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2.2 “Algo Mais”

primeiro capítulo. Como se discutirá adiante, o conteúdo dessa crítica não é particularmente notável enquanto exemplo de performance de gênero (muito embora apresente discussões acerca de diferentes masculinidades e de como uma figura feminina é equiparada a um bem de consumo aos olhos de um dos personagens), mas o fato de que ela está sendo feita por um determinado grupo de indivíduos em um determinado meio social certamente o é. A letra da canção, bem como alguns de seus elementos não-verbais, traz em sua estrutura interna (permeada por uma postura crítica) embriões de todas as inclinações de gênero seguintes tomadas pela banda: apresenta os elementos que posteriormente serão confrontados e traços da impessoalidade que será adotada em última instância. Um primeiro ponto a ser ressaltado é o fato de a composição ser de autoria da banda, o que é exceção no contexto de suas primeiras incursões no mercado fonográfico. Das onze faixas que compõe o primeiro LP da banda, apenas quatro são de sua autoria – e uma delas foi composta em parceria com Caetano Veloso. Esse dado pode ser tomado como um ponto desfavorável à tomada desta canção como exemplo, levando-se em conta o válido argumento de tratar-se de uma situação incomum dentro desse contexto: porém, ao interpretar uma canção de sua própria composição, a banda se faz presente em diversos níveis de autoralidade dentro do universo desta canção. Assim, ao desempenhar sua “performance crítica”, a banda tem a oportunidade de realizá-la com suas próprias palavras. O mote da canção orbita dois personagens que não têm nome, sendo referidos apenas por suas iniciais, ganhando assim um tom de impessoalidade. Essa impessoalidade facilita o processo de identificação do personagem com outras figuras reais ou ficcionais, o que realça a linguagem de crítica aberta não a um indivíduo

específico, mas a um modelo de conduta. Repare que ao não dar nomes específicos aos personagens, o campo de possibilidades de associações a esses modelos torna-se aberto em um leque bastante amplo: pode-se por exemplo, tratar-se de duas figuras brasileiras ou de outros países – ou uma brasileira e uma estrangeira, o que daria uma conotação de crítica bastante forte a segunda e terceira estrofes. De toda maneira, a respeito desses modelos de conduta, o veredicto dado pela última estrofe é o do medo, da impotência atribuída ao ou à ouvinte de abandonar esses padrões. A respeito do que aqui se atribui como valores relacionados a essa crítica, encontra-se referências bastante concisas no texto já referido de Fernando Novais, “Capitalismo Tardio e sociedade Moderna”, que refere-se ao Brasil daquela conjuntura histórica:

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Alguns valores substantivos, o do trabalho como fim em si mesmo, ou o da necessidade de cuidados de si, ainda encontram amparo na industrialização acelerada, na mobilidade ascendente e até na modernização dos padrões de consumo. No entanto, outros valores modernos secularizados, como o da autonomia do indivíduo, o dos direitos do cidadão, o do desenvolvimento espiritual e do acesso ao mundo da cultura, não encontram pontos de apoio para se desenvolver. Ao contrário, colidem com os valores utilitários difundidos pelos meios de comunicação em massa. 71

Curiosamente, o parágrafo citado de Novais parece referir-se exatamente aos mesmos temas abordados pela letra dessa canção, e com concepções parecidas acerca desses temas: repare como ambos acenam ao desejo da mobilidade social (o senhor F quer ser senhor X), aos padrões de consumo (o carro do senhor X e a mulher do patrão, apresentada como um desejo igual ao do carro, ou seja, de consumo), a falta de pontos de apoio para desenvolver suas ansiedades de crescimento (ao afirmar que “você

71 NOVAIS, Op. Cit. p. 643.

também quer ser alguém, abandonar, mas tem medo”) e aos valores utilitários difundidos pelos meios de comunicação em massa (o senhor X é o herói de televisão, que nunca perde o chapéu). Ao adotar essa postura crítica, a banda adota discursos que a caracterizam identitariamente – não só pela letra da canção, mas por diversos de seus elementos musicais e tessituras, além de sua interpretação vocal. Apresentando a canção com um arranjo referente à música popular norte americana da década de 40, com fortes influências de jazz tradicional (principalmente pelos arranjos de metais que dialogam em frases curtas e ajudam a tecer o campo harmônico, pelos fraseados de piano característicos do jazz tradicional anterior ao jazz moderno inaugurado pelo estilo bebop, pelo andamento das estrofes que obedece ao compasso 7/4, e, por fim, pela levada de bateria que marca a batida na tercina, forte característica do jazz tradicional e da maioria de seus subgêneros posteriores) e dos musicais dançantes (pelas vocais harmonizados e dialogados e pela melodia alegre, em escalas maiores) e que ao final, com um final falso e arranjos de metais dissonantes, junto à guitarra elétrica e ao vocal distorcido por efeitos de estúdio remetem à psicodelia nos moldes apontados pelos Beatles no ano anterior, a banda acaba por delinear uma identidade adequada aos padrões do grupo tropicalista do qual faziam parte. Os vocais da canção assumem, por sua vez, um caráter descontraído que combina com a melodia alegre que a música toma, ao passo que ao cantar o refrão “dê um chute no patrão”, tornam-se mais fortes e impositivos. Os membros da banda tecem assim discursos não somente através das suas palavras, mas através de todos os elementos musicais e líricos que compõem a canção, no sentido de assumir uma postura de gênero que os define como jovens críticos de determinados valores sociais com os

quais não se identificam – ao referir-se aos personagens pelo termo “senhor”, apontam a formalidade com a qual seus discursos não condizem – e da impossibilidade de causar-lhes mudanças. Onde essa constituição identitária dialoga com as relações de gênero? A canção apresenta a formação de duas diferentes masculinidades (a do personagem “F”, e a do personagem “X”), além de uma apontar uma figura feminina (a “mulher do patrão”). Esse processo formativo se dá de maneira visivelmente atrelada a uma hierarquia social, onde o homem hierarquicamente superior em sua posição social é também hierarquicamente superior em sua masculinidade. O personagem em situação de inferioridade anseia atingir a masculinidade de seu antagonista através de conquistas sua posição social. Essa circunstância dialoga com a afirmação já apontada de Butler de que a hierarquização social não se dá simplesmente através da dicotomia masculino-feminino, mas através das relações entre masculinidade e falta de masculinidade. No texto “A Dominação Masculina”, de Pierre Bourdieu, há também a descrição desse processo, ao afirmar:

Os efeitos da posição social podem, em certos casos, como os citados [referindo-se à pequena burguesia], reforçar os efeitos do mesmo gênero ou, em outros casos, atenua-los, sem nunca, ao que parece, chegar a anulá-los. 72

Dessa maneira, os Mutantes realizavam uma prática de rejeição aos processos de formação de masculinidades de personagens pertencentes a um meio social pequeno-burguês, ao qual a banda, segundo Calado, pertencia. Ainda segundo Bourdieu, há processos interiores a esse espaço social que determinam em mulheres que

72 BOURDIEU, Pierre. ADominação Masculina. Rio de janeiro, Bertrand, 2002.p. 83.

dele fazem parte a “forma extrema de alienação simbólica”. Porém, aponta que as práticas que as façam

Deixar existir apenas para o outro, (...) isto é, apenas uma coisa feita para ser olhada, ou que é preciso olhar visando a prepará-la para ser vista, a converte de corpo-para-o-outro em corpo-para-si-mesma, isto é, de corpo passivo e agido em corpo ativo e agente. (...) a afirmação da independência intelectual, que se traduz também em manifestações corporais, produz efeitos em tudo semelhantes.73

Dessa maneira, pelos discursos trazidos pela letra da música e por seus componentes não-verbais, Rita enquadra-se, como parte do conjunto que compôs e cantou a obra, no que Bourdieu categoriza como afirmação de independência intelectual (pelas críticas transmitidas em meios verbais e pela capacidade de assimilação de linguagens musicais tão diversas e sofisticadas em uma produção estética nova). Essa consignação é uma performance de gênero enquanto a transforma de corpo-para-o-outro para corpo-para-si, processo dado ao criar uma identidade discursiva capaz criticar –embora incapaz de modificar – uma formação de masculinidades presente no meio social em que se encontra e ao apontar a identificação da única personagem mulher, a “mulher do patrão”, como um objeto que faz parte dessa formação, equiparada a um carro. De toda maneira, o veredicto final da canção indica uma frustração do interlocutor ou da interlocutora pela incapacidade de mudar essa situação, causada pelo medo. Esse impulso em busca de dinamizar uma situação estanque se fará mais presente adiante, na fase seguinte das performances da banda. O carro também.

73 Idem.

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