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Introdução

INTRODUÇÃO

O momento presente quando da escrita dessas linhas data, tomados alguns meses como margem de erro, do aniversário de quarenta anos da estréia da banda como figuras midiáticas, e de seu contato maciço com um grande público que tinha acesso a essas mídias – televisão, discos, fitas, jornais. Concomitantemente, é comemorado também o aniversário de 40 anos do movimento conhecido como Tropicalismo, ou Tropicália. Estas datas serviram como ganchos para que admiradores destas obras e/ou autores e autoras que acreditam que elas ainda são grandes referências para produções artísticas contemporâneas pudessem revê-las e revisitá-las em diversos veículos: televisão, jornais e discos, como há quarenta anos atrás, mas também em espaços a que antes elas não pertenciam, como trabalhos acadêmicos e internet, além da presença da banda e de seus colegas de movimento em mídias estrangeiras. Neste contexto, os Mutantes figuram em uma posição de grande destaque, devido principalmente ao polêmico retorno da banda aos palcos ocorrido na Inglaterra após quase 30 anos de inatividade. Estão prestes a se tornar assunto de vídeo-documentário1 – cujo trailer já está na Internet, que vem sendo o principal meio de divulgação da maioria das bandas de rock. E, veja só: o documentário não é brasileiro. Está sendo realizado nos Estados Unidos. Publicações que de alguma maneira abordem o tema “Mutantes” (ou temas diretamente relacionados ou que incluem a banda, como “Tropicália”, “Rock

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1 “BreadAnd Circuses” , sendo realizado pela produtora estadunidenseAmerican Girl.

Brasileiro”, “Música popular Brasileira”, entre outros) não são grande novidade nas estantes das livrarias. Pode-se lá encontrar livros de memórias, obras que apresentam análises de fãs-admiradores, songbooks que trazem transcrições musicais dos nomes mais populares das épocas à qual a banda pertenceu, e mesmo livros didáticos que “contam o que aconteceu para leigos e curiosos”. De toda maneira, apesar de seu caráter informativo, nenhuma dessas obras caracteriza-se como uma boa referência acadêmica para estudos, com critérios de análise mais densos que “ouvi os discos e achei isso ou aquilo”; elas trazem outro tipo de informação, simplesmente. A maior parte dos trabalhos acadêmicos acerca do tema, por sua vez, certamente apresenta critérios teórico-metodológicos adequados dentro de suas propostas específicas, geralmente relacionados a questões estritamente políticas (como o AI-5, a censura, o exílio, entre outros marcos desse momento histórico), midiáticas (a importância dos tropicalistas como figuras de mídia, em grandes gravadoras, programas de televisão e festivais) ou artísticas, mas com ênfase em características estéticas isoladamente, e não como formas de discursos, relações. Igualmente, em sua grande maioria, tendem a tecer abordagens ignoram a categoria de análise gênero e grande parte do universo de idéias que ela

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permeia, além de não representar a grande diversidade discursiva contida nas obras em questão, a pluralidade textual que é essencial à sua compreensão, sob qualquer

2 Tendo aqui como referencial teórico o conceito de performatividade de gênero apontado por Judith Butler, que afirma que as identidades de gênero são definidas à partir de discursos e performances que se fazem presentes em todos os aspectos da montagem do indivíduo e de suas identificações. Dessa maneira, pode-se por exemplo considerar que um corte de cabelo, uma roupa, ou uma letra de música podem todas carregar discursos de gênero. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Em entrevista a Baukje Prins, da Universidade deAmsterdã, e Irene Costeira Meijer, da Universidade de Maastricht, Butler afirma que suas perspectivas de gênero em Gender Trouble se aproximam a de que “a construção de identidades de gênero deu-se não apenas pela repetição da diferença entre homens e mulheres, feminilidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação hierárquica entre feminilidade e falta de feminilidade, entre masculinidade e falta de masculinidade” . PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costeira. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, 2002, p. 164.

abordagem: uma idéia central da banda, afinal de contas, era a pluralidade em si, as mudanças e transformações. Não parece então de contento que no Brasil os estudiosos e estudiosas que voltam seus trabalhos à categoria de análise gênero ou ao estudo da música popular (particularmente História da Música) tenham de esperar por trabalhos estrangeiros para a realização de diversas leituras acerca da obra da banda, ou contentar-se com trabalhos superficiais, pouco específicos, ou focados em abordagens que não são as que procuram. Não por uma questão de resistência àqueles trabalhos, afinal não cabe aqui contestar sua validade, mas deve-se notar o fato de que se em outros países e outras abordagens existem condições para realizá-los, por que não no Brasil? E por que não em gênero? Que papéis a banda representou nesse sentido? De que maneira esses processos sucederam? Em seu artigo “Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978)”, Joana Maria Pedro conclui que “Hoje sabemos que, das utopias e projetos revolucionários do século XX, o que lhes sobreviveu foi o projeto feminista” . 3 Ora, podemos relacionar essa idéia às apresentadas por Marcus Preto ao descrever Rita Lee em seu artigo sobre Rita, “Não nasci para casar e lavar cuecas”, escrito para a revista Rolling Stone, em novembro de 2007 – parte da mencionada leva de abordagens midiáticas sobre os Mutantes e o Tropicalismo. Em suas falas um tanto excessivas ao ressaltar a importância dessas figuras, este artigo é feliz ao delinear que

É inevitável. Uns mais, outros menos, todos os artistas brasileiros que vieram a empunhar uma guitarra a partir de meados dos anos 70, sobretudo as mulheres, foram diretamente influenciados pela música da ruiva. E se hoje o ofício de “intérprete” , o predileto entre as meninas até

3 PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). In: Revista Brasileira de História. São Paulo, 2006, v.26, nº . 52, p. 269.

os anos 70, deu lugar ao de ‘cantora e compositora’ , também ela é a maior entre as culpadas. 4

Se pudermos glosar que dentro do “projeto feminista” mencionado por Joana Pedro encontrem-se aberturas de espaços para mulheres em diversas atividades e sua exposição como seres atuantes, intelectuais e donas-de-si, então Rita e os Mutantes, mesmo já tendo afirmado não ser feministas, têm um papel relevante dentro desse projeto, ao menos dentro do Brasil. E como se deu esse processo? Através de performances de gênero, e de formações discursivas da identidade. O que este trabalho pretende é analisar de que maneiras essa questão se desenvolveu, que performances de gênero foram tomadas pela banda e de que maneiras essas discursividades desenvolveram-se, tendo como fonte a discografia da banda, realizada no período entre 1968 e 1976. Para tal, o trabalho foi dividido em dois capítulos. No primeiro, serão apresentadas informações biográficas sobre a banda e contextualizações historiográficas sobre o período em recorte e as transformações ocorridas tanto no panorama do Brasil quanto na estrutura interna da banda, além de ser realizadas apresentações de conceitos básicos como o de gênero e o de performance de gênero. Por fim, serão contextualizadas as principais inclinações de gênero tomadas pela banda, e serão apresentadas análises de capas de discos associadas a cada uma dessas inclinações performáticas. O segundo capítulo, por sua vez, tem por objetivo analisar fonogramas relacionados a essas inclinações: para tal, serão contextualizados aportes teóricos e metodológicos utilizados nessas análises. Em seguida, são desenvolvidas discussões

4 PRETO, Marcus. “Não nasci para casar e lavar cuecas” . In Rolling Stone. nº 15, novembro de 2007.p.

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acerca de quatro fonogramas selecionados para representar, cada um, uma das inclinações performáticas de gênero à qual se associa. Um traço comum às canções escolhidas é uma intertextualidade em suas letras, todas elas apresentando relações de seus personagens com carros – à exceção da última, “Tudo Foi Feito Pelo Sol”, que representa uma fase bastante distinta das construções identitárias da banda. Frequentemente associadas a papéis de gênero masculinos, sendo também em dadas abordagens apresentadas como referenciais fálicos, as figuras de carros nas letras dessas canções, as maneiras como essas se relacionam com personagens que as compõe e mesmo a sua ausência traçam diferentes construções de performances e múltiplas discursividades que refletem (e compõe por si mesmas) disputas de poder e identidades de gênero.

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