A Divina Comédia dos Mutantes
19. OVELHA NEGRA Naquela noite, quando entrou na sala da casa de Arnaldo para o ensaio, Sérgio percebeu logo que não se tratava de mais uma alucinação de LSD. Pela cara de choro de Liminha e a expressão assustada de Dinho, alguma coisa grave parecia ter acontecido. Os dois olhavam para Rita, como se ela estivesse comunicando uma notícia de morte. “Tô indo embora. O Arnaldo disse que não tem mais lugar pra mim na banda”, repetiu Rita. “Como assim? Quem o Arnaldo pensa que é pra dizer isso? Deus? Então a gente sai com você!”, retrucou Sérgio. “Não. Agora sou eu que quero ir embora. Tchau!” Rita não estava disposta nem a conversar. Deixou os três parceiros atônitos e foi até o quarto. Juntou algumas roupas e discos, pegou o violão, o Mini-Moog e levou tudo para o jipe. Depois, foi buscar as duas cadelas. O motor do automóvel já estava ligado, quando Rita ouviu sons dos instrumentos da banda, saindo de dentro da casa — sinal de que Arnaldo já tinha chegado e que o ensaio iria começar, mesmo sem ela. No dia seguinte, Sérgio e Liminha foram até a casa dos pais de Rita. Tentaram convencê-la a voltar, sem qualquer sucesso. Magoada, ela parecia mesmo decidida. Os dois sabiam que havia muito de pessoal naquela atitude. Rita e Arnaldo já tinham rompido há meses, mas desde que Tereza e Mick entraram na história o clima durante os ensaios tinha piorado sensivelmente. Porém, Sérgio e Liminha não descartaram a possibilidade de que, como em ocasiões anteriores, os dois ainda voltassem a se entender. Mesmo sabendo que o humor e as letras de Rita eram muito importantes na fórmula musical da banda, Dinho, Sérgio e Liminha acabaram se rendendo ao carisma e à autoridade de Arnaldo. No dia a dia do grupo, não era raro que ele tomasse decisões sem consultar os parceiros. Ainda mais quando tomava seus ácidos e ficava cheio de si, falando sobre Deus e coisas do tipo, tornava-se impossível discutir com ele. Por outro lado, naqueles primeiros dias de outubro, os rapazes desfrutavam a sensação de que jamais tinham tocado e se entendido tão bem — uma impressão quase telepática, consequência também, certamente, dos ácidos ingeridos antes dos ensaios. A banda tinha ingressado em uma nova fase musical, mais voltada para o som instrumental, na qual Rita não parecia se encaixar direito. Até porque, no fundo, nenhum dos quatro conseguia levála a sério como instrumentista. O pandeiro furado que Rita tocava, às vezes até por não ter muito o que fazer no palco, ou mesmo outros efeitos de percussão, eram tratados pelos rapazes com uma certa ironia. As insistentes tentativas de André Midani de investir na carreira individual de Rita também se tornaram um delicado ponto de conflito entre ela e a banda. Essa pressão, por sinal, não vinha apenas da gravadora, mas até da imprensa. Duas semanas antes do confronto de Rita e Arnaldo, o então influente Giba Um colocava mais lenha na fogueira, em sua coluna no jornal Última Hora (edição de 22 de setembro): “Rita Lee Jones, uma das poucas coisas engraçadinhas desse Festival, responde às críticas de que ela deveria curtir menos e levar mais a sério a profissão e se transformar na maior show-woman do país: ‘É exatamente ao contrário, quero curtir mais...' " Apesar de continuar afirmando nas entrevistas que seu lugar era ao lado dos Mutantes e que não estava nem aí para a possível carreira solo, o lançamento do álbum O Primeiro Dia do Resto da Sua Vida não deixava de ser uma indicação de que, a qualquer momento, Rita poderia bater asas de vez. Por todos esses motivos, Sérgio, Dinho e Liminha não precisaram pensar muito para se decidirem: ficaram com Arnaldo. 143