, possivelmente de maneira não-voluntária, não referem-se à uma neutralidade de gênero, mas a significantes inclinados a conceitos masculinos. De certa maneira, essas construções de identidade se relacionam, por seu afã de constituir discursivamente tentativas cristalização de identidades previamente apresentadas, com as “performances de afirmação” discutidas anteriormente. Porém, a diferença jaz nas estratégias discursivas que são adotadas para defini-las, além de que identidade elas visam construir. E quais eram, então, essas identidades? Partindo dessas referências adotadas, que são subscritas pelas declarações dos ex-membros da banda, transparece uma idéia de que os valores que estas performances pareciam excluir não eram os valores de gênero relacionados a feminilidades, mas sim as performances relacionados a identidades musicais menos eruditas e sofisticadas, bem como a identidades de gênero que, em sua fase liderada por Sérgio Dias, parecem refletir em diversos aspectos os valores traçados por Miguel e Bahiana – e apresentados por Bayton em seu texto já mencionado como diretamente ligados a papéis masculinos de gênero: música pesada e voltada a eruditismos . 87

87 BAYTON, Op. Cit., p. 183-187 traz uma discussão mais ampla sobre que estéticas dentro da música pop são frequentemente associadas a papéis de gênero masculinos e femininos, voltando suas principais discussões às idéias do que classifica como “essencialismo musical” .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como talvez não pudesse deixar de ser, os Mutantes transformaram-se com o passar dos anos, juntamente com seus componentes, discursos, suas performances – de gênero ou não – e identidades. Se o tempo foi (ou as pessoas ao passar do tempo foram) responsável por mudar o panorama enfrentado pela banda ao longo de sua carreira, também é justo afirmar que a própria banda construiu em sua discografia diferentes representações de si mesma através de imagens e sons para relacionar-se com esse panorama. Eram outras identidades, até outras pessoas: membros se foram, e mesmo os que ficaram possivelmente já não tinham as mesmas ambições, posturas, convicções e demonstram ter mudado suas opiniões sobre música... e sobre carros.

A princípio, ao criticar valores sociais (caso do carro do Senhor X que proporcionaria um modelo de masculinidade inatingível para o Senhor F), converteram suas identidades, principalmente Rita, de “corpos para o outro” a “corpos para si”, e usaram essa postura crítica para atenuar ou reforçar suas características de gênero, conforme os conceitos apresentados por Bourdieu.

Em seguida, afirmaram através de suas performances que era possível fazer conquistas e transformar o que antes apenas criticavam, afirmando como que em um comercial de televisão (e de fato o era) que a vida oferecia “algo mais”, papéis e identidades de gênero não subordinados ou hierarquicamente inferiores como o Senhor F citado previamente. A figura do carro já não apontava papéis de gênero

hierarquizados e imutáveis, mas a potencialidade de redefinição dos sujeitos subvertendo esses papéis. Para tal, seria necessário o que Butler define como “uma série de práticas baseadas em uma teoria performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, ocasionando sua re-significação subversiva”. A seguir, voltaram suas performances para a consolidação dessas identidades que haviam conquistado através de uma tentativa de cristalização de novos papéis de gênero, apontando ao que Butler resume como “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida”. E o carro, por sua vez, é uma ferramenta utilizada para realizar alguns desses atos. Ironicamente, talvez a última grande mudança sentida na discografia dos Mutantes seja a seqüência radical dessa tentativa de cristalizar-se em uma só identidade, uma só performance. Nela, já não parece do interesse de Sérgio e dos outros muitos membros que compuseram a banda nessa última fase definir-se através de papéis que remetessem diretamente à categoria gênero: talvez a descrição mais clara das identidades que os Mutantes construíram – ou esforçaram-se para construir – seja delineada, no texto de Bahiana, quando esta define o estereótipo das bandas de rock dessa “leva” da década de 1970:

Tudo o que faziam era em nome do rock: esse era o tamanho de sua devoção. Falar de seu estilo de vida lhes parecia suficiente e importante. Essa devoção, que os manteve vivos, foi, a longo prazo, a causa de sua morte.88

88 BAHIANA, Op. Cit, p. 144.

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