Carlos Calado
minutos antes pelos jurados. Depois de algumas tentativas, a voz do compositor foi encoberta pela orquestra, que atacou a introdução da música por ordem do maestro. A vaia seguiu furiosa durante toda a canção, mas Gil e os Mutantes, eufóricos com o resultado, nem deram bola aos esquerdistas e conservadores que se uniram na reação barulhenta. Naquela noite ofuscada parcialmente por um violão quebrado, em meio a um festival de vaias, as guitarras elétricas dos futuros tropicalistas deixaram o impacto e as primeiras marcas oficiais de sua novidade.
8. TRÊS ROQUEIROS TROPICALISTAS No início de 68, o apartamento 212 do Hotel Danúbio já tinha se transformado em um laboratório do que veio a ser a ala musical do Tropicalismo. Era ali que Gilberto Gil e Caetano Veloso costumavam se encontrar quase todas as tardes, junto com o poeta Torquato Neto, o compositor e cantor Tom Zé, a cantora Gal Costa (que ainda era chamada pelos amigos de Gracinha), o maestro Rogério Duprat, os Mutantes e os Beat Boys, entre outros eventuais adeptos e simpatizantes do grupo. Espalhados pelo sofá, ou sentados no chão em volta de uma mesinha retangular, uns mostravam aos outros suas últimas canções, tocavam, cantavam, ofereciam e recebiam palpites, discutiam e planejavam seus próximos passos musicais. Gil e Caetano perceberam logo que a contribuição dos Mutantes em Domingo no Parque não fora a de um mero conjunto acompanhante. O trio trazia informações novas, que interferiram diretamente no futuro grupo tropicalista. Rita, Arnaldo e Serginho tinham um jeito diferente de se vestir, de falar e de se comportar. Pareciam jovens ingleses da geração Beatles. Essa era uma diferença básica: ao contrário dos baianos, que olhavam o universo do rock de fora, os Mutantes passavam a impressão de viverem dentro daquele mundo. Um universo que os competentes Beat Boys também conheciam muito bem, mas sem o carisma dos Mutantes. Arnaldo, que possuía uma ambição intelectual maior, sentia mais o desnível cultural do trio em relação aos baianos. Os Mutantes não tinham lido os mesmos livros que eles, não receberam uma formação cultural tão ampla, além de serem mais jovens — Rita e Arnaldo tinham seis anos a menos que Gil e Caetano. Dos três, só Rita chegara à Universidade. Começou a frequentar o curso de Comunicações da Universidade de São Paulo (na mesma classe da futura atriz Regina Duarte), mas o abandonou para se dedicar mais ao conjunto. Pela mesma razão, Arnaldo só cursou o colégio do Mackenzie até o segundo ano do clássico; Serginho desistiu ainda no ginásio. Para Gil e Caetano, porém, esses detalhes não chegavam a incomodar. Ao contrário, a vivacidade adolescente e a alegria iconoclasta dos Mutantes, invariavelmente com milhares de ideias nas cabeças, provocavam, incitavam os baianos. Tudo podia ser motivo de blague, de piada, de gozação. Os garotos traziam um modo debochado de fazer humor, muito diferente da atitude mais compenetrada dos músicos da bossa nova e da chamada MPB. Os três também mandavam às favas o conceito tradicional de elegância, até então apoiado no paletó, camisa, calça e sapato, ou mesmo no smoking, quase um uniforme nos programas e festivais de música da TV. Para os Mutantes tudo era válido: usar gravara com tênis e calça de veludo até as mais bizarras fantasias e adereços. Gil, que ainda vivia atormentado pelas reações negativas dos colegas da área musical a seu novo trabalho, aprendeu com Serginho algo muito importante. Aos 16 anos, naquela época, o garotão tocava tudo o que lhe desse na cabeça: Mozart, Beatles, Bach ou Rolling Stones, sem dar a mínima atenção ao que os outros músicos iriam pensar. O que importava era o seu prazer de tocar ou cantar. No fundo, era com essa liberdade que Gil sonhava. Queria afugentar de vez o 56