A Divina Comédia dos Mutantes
3. LEVADA DA BRECA Suely Aguiar jamais esqueceu como conheceu Rita Lee Jones. Foi em 1964, quando cursava o ginasial, no Liceu Pasteur, um tradicional colégio paulistano de orientação francesa, no bairro da Vila Clementino. Naquela manhã, ela estava na fila da cantina, esperando a vez para comprar um refrigerante durante a hora do recreio, quando alguém tocou seu ombro. Virou para trás e sentiu uma coisa gosmenta espremida contra o seu nariz. Não dava para acreditar: sem motivo algum, uma garota alta, meio ruiva e sardenta, que estava morrendo de rir, tinha acabado de esmagar na sua cara um Dan Top (um grande bombom recheado com marshmallow, bastante popular entre a criançada). Roxa de raiva, entre pular no pescoço da magricela, ou sair correndo para evitar a gozação dos colegas, Suely ficou com o vestiário, morta de vergonha. Semanas depois, as duas se reencontraram na seleção de handebol do colégio. Só que em vez da garota travessa e gozadora, durante os treinamentos Suely ficou conhecendo outra Rita bem diferente, quase uma caxias, seríssima nos jogos e inimiga das derrotas. O time foi ganhando, a bronca passando e as duas acabaram virando amigas. Anos depois, Suely virou até produtora de Rita. Resistir ao carisma daquela ruivinha sardenta não era nada fácil. Os pais de Rita eram um caso típico de atração de opostos. Descendente da primeira geração de imigrantes italianos radicados na cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, foi ali mesmo que Romilda Padula nasceu e cresceu. Religiosa e apaixonada por música, chegou a ser galanteada por um rapaz bem-falante chamado Ulysses Guimarães, muito antes de ele se transformar em um dos políticos mais famosos do país. Mas o coração de Romilda só bateu forte mesmo ao conhecer o engenheiro Charles Fenley Jones, bisneto de uma índia Cherokee e descendente de imigrantes sulistas norte-americanos que se estabeleceram na cidade paulista de Americana, em 1866, após serem derrotados pelas tropas do Norte, na Guerra da Secessão. O namoro de Charles e Romilda começou com um toque de drama romântico. Nenhuma das duas famílias, nem a norte-americana, nem a italiana, gostou da aproximação. O casal já tinha até resolvido comprar a briga com todos os parentes, quando a sorte afastou a sombra de uma possível tragédia shakespeareana. Charles ganhou uma pequena bolada na loteria e logo pôde se mudar com a esposa para São Paulo. Não fosse ele um homem prevenido, a família teria passado maus bocados quando a ressaca econômica da Segunda Guerra Mundial o deixou sem o emprego na Light. Porém, preocupado com sua autonomia, Charles já estava estudando Odontologia, em Piracicaba. Formou-se dentista após os 30 anos de idade, montou um consultório e desde então não teve mais problemas para sustentar a família. O rádio estava sempre ligado naquele sobrado alto e pintado de rosa, o de nº 670 da rua Joaquim Távora, no bairro classe média de Vila Mariana, na zona sul de São Paulo. Quando não estava ouvindo Ângela Maria, Cauby Peixoto ou outros cantores de sucesso da época, dona Romilda gostava de recordar velhas canções napolitanas, que sabia cantar muito bem. Não foi à toa que, ainda menina, em Rio Claro, costumava cantarolar em dupla com a amiga Dalva de Oliveira, que anos depois se tornou uma estrela da música popular brasileira. Mary Lee, a filha mais velha, também herdou os genes musicais da mãe. Adorava ir com uma turma de amigas aos programas radiofônicos de auditório, para invariavelmente desmaiar quando Cauby, seu grande ídolo, entrasse no palco (nos anos 50, o tímido showbiz brasileiro já tinha dessas coisas). Mary também tocava piano e adorava cinema — sabia tudo a respeito dos filmes e grandes atores da época dourada de Hollywood. Ao se formar pelo Mackenzie, foi trabalhar em uma firma inglesa, a Atlantis, onde conheceu o futuro marido. 23