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2.4 “Tudo Foi Feito Pelo Sol”

elétricas, que perderam em muito sua matiz rebelde. De toda maneira, Calado aponta que Sérgio Dias chegou a ser injuriado e apedrejado nas ruas por andar com uma guitarra elétrica. De qualquer forma, percebe-se fortemente as cargas performáticas presentes nestes usos instrumentais, que, uma vez que causavam polêmica e revolta em segmentos da população, condizem com estratégias apontadas por Butler quando esta afirma que

Como estratégia apontada para descaracterizar e dar novo sentido às categorias (...), descrevo e proponho uma série de práticas parodísticas baseadas em uma teoria performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, ocasionando sua re-significação subversiva e sua proliferação além da estrutura binária. 76

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Pode-se aqui contra-argumentar que essas performances musicais não estavam relacionadas com a categoria sexo apontada por Butler. Deve-se então levar em consideração todo o longo histórico de associações entre a música rock e a sexualidade (apontada pertinentemente por Simon Frith em obras como Sound Effects )77 e a vaia que Calado afirma que direcionou-se a Sérgio quando este subiu ao palco com uma guitarra no Festival Internacional da Canção: “Bicha, Bicha, Bicha...”. Esta vaia foi incluída ao final deste segundo disco dos Mutantes. O quão definidora de um papel de gênero que se faz ausente da mencionada estrutura binária essa inclusão pode ser? De que maneira esses papéis foram sustentados e reafirmados? Através das “performances de afirmação”, exemplificadas aqui através da releitura da canção “Rua Augusta”.

76 BUTLER, Op. Cit, p.11 77 FRITH, SIMON. Sound Effects. Youth, Leisure, and the Politics of Rock'n'Roll. New York, Pantheon Books, 1981. Trata-se de uma obra altamente referenciada no estudo da música rock, que define a existência de relações bastante estreitas entre sexualidade e rock, principalmente neste período abordado. 79

2.3 – Rua Augusta

Entrei na RuaAugusta a cento e vinte por hora Deixei a turma toda do passeio pra fora Fiz a curva em duas rodas sem usar a buzina Parei a quatro dedos da vitrina (...legal!) Bye, bye Johnny, Bye bye,Alfredo: Quem é da nossa gang não tem medo. Meu carro não tem luz, não tem farol, não tem buzina Tem três carburadores, todos os três envenenados Só paro na subida quando acaba a gasolina Só passo se tiver sinal fechado.

A canção “Rua Augusta”, presente no quinto disco dos Mutantes, “Mutantes e Seus Cometas No País dos Baurets” (cuja capa também já foi previamente analisada no primeiro capítulo), não é de autoria da banda. Apontada por Carlos Calado como um “clássico do rock nacional, que recebeu uma versão debochada”, Rua Augusta é, em sua versão original, um rock que segue a estética padrão da jovem guarda, composto por Hernê Cordovil. Assim como decorrido na última canção analisada, o fonograma dos Mutantes para “Rua Augusta” traz discursos de gênero fortemente associados com a capa do disco. A canção, com a voz principal cantada por Rita, dialoga com todo o momento vivido pelos Mutantes que se associa fortemente à terceira inclinação de gênero apontada no capítulo anterior: a “performance de afirmação”. Partindo de um momento em que já haviam adotado firmes ações de ruptura para com os valores e instituições de que discordavam, os Mutantes alcançaram conquistas que precisaram ser reafirmadas e sedimentadas: conforme já apontado anteriormente por

Butler, uma aparente cristalização de papéis de gênero se dá a partir de práticas insistentes:

Como uma prática discursiva contínua, o termo [gênero] está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria ‘cristalização’ é uma prática insistente e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. (...) O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. 78

Dessa maneira, fez-se necessário para a cristalização de suas performances de gênero delineadas a partir das inclinações anteriormente citadas a reafirmação desses valores e dessas identidades. No caso desta canção, as discursividades tomadas como afirmação dos papéis de gênero se deram novamente em palavras cantadas e em elementos de construção musical. Um aspecto a ser considerado é que trata-se de uma adaptação de uma canção que foi feita para traduzir fazeres completamente voltados a papéis de gênero iminentemente masculinas em seu ambiente original, que aqui foi adaptada à voz de Rita sem nenhuma alteração na letra. Dessa maneira, a personagem feminina está adotando as práticas parodísticas “baseadas em uma teoria performativa de atos de gênero que rompem as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade”, conforme apontou Butler, ao adotar esses fazeres supostamente masculinos, da mesma maneira que a banda parodia a versão original da canção em sua versão “debochada”. Por sua vez, para os rapazes da banda, a canção também funciona como uma afirmação de seus discursos de gênero, uma vez que reafirmam os ideais de rebeldia com os quais eles

78 BUTLER, Op.Cit. p.59

vinham construindo uma forte identificação, através de suas atitudes interiores e exteriores à música. Para acentuar essas performances, todos cumpriram seus papéis: em seus vocais, Rita adotou um tom bastante agudo, marcadamente associado a voz feminina, como uma maneira de exaltar o fato de que era sim uma mulher que estava vivendo aquelas rupturas e transgressões; já os vocais de apoio acentuavam a coletividade sugerida no refrão (“quem é da nossa gang não tem medo”) e eventualmente respondendo às transgressões narradas pela voz principal de maneira assertiva (“...legal!”). Por sua vez, o instrumental é marcado por fortes influências da black music norte americana, com acentos fortes referentes aos grooves característicos da Soul Music e do Funk. Esses gêneros ganhavam progressivamente espaço nos meios musicais norte-americanos, e eram muitas vezes associados a movimentos negros voltados ao Black Power e os Panteras Negras. Essa apropriação pode ser tomada por parte da banda como uma maneira de reafirmar sua rebeldia, associando a releitura da canção a estilos que, naquele momento, faziam-se mais relacionados a posturas rebeldes do que o rock de jovem-guarda que caracteriza a versão original. Ao encarar a transformação da canção a partir desse pressuposto, percebe-se uma mudança de discurso estético que não reflete uma mudança do discurso identitário: a alteração nos arranjos vem como uma maneira de manter seu impacto, de atualizar sua identidade. Sobre isso, a autora Suely Rolnik afirma em seu texto “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização” que

A globalização da economia e os avanços tecnológicos, especialmente a mídia (...) aproximam universos de toda espécie, situados em qualquer ponto do planeta, numa variabilidade e numa densificação cada vez maiores. As subjetividades, independentes de sua morada, tendem a ser povoadas por afetos dessa profusão cambiante de universos; uma 82

constante mestiçagem de forças delineia cartografias mutáveis e coloca em cheque seus habituais contornos. (...) Essa nova situação, no entanto, não implica forçosamente o abandono da referência identitária. As subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna, ignorando as forças que as constituem e as desestabilizam por todos os lados, para organizar-se em torno de uma representação de si a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma essa representação. 79

Assim, através de sua versão da jovem-guardista “Rua Augusta”, os Mutantes reafirmaram-se em suas construções identitárias de rebeldia e liberdade, e seus discursos e performances transformaram-se como uma maneira de cristalizar determinadas identidades propostas previamente, através da alteração de princípios estéticos para “atualizar” as propostas da banda. Essa estratégia foi uma das diversas discursividades musicais definidoras de identidade correntes na carreira dos Mutantes desde a sua fase tropicalista, e nesse disco foi apropriada diversas vezes, como é o caso dessa faixa. Porém, em sua fase seguinte, quando a banda se amolda aos padrões estéticos e discursivos do rock progressivo, essa passaria a ser virtualmente a única estratégia discursiva da banda: a adequação a uma estética sonora com a qual encontraram-se identificações. Em 1973, Rita Lee e os demais Mutantes rompem. Rita passa a se dedicar, primeiramente, à dupla Cilibrinas do Éden, para em seguida integrar outra banda, o Tutti Frutti, com quem teve uma produtiva, elogiada e rentável carreira durante a década de 70, quando partiu para suas incursões como cantora solo e como dupla de seu marido Roberto de Carvalho.

79 ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: Subjetividade em tempo de globalização. In LINS, Daniel (Org). Cultura e subjetividade: Saberes Nômades. Papirus, Campinas 1997. p. 19-20.

Os Mutantes, por sua vez, voltaram-se à estética do rock progressivo, a qual definiria toda sua carreira discográfica até seu último disco, em “Mutantes ao vivo”, em 1976.

2.4 – Tudo foi feito pelo Sol

Ande sempre para o sol Olhe sempre para o sol E tudo que você quiser, e tudo que você pensar será Iluminado como um sol, Brilhante como um sol. E tudo que você encontrar, e tudo que você amar será Iluminado como um sol. Viva sempre em sua luz Tudo foi feito pelo sol.

A saída de Rita pode ser vista como um marco de uma nova fase na carreira dos Mutantes. Conforme já mencionado, a partir de então, a banda passa a buscar identificações com os padrões estéticos das bandas de rock progressivo, passando por um processo de estabelecimento de uma nova identidade artística, constituição que envolveu diretamente todas as suas discursividades e performances de gênero que podem ser encontradas em disco. Em termos de linguagem, de palavra cantada, os pronomes e artigos femininos simplesmente sumiram do mapa. Não há mais notáveis referências diretas a personagens femininas nas letras das músicas. Por outro lado, há freqüentes referências a coletividades e a um “todo” universal, além de referências diretas ao ou à ouvinte em situação de interlocução – da mesma maneira como em

“Senhor F”, o primeiro fonograma analisado neste trabalho. Dessa maneira, pode-se argumentar que não se está referindo, nesses casos, a figuras especificamente masculinas ou femininas, mas que pretende referir-se a todas as pessoas, independentemente de questões de gênero. Esse é o caso da canção “Tudo Foi Feito Pelo Sol”, faixa-título do primeiro álbum lançado sob o nome da banda nessa nova fase, em 1974 – o álbum “O A e o Z” foi gravado em 1973, mas não foi lançado no período, vindo à luz do dia somente em 1992, já em formato CD. Nesta análise, a canção foi escolhida para representar esse período de inclinação à “performance impessoal” de gênero da discografia da banda por dois principais motivos: Em primeiro lugar, o fonograma apresenta de maneira bem clara as principais escolhas estéticas tomadas pela banda, trazendo em evidência suas características discursivas mais marcantes. Além disso, ela foi tomada como mote dentro do conceito do trabalho apresentado pela banda para caracterizar sua nova imagem frente ao mercado fonográfico em sua primeira incursão nessa nova fase: a idéia de que “tudo foi feito pelo sol” aparece conjugada como faixa-título (e faixa mais longa) do disco, além de ser referida em outros momentos do álbum; aparece também como nome do LP e como elemento central do conceito gráfico da capa. Bastante ao gosto das estéticas arquetípicas do rock progressivo, diversos elementos dentro de um álbum dialogam em torno de um mesmo conceito – idéia essa de certa forma avessa ao que se propunha em sua primeira fase, a de conjugar elementos estéticos e culturais dessemelhantes rompendo as fronteiras estilísticas, anseio tipicamente tropicalista. Ao se analisar a letra da canção, pode-se conceber que as frases cantadas no imperativo, como “ande sempre para o sol” e “viva sempre em sua luz” são referentes a um ou uma interlocutor ou interlocutora impessoal, e, consequentemente, sem gênero.

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