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1.3 “Os Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets” (1972

Essa questão do domínio sobre seu desejo será retomada adiante, no capítulo seguinte, ao discutir-se as letras das músicas desse momento. Retomando as colocações de Pimentel a respeito de Leila e Rita:

Leila Diniz e a geração do Tropicalismo, logo em seguida, irão redesenhar novos comportamentos femininos que alteram lentamente os fazeres convencionais, modificando indelevelmente a face da cultura nacional. Carnavalização, coloquialismo e irreverência acabam por invadir a área sagrada da alta cultura e do conhecimento canônico. (...) Se o feminismo no Brasil só se fez movimento aberto e exposto às forças políticas públicas após 1975, nem por isso ações significativas deixaram de apontar os novos tempos. As pegadas de Leila Diniz, especulando liberdades para além da palavra morta em propostas partidárias, marcarão, com irreverência e rebeldia, o Tropicalismo e em especial Rita Lee, que reconheceu nela um marco dessas mudanças. Indumentárias, linguagem, canções, arranjos e performances Mutantes foram diretamente endereçados a ela. 44

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Apesar de parecer a esta abordagem estar um tanto equivocada em alguns pontos, como ao definir feminismo como uma singularidade e na excessiva associação entre elementos discursivos dos Mutantes e a figura singular de Leila, percebe-se que a autora contribui com a idéia central desta abordagem ao relacionar as posturas e suas importâncias para o período (que caracteriza como “ações significativas”) não através do que ela chama de “palavra morta”, de uma retórica específica, mas através do que aqui categorizam-se como performances de gênero. Note-se que no texto de Gláucia Pimentel surge novamente o termo “performance” em uma conotação diferente da apresentada por Butler, ao passo que neste trabalho a performance é associada ao conceito apresentado em “Gender Trouble”, passando assim a problematizar outros aspectos de sua discursividade. Como o próprio livro aponta,

44 Idem.

Mostraremos que o sexo, já não mais visto como uma “verdade” interior das predisposições da identidade é uma significação performativamente ordenada (e portanto “é” pura e simplesmente), uma significação que, liberta da interioridade e da superfície naturalizadas, pode ocasionar a proliferação parodística e o jogo subversivo dos significados do gênero. O texto continuará, então, como um esforço de refletir a possibilidade de subverter e deslocar as noções naturalizadas e reificadas do gênero que não dão suporte à hegemonia masculina e ao poder heterosexista, para criar problemas de gênero não por meio de estratégias que representem um além utópico, mas da mobilização, da confusão subversiva e da proliferação precisamente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o gênero em seu lugar, a posar como ilusões fundadoras da identidade. 45

Essa “mobilização”, essa “confusão subversiva” e “proliferação das categorias constitutivas” apontadas por Butler parecem ali ser facilmente apontadas ao tratarem das posturas delineadoras de identidade adotadas: os papéis de gênero, como o da esposa, estavam sendo subvertidos – e neste ponto, estamos de acordo com a abordagem de Pimentel, quando esta indica que as posturas subversivas de identidades eram tomadas de maneira parecida por Leila Diniz e os Mutantes, sobretudo Rita Lee.

45 BUTLER, Op. Cit, p.60

1.3 – Os Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets, 1972

Após a inclinação de “enfrentamento”, os discursos de gênero adotados pela banda – agora um quinteto, com a adesão do contrabaixista Liminha e do baterista Dinho (que já acompanhava o grupo desde 1969 como músico de apoio, mas somente foi oficializado como membro da banda em 1970) – tornaram-se gradualmente mais voltados a uma outra postura. Já estabelecidos como uma banda respeitada, com vendagens sólidas no mercado fonográfico e shows aclamados no Brasil e na Europa , 46

46 CALADO, Op. Cit. Por dezenas de vezes o autor refere-se aos Mutantes como detentores da “fama de melhor banda do país do período” , como nas páginas 273 e 279. Traz também trechos de periódicos

os Mutantes entram em uma fase em que se fazem necessárias não contestações, mas uma afirmação do que foi conquistado com os enfrentamentos anteriores. Em se tratando de performances de gênero, Rita destaca-se por ocupar os espaços já conquistados – adotava agora uma outra postura de gênero em seu modo de caracterizar-se como mulher, não sendo bastante ter transgredido um modelo, mas tornando-se necessário continuar apresentando discursos e performances que a constituíssem identitariamente de maneiras diferentes das que questionava. Butler trata deste processo quando afirma que

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria ‘cristalização’ é uma prática insistente e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se uma mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturação e construção. O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. 47

Dessa maneira, podemos pensar aqui em uma cristalização de um papel de mulher, de uma identidade determinada de gênero que Rita passa a sedimentar a partir de atitudes que fazem valer os direitos e espaços por ela conquistados – o que ocorre de forma semelhante com os papéis identitários representados por Arnaldo e Sérgio, e em menor escala por Liminha e Dinho: enquanto Rita afirma-se como mulher livre,

brasileiros, europeus e norte-americanos daquele momento que os definiam com adjetivos similares, principalmente nas páginas 164 e 165. 47 BUTLER, Op. Cit, p.59

transgressora e insubmissa, seus colegas de banda afirmam-se de maneira parecida, mas com menor impacto de em suas relações de gênero frente às suas audiências.

Ao aplicar esse olhar à capa do disco “Os Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets”, pode-se perceber vários elementos discursivos que caracterizam a banda dentro desses papéis. Enumerando-os:

- os Mutantes são desenhados de maneira estilizada, parecendo super-heróis de quadrinhos. Dessa maneira, tornando-se personagens de uma figura, a representação de suas personalidades é uma construção clara e voluntária de um discurso definidor de suas identidades, onde fica arbitrariamente decidido o que se quer ou não demonstrar nos símbolos que compõe o desenho.

- Cada personagem é apresentado com características próprias, mas Rita Lee

tem asas de ave, ou de anjo, e de barata; dessa maneira, insinua-se a capacidade de voar, o que simbolicamente pode representar a liberdade, a capacidade de ir mais alto –ou mais longe, mas também pode representar uma figura angelical, terna. Além disso, Rita é disposta em uma posição central na figura, o que traz por conseqüência um destaque visual de sua representação.

- Os instrumentos musicais aparecem novamente, como nas capas dos outros dois discos apontados: porém, aqui eles remontam a armas de ficção científica, devido a seus formatos e às posições. Isso pode ser lido como uma insinuação de que os instrumentos musicais são as armas que a banda detém, e, no caso, as armas mais avançadas, vindas do espaço, ou do futuro. Essa estética que remete à ficção científica dialoga com a figura na contracapa do segundo álbum, “Mutantes” em que o trio está vestido como alienígena. Talvez estes elementos remetam à grande sofisticação técnica

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