A Divina Comédia dos Mutantes
2. A CANGUE DO TWIST "Pare o ônibus, motorista! Aqueles rapazes estão se matando!" A senhora idosa apontou na direção de um grupo de garotos, a menos de dez metros dali, no momento em que o ônibus da linha Vila Romana diminuía a velocidade para virar a esquina com a rua Cotoxó. Quase todos que estavam dentro do coletivo puderam ver aquela cena de brutalidade: cinco garotos esmurrando e chutando um outro, já meio estirado e sangrando no chão. O motorista atendeu ao pedido e freou ali mesmo, na esquina, abrindo a porta para que um policial, encostado na catraca, pudesse descer. "Parem com isso meninos! Assim vão matá-lo", implorou a mesma senhora, já com a cabeça quase fora da janela. O bando se dissolveu em uma piscada de olhos. Os garotos perceberam que tinham uma plateia indignada se aproximando e fugiram. Assim, ficou mais fácil ver o garoto ferido no chão, com manchas de sangue pelo corpo. Seguido pelo motorista, o policial já tinha descido o primeiro degrau, quando percebeu o engodo. Num salto, o garoto se levantou rapidamente do chão, encarando os passageiros. Com um sorriso maroto que logo se transformou em uma debochada gargalhada, lá se foi Arnaldo e sua roupa manchada de groselha juntar-se a Serginho, André, Pataca e o resto da suposta gangue de agressores. Perseguidos pelo guarda, irritado com a peça em que tinha acabado de cair, os garotos correram até o portão de uma casa vistosa, a maior do quarteirão, e sumiram. A turminha tinha acabado de aprontar outra das suas molecagens. No início dos anos 60, dificilmente se encontrariam pais tão liberais como os de Arnaldo, Sérgio e Cláudio César. O casarão da família Baptista, no nº 408 da rua Venâncio Aires, no bairro da Pompeia, vivia repleto de garotos, entrando e saindo o dia todo. Nos raros momentos em que estava em casa, sem perder o bom humor, o atarefado doutor César era às vezes obrigado a descer até o portão da rua para colocar panos quentes nos pequenos tumultos provocados pelas traquinagens da garotada. Recebia as reclamações com tanta diplomacia, que em geral a confusão terminava ali mesmo. Quem o conhecesse naquela época, provavelmente imaginaria que aquele homem culto, muito educado e sorridente jamais enfrentara grandes dificuldades na vida. César Dias Baptista nasceu em Avaré, no interior de São Paulo, em 1913. Décimo dos treze filhos do coronel Horácio Dias Baptista, que chegou a ser prefeito da cidade, teve que abandonar os estudos no final do curso primário. A vida abastada da família desabou quando o coronel perdeu a fazenda e quase tudo que possuía, graças às artimanhas de um parente de caráter duvidoso. César chegou até a carregar sacas de café, além de ter trabalhado como caixeiro, escriturário e balconista, para ajudar a equilibrar a economia da casa. Já maior de idade, mudou-se para São Paulo, onde conseguiu um emprego de conferente na Estrada de Ferro Sorocabana, trocado pouco depois pelo Departamento de Receita da Secretaria da Fazenda. Trabalhando com números e alíquotas, César podia garantir o chamado leite das crianças. Porém, satisfação mesmo ele encontrava ao lidar com palavras e sons. Por seu próprio esforço, acabou se tornando escritor, poeta e jornalista. Foi editorialista do jornal O Dia, no qual assinou durante mais de sete anos a coluna Amanhece o Dia, crônica diária que misturava prosa e poesia. Além dos poemas que compunha e recitava em público, outro de seus grandes prazeres era cantar no Coral Paulistano. Tinha uma bela voz de tenor, com uma grande extensão. O gosto pela música foi, de fato, a verdadeira herança deixada ao filho pelo coronel Horácio, que também tocava violão. Entre os livros que escreveu. César deixou duas biografias. Publicado em 1945, Romance sem palavras (Casa Wagner Editora) narrava a história do maestro João Gomes 13