A Divina Comédia dos Mutantes
18. YES, NÓS TEMOS ROCK PROGRESSIVO Arnaldo voltou para a serra da Cantareira desbundado. Acabara de assistir ao ensaio de uma banda de moleques do bairro da Aclimação e quase não acreditou no que ouviu. Batizada com o significativo nome de Mescla, a banda tocava um acid rock de impressionar. Bem mais jovens que os Mutantes, os garotos já tinham se iniciado há tempos no LSD. Bartô, o mais maluco da turma, chegava a dissolver lascas de ácido diretamente nos olhos. No dia seguinte, Arnaldo convocou os Mutantes para irem à Aclimação, ouvir o som dos garotos. E, na primeira ocasião, deu um solene puxão de orelhas na banda:“Moçada, a gente tem que estudar mais. Os caras aí tão arrasando!” A consciência de que não podiam se acomodar na fama de melhor banda de rock do país mexeu com os brios do grupo. Liminha, por exemplo, chegou com duas bolhas no dedo, para o ensaio seguinte, de tanto que havia praticado seu baixo. Serem os melhores era ponto de honra para os Mutantes. “Arnaldo! Posso pegar o meu pijama?” “Peraí!”, veio a voz de dentro do quarto. Instantes depois, quase sem roupa, Arnaldo saiu junto com uma garota. “Ah, não! Você tá usando a minha camiseta?!”, reclamou Rita. “Logo a que eu queria usar amanhã!” Cenas como essa se repetiam, quando Rita passava dois ou três dias seguidos em São Paulo e resolvia subir a serra à noite, para dormir na Cantareira. Dependendo do clima e se Arnaldo não estivesse acompanhado, Rita ficava com ele. Do contrário, acabava dormindo na casa de Sérgio. Tudo aparentemente numa boa. Mas não era tão simples assim. Seguindo à risca o princípio do make love not war (faça amor e não guerra), como boa parte daquela geração, Rita e Arnaldo mergulharam numa espécie de deslumbramento, ao se depararem com um grau de liberdade jamais vivido antes, principalmente em relação a sexo e drogas. Sentimentos contraditórios, como o ciúme ou a insegurança, continuavam presentes no dia a dia de todos, mas costumavam ser sublimados em nome da pretendida liberdade total. Por essas e outras, mesmo não gostando de certas atitudes de Arnaldo, Rita se obrigava a fingir que aceitava tudo com naturalidade. Posava de moderna e liberada, mesmo quando estava morrendo de ciúmes. Mais ou menos o que sentia quando saía de carro com os rapazes, para os passeios noturnos pela rua Augusta, e num outro automóvel uma garota mais atrevida tirava a calcinha e a acenava para Arnaldo. Rita sentia vontade de pular no pescoço da “vaca”, mas engolia o primeiro impulso e se resumia a esboçar um sorriso amarelo. Até mesmo quando Arnaldo, no auge da porra-louquice, propôs a ela que o visse transando com uma garota que acabara de conquistar, Rita aceitou o jogo. Durona, entrou no armário do quarto do hotel em que estavam hospedados, no Rio de Janeiro, e assistiu tudo até o fim: era uma dançarina do programa de TV de Chacrinha, uma chacrete. No fundo, Rita tinha um certo prazer em testar a própria resistência, além de sentir que Arnaldo não pretendia feri-la com “experiências” desse tipo. Era o fascínio pela liberdade absoluta, pela completa falta de limites. Para não perderem o costume, logo depois de gravarem o que meses mais tarde veio a ser o segundo álbum de Rita, Arnaldo e ela desentenderam-se novamente. Magoada, Rita seguiu em férias para a Inglaterra, em 12 de julho de 72, na companhia de Lúcia Turnbull e do casal Liminha e Leila. Mais uma vez, resolveu se afastar por um tempo do marido, que insistia em continuar exercitando sua porção Don Juan. 135