A Divina Comédia dos Mutantes
9. PERIGO NA ESQUINA Tudo indicava que seria uma esculhambação em dose dupla. Em setembro de 68, os Mutantes se preparavam para participar do 30 Festival Internacional da Canção, o popular FIC, em duas frentes. Iam defender Caminhante Noturno, de Arnaldo e Rita, incluída entre as 24 concorrentes da fase paulista do evento (também tinham inscrito Aleluia, Aleluia, que não foi classificada). Ao mesmo tempo, aceitaram acompanhar Caetano Veloso em É Proibido Proibir, canção escalada para a mesma eliminatória, no dia 12. Os garotos já andavam incomodados com o papel de coadjuvantes que sentiam estar desempenhando na trupe tropicalista. Assim, definiram uma estratégia de ação: tentar atrair mais atenção para o trabalho próprio do conjunto, sem abandonar as colaborações com os baianos. Com o tempo, os três “afilhados” de Gilberto Gil também se aproximaram mais dos outros tropicalistas. Rita, Arnaldo e Serginho frequentavam diariamente os apartamentos que Caetano e Guilherme Araújo alugaram no prédio de esquina da avenida São Luiz com a Ipiranga. Recém-casado, Caetano morava com Dedé Gadelha, no 20º andar; Guilherme vivia no 18º. Após a mudança dos amigos, Gil ainda permaneceu algum tempo no Hotel Danúbio, até conseguir um apartamento próximo ao deles, na continuação da avenida São Luiz, junto ao Colégio Caetano de Campos. Não fosse a insistência de Guilherme, Caetano jamais pensaria em inscrever É Proibido Proibir no FIC. Tinha composto essa canção algumas semanas antes, também por sugestão do empresário. A ideia surgiu quando Guilherme folheava uma revista Manchete, que trazia uma reportagem especial sobre as barricadas estudantis em Paris. “Caetano, olhe que coisas lindas eles picharam nas paredes: ‘E proibido proibir’. Esta frase é linda!” Caetano concordou, mas só depois de muita insistência de Guilherme acabou fazendo uma canção com o slogan do movimento francês. No entanto, mal ficou pronta, ela foi engavetada. O compositor achou sua música meio primária. Também não gostava da ideia de repetir uma frase feita em uma letra de canção, apesar de achá-la engraçada. “Aquela música não tem interesse algum”, respondeu a Guilherme, quando este sugeriu que a inscrevesse no festival, semanas depois. Mais tarde, porém, Caetano voltou a pensar no assunto. Foi quando teve a ideia de transformar a dita cuja em uma peça experimental. Planejou acrescentar uma introdução atonal e terminá-la com uma espécie de happening, incluindo um poema de Fernando Pessoa. Dessa forma, É Proibido Proibir seria apenas o pretexto para uma provocação musical. Caetano já tinha começado a trabalhar na canção com os Mutantes e Rogério Duprat, a quem pediu que estruturasse o arranjo, quando soube que Gil também estava ensaiando com os Beat Boys uma nova composição para o FIC, chamada Questão de Ordem. Um ano depois do impacto de Domingo no Parque e Alegria, Alegria no festival da Record, os dois baianos pareciam ter decidido trocar de parceiros, em mais uma curtição tropicalista. Mas eles garantem que foi mero acaso. Pelo clima agressivo da eliminatória, já era possível prever uma verdadeira guerra na final paulista do FIC. Perto das vaias e alguns tomates que receberam junto com Caetano, durante a primeira apresentação de É Proibido Proibir, os Mutantes até podiam pensar que Caminhante Noturno não desagradou a maioria das 1200 pessoas que lotavam o Teatro da Universidade Católica (o TUCA), naquele 12 de setembro, uma quinta-feira. Nem mesmo as fantasias de urso que Rita escolheu para Serginho e Arnaldo irritaram tanto a ala mais conservadora da plateia como a exibição de Caetano. 65