38 Edição - Justiça com A

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira Juiza Desembargadora

“AINDA ME LEMBRO DAQUELE AMANHECER EM QUE O MEU PAI ME LEVOU PELA PRIMEIRA VEZ A VISITAR O CEMITÉRIO DOS LIVROS ESQUECIDOS.” ZAFON - A SOMBRA DO VENTO

Seremos os desenhadores do perfil sociológico dos nossos filhos? Geneticamente apenas? Que nos ensinam as conversas em casa, as conversas de rua nos almoços de domingo com os amigos dos pais, os encontros das férias a estalarem de gente que não dorme e acorda cedo, à mesa, à volta das conversas? Lembro-me disso e dos exemplos dados para explicar muitas coisas que a Vida nos atira para a frente no percurso que temos de fazer mesmo sem o sabermos. Ainda me lembro daquelas tardes em que o meu pai me levava ao Alfarrabista, não era em Barcelona, mas era em Lisboa, lá em cima, na Trindade. Lembram-se do Alfarrabista da Trindade? Não, não é a Livraria Trindade é a Livraria Barateira. Ocupava duas salas tinha sido uma cavalariça do antigo Convento da Trindade e encerrou, infelizmente em 2012. Não sei que segredos lá terá dentro ainda, mas lamento o desaparecimento de algo que fazia parte do meu percurso pedestre pelo Chiado, de mão dada com o meu pai. Era um Mundo de livros, de capas a preto e bege envelhecido ou vermelho rubro já espaçado nos tempos, livros amarelados nas pontas de um silêncio folheador de contos, um espaço de um homem sério que não falava muito e parecia sempre aborrecido com a Vida no meio de tantas vidas escritas. Sabia tudo... onde estavam os livros, o que tinham

dentro e o que comprar e levar se a pergunta era por autor ou, quem era o autor se a pergunta era por título. E sabia dos assuntos... Divertia-me a abrir os livros, tinham todos uma dedicatória escrita a tinta permanente, pareciam todas feita pela mesma pessoa, ... mas não, ... tanto as datas como os nomes que assinavam eram diferentes. Mesmo antes de saber ler eu ía lá.... havia livros em que me demorava a olhar atentamente as capas para perceber se os desenhos me ensinavam a ler o interior... Era um Mundo... Ainda guardo alguns livros comigo... Alguns falavam de segredos sobre política, outros ensinavam-nos, como escola, leis, viagens, falavam do corpo humano... . Os que mais me confundiam eram os que falavam de escravatura... as capas eram sempre tão dolorosas que os meus olhos chegavam a revoltar-se com elas e sentia uma angustia enovelar-se no meu peito como uma dor impotente e antiga, como se aqueles pulsos atados aos tornozelos fossem meus. Eram esses e os de catequese, sempre com gente a arder dentro e mesmo assim a rezar. Até o livro da 1º Classe me deixava desconfortável logo com a primeira imagem em que me fixava e representava sempre uma mãe de avental, um pai vindo de um trabalho rural e os filhos lavadinhos (um rapaz e uma rapariga), muito felizes e contentes.... Sabia sempre que os livros de história só me falavam “do que era para falar”, ... era por isso


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