A Divina Comédia dos Mutantes
Até que as meninas deram conta do recado. Nos meses seguintes, com um repertório recheado de canções dos Beatles reproduzidas nota por nota, elas tocaram em algumas festinhas de colégios da Vila Mariana. Numa noite de setembro, durante uma festa no Arquidiocesano, aconteceu o que Rita temia: sentiu-se mal durante o show e teve que ser levada às pressas para o hospital, onde sofreu uma operação de apendicite aguda. Foi assim que o "sargento" Charles descobriu que a filha saía escondida de casa. Sempre que havia alguma apresentação noturna, ela descia para jantar com a camisola vestida sobre a roupa. Logo que o pai subia para dormir e apagava as luzes do andar superior da casa, ela pulava a janela do quarto e fugia, para tocar nos conjuntos. No hospital, após a operação, Rita ainda estava apavorada com a provável reação do pai, mas acabou tendo uma surpresa: em vez de um castigo ou pelo menos uma grande bronca, ganhou de presente um disco do conjunto inglês Gerry and the Pacemakers — o primeiro de sua discoteca. Como se dizia na época, o coroa já estava quase no papo. Rita e Arnaldo tinham 16 anos quando começaram a namorar — por sinal, tratava-se da primeira experiência de ambos, no chamado campo sentimental. O romance começou com uma aura de Romeu e Julieta. A princípio, a família Baptista e a família Jones teriam uma forte razão para serem inimigas: o pai de Arnaldo, evidentemente, era ademarista; o de Rita admirava Jânio Quadros. Além do mais, um garoto que nem chegara a terminar o colégio, para se transformar em um cabeludo músico de rock, certamente estaria fora do padrão de marido que o doutor Charles pretendia para suas filhas. "Eu passo fogo no primeiro desgraçado que entrar aqui", costumava dizer, com cara de bravo, quando alguém mencionava a possibilidade de ver uma de suas meninas namorando. Quase tudo parecia indicar um conflito incontornável, um típico caso de amor impossível.No entanto, na prática foi bem mais fácil. Falantes e bem-educados, Arnaldo e Sérgio não tiveram muitas dificuldades para conquistar os pais e as irmãs de Rita e começaram a frequentar a casa da família. Em pouco tempo, Rita até já podia sair de casa sem broncas, desde que estivesse acompanhada pelos irmãos Baptista. Até mesmo as famílias acabaram se dando bem. No primeiro encontro oficial, ao se exibir cantando alguns trechos de óperas italianas, o doutor César caiu imediatamente nas graças de dona Romilda. Tudo terminou em pizza.
4. BEATLEMANIA Foi só uma questão de tempo. No início de 1965, quando já tinham desistido do Wooden Faces, Arnaldo e Raphael estavam ansiosos para começarem um novo conjunto de rock. Arnaldo até chegou a flertar alguns meses com a então popular moda da bossa nova. Tocou no Sand Trio, com o líder e pianista Conrado Miller e Eduardo Lemos (ex-The Flash's) na bateria. Mas, no fundo, não conseguia viver sem seu rock & roll. A invasão dos Beatles mexeu com as concepções musicais dos garotos. Mesmo sabendo que cantar não era o forte de ambos, Raphael e Arnaldo não tinham dúvidas: queriam fazer um rock com bons arranjos vocais. Precisavam de reforço nessa área e pensaram logo nas Teenage Singers. Quando iam aos ensaios e apresentações das meninas, gostavam de ouvir Suely e Rita, principalmente cantando qualquer sucesso da dupla Lennon & McCartney. Comparados aos vocais dos Wooden Faces, as vozes das meninas se abriam com mais graça nas harmonias; os timbres combinavam melhor. Sem falar nos pequenos shows particulares de Suely, que deixava muita gente babando quando pegava o violão para cantar alguma coisa diferente. Rita e Suely aceitaram o convite na hora. Fora a simpatia que já tinham pelos meninos, as duas amigas estavam novamente sozinhas — Rosa e Eliane tinham acabado de 29