40 EDIÇÃO

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OUTUBRO '20 40ª Edição

6 ANOS


6 ANOS

Direcção: Adelina Barradas de Oliveira Design e Produção: Diogo Ferreira Inês Oliveira Site: www.justicacoma.com Facebook: JUSTIÇA COM A


5 EDITORIAL ESTA JUSTIÇA NÃO É PARA... 8 10 PANO PARA MANGAS 12 CRITICA LITERÁRIA 14 O JUIZ NO CENTRO DA REVOLUÇÃO... E O MAR LOGO ALI 18 20 NÃO VOU DIZER NADA SEM... RÉ EM CAUSA PRÓPRIA 24 CANTINHO DO JOÃO 26 28 FLORES NA ABÍSSINIA 32 VOCÊ CORTA A ETIQUETA? EXTRA 34 FOTOS DE FERNANDO CORREA DOS SANTOS

FERNANDA DE ALMEIDA PINHEIRO

MARGARIDA VARGES

ANTÓNIO GANHÃO

JOÃO ANTÓNIO FILIPE FERREIRA

ANA GOMES

ISABEL MALHEIRO ALMEIDA

ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

JOÃO CORREIA

CARLA COELHO

MARGARIDA DE MELLO MOUSER

LÍCINIA QUITÉRIO



EDITORIAL PERSISTÊNCIA OU SORTE? PODEMOS ATÉ PENSAR QUE É MILAGRE 6 ANOS VOLVIDOS SOBRE A CRIAÇÃO DESTA REVISTA E AINDA CONTINUAMOS A VIR TER CONVOSCO DE 2 EM 2 MESES. PODE SER UMA TOLA PERSISTÊNCIA DA NOSSA PARTE OU, APENAS, UMA ENORME SORTE DE NOS IRMOS CRUZANDO CONVOSCO E COM OS VOSSOS ESCRITOS. QUE TERÁ O JOÃO ESCRITO ESTE MÊS NO SEU CANTINHO? QUE LIVRO ANDARÁ A LER DESTA VEZ? QUE ESCREVEU A ANA GOMES ESTE MÊS NO MEIO DOS SEUS AFAZERES PROFISSIONAIS E FAMILIARES? E A CARLA COELHO QUE HISTÓRIA NOS CONTARÁ? LEIAM A CRÍTICA LITERÁRIA E NÃO PERCAM DOIS TEXTOS FANTÁSTICOS DE DUAS ADVOGADAS LUTADORAS E EM ALERTA COMO DEVEM ESTAR TODOS OS QUE SÃO DE DIREITO. DEPOIS FAÇAM-SE A PERGUNTA: - E SE FOSSE COMIGO? ESTAMOS ON LINE HÁ 6 ANOS E HOJE CONCLUÍMOS QUE A TECNOLOGIA NÃO É SÓ ESTAR ON LINE, É O FUTURO E, OS TRIBUNAIS JÁ ENVEREDARAM POR ESSE CAMINHO. ESTAMOS NO MÊS DE MARIA. DEIXAMO-VOS IMAGENS ANTIGAS DE UMA ÉPOCA DE FÉ SEM PANDEMIA. CONSEGUIMOS TRAZER POESIA PORQUE OS POETAS FAZEM REVOLUÇÕES CONVIDÁMOS OS DO COSTUME E GENTE NOVA PARA ESCREVEREM CONNOSCO. E QUEREMOS CONVIDAR-VOS A FICAREM MAIS UMA VEZ CONNOSCO. PARABÉNS À EQUIPA QUE SE MANTÉM FIRME.


FOTO: FERNANDO CORREA DOS SANTOS



FERNANDA DE ALMEIDA PINHEIRO JURISTA

E ESTA JUSTIÇA? É UMA JUSTIÇA P D

iz-se que a maturidade de um estado de direito se afere pela forma como se posiciona perante os seus arguidos, as suas crianças e os seus idosos. Faz sentido que assim seja, por razões óbvias. São os cidadãos mais frágeis aqueles que enfrentam o poder judicial punitivo do Estado, aqueles não têm voz (por razões de incapacidade física ou psiquiátrica), sendo, por isso, imperativo que as regras processuais sejam, não só, estritamente cumpridas, como céleres na sua tramitação judicial, porque garantem direitos fundamentais constitucionalmente protegidos. Num país como é o nosso, onde uma boa parte da população se encontra extremamente envelhecida, e por via dessa condição, surgem cada vez mais situações de demência grave, perturbações psiquiátricas e outras, que limitam de forma total a capacidade de autodeterminação individual destes/as

cidadãos/as, deve a justiça ser especialmente cautelosa com a aplicação de medidas (ainda que provisórias) e com celeridade da tramitação processual, sob pena de, como tantas vezes sucede, se tornar absolutamente inútil a tão necessária intervenção judicial, como forma de assegurar os referidos os direitos fundamentais destas pessoas. E é isto que muitas vezes sucede com os processos de Maior Acompanhado que foi profundamente alterado 2018, através da publicação da Lei 48/2018, de 14/08, precisamente com o objetivo de garantir um muito maior respeito pela individualidade e vontade destes/as cidadãos/as. Em regra, as “complicações” destes processos estão intrinsecamente relacionadas com as relações entre familiares (ou a falta deles), o património (mobiliário ou imobiliário) do Acompanhado, ou até do acesso a uma simples pensão de reforma.


ARA “VELHOS”?... Nestas ocasiões, especialmente aquelas que implicam um património generoso, ou a ausência de herdeiros legítimos ou legitimários, surgem, quase sempre, de forma súbita e inusitada, inúmeros “interessados/as” em “Acompanhar” estes maiores, mantendo muitos deles/as inteiramente reféns das suas vontades próprias e arbitrárias, desrespeitando os direitos pessoais dos Acompanhados, o seu património, tudo isto com total o beneplácito de instituições de saúde (em caso de internamento sénior) e com a “habitual” morosidade do sistema judicial. É uma questão antiga esta a constante falta de recursos humanos nos tribunais do país, pese embora as constantes promessas realizadas ao longo de décadas de campanha eleitoral pelas forças partidárias candidatas a eleições, porém, as medidas de acompanhamento, ainda que provisórias, tendem a prolongarse durante meses ou anos, sem que sejam ouvidos os visados, sem que sejam apuradas as circunstâncias da sua vida e da vontade presumida, com consequências nefastas para as

suas vidas e para os seus patrimónios. É demasiado fácil “tomar posse” de um ser humano (que pode ser até o nosso pai ou a nossa mãe) e decidir, em seu nome, o local onde este/a passará a residir, quem o/a pode visitar, quem pode obter informação sobre o seu estado de saúde, como é despendido o seu dinheiro e como gerido o seu património, mesmo sabendo estas decisões são totalmente contrárias àquela que foi sempre a sua vontade, o seu estilo e modo de vida, sem que a autoridade judicial reaja, atempadamente, para proteger e garantir os direitos pessoais do Acompanhado. Não é para crianças, este país mas, definitivamente, também não é para “velhos”!


L

i, algures por aí, que “a educação é o princípio de qualquer mudança” e, desde então que esta frase não me sai do pensamento. E porquê? Porque me sinto no meio de um deserto onde me oriento pelas estrelas e por uma bússula nem sempre certeira Se, por um lado, há quem associe a palavra educação aos valores e ensinamentos que são transmitidos em casa, outros há que fazem uma conexão directa aos bancos da escola. O equilibrio entre as partes seria o ideal para o desenvolvimento do indivíduo enquanto pessoa e ser social. Seria pedir demais, não? Uma verdadeira utopia, pois se há algo que não existe em sociedade é perfeição... Deste (des)equilibrio apenas me compete fazer uma análise enquanto filha – no seio de uma familia estruturada – e enquanto professora de pequenos-grandes seres humanos fruto, inúmeras vezes, de um descontrolo de valores, de ideais e sentimentos. A amostra que carrego no curriculum pode não ser grande, mas é,

certamente, representativa da geração futura. Sempre que entro numa sala de aula ou abro a porta de minha casa a estes miúdos experiencio a visão do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. Até os posso conhecer de anos anteriores, mas são sempre pessoas novas que tenho na minha frente, e isso é um desafio que pode tomar proporções dantescas. Não é o documento que me é entregue com o histórico escolar e familiar que me faz saber com o que conto: há humores, feridas e permanentes dores de crescimento. Quem disse que ser adolescente é fácil? Nós, adultos, e que deixámos a adolescência lá atrás já nos esquecemos de como foi connosco... E é neste contexto que, para mim, ensinar é, sobretudo, aprender. É uma lição de humildade. É aprender com as diferenças dos outros. É entrar em suas casas sem sequer saber o endereço ou o código postal. É lidar com realidades desiguais.


MARGARIDA VARGES PROFESSORA PANO PARA MANGAS

DENTRO DE UMA SALA DE AULAS Neste ponto inicia-se o processo de conquista! Conquistar o quê? Quem acha que conquistar um adulto é difícil - no amor, na amizade ou até profissionalmente - é porque nunca teve de cativar um adolescente - essas criaturas, por vezes, aborrecidas, de mal com a vida e que não sabem se se hão-de virar para a esquerda, se para a direita ou ir em frente. Por vezes nem nós, adultos, sabemos... Há miúdos fáceis. De sorriso aberto e palavras leves - estão de bem com eles e com os que os rodeiam, são naturalmente simpáticos e com quem se pode ter uma conversa franca , afável e amigável. Há também os difíceis. De cara fechada, palavras duras demais para a idade e a quem é complicado arrancar um sorriso. Também há os que se fazem de rufias, mas a esses com alguma habilidade é descomplicado fazer cair a máscara. O ser fácil ou difícil pode estar na sua natureza, mas é também, muitas vezes, fruto

de vivências em núcleos distintos – aqueles onde sou obrigada a entrar, sem ter de pisar o mesmo chão. É um desafio gigante! E talvez por eu própria não ser uma pessoa de fácil conquista, tenho um prazer imenso em trazer a água ao meu moinho. Os durões são os que mais mexem comigo, os que carrego para o sono e os sobre quem insisto e persisto em não desistir, mesmo quando os própios abdicam de si próprios, apesar da sua tenra idade. Cada sorriso sabe-me a vitória. Cada confidência sabe-me a confiança. Passo a passo eu chego lá. E depois? Ahh depois farei uma festa, porque neste caminho não irei sozinha. Levarei comigo os sorrisos fáceis e levantarei no colo os mais difíceis de arrancar! É assim a vida dentro de uma sala de aula, a cada ano, a cada turma, a cada aluno.


ANTÓNIO GANHÃO Critico Literário

SOBRE...

QUEM DISSER O CONTRÁRIO É PORQUE TEM RAZÃO MÁRIO DE CARVALHO Mário de Carvalho, nome consagrado nas letras portuguesas, conto e romance, decide-se por esta irrequietude lúdica e didática: escrever um Guia Prático de Escrita de Ficção. Num registo humorado, aborda o tema de forma assertiva. O guia estrutura-se em seis pontos nos quais o autor vai alertando para os vícios e falhas mais comuns do aprendiz da escrita ficcional, bem como vai apontando caminhos, citando autores falecidos ou consagrados para não perturbar a suscetibilidade dos vivos que deem pela sua ausência. Sendo impossível abordar toda a riqueza deste manual, optei por destacar algumas das considerações do autor, na esperança de abrir o apetite para a sua leitura. Dando largas à minha preferência começo pelo alerta para a escrita que se esgota no seu tempo, que recorre a frases feitas que dispensam a reflexão. A metáfora apêndice, que se pendura no fim de uma frase a partir de um “como”, a impedir que o texto respire. O aforismo redutor, a metáfora justificativa sem qualquer efeito didático, são

algumas das armadilhas a que o novel escritor deve evitar. Não se intimide o aprendiz com a dimensão da tarefa, o autor deste guia prático, também tem os seus momentos de menor vigilância. Sobre as narrativas que se baseiam em histórias simples, do género contos de fadas, alerta: “Faltam elementos complicativos que ocultem uma estrutura à mostra, como os andaimes dum prédio que ficassem exposto depois de um restauro.” A famigerada metáfora apêndice, precedida por um “como”, a fechar uma imagem. E, no entanto, quem sabe está autorizado a “pisar a relva”. O que suporta a narrativa? O primado da ação ou do personagem? A história ou a ideia de um leitor que se pretende entreter? O autor não se deve conformar com essa estreiteza de pontos de vista, lance-se na “irrequietude lúdica” e crie o seu próprio leitor, “um que o mereça”. E lembre-se, no domínio da ficção é o que podia ter acontecido e não o que aconteceu.


Sobre a necessidade da planificação da escrita, Mário Carvalho deixa-nos algumas pistas, recordando com ironia, que a “improvisação é excelente para os rouxinóis”. Nada fica ao acaso, sinopse, prefácio, posfácio, lombada, capa, frase promocional e frase de abertura do romance, tudo merece a atenção de quem tem muitos anos do métier da escrita. Os romances das pequenas letras, para edificação do candidato a escritor, também são abordados sem qualquer preconceito. “Sem querer esvaziar o mar à colherada, a água nem deu para meio balde”, confessa o autor na nota prévia. Não desanime o leitor, e se pretende lançar-se no domínio da escrita ficcional não deixe de ler este livro. E se no fim discordar, faça a contraprova: leia, leia muito. “Sobre a literatura abunda a frase feita. Em uma espécie de poder atractivo de pararaios. A todo o propósito, vemos gente a perorar sobre o assunto à solta, sem a menor reflexão, com o mesmo à-vontade com que o rei Artur de Mark Twain discorria sobre a árvore das cebolas.”

“Sem querer esvaziar o mar à colherada, a água nem deu para meio balde”

Quem disser o contrário é porque tem razão, de Mário de Carvalho, Porto Editora, 2014.


JOÃO ANTÓNIO FILIPE FERREIRA Juiz de Direito desde 1998, exercendo funções no Juízo Central Crime de Coimbra desde Setembro de 2012 (antes de 2014, Vara Mista de Coimbra) Integrou o grupo de trabalho para implementação do Programa “Workplace do Juiz” em 2011 Formador em ações de Formação do CEJ no âmbito das Ferramentas e Tecnologias aplicáveis ao Judiciário desde 2018. Embaixador da plataforma “Magistratus” Membro integrando do Grupo GAVPM (grupo de apoio junto do CSM à aplicação WEBEX). Interessado por todas as temáticas relativas ao Digital no Direito, com especial enfoque na Cibercriminalidade e na Proteção de Dados.


O JUIZ JUIZ NO NO CENTRO CENTRO O DA REVOLUÇÃO REVOLUÇÃO DIGITAL DIGITAL DA Nunca como hoje as pessoas percecionam o digital na sua vida diária. Seja porque o telemóvel se constitui hoje para muitos como uma verdadeira extensão da sua personalidade; seja porque os dispositivos digitais em geral são hoje verdadeiras ferramentas de uso diário, sem os quais dificilmente conseguiríamos gerir a nossa vida diária como o fazemos; seja, por último, porque nestes tempos de pandemia, as ferramentas digitais ao nosso dispor tornaramse peças essenciais para a manutenção de um conjunto de atividades sociais que de outro modo não eram possíveis. Ao contrário do que, numa primeira análise, se poderia concluir, a esta transformação digital não só não é alheio o papel do Juiz, como este é central na mesma. Compreender esta centralidade pressupõe a compreensão das dinâmicas subjacentes desta revolução digital. Desde logo, é essencial compreender que não estamos perante uma simples evolução tecnológica, mas de uma verdadeira revolução digital, centrada, não tanto na omnipresença dos dispositivos digitais na nossa vida diária, mas antes na confluência de três evoluções tecnológicas, subjacentes àqueles e que interagem entre si, potenciandose exponencialmente: a Cloud Computing, a Big Data e a Inteligência Artificial. Na última década, os dados gerados pela atividade humana não só cresceram exponencialmente, exigindo novas formas de armazenamento e gestão, levando ao surgimento do armazenamento em servidores remotos (Cloud Storage) e a agregação a

estes de novas ferramentas de gestão e processamento em ambiente virtual (Cloud Computing), como os mesmos passaram a ser tratados de uma forma sistemática, estruturada e agregada (Big Data), apenas possível pela utilização de novas ferramentas de Inteligência Artificial (entendida esta no sentido mais amplo, abrangendo no essencial as vertentes de Machine Learning e Deep Learning). Se é indiscutível de que a utilização destas novas tecnologias, em conjunto, permite acelerar exponencialmente o progresso humano em áreas tão sensíveis como a saúde, a verdade é que as mesmas potenciam também a criação de novas distorções e desigualdades sociais, designadamente reproduzindo e acentuando padrões de discriminação económica, religiosa, étnica e racial. Neste domínio, o Direito tem cada vez mais um papel decisivo na estruturação do desenvolvimento destas novas tecnologias, enquanto agregador dos valores que uma comunidade entende serem essenciais para o seu harmonioso desenvolvimento e que se impõe ao desenvolvimento tecnológico. Mais do que saber o que é possível atingir numa perspetiva de desenvolvimento tecnológico, a questão que hoje cada vez mais se coloca é o de saber qual o desenvolvimento tecnológico socialmente aceitável e sustentável, isto é,


O JUIZ NO CENTRO DA REVOLUÇÃO DIGITAL

contra ataques cibernéticos (cybersecurity by design) e a capacidade das autoridades policiais e judiciárias de investigarem e julgarem os factos ilícitos cometidos com recurso a tais tecnologias.

qual o equilíbrio que em todo este processo deve existir entre as potencialidades do desenvolvimento tecnológico e o respeito pelos recursos naturais e os direitos fundamentais de cada cidadão. No seguimento dos estudos do filósofo Hans Jonas, hoje mais do que nunca os debates nesta área centram-se na definição daquilo que se define por uma “ética do futuro” aplicável ao desenvolvimento tecnológico. Neste plano, a intervenção do Direito no desenvolvimento tecnológico tem que ocorrer na fase inicial da conceção e criação dos algoritmos que estarão na base das futuras tecnologias, por forma a assegurar, desde logo, a proteção dos dados pessoais dos seus utilizadores (privacy by design), a proteção

Em complemento desta atuação, será exigido, desde logo, aos Magistrados Judiciais que se reúnam das competências necessárias para não só compreender a questão jurídica em litígio, como as tecnologias utilizadas e em que medida as mesmas implementaram na sua criação e desenvolvimento os princípios estruturantes que asseguram o respeito dos direitos fundamentais de cada utilizador. Esta apreciação judicial constitutiva eleva o grau de exigência imposta ao trabalho de cada um dos Magistrados Judiciais, colocando-o no epicentro desta revolução digital. Acresce que esta revolução digital encerra em si mesmo todas as condições para transformar internamente o judiciário. Desde logo, a criação de bases de dados estruturadas geridas com recurso à inteligência artificial, potenciará a criação de padrões de decisão que, em última instância, se traduzirão na possibilidade de criar uma justiça padronizada, em que as decisões podem ser antecipadas com recurso à análise dos dados já existentes quanto à questão jurídica em litígio ou mesmo atento ao padrão de decisão daquele concreto Juiz. A partir deste ponto intermédio da evolução do judiciário é


expectável que se comece a colocar a questão da possibilidade de utilizar a própria inteligência artificial para a resolução de litígios, destruindo, deste modo, toda a noção de Justiça que ancorou o desenvolvimento das sociedades modernas. Noutro plano, esta evolução tecnológica transformará grande parte dos institutos jurídicos em que se alicerçou o judiciário no último século. A utilização da inteligência artificial no domínio da mobilidade, da condução autónoma e da prestação de serviços de condução autónoma levará irremediavelmente à transformação dos conceitos de imputação, causalidade adequada, culpa, ilicitude e, em última instância, do instituto da responsabilidade extracontratual; a utilização dos smart contracts, como novos instrumentos de contratualização, reconfigurarão toda a teoria da formação dos contratos, tornando, inclusive, obsoletas algumas das noções clássicas dos vícios do negócio jurídico; a criação e utilização de avatares nas redes sociais e na “vida digital” dos cidadãos, a difusão do 5G aliado à massificação da IoT (Internet of Things) moldarão a futura construção dos direitos de personalidade; a criação de patentes com recurso exclusivo à inteligência artificial criará não só novos modelos económicos, como conduzirá, em última instância, à alteração do conceito de patente e respetivos requisitos de admissibilidade; a nova criminalidade essencialmente transnacional assente em ferramentas digitais de largo espectro, com recurso a bots, botnets e malware customizado para específicos ataques e adquirido na darknet em transações virtuais,

aproveitando as fragilidades das infraestruturas resultantes de outros ataques cibernéticos, muitos deles provocados direta ou indiretamente por Estados soberanos, levarão ao surgimento de novas realidades com relevo jurídicopenal, não traduzíveis nos princípios clássicos estruturantes do direito penal, seja o princípio da territorialidade, sejam os conceitos de autoria, culpa e ilicitude; as novas práticas laborais assentes na utilização de ferramentas digitais de trabalho à distância e de coadjuvação da inteligência artificial, aliadas a novos fenómenos de certificação biométrica, de videovigilância e reconhecimento facial, conduzirão à reconstrução de novas relações laborais e respetivos institutos jurídicos; a potenciação de novas dinâmicas sociais e familiares em ambiente digital, assentes na ideia de “relações virtuais”, irão moldar o direito da família e dos menores no século XXI; por fim, a utilização massiva das criptomoedas e a massificação das redes blockchain, pressionarão decisivamente as noções clássicas de juros, circuito e proveito económico, conceitos fundamentais no âmbito do direito fiscal. Em conclusão, ao Juiz neste século XXI pedese que seja um ator principal desta revolução digital, enquanto garante dos direitos fundamentais dos cidadãos e defensor do primado da Justiça sobre a tecnologia.


E O MAR LOGO ALI Ana Gomes Juíza de Direito


A ACTRIZ E A JUIZA

O nosso pai perguntou à nossa mãe porque é que não esperámos por ele. Ela não respondeu. O nosso pai levantou a colher cheia, esperou e atirou-a para dentro do prato. E perguntou porque é que não esperámos por ele. A nossa mãe não respondeu. Cada vez mais zangado, os seus olhos a mudarem, voltou a perguntar porque é que não esperámos por ele. A nossa mãe não respondeu. Levantou-se de repente, a cadeira caiu de costas. Deu dois passos na direcção da nossa mãe (…) José Luís Peixoto, Cemitério de pianos, 2006, Quetzal editores

A mãe da citação é a personagem escolhida por Margarida na adaptação que está a fazer para o teatro. Como representar esta mãe que vai ser agarrada pelos braços e empurrada, vai cair de joelhos no chão da cozinha e, no fim, será salva pela mão do filho Simão quando o pai já leva o braço no ar ? Como fazer o espectador acreditar no drama desta mulher sem nunca ter tido um pai bruto ou um namorado violento? Onde vai buscar a emoção autêntica e emprestá-la àquela vida como se fosse a sua ? As vidas que vive uma atriz multiplicamse ao longo de uma carreira de anos, mas Margarida é atriz há muito pouco tempo. Decidiu não seguir a par da irmã mais velha que é juíza e que lhe diz que não conseguiria encarnar tantas personagens, que lhe encheriam a cabeça, cheia de contradições, até explodir. A verdade é que nas conversas cúmplices que sempre têm quando se encontram, Margarida espanta-se com a inteligência da irmã e o que vai na sua cabeça, vidas verdadeiras a sucederem a uma velocidade muito maior do que aquela com que ensaia e apresenta mais uma peça. Como lidar a cada dia com o drama real de várias famílias ? Como reagir à situação da mãe quando não é salva pelo filho Simão ou quando é o Simão a vítima direta da violência ? Para onde deita a emoção autêntica à medida que o relato dos factos se sucede ? A irmã juíza empresta essa emoção à irmã Margarida e a peça acaba de estrear com plateia de pé!


ISABEL MALHEIRO ALMEIDA

É advogada inscrita pela Comarca do Porto e exerce advocacia em prática individual desde 2000.

NÃO VOU DIZER NADA SEM O MEU ADVOGADO


Amiúde, nas séries ficcionais que nos chegam através da televisão, independentemente do país de origem, ouvimos a expressão “ não vou dizer nada sem o meu Advogado”. Está assim enraizado em qualquer Estado de Direito Democrático o direito fundamental de o cidadão poder fazer-se acompanhar por um Advogado perante qualquer autoridade. Este direito, em Portugal, encontra-se consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa. Passados vinte anos de exercício da advocacia percebi que Portugal não é um Estado de Direito Democrático já que este direito fundamental é totalmente aniquilado quando se trate da aplicação da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho). Qualquer cidadão que seja portador de “anomalia psíquica grave” está sujeito a ser privado da sua liberdade através do mecanismo de internamento compulsivo urgente, sem que se lhe garanta o direito a fazer-se acompanhar por Advogado. A Autoridade de Saúde decreta a sua condução para a avaliação psiquiátrica, que é feita numa consulta de vinte minutos (quando há tempo para tanto), onde se detecta por norma uma “anomalia psíquica grave” e o cidadão é, também por norma, internado contra a sua vontade, comunicando-se o seu internamento ao Tribunal competente acompanhado do relatório de avaliação psiquiátrica, é solicitada a nomeação de um Advogado ao internado, e em 48 horas o juiz confirma o internamento. Assim à primeira vista qualquer leitor é levado a pensar- finalmente alguma coisa se passa

com celeridade nos Tribunais. Pois é todo este sistema, absurdamente kafkiano que viola os direitos fundamentais dos cidadãos. E a violação começa logo na condução do cidadão ao estabelecimento hospitalar para a referida avaliação. É que, em abstracto, basta que qualquer pessoa se dirija ao Ministério Público, apresente uma queixa que o Senhor Magistrado entenda enquadrar-se na Lei de Saúde Mental, ou seja, naquele conceito vasto e indeterminado de “anomalia psíquica grave”, para que todo este procedimento seja desencadeado. E em menos de vinte minutos diagnosticase a dita anomalia grave, administra-se-lhe medicação sem o seu consentimento e privase o cidadão de um dos seus maiores direitos fundamentais - a liberdade. Tudo isto por decisão médica, sem a intervenção de qualquer juiz nas primeiras 48 horas. E, apesar da bondade legislativa em referir que o cidadão tem o direito a ser informado, por forma adequada, dos seus direitos bem como do plano terapêutico proposto e seus efeitos previsíveis, e a receber tratamento e protecção, no respeito pela sua individualidade e dignidade, de facto, tal não sucede. O cidadão não tem direito a falar com um Advogado, não tem direito a fazerse acompanhar pelo Advogado perante as autoridades de saúde, aparecendo processualmente o Advogado depois de se terem violado todos os direitos daquela pessoa


NÃO FALO SEM O MEU ADVOGADO

sem qualquer explicação, surgindo o Advogado para formalmente criar a aparência de que os direitos fundamentais foram respeitados. Até porque quando tem conhecimento, o cidadão já está internado em estabelecimento hospitalar psiquiátrico onde há sempre inúmeros fundamentos clínicos para impedir que o Advogado conferencie com o internado. E não, não se trata de flagrante delito ou de casos em que há efectiva lesão de bens jurídicos, na maioria dos casos. Para que o internamento seja decretado, basta que essa possibilidade se possa conceber, ou seja, sendo todos nós criminosos em potencial de acordo com a psicologia/psiquiatria criminal, à luz desta lei, se calhar temos de ser todos internados. Quem leu “O Mistério da Légua da Póvoa”, de Agustina Bessa-Luís, publicado no ano de 2004, pelo jornal O Independente, não ficou indiferente

a essa narrativa que arranca da realidade de forma romance-folhetim literalmente magnífica. Maria Adelaide, uma mulher bela, de grande fortuna, vive em Lisboa e frequenta a sociedade ou esta frequenta a casa dela. É casada com um homem influente, um “casamento malparado”. A dada altura foge com o seu chauffeur, por quem estaria apaixonada. Em consequência é detida e internada no Hospital de alienados do Conde Ferreira em 28 de novembro de 1918. Os peritos-psiquiatras eram nada mais nada menos: o Dr. Magalhães Lemos, director do Hospital de Conde Ferreira, do Porto, o Dr. Júlio de Mattos e o Dr. Sobral Cid, director e adjunto do manicómio de Miguel Bombarda, de Lisboa; os doutores Egas Moniz, Curry Cabral, Costa Nery, Raúl Bensaúde, e outros, que em tudo concordaram com os colegas. Um caso de loucura afectiva, o de uma mulher apaixonada pelo seu motorista e que deixara a


família, conforto, bens e prestígio moral e social, para seguir para um lugar inóspito e longe do mundo. Impressiona o atestado dos médicos alienistas: “que a mesma senhora é uma degenerada hereditária, na qual se se vem manifestando em relação com a menopausa, graves perturbações dos afectos e dos instintos que a privam de capacidade civil para reger a sua pessoa e administrar os seus bens” (p.42/43) Valeu-lhe o seu advogado. Já em 1942, Adolf Hitler amaldiçoou, em pleno Reichstag, uma “praga” que o incomodava quase tanto quanto os judeus. Disse: “eu não vou descansar até que cada alemão entenda que é uma desgraça ser um advogado”.


RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira Juiza Desembargadora

À Hora que vos escrevo ainda não mudou a Hora mas, quando me lerem, a Hora já mudou.

estes saltam entre estados de energia quando expostos a radiação de micro ondas.

E o que terá mudado com ela? O que mais me impressiona é que a hora voltou atrás. Será que para ter o sentimento que o poeta tinha de ter mais uma hora pela frente ou, porque uma política económica qualquer, estabelecida no globo, lhe ordenou que em vez de 7 devia ser 6 e em vez de 24 devia ser 23?

Para quem é leigo na matéria, de imediato regressamos às leis da física, às salas de aulas de física, ao rosto da professor de física... e depois despenhamo-nos e batemos de frente com um micro ondas........ Nada disso nos explica o que esses relógios atómicos fazem ou determinam quanto ao tempo que medem ou com o qual nos medem.

Um grande relógio de sala, daqueles de pé, que só as avós sabem como funciona e como estremece o silêncio pela noite fora, usa um pêndulo para controlar o Tempo,... um peso enorme e dourado que se balança, não oscila, de um lado para o outro em intervalos fixos como se cantasse: tão balalão, cabeça de cão, orelhas de gato, não tem coração, tão ba la lão ... e repete sempre com o mesmo intervalo de tempo até que corta o silêncio lá pela meia noite ou pelo meio dia... ou pelas Avé marias como o sino da Igreja. Um relógio atómico é muito mais complicado e, em vez do pendulo hipnotizador, usa as oscilações de átomos de césio à medida que

E isto para não falar dos relógios de rede ótica que funcionam a laser. E são muito, mas muito mais precisos, não evitando, contudo, que, uma qualquer política económica ordene à ordem natural das horas que fixe a meia noite uma hora antes ou, o meio dia uma hora depois. Indiferentes ao quão depressa roda o sol, os Chefes de Estado decidem a que horas muda a hora, e já se propõem há muito, controlar o outro Tempo, aquele que faz chover ou ir à praia. Mas isso já vem de 1940, imaginem! A Ciência e a Política. A Ciência que já nos marca 6 anos de existência ....e a política que


MUDA A HORA... E MUDA O MEDO?

nos diz quando escrevo que é uma hora depois, e quando me lerem uma hora antes. A Política que determina tudo porque os mercados económicos são mais rentáveis assim. E nós, que até precisamos de uma economia forte, lá vamos atrasando o relógio e a Vida. Lá vamos desviando o olhar e tapando o rosto, usando gel e temendo porque eles (dizia hoje uma senhora no telejornal à hora que vos escrevo isto), “eles mandam a gente fazer assim e assado, eles mandam ter medo “. E esta frase apanha-me como as Avé Marias do relógio de pé na sala da minha avó, e atira-me ao chão como a viagem de há pouco direitinha ao embate frontal com o micro-ondas e o relógio atómico dos átomos de césio. Eu julgava que o Medo era assim uma coisa em que ninguém mandava porque era tão inesperado como uma trovoada de Verão. Mas o medo é também algo que nos ensinam a ter... E lembro-me do meu pai me dizer: - Não precisas ter Medo, o escuro não existe. Se acenderes a Luz ele desaparece e está

tudo lá do que já lá estava. O medo é como o escuro,... não muda nada. Está tudo lá como antes de o sentirmos. Eles mandam ter Medo, mas nós só temos de perceber que quem manda no medo somos

O MEDO ENTREGA AS TUAS MÃOS AO MEDO E NÃO VIVERÁS. HÁ UM ESPAÇO DE ARBÍTRIO- ENTRE ACASO, ÉTICA, RESPONSABILIDADE, DEVER UMA FENDA PARA A CORAGEM. A VIDA CAMINHA PELA TERRA PASSOS DECIDIDOS ENTRE TUDO E NADA, UMA BREVIDADE IMPERCETÍVEL A ROÇAR OS NOSSOS ROSTOS. NADA RESTARÁ DEPOIS QUE AS HORAS CALAREM. ENTREGA TUA FACE AO MEDO E NÃO A VERÁS VIVA. SILVIA CHUEIRE


O CANTINHO DO JOÃO João Correia Juiz de Direito

P R E FÁ C I O S . N

unca li um prefácio, mas quando terminei a Conversa na Catedral tive que o fazer. Talvez para encontrar, de imediato e sem grandes esforços, uma opinião sobre o livro que me ajudasse a pôr as ideias na ordem. Sempre ouvi dizer que as pessoas, quando sofrem um acidente de viação, reconstroem a realidade de modo não muito fidedigno uma vez que devido ao choque ou trauma, nem sempre se recordam de tudo o que sucedeu de uma forma clara ou com nitidez. No dito prefácio encontrei diversas percepções sobre Lima, cidade que já tive o

prazer de visitar, opiniões sobre a política sul americana assim como um relato da nossa postura (europeia) face a esta. Só para o final é possível ler, no dito prefácio, sobre o livro de Llosa encontrando neste algumas comparações e exemplos que nos ajudam a compreender o que aconteceu. Não fosse esta a forma mais fácil de explicar algo complexo a alguém, através do exemplo ou da comparação. A obra é comparável a um caleidoscópio ou a um puzzle sendo a leitura da mesma realizada através daquele ou mediante o preenchimento das peças deste num exercício de elevada dificuldade que nos


deixa, não poucas vezes, frustrados. A compensação (ou frustração) surge quando, no final, nos recordamos da obra como recordamos uma pintura impressionista após a vermos exibida numa qualquer exposição. Ficam as impressões na memória causadas por uma técnica de cruzamento de narrativas levada à exaustão, não só capítulo após capítulo, mas também parágrafo a parágrafo e por vezes, até dentro do mesmo parágrafo. Há quem lhe chame realismo mágico. É pródiga em diálogos dando-nos a conhecer a sua história mediante uma

conversa entre Santiago Zavala e Ambrósio, entre Queta e Hortênsia, entre D. Fermin e Caio Bermudez, entre muitos outros. E para mim, que sempre achei que ninguém sabe escrever se não souber escrever diálogos, fiquei sem palavras (dúvidas houvesse). Recomendo a elaboração de um organograma de todas as personagens e o qual será tão impactante como uma supernova, mas certamente, tão bonita como esta também.


FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho Juíza de Direito

MATINAL Mariano acorda com o toque estridente de uma campainha. Olha para o relógio e fixa os números do mostrador: 03h30m. Silêncio. E depois novo toque. Quem será? Arrasta-se entorpecido até à porta e atende o intercomunicador, murmurando palavras que em pequeno lhe teriam valido doses generosas de pimenta na boca caso ousasse repeti-las junto da mãe. Quem é?, pergunta. A resposta tem o efeito de um comprimido Gurosan tomado em jejum. Lá em baixo, está o taxista a quem fretou o transporte àquela hora para o levar para o aeroporto de onde voará para Portland. Tem de apanhar aquele horroroso voo madrugador que o Antunes, o sacana dos recursos humanos, lhe marcou bem sabendo que o seu fraco são as manhãs. Mariano só é verdadeiramente ele mesmo a partir das 15h00, passado o pequenoalmoço, a leitura dos e-mails matinais, uma passagem pelas redes sociais e pelos gabinetes dos colegas, almoço e café. Aí sim, estava pronto para a sua máxima produtividade. Começar o dia de madrugada era-lhe anti-natural!, Diabo, a própria manhã era contrária à sua natureza

…Aliás, sempre tinha sido assim. Nasceu às 16h40m e toda a sua vida tinha tido horror a compromissos matinais. Hoje, porém, tem de ser diferente. Pede ao taxista que aguarde um momento. Veste-se à pressa, agarra na mala e desce as escadas a correr. Promete ao condutor que lhe paga o dobro se chegarem ao aeroporto em dez minutos. Arrependese da promessa ao verificar a velocidade a que o homem circula pela Avenida da República e mais à frente pela Estados Unidos da América, como se as duas as artérias estivessem fechadas ao trânsito. Não estão, claro. E quem também por lá circula é um veículo da polícia que se fez anunciar com sinais de luzes e uma indiscreta sirene. Mariano assiste com progressivo nervosismo à conversa entre o taxista e os dois agentes. O primeiro procura sensibilizar qualquer um deles para o facto de ser de madrugada e não haver trânsito. O insucesso da sua argumentação é manifesto. O mais jovem dos agentes limita-se a perguntar-lhe se acredita ser



FLORES NA ABÍSSINIA

a única pessoa que vai levar um cliente ao aeroporto. O outro agente nem se dá ao trabalho de honrar os argumentos do taxista com qualquer resposta ou sequer um olhar. Observa antes os documentos e o táxi, com aquele olho clínico de quem sabe o que procurar. Lá diz o povo que quem procura acha e muito rapidamente o silêncio substitui a prosápia inicial do condutor. Mariano já não tem sono. Olha para o relógio e percebe que está a pontos de perder o voo. Aproveitando o silêncio do taxista toma a palavra e explica que de facto é apenas o passageiro, até agradece a intervenção dos agentes, nem estava a perceber por que motivo o táxi seguia tão veloz, estava mesmo a pontos de ficar assustado com aquela condução selvagem. Ignora o olhar indignado do taxista que nada pode dizer sob pena de se enterrar ainda mais (e a julgar pelo movimento imparável da caneta do primeiro agente a preencher folhas no livro de multas, já tem muito com que se entreter). Os argumentos de Mariano não caiem em saco roto. Dá a sua identificação completa aos agentes, promete ser testemunha e comparecer onde e quando quiserem, conseguindo assim autorização para seguir viagem. Nova chamada, novo táxi. Esta viagem decorre em silêncio. O novo taxista está dividido

entre a alegria de um serviço inesperado e a infelicidade do colega, a que adivinha que a pressa do novel cliente não foi alheia. Mariano sente-se agoniado. Não comeu sequer uma fruta ou um pedaço de pão. O jejum, aliado às emoções da madrugada e ao nervoso miudinho de quem bem conhece os obstáculos que, chegado ao aeroporto ainda vai ter de transpor antes de se sentar no avião provocam-lhe uma agonia que o faz sentir meio zonzo. É neste estado que sai do táxi e atravessa um aeroporto quase vazio, situação que, estranhamente, lhe agrava as náuseas. Ainda assim, entrega a bagagem, passa os controlos securitários sem novidades e encaminha-se para a porta de embarque já anunciada num dos écrans que encontra pelo caminho. A24, A24, diz de si para si, procurando não esquecer a preciosa informação. Tem ainda dez minutos, tempo para desesperadamente necessária ida à casa de banho. Tem ali finalmente um momento de descanso. Aliviado, consegue ainda o imenso milagre de tirar uma barra de chocolate e cereais de uma das máquinas ao pé da porta de embarque, indiferente, por uma vez, ao preço milionário que lhe é pedido pelo pequeno snack.


Está quase, agora, diz de si para si, ao mesmo tempo que coloca os auscultadores, ansiando por um pouco de Mozart. Sente uma leve excitação com toda aquela aventura, que acaba por ter um final feliz. Coloca-se na fila para entrar no avião, já relaxado, tomando o seu lugar entre duas famílias orientais. Há muitos chineses neste voo, pensa de si para si, olhando em volta. Não se detém grandemente nesse facto, prefere concentrar-se no chocolate que, devido à fome e tensão matinais, lhe parece uma iguaria fina e não uma barra de restos de cereais com excesso de açúcar e cacau não certificado, como de facto é. Não pensa no pequeno-almoço que lhe será servido no voo. Não aprecia comida de avião e o que quer é beber um pouco de água e dormir. Dormir, dormir, até chegar a Portland. É neste estado de beatitude, impensável apenas há uma hora atrás quando corria como uma barata tonta no apartamento à procura de umas calças e de uma camisola minimamente apresentáveis para seguir viagem, que entrega à sorridente e muito jovem hospedeira o seu bilhete. Ela observa-o confusa, mais ainda com um sorriso. Ele devolve-lhe o olhar surpreso e um sorriso engatatão. “Então, problemas?”, pergunta, preparando-se para a ajudar a decifrar o bilhete, crente de que o

embaraço dela é fruto da pouca experiência profissional. Vê-a trocar uns sussurros com a colega, mostrando-lhe o bilhete. A outra, mais velha, devolve-o a Mariano, depois de o tracejar a cor-de-laranja. A jovem hospedeira aponta-lhe um avião que do lado de fora das paredes envidraçadas da sala de embarque onde está Mariano começa a ganhar altitude. “Portland”, diz, “aqui Pequim”, reforça, indicando com os olhos a tabuleta electrónica. “Pequim”, com todas as letras, é o que nela se pode ler. Mariano é afastado com suave eficácia da fila, para não prejudicar o andamento dos passageiros que têm passagem para a capital chinesa. Observa o seu bilhete e de faz-se luz: o mesmo indica a porta de embarque A34 e não A24. “Portland”, diz ainda uma vez a jovem hospedeira encolhendo os ombros com resignação, ao mesmo tempo que torna a apontar para o avião agora cada vez mais longínquo. Sentado numa cadeira da sala de embarque agora vazia Mariano pensa que não é, de facto, uma pessoa matinal.


VOCÊ CORTA A ETIQUETA? Margarida de Mello Moser Comunicação e Prótocolo

A IIA V A H V A O H Ã N E O D A NÃ SSIID E D D A E S C S E E N C E N

Como dizia o Diácono Remédios - não havia necessidade. E não, não havia, não há! E todos os dias achamos que já vimos tudo. Vem isto a propósito daquela “aparição” do nosso Presidente da República em tronco nú, a levar com a vacina da gripe e que deu azo a tantos comentários, a tantas piadas, a tanto “avacalhamento”. Não havia necessidade, mesmo! Cada um tem obviamente direito a ter o seu estilo, e temos que reconhecer que o de Marcelo é muito peculiar. Mas não devia haver limites ou, pelo menos, a noção do ridículo? Você corta a etiqueta? Depois disto, que dizer? Aqui não há corte, há, sim, total ausência de etiqueta e de bom senso, falta de sentido de Estado. Afinal, Marcelo Rebelo de Sousa é a mais

alta figura da Nação, ou não? Ao vê-lo ali, ninguém diria. A situação é tão caricata que nos embaraça, envergonha, entristece e, até, enraivece. Onde é que vamos parar? Protocolarmente falando, longe parecem estar os tempos em que as pessoas com responsabilidade política, institucional, social, se preocupavam com a sua imagem pública, o exemplo que podiam dar. Parece que passou de moda. Há quem diga que um Ministro é sempre um Ministro, mesmo quando está a tomar a sua bica. Eu diria que um Presidente da República é sempre Presidente da República, mesmo quando está a levar a vacina da gripe ou a trocar de fato de banho na praia ou em qualquer outra situação mais ou menos


comezinha, ou não. Isto não é, ou não devia ser, um “forrobodó”, isto é assunto que devia ser levado a sério. Quero eu aqui com isto dizer, e é a minha opinião, que alguma contenção, sobriedade e bom senso deviam fazer parte do comportamento dos nossos governantes. As pessoas que mandam, que têm peso na sociedade em que vivemos, são escrutinadas ao microscópio, e, por isso, a sua grande responsabilidade se torna maior. Se compararmos os retratos de Marcelo Rebelo de Sousa tirados em 2017 e em 2020, a levar a vacina da gripe, percebemos a diferença entre dar um bom exemplo - em 2017 - e dar um péssimo exemplo - em 2020. E é isto!


LICÍNIA QUITÉRIO

QUANDO À TARDE AS DORES SE ENOVELAM


Quando à tarde as dores se enovelam, ao colo das mulheres é que chegam os gatos macios, impenetráveis. Seu pelo de segredos, seu olhar inefável. É nas linhas da tarde que se prende o sopro das manhãs, agora amortecido. Por dentro das mulheres há vulcões, terramotos, o fulgor do aço de perdidas batalhas, e à boca acode-lhes o travo da traição, à pele o branco do abandono. Os gatos ameaçam os pulsos das mulheres e elas deixam-se morder, imperturbáveis. Na tarde acontece um fio de sangue que elas lambem, saboreiam, contentes por se saberem copo, corpo, fonte. O tumulto do sangue, a doçura do sangue. A mulher onde a tarde se implode, no abuso dos gatos, e a aranha a tecer no pessegueiro.



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