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1.2 “Mutantes” (1969

questão de geração” , 36 onde a autora localiza esta chegada em 1962 através de estudos em periódicos daquele momento, o panorama apontado por Novais é bem-sucedido ao narrar que as conquistas representadas pela abertura destas possibilidades refletem-se na abertura de portas para uma postura contestadora dos valores mais tradicionais, embora esta possivelmente não se desse de uma maneira muito clara. Em entrevista a revista ShowBizz, Rita afirma, sobre o período, que “éramos do contra. Só não sabíamos exatamente contra o que” . 37 Em dezembro de 2007, e entrevista à Revista Rolling Stone, descreve sua postura no período de uma maneira mais elucidativa, que condiz com as aberturas sociais apontadas por Novais:

Não nasci pra casar e lavar cuecas. Queria a mesma liberdade dos moleques que brincavam na rua com carrinho de rolimã. Quando entrei pra música, percebi que a ´tchurma ´ dos culhões reinava absoluta, ainda mais no rock. ‘Oba’ , dizia eu, ‘é aqui mesmo que eu vou soltar a franga e, literalmente, encher o saco deles’ . Depois que provei a mim mesma que era capaz de várias vitórias, sosseguei um pouco o facho. 38

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Falando sobre o papel social da postura de gênero crítica, Judith Butler aponta a importância das representações e das performances dadas através de múltiplos campos de linguagens que se posicionam compulsoriamente dentro do campo das disputas de poder:

As estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo do poder; consequentemente, não há posição fora desse campo, mas somente uma genealogia crítica de suas próprias práticas de legitimação. (...) E a tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam. 39

36 PEDRO, Joana Maria.Aexperiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de História. São Paulo:Anpuh/Humanitas, vol.23, n° 45, 2003, p. 239-260. 37 Entrevista à revista SHOWBIZZ, 1992. p. 48. 38 Entrevista à ROLLING STONE nº 15, Novembro de 2007. p. 89. 39 BUTLER, Op. Cit, p.22

Seguindo a linha desenvolvida por Novais, em 1968, quando este afirma que no Brasil “da classe média pra cima” (referindo-se às classes média e alta), havia, em contraposição ao panorama apontado por Butler acerca da contemporaneidade, um processo corrente de abertura para o que o autor considera um modelo familiar mais moderno. Nesse espaço de abertura encaixavam-se os Mutantes e os demais tropicalistas na capa do disco-manifesto, formulando críticas às categorias de identidade que as estruturas naturalizavam, como aponta Butler.

1.2 –Mutantes, 1969

A capa do LP “Mutantes”, de 1969, representa aqui uma performatividade discursiva adotada pela banda frequentemente no período imediatamente posterior a seus primeiros lançamentos fonográficos, em 1968. Já trazendo um caráter de transição em relação à postura crítica apresentada naquele momento sob a égide tropicalista – e desembocando no final do movimento, enterrado simbolicamente por seus participantes em um programa de televisão em 1969 , 40 a banda volta-se cada vez mais à procura de seus caminhos, na medida em que busca um maior desenvolvimento de sua

40 CALADO, Op.Cit. p.153.

personalidade musical, de sua individualidade. No que tange às performances discursivas de gênero contidas em sua obra, essa inclinação se dá a partir de uma atitude frente diferente em relação ao que antes costumavam criticar de maneira estática: neste momento, as canções, fotografias e demais linguagens assumem uma atitude dinâmica de enfrentamento perante os alvos de suas críticas, como se pode constatar ao analisar a capa do disco reproduzida acima.

A capa do disco em questão trazia uma foto da banda em uma apresentação no terceiro Festival Internacional da Canção, mais especificamente na noite da final nacional. A contracapa, por sua vez, trazia um elogioso texto do jornalista Nelson Motta e uma foto do grupo fantasiado de alienígenas, reproduzida na epígrafe deste capítulo. Novamente de acordo com Carlos Calado,

A ocasião exigia uma performance41 muito especial e os três não deixaram por menos. Rita fez uma visita ao guarda-roupa da TV Globo e lá encontrou as roupas bizarras que precisava para causar o máximo de impacto. Surgiu no palco toda de branco, de véu e grinalda, com um vestido de noiva que já tinha sido usado antes pela atriz Leila Diniz. Serginho entrou de toureiro, com a mesma fita hippie-indígena da apresentação anterior, na testa. Arnaldo foi fantasiado de arlequim, inclusive com um penacho azul na cabeça. E, para completar a série de provocações, uma sacada multimídia avant la lettre: além de seus tradicionais pratos de metal, Rita levou também ao palco um gravador cassete. A idéia era responder às esperadas vaias com a gravação do polêmico discurso de Caetano, em É Proibido Proibir.(...) A imagem da irreverente apresentação do conjunto no FIC – com Rita vestida de noiva, Arnaldo de Arlequim e Sérgio de toureiro – foi escolhida para a capa do álbum, intitulado apenas de Mutantes. Porém, por pouco o disco não foi chamado de O Sexto Dedo. Esse era o nome de um filme de ficção científica que inspirou a estranha foto da contracapa, que trazia os três mutantes transformados em misteriosos alienígenas – sem cabelos, com as cabeças repletas de veias salientes, orelhas pontiagudas e seis dedos nas mãos. 42

41 Repare que o uso do termo “performance” aqui não se iguala ao termo “performance” utilizado por Butler, uma vez que aqui ele aponta para uma aparição artística específica enquanto no contexto apontado por Butler ele refere-se a manifestações discursivas de qualquer natureza; todavia, a atitude tomada pela banda ao apresentar sua canção no Festival é uma performance nas duas compreensões da palavra. 42 Idem, p. 138 – 139 e 158

Dessa maneira, dando lugar à foto escura e sem movimento que estampava a capa do primeiro LP da banda, que os expunha com ar de uma inocência um tanto séria, sisuda, aqui a banda estava com grandes sorrisos em suas feições, em uma foto um tanto mais clara que os exibe tocando seus instrumentos, em poses que denotam movimentos corporais. Suas roupas, principalmente o vestido de Rita, apontam um enfrentamento consciente quando surgem com o propósito de causar impacto, causar reações na platéia – o que de fato aconteceu no Festival. Escolhendo esta imagem para a capa do disco, a banda expande essa provocação para além do público que os assistiu naquela ocasião: cada cópia do disco em cada loja, cada casa, estaria carregando esse discurso, essa performatividade.

O vestido de noiva, antes usado por Leila Diniz, suscita uma discussão por si só: O já referido texto “Mutações em Cena: Rita Lee e a resistência contracultural” apresenta uma forte associação entre as figuras de Rita e Leila, ao apontar que esta segunda foi dotada de um grande diferencial frente a muitas feministas brasileiras do período, relacionando suas posturas, embora afirme que Diniz nunca tenha “encampado a bandeira”. Aponta que

Exatamente nesse ponto o grande avanço que foi o comportamento pessoal, a liberdade pessoal que Leila imprimiu na revolução que apenas se iniciava. ‘É o poder da ação, o poder da mudança que você introduz através do seu próprio comportamento e não através da retórica desvinculada da coragem de agir’ (Pitanguy, Diniz, 1994, p.481). Essa alegre coragem tornou essa personagem o paradigma de um novo comportamento feminino. A imagem da mulher que tem seu domínio sobre seu desejo era veiculada pela imprensa, delimitando e conformando as novas conquistas. 43

43 PIMENTEL. Op. Cit. p. 10-11.

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