41 Edição Justiça Com A

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41ª Edição Dezembro 2020


EDITORIAL A VIDA É UMA LOTARIA DE NATAL JOGÁMOS TODO O ANO DE 2020 TEMOS MESMO ASSIM TANTO PARA CONTAR VENHA DAÍ NA NOITE DE NATAL, NÃO FIQUE SOZINHO SE NÃO PODER DAR ABRAÇOS, FIQUE COM OS TEXTOS DA ANA DO JOÃO E DA CARLA PARA OS QUE GOSTAM DE DIREITO, TEMOS ENTENDIDOS EM MATÉRIAS. SABE O QUE E BENWARE?! E TEMOS UM CONTO DE NATAL!! TRAZEMOS POESIA E BONS LIVROS PARA LER, OU RELER. UM TEXTO SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM NOME DAS MULHERES QUE SÃO ALVOS FÁCEIS DA VIOLÊNCIA DE ALGUNS HOMENS. VOLTÁMOS À PAUSA PARA CAFÉ............. E VOCÊ? CORTA A ETIQUETA? AGRADEÇA À VIDA DESCALÇO DE PREFERÊNCIA E EM FRENTE AO MAR OU USE A SUA CALIGRAFIA. NÃO ENTREGUE AS SUAS MÃOS AO MEDO...OU NÃO VIVERÁ.

Direcção: Adelina Barradas de Oliveira Design e Produção: Diogo Ferreira Inês Oliveira Site: www.justicacoma.com Facebook: JUSTIÇA COM A


4 CANTINHO DO JOÃO COMUNIDADE E VIOLÊNCIA (...) 6 8 CRITICA LITERÁRIA 10 PANO PARA MANGAS 12 A UTILIZAÇÃO DE BENWARE E O MAR LOGO ALI 18 20 PAUSA PARA CAFÉ 24 FLORES NA ABÍSSINIA 26 CALIGRAFIA ERA UMA VEZ 28 30 RÉ EM CAUSA PRÓPRIA 34 A CEIA VOCÊ CORTA A ETIQUETA? 36 EXTRA 40 JOÃO CORREIA

ANA PAULA PINTO LOURENÇO

ANTÓNIO GANHÃO

MARGARIDA VARGUES

DUARTA RODRIGUES NUNES

ANA GOMES

FG

CARLA COELHO

LICINIA QUITÉRIO

JOSÉ LUIS OUTONO

ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

ANA CAMPELOS

MARGARIDA DE MELLO MOSER

SILVIA CHUEIRE


O CANTINHO DO JOÃO João Correia Juiz de Direito

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psicoterapia poderia ser um mistério para muitos, mas não certamente para o Dr. Gerald. O mesmo partilhava o seu consultório com sua esposa, também profissional da área. A área da psique humana ou, como eles carinhosamente a apelidavam, a “psi”. Lewis, por sua vez, nunca se deitou no divã pois, ciente das complexidades que o conduziam semanalmente às consultas com Gerald, assumia que as mesmas eram menos complicadas no conforto relativo da poltrona. Esta encontrava-se estrategicamente colocada no canto lateral direito oposto àquele onde Gerald se sentava também, numa poltrona, em tudo, igual. Graças à sua localização, em momento algum ficavam sentados de frente um para o outro porém, a visão periférica de ambos permitia, desde que sentados direitos com as mãos colocadas nos braços das respectivas poltronas, percepcionar a presença de cada um e, por sua vez, tudo se compunha num gabinete espaçoso, mas não amplo, organizado como se assumisse que a

descoberta dos egos exigia um espaço físico confortável, mas não demasiado grande não fossem os egos transformarse repentinamente, e de forma indesejada, em alter ego ou super ego, ou em qualquer outra coisa do género apenas devido a um erro na gestão do espaço em que ambos se encontravam, semana após semana. O estratagema da visão periférica funcionava bastante bem, de tal forma que Gerald quase se desabituou de comunicar olhando para as pessoas de frente, como se tal não fosse necessário e, como se o seu outro sistema comunicacional evitasse constrangimentos. Quem falava e escutava, de acordo com este seu método, sentia a presença do outro, vendo-o com a sua visão periférica e não se sentia forçado a mais. Nem a expressar-se corporalmente transmitindo involuntariamente sinais ao outro, nem tendo os reflexos mímicos de quem fala, frente a frente, com o outro. Na realidade, sabia Gerald que a tentação de imitar os gestos, a entoação, as expressões faciais de um interlocutor é um instinto humano indispensável à sua sobrevivência, mas Gerald queria contrariar essa tendência.


A P PS S II C CA AN NÁ Á LL II S S EE A M 3 ACTOS EE M

Comunicaria com os seus pacientes, cada qual na sua poltrona, colocada cada uma no seu canto, cada canto ao lado um do outro de forma a que, caso fosse possível traçar uma linha recta saindo dos olhos de Gerald e do seu paciente, cada uma delas em direcção ao canto oposto, ambas se cruzariam a dado ponto e seguiriam formando um X no centro da sala onde se sentavam. Na realidade, os padres faziam algo semelhante no confessionário, mas aí, evitavam mesmo qualquer contacto visual ou, quando o havia, o mesmo era apenas fugaz, como se por acidente se tratasse. Mas confissão não é psicanálise.

Por sua vez, neste registo, Lewis desabafava sobre o principio do fim dos seus problemas ou, pelo menos, do que ele achava que seria o principio, do que seria o fim e por fim, do que seriam os seus problemas pois, como Gerald lhe disse uma vez, o fim dos seus problemas não seria mais do que um problema de principio. Ou seja, Gerald era confuso e era isso que o tornava encantador. Cumprimentavam-se, sentavam-se e, nesse momento, iniciava-se a sessão. (continua)


COMUNIDADE E V DA FORÇA DAS PA PUBLICADO ANTERIORMENTE EM UAL-MEDIA COM AUTORIZAÇÃO DA AUTORA E GENTILMENTE CEDIDO

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té há relativamente poucos anos, a violência doméstica povoava a vida quotidiana da comunidade de modo indelével, mas sem gerar grandes manifestações de indignação. A apresentação dos cônjuges como a carametade traduzia o índice de pertença a uma unidade maior, mas, simultaneamente, a referência a uma perda de identidade após o casamento: cada cônjuge não seria senão a metade de um todo e esse todo indivisível constituía a finalidade da relação a dois. A educação, sobretudo das mulheres, dirigia-se a esse projecto comum no qual se realizariam cuidando do marido, da casa, dos filhos, e no qual o marido se realizaria garantindo que nada de material faltava à família. Não surpreende, assim, que o fim da relação conjugal fosse sentido como uma falha dessa unidade na qual os projectos individuais se diluíam e para a qual era necessário encontrar o culpado. Ensinavam-se alegremente às crianças cantigas de um Sebastião que “come tudo tudo tudo chega a casa e dá pancada na mulher”, ou do “mar que também é casado com a areia, bate nela quando quer”, ou da amante do fado Valentim que clama pelo seu amor “quero o Valentim olaró laró, quero o Valentim, olaró meu bem” mas que, a determinado passo afirma “agora é que eu percebo o valor do pau de marmeleiro”. E não havia espanto que uma marca de farinhas usasse como slogan “Seu marido bate-lhe?

Então tome farinha de fava, ou Favacau d’A Mariazinha … e verá como cria forças para até o atirar pela janela fora!”. Poderia pretender ser apenas um spot publicitário de (duvidoso) humor se não correspondesse, infelizmente, a uma forma comum de acomodar a realidade. Olhando para a sociedade em que foram educadas gerações e gerações até há não tanto tempo que não nos tivesse permitido presenciar algumas dessas manifestações, verifica-se que o mundo dos preceitos morais, que de modo afincado e rigoroso – rígido, até – nos eram transmitidos, coabitava com um dispositivo lúdico que tinha como matéria prima este tipo de violência. A acriticidade com que estas cantigas se difundiam poderia traduzir, insensibilidade, alheamento, mas resumir, também, a constatação da impotência para agir numa sociedade em que todos – instâncias formais e comunidade – procuravam instintivamente detectar um comportamento da vítima que pudesse fundamentar, de alguma maneira, a reacção do agressor: o poder correctivo dos pais a tentar conduzir ao bom caminho um filho insurreto; a paixão incomensurável do agressor imerso na sua dor de não ser já querido por quem jurou uma vida a dois “até que a morte nos separe”; a perturbação incontrolável do amante para quem qualquer conduta menos dependente do ser amado (que julga pertencer-lhe) era sentido como sinal de infidelidade; ou apenas demonstração da incapacidade de se imaginar sozinho num


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ALAVRAS ANA PAULA PINTO LOURENÇO

mundo desenhado para dois, ainda que fosse um mundo azedo, triste e violento. Por outro lado, capear com humor as situações que causam sofrimento foi sempre um artifício usado para permitir um convívio menos doloroso com a realidade. Os provérbios e frases populares constituem, igualmente, um bom manancial de exemplos que ilustram, não apenas o que se constatava, mas os comportamentos considerados aceitáveis nestes contextos: “entre marido e mulher não metas a colher”, “casa que não é ralhada não é governada”, “amor querido, amor batido”, “quanto mais me bates mais gosto de ti”, “só sabe do convento quem la está dentro” ou o não menos elucidativo, “só se perdem as bofetadas que caem no chão” constituem bons exemplos. As palavras traduzem conceitos, moldam comportamentos e podem, elas próprias, vitimizar. Portugal tem construído, ao longo dos últimos anos, um sistema integrado dirigido ao combate contra a violência familiar e à protecção das vítimas de que pode orgulharse. Porém, nenhum sistema, por mais bem estruturado que seja, por muitos meios que coloque ao dispor da vítima e do agressor, poderá obter bons resultados por si só. É indispensável que se mobilizem todos os actores e se convoquem todos os meios para

combater e prevenir a violência familiar. Porém, a principal força motriz para modificar comportamentos será a educação. Aprender a compreender e dominar os sentimentos e as emoções, aprender a respeitar o outro incondicionalmente, ensinar a pedir ajuda e onde buscar essa ajuda. Fortalecer a autoestima torna-se uma exigência, de modo a que se adquira a capacidade de compreender que não se é dono de ninguém e se aceite que o fim de uma relação, por muito dolorosa que seja, não é o fim da vida. Que, se o caminho escolhido pelo outro distar do que se traçou a dois inicialmente, o respeito pelos valores da liberdade exigem que se respeite essa decisão. Fortalecer a autoestima e o conhecimento das redes de suporte, para ser capaz de acreditar que é possível a tal “madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo” de um amanhã sem medo. Por outro lado, exige-se que a Justiça seja capaz de encontrar o ponto óptimo que, valorando todas as condicionantes, seja capaz de responsabilizar os agressores sem perpetuar as cantigas e os provérbios da minha infância, isto é, sem ignorar a vítima, sem procurar nela a causa da agressão e sem a revitimizar, ainda que tenha de considerar, e bem, o estado emocional em que o agente se encontre mas sem que tal signifique compreender o facto.


ANTÓNIO GANHÃO Critico Literário

SOBRE...

A HISTÓRIA DA PIDE

IRENE FLUNSER PIMENTEL

Este livro sobre a história da PIDE divide-se em cinco partes: a relação com o Estado; os seus poderes, funções e evolução; os principais adversários; outros adversários e vítimas; métodos; prisão e julgamento. A PIDE surge da reorganização das forças policiais que a antecederam e veio assegurar um papel fundamental na defesa do Estado Novo. Perseguindo e punindo, será pela intimidação que impõe um papel dissuasor levando as pessoas a “não se meter em política”. Uma rede de informadores informais ou anónimos, poucos eram os remunerados, mantinha a população convencida de que os ouvidos da PIDE chegavam a todo o lado. A dimensão e eficácia desta rede de informadores foi um mito alimentado para difundir o receio entre os portugueses. A ação da PIDE bebeu muito dos métodos da polícia alemã Gestapo que praticava a “custódia protetora”, um eufemismo para detenção sem culpa formada. Contudo, fiel aos brandos costumes do povo português, existia uma preocupação

pela legalidade: só eram detidos aqueles que atentavam contra o Estado e não se admitia o uso da tortura. Dava-se cobertura de lei à ideia de que a polícia devia corrigir as sentenças dos tribunais e ter uma ação «preventiva», “no sentido de prender os habituais «contraventores» antes que passem ao acto.” O arbítrio herdado da PVDE, sua antecessora, transformado «cientificamente» em lei. O “aplicar meia dúzia safanões a tempo nessas criaturas sinistras” a que se referia Salazar na entrevista a António Ferro. Safanões aos quais os inspetores, regra geral, não assistiam. Nos tribunais plenários era frequente o juiz alertar para o facto de não admitir “denúncias de torturas nem acusações contra a polícia política”. Mesmo depois do 25 de Abril, com a prisão e julgamento dos seus elementos, a maioria dos inspetores negaram a existência de tortura. Houve quem alegasse saber de alguns elementos que faziam horas noturnas extraordinárias e que, em alguns casos, os interrogatórios se prolongavam noite adentro a pedido do detido. Sobre o processo de recrutamento dos seus


agentes, a autora não encontrou evidências de que tivesse por base aspetos ideológicos, até pelo perfil de baixa escolaridade e pelo foco único e redutor do combate ao comunismo. Ao contrário da Gestapo que criminalizou aspetos raciais, associais, morais e de foro privado, a atuação da PIDE foi seletiva e dirigida contra os adversários políticos do Estado Novo: reviralhistas, anarcossindicalistas e comunistas, sendo estes últimos considerados irrecuperáveis e sobre os quais incidiu a maior repressão. O tratamento da PIDE variava com a classe social e a organização a que pertencia o detido, “amante das hierarquias e respeitador das elites, a PIDE enviava o intelectual para a tortura do «sono», continuando, porém, a tratá-lo por «senhor doutor».”

desobediência, instalando o medo e convidando ao silêncio e à resignação”. Conhecer a sua história é um tributo aos que sofreram e morreram às suas mãos para que hoje possamos viver em liberdade e democracia. Irene Flunser Pimentel é historiadora, investigadora do IHC (Instituto de História Contemporânea), tendo vasta obra publicada sobre a nossa história contemporânea, com particular incidência sobre o período do Estado Novo.

No período do Estado Novo passaram 15.000 presos políticos pelas celas da PIDE/DGS, vítimas do seu sistema de “justiça política”; para termos uma ideia da dimensão deste número, recordemos os duzentos mil mortos e um milhão de presos políticos durante os trinta e sete anos de franquismo em Espanha. Sobre a eficácia da repressão, a autora recordanos que “se houve alguns espaços de dissidência e resistência, a população portuguesa, no seu conjunto, permaneceu apática e passiva, a «viver naturalmente», como pretendia Salazar”. No ultramar português, a PIDE desenvolveu um trabalho de recolha de informações para os militares, considerado relevante para a boa condução da guerra do ultramar. Essa estreita colaboração com os militares explica a atuação do MFA em relação à PIDE na revolução do 25 de Abril, que seria mantida em operação nas províncias ultramarinas. A ideia inculcada na mente da população portuguesa de uma força policial omnipresente e omnisciente, contribuiu para desencorajar “possíveis veleidades de outros actos de

A HISTÓRIA DA PIDE, DE IRENE FLUNSER PIMENTEL, TEXTOS E DEBATES, CÍRCULO DE LEITORES.


O QUE APRENDESTE EM 2020 É impossível chegar ao final deste ano sem que dele tenhamos tirado alguma lição ou aprendido algo! Assim, à laia de despedida de 2020 – o mais longo dos meus 46 anos de vida!!! – é hora de fazer um balanço. A vida foi adiada, disso ninguém duvida: os abraços, os (re)encontros, as festas, as viagens e até as despedidas. Não foi por falta de tempo... faltou-nos a oportunidade. As chamadas “novas tecnologias” substituiram muita coisas, porém criaram um vazio nos afectos e, ao vivo, as máscaras ergueram uma barreira e um distanciamento – logo a nós que somos tão beijoqueiros e “abraçadeiros”! Dizem que é a nova realidade. Nova, ou não, é dificil de aceitar e com ela é impossivel de me conformar... É como se alguém lá em cima tivesse carregado no botão pause de um qualquer aparelho electrónico e nós, cá em baixo, obedecemos em massa, quase sem questionar: ou páras, ou páras – são as duas únicas hipóteses. E o que fizemos nós com este tempo parado todo nas mãos? Houve quem se tivesse desdobrado em mil para conseguir cumprir tarefas e prazos, o que presencialmente teria sido fácil, embora nunca se tenham dado conta disso.

Houve quem tivesse desenvolvido novas competências nas mais diversas áreas, independentemente da idade, pois dos zero aos cem ninguém ficou de fora. Houve quem tivesse despejado a garrafeira – tantos anos a guardar, religiosamente, as garrafas recebidas no Natal para uma ocasião especial... Houve quem tivesse lido todos os livros empoeirados da estante, nunca abertos por falta de ... pasme-se: tempo! Houve quem se tivesse reinventado – a lei da sobrevivência falou mais alto. E houve, ainda, quem tivesse ficado apenas com tempo nas mãos. Apenas isso. Por alguma razão que ainda permanece no segredo – e nas teorias da conspiração – isto aconteceu e ficará na História. Assim, o que é que o ano de 2020 nos ensinou? Há dias levei esta pergunta para as minhas aulas. Todos os meus cento e muitos alunos tiveram de responder, por escrito, ao desafio: “o que é que aprendeste em 2020?” A pergunta nada teve de inocente e, curiosidade à parte, o que me levou a fazêla foi o querer que todos eles reflectissem um pouco sobre o que se passou, já que os adultos andam novamente na sua vida – uns


MARGARIDA VARGUES PANO PARA MANGAS

a tentar recompô-la (depois do desmoronar das relações, dos empregos, dos negócios, ...) e outros a vivê-la como se o hiato não tivesse existido. Primeiro vieram os “txi p’r’sora não tenho nada p’ra escrever!!!” e os “sei lá eu!”, depois os “ainda não pensei nisso...” seguidos de silêncio, olhares perdidos no horizonte, como se estivessem a escavar uma pedreira de memórias e só no final as cabeças cairam sobre as folhas de papel para escrever – uns mais depressa, outros mais devagar. Entre o zumbir de uma ou outra mosca conseguia ouvir o riscar de lápis e canetas ao desafio com os seus suspiros, alguns profundos, outros bem mais leves. Dei-lhes tempo – que é coisa que não lhes faltou - e no final, antes de recolher os pequenos textos para serem corrigidos, ainda houve oportunidade para algumas partilhas. Primeiro foi a escola. As aulas pelo Teams. Os trabalhos. Depois vieram as férias que, para muitos, não foram como as do ano anterior, já que tiveram de ficar em casa ou sair apenas com a familia, sem os habituais playdate ou sleepover e, logo no início de Setembro, ficaram ansiosos com o regresso à escola, pois poderiam voltar a ver os amigos. Aprenderam imensas coisas mais ou menos expectáveis: a usar o Word ou o Power Point, a mexer nas plataformas de ensino à distância, a cozinhar, a fazer pão e bolos – que, segundo fiquei a saber, não é a mesma coisa que cozinhar

- a costurar, a dobrar roupa, a lavar a loiça, a plantar uma horta ou a arrumar o quarto. Depois dos silêncios iniciais, quem é que os conseguia calar? Foi difícil dar por terminadas as aulas. Parecia que tinham sido ligados a uma pilha! Já em casa, e depois de um longo dia, senteime e coloquei os textos em cima da secretária. Teria coragem para ainda pegar nesta tarefa? Tive! E ainda bem que tive, porque entre pães, biscoitos e meias dobradas tive uma agradável surpresa. Especialmente entre os mais novos houve quem tivesse aprendido a esperar e a ser paciente. Não é que nunca o tivessem sido, mas com certeza numa outra dimensão. O que vivenciaram extrapolou a normal realidade a que estavam habituados. Tiveram de esperar pelos irmãos que usassem o computador, tiveram de esperar que o almoço ou o jantar ficassem prontos, tiveram de esperar que os pais lhes cedessem a televisão, tiveram de esperar que o pão crescesse e cozesse, tiveram de esperar que a horta crescesse. Para se conseguir esperar sem se desesperar é necessária paciência e estes miúdos ganharam consciência disso.

E NÓS, ADULTOS, SEMPRE APRESSADOS, O QUE APRENDEMOS?


A UTILIZAÇÃO DE BENWARE NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL - Juiz de Direito. - Licenciado, Mestre e Doutor em Direito pela FDL. - Professor convidado na Universidade Europeia. - Pós-Graduado em Ciências Jurídicas pela UCP e em Ciências Jurídico-Administrativas pela FDL. - Investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais e do Centro de Investigação Jurídica do Ciberespaço, ambos da Faculdade de Direito de Lisboa. - Autor de 3 monografias publicadas e 2 em publicação e de contributos em obras conjuntas e artigos em publicações periódicas na área do Direito Penal, Processo Penal e Direito Civil. - Conferencista.

DUARTE RODRIGUES NUNES 1. INTRODUÇÃO Devido à crescente utilização, pelos cibercriminosos, de medidas antiforenses (encriptação das mensagens, comunicações por VoIP esteganografia, utilização de firewalls, botnets, VPN, proxies, Dark Web, programas como o TOR, Freenet e I2P, criptomoedas, etc.) para evitarem a deteção dos crimes e impedir

a identificação dos agentes e a recolha de provas, mostra-se cada vez mais necessária a neutralização das medidas antiforenses através da utilização, na investigação criminal, de mecanismos e dispositivos como a instalação sub-reptícia de programas informáticos (vírus, worms, Cavalos de Troia, keyloggers, backdoors, spyware, etc.) que permitam que as autoridades

1. Na aceção do art. 2.º, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro. 2. Designação que resulta da aglutinação de sílabas das palavras inglesas malicious e software e que significa programa informático malicioso, precisamente porque se trata de programas informáticos que visam permitir que quem os utiliza se “infiltre” num sistema informático alheio, com o intuito de causar prejuízos ou obter informações (confidenciais ou não), em regra para fins criminosos. 3. Benign software: software benigno. 4. Os métodos “ocultos” de investigação criminal são os métodos de investigação criminal «que configuram «uma intromissão nos processos de ação, interação e comunicação das pessoas concretamente visadas, sem que estas tenham conhecimento do facto ou dele se apercebam» e que, por isso, «continuam a agir, interagir, expressar-se e comunicar de forma “inocente”, fazendo ou dizendo coisas de sentido claramente autoincriminatório ou incriminatório daqueles que com elas interagem ou comunicam» (cfr. DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema da admissibilidade dos métodos “ocultos” de investigação criminal como instrumento de resposta à criminalidade organizada, pp. 202-203). 5. Cfr. JONATHAN MAYER, Constitutional Malware, pp. 15 e ss.


se “infiltrem” num sistema informático¹ para obterem informações relevantes para a investigação, que, de outro modo, não obteriam ou dificilmente poderiam obter. No fundo, trata-se de programas que são habitualmente subsumidos ao conceito de malware� , mas que, quando usados, pelas autoridades, para fins de prevenção ou repressão criminais (fins legítimos e absolutamente essenciais num Estado de Direito), optamos por designar benware� . Pela necessária “clandestinidade” da instalação do benware nos sistemas informáticos visados – que faz antever o cariz “oculto” das medidas investigatórias cuja execução essa instalação visa permitir –, a utilização do benware está intimamente ligada à questão dos métodos “ocultos” de investigação criminal ⁴. A instalação do benware terá de ser precedida pela “colocação” e instalação do programa no sistema informático, v.g., levando o utilizador visitar uma página da Internet controlada pelas autoridades (watering hole tactic), enviando um e-mail contendo o programa de instalação num anexo infetado para o sistema informático visado (social engeneering tactic) ou aproveitando fragilidades na segurança do sistema informático ou atualizações de software que o visado permita que sejam efetuadas (subsumível à social engeneering tactic)⁵ . A instalação do benware e a recolha de informações terão de evitar os dispositivos de segurança instalados no sistema informático (antivírus, antispyware, firewalls), para que não apaguem o benware nem o detetem e “avisem” o utilizador. A utilização de benware é essencial na busca

online (infiltração sub-reptícia e à distância num sistema informático para observação/ monitorização da sua utilização e leitura e eventual cópia dos dados nele armazenados ou acessíveis a partir dele)⁶ , na vigilância nas fontes (interceção de comunicações em curso que sejam encriptadas antes da sua saída do sistema informático “emissor” e desencriptadas depois da sua receção no sistema informático “recetor”, como sucede, v.g., nas comunicações por VoIP)⁷ e na vigilância acústica e/ou ótica quando realizadas mediante a ativação (subreptícia) da câmara e/ou do microfone do sistema informático (computador, tablet, smartphone).⁸ ⁹ Ainda que a instalação do benware seja um ato preparatório da utilização destes meios de obtenção de prova, a instalação de benware restringe o direito à confidencialidade e à integridade dos sistemas técnicoinformacionais ¹⁰, o que suscita a questão da sua admissibilidade na ausência de norma legal que a preveja expressamente. Ao contrário de outras ordens jurídicas¹¹ , a lei portuguesa não regula expressamente a utilização de benware, as buscas online, a vigilância nas fontes e a ativação sub-reptícia da câmara e/ou do microfone do sistema no âmbito do registo de voz e imagem ou da interceção de comunicações entre presentes, apenas existindo uma referência implícita ao uso de benware no art. 19.º, n.º 2, da Lei n.º 109/2009, que prevê a utilização de meios e dispositivos informáticos (onde podemos incluir os programas de benware) no âmbito das ações encobertas online¹� . Por isso, a admissibilidade da vigilância nas fontes e da busca online não é pacífica entre nós.¹�

6. A busca online (online Durchsuchung, remote computer search, registro remoto de equipos informáticos) pode consistir num único acesso (Daten-Spiegelung) ou ocorrer de forma contínua e prolongada no tempo (Daten-Monitoring). A busca online caracteriza-se (e diferenciase das buscas “tradicionais” previstas nos arts. 174.º, 176.º e 177.º do CPP e da pesquisa de dados informáticos prevista no art. 15.º da Lei n.º 109/2009) por ser realizada online, à distância, “às ocultas”, com recurso a meios técnicos e implicar a prévia instalação sub-reptícia, no sistema informático visado, de um programa informático (benware). 7. A vigilância nas fontes (Quellen-Telekommunikationsüberwachung ou Quellen-TKü) é assim designada pelo facto de a interceção só poder ocorrer antes da encriptação ou depois da desencriptação dos dados (pois, após a sua encriptação e antes da sua desencriptação, será impossível realizar a interceção), o que requer a instalação de software adequado no sistema informático visado. 8. Esta forma de executar a vigilância acústica e/ou ótica é designada por captatore informático pela Doutrina e jurisprudência italianas. 9.Apesar do disposto no art. 19.º, n.º 2, da Lei n.º 109/2009, não nos parece que a utilização de benware seja necessária nas ações encobertas ex se (sem prejuízo de o ser relativamente a outros meios de obtenção de prova utilizados em ações encobertas) nem para a obtenção de dados de localização celular.


A UTILIZAÇÃO DE BENWARE NA (....)

2. A VIGILÂNCIA NAS FONTES Começando pela vigilância nas fontes, no que se refere à interceção de comunicações ex se, não se suscitam dúvidas quanto à sua admissibilidade à luz do art. 18.º da Lei n.º 109/2009. Na verdade, as divergências doutrinais surgem apenas por causa da instalação sub-reptícia de benware no sistema informático visado para permitir a intervenção nas comunicações. Porém, entendemos que a falta de previsão legal da instalação do benware não permite negar a admissibilidade. Em primeiro lugar, a vigilância nas fontes é uma intervenção nas comunicações eletrónicas que, por razões meramente técnicas, requer a prévia instalação de benware, que, ex se, restringe direitos fundamentais de uma forma pouco intensa. Em segundo lugar, a instalação de benware configura um mero ato preparatório da intervenção nas comunicações por VoIP (como sucede com a duplicação da linha do número do telefone nas escutas telefónicas), que está incluído, por natureza, na interceção de comunicações eletrónicas quando realizadas por VoIP. Em terceiro lugar, o art. 18.º da Lei n.º 109/2009 refere-se a “interceções de comunicações” sem operar qualquer distinção, exclusão ou ressalva, sendo que o legislador conhece certamente a necessidade de instalar previamente benware

no caso da interceção de comunicações por VoIP e a essencialidade de ser possível a interceção deste tipo de comunicações para a investigação (e nunca alterou a Lei n.º 109/2009). E, em quarto lugar, sem prejuízo de ser preferível uma previsão legal expressa, a nossa lei contém suficientes salvaguardas em termos de restrição de direitos fundamentais, sendo que as normas relativas aos meios de obtenção de prova não são normas processuais penais materiais (e não devem, por isso, seguir o mesmo regime das normas penais positivas)¹⁴ e as exigências de certeza jurídica e de tutela da confiança¹⁵ não são as mesmas quando se trate de impor limitações à licitude de condutas e quando se estabelecem os requisitos da utilização de um dado meio de obtenção de prova. ¹⁶ ¹⁷ De todo o modo, para afastar quaisquer dúvidas quanto à admissibilidade da vigilância nas fontes, o legislador deveria prevê-la expressamente, pois a vigilância nas fontes é um meio investigatório absolutamente essencial, pela elevada utilização das comunicações por VoIP nos dias de hoje e pela existência de aplicações informáticas que proporcionam uma elevadíssima proteção às comunicações realizadas utilizando as mesmas (maxime o Telegram), sendo as comunicações por VoIP um dos meios preferidos dos criminosos na preparação e execução dos crimes e no apagamento das provas ¹⁸.

10. Cfr. ROXIN/SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht, 27.ª Edição, p. 292. Acerca deste direito fundamental, vide DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema…, cit., pp. 240 e ss. 11. No Direito alemão, a vigilância nas fontes está prevista/regulada nos §§100a I e III e 100e I, III e IV da Strafprozessordnung (StPO) (sujeita ao regime da interceção de comunicações eletrónicas) e a busca online está prevista/regulada no §§100b e 100e II, III, IV e V StPO [sujeita a um regime extremamente restritivo – muito mais restritivo do que o regime da interceção de comunicações eletrónicas – e análogo ao regime das escutas domiciliárias (grosser Lauschangriff)], na sequência da Revisão de 2017. No Direito italiano, a vigilância ótica e acústica mediante a ativação (sub-reptícia) da câmara e/ou do microfone do sistema informático (captatore informatico) está prevista/regulada nos arts. 266, 2 e 2-bis, e 267 do Codice di procedura penale (na sequência da Revisão de 2018). No Direito espanhol, a busca online está prevista/regulada nos arts. 588 septies a, b e c da Ley de Enjuiciamiento Criminal (introduzidos na sequência da Reforma de 2015). Por fim, no Direito norte-americano, existe apenas a Rule 41 das Federal Rules of Criminal Procedure, cuja epígrafe é Search and Seizure (buscas e apreensões), e na qual foi introduzida, em 2016, uma regulamentação específica para as pesquisas em dispositivos informáticos e apreensões de dados informáticos armazenados em tais dispositivos realizadas de forma remota. Para além disso, a Jurisprudência americana elaborou todo um Case Law em matéria de busca online à luz da Quarta Emenda (cfr. DUARTE RODRIGUES NUNES, “Da admissibilidade da utilização de benware no Direito português”, in Ciberlaw, n.º 10, pp. 23 e ss., in https://www.cijic.org/wp-content/ uploads/2020/10/3_Da-admissibilidade-da-utilizacao-de-benware-no-direito-portugues.pdf).


3. A BUSCA ONLINE Passando à busca online, consideramos que é admissível à luz da nossa lei, havendo, porém, que diferenciar os casos em que a busca consiste num único acesso (Daten-Spiegelung) dos casos em que ocorre de forma contínua e prolongada no tempo (Daten-Monitoring). Começando pelos casos de Daten-Spiegelung, o art. 15.º da Lei n.º 109/2009 prevê as pesquisas de dados informáticos armazenados em sistemas informáticos (sendo omisso quanto ao modo concreto da sua realização), pelo que, não exigindo a lei que a pesquisa apenas possa ser “presencial”, em obediência ao princípio ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, a busca online na modalidade de DatenSpiegelung pode ser realizada com base neste preceito. Por seu turno, a modalidade Datenmonitoring, ao permitir uma monitorização, em tempo real e prolongada no tempo, dos dados existentes num sistema informático e da própria navegação online, possui uma danosidade muito similar à da intervenção nas comunicações eletrónicas em termos de restrição de direitos fundamentais. Dado que o legislador, ao permitir as buscas online no art. 15.º da Lei n.º 109/2009 não opera qualquer distinção, consideramos que tal preceito permite a realização de buscas online na modalidade Daten-Monitoring. Porém, atenta a sua maior danosidade face à modalidade Daten-Spiegelung e sendo essa danosidade similar à da intervenção nas comunicações eletrónicas, deverá operar-se uma interpretação conforme à Constituição, pelo que o art. 15.º

deverá ser interpretado de forma hábil, de molde a apenas serem admissíveis buscas online na modalidade Daten-Monitoring nos casos em que também fosse admissível realizar uma intervenção nas comunicações eletrónicas nos termos do art. 18.º da Lei n.º 109/2009, aplicando-se mutatis mutandis o respetivo regime jurídico. Também aqui a falta de previsão legal expressa não impede o recurso à busca online, tendo em conta o que referimos supra quanto ao art. 15.º da lei n.º 109/2009, sendo que, em 2009 a realização de pesquisas remotas em sistemas informáticos já era tecnicamente possível (ao ponto de o legislador ter previsto uma modalidade de pesquisa informática como a que consta do art. 15.º, n.º 5 da Lei n.º 109/2009). Além disso, a busca online nem sequer implica a entrada no local onde está o sistema informático (que pode ser um espaço que beneficia da tutela do direito à inviolabilidade do domicílio) nem a apreensão do sistema informático, pelo que, quando consista num único acesso, é menos lesiva do que uma pesquisa “presencial” em termos de restrição de direitos fundamentais ¹⁹. Ademais, o art. 15.º da Lei n.º 109/2009 prevê um caso de pesquisa em sistema informático realizada remotamente, pelo que sempre poderia fundar-se a admissibilidade da busca online, pelo menos numa interpretação extensiva do n.º 5 desse preceito. A isto acresce que a busca online é apenas uma forma de realizar uma pesquisa num sistema informático, sendo que a Constituição e a lei

12. Entendemos que esta norma não pode constituir a norma habilitante para o uso de benware nem para a realização de buscas online, vigilância nas fontes e/ou vigilância acústica e/ou ótica mediante a ativação da câmara e/ou do microfone do sistema informático, pois não foi essa a finalidade visada com a criação da norma, que, além disso, padece da clareza, previsibilidade e precisão exigíveis em sede de restrições de direitos fundamentais quanto aos pressupostos e requisitos da utilização de benware e dos referidos meios de obtenção de prova (e, concomitantemente, métodos “ocultos” de investigação criminal). 13. Considerando que o art. 18.º da Lei n.º 109/2009 permite a vigilância nas fontes, vide PEDRO DIAS VENÂNCIO, Lei do Cibercrime, p. 119, e DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema…, cit., p. 572, e também em Os meios de obtenção de prova previstos na Lei do Cibercrime, p. 156; contra, por falta de previsão legal expressa, COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado” p. 165, e DAVID SILVA RAMALHO, Métodos Ocultos de Investigação Criminal em Ambiente Digital, pp. 339 e ss. Quanto à busca online, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código de Processo Penal, 4.ª Edição, pp. 502 e 545, JOÃO CONDE CORREIA, “Prova digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter”, in Revista do Ministério Público, 139, pp. 42 e ss., e DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema…, cit., pp. 809 e ss., e também em Os meios de obtenção…, cit., pp. 226 e ss., pronunciam-se pela admissibilidade; contra, entre outros, DAVID SILVA RAMALHO, Op. Cit., pp. 346 e ss., RITA CASTANHEIRA NEVES, As Ingerências nas Comunicações Electrónicas em Processo Penal, pp. 196 e ss., 248 e 273, e BENJAMIM SILVA RODRIGUES, Da Prova Penal, II, pp. 474-475. Quanto ao captatore informatico, DUARTE RODRIGUES NUNES, Da admissibilidade…, cit., pp. 43 e ss., pronuncia-se no sentido da admissibilidade legal.


A UTILIZAÇÃO DE BENWARE NA (....) não impõem que as diligências investigatórias sejam realizadas, por via de regra, com o conhecimento dos visados, pelo que o caráter “oculto” não obsta à admissibilidade da busca online .�⁰ Por último, a especificidade da busca online que mais dúvidas suscita quanto à sua admissibilidade é a prévia instalação do benware, valendo aqui mutatis mutandis o que referimos a este respeito quanto à admissibilidade da vigilância nas fontes .�¹ De todo o modo, para afastar quaisquer dúvidas quanto à admissibilidade da busca online, o legislador deveria prevê-la expressamente, pois a busca online, pela presença praticamente ubíqua do computador no quotidiano dos cidadãos em todos os setores e domínios da vida (incluindo na preparação e execução de crimes) e pela crescente utilização dos meios informáticos no âmbito das formas mais graves de criminalidade�� , é absolutamente essencial para a investigação criminal na atualidade. Além disso, a busca online permite monitorizar a navegação na Internet�� , obter passwords (por via do keylogging)�⁴ , analisar o sistema informático em funcionamento, aceder a outros suportes informáticos que não estejam na proximidade do sistema informático (incluindo no caso do Cloud computing) no momento em que a pesquisa “presencial” é realizada e cuja existência seja desconhecida pelas autoridades ou lhes tenha sido omitida, apreender ficheiros informáticos que apenas estão no sistema informático por um breve lapso de tempo antes de serem apagados�⁵ , investigar os ataques de DDoS lançados através de botnets�⁶ , etc. E tudo isto sem “revelar” aos visados que estão a ser alvo de uma investigação e de recolha

de provas, com evidentes ganhos em termos de eficácia.�⁷ E, em termos de investigação no Estrangeiro, a busca online permite aceder a dados armazenados em sistemas localizados noutros países cujas autoridades não cooperem ou quando se desconheça o país em concreto ou cuja urgência na obtenção não seja compatível com a formulação de um pedido de cooperação internacional.

4. A VIGILÂNCIA ACÚSTICA E ÒPTICA ...através da ativação da câmara e/ou do microfone de um sistema informático Passando à vigilância acústica e ótica através da ativação da câmara e/ou do microfone de um sistema informático precedida da instalação de benware, entendemos que, apesar de não estar expressamente prevista na lei, é admissível no Direito português, pois, em primeiro lugar, tratase de apenas de um meio de execução das interceções de comunicações entre presentes ou do registo de voz e/ou imagem�⁸ , sendo que, no art. 189.º, n.º 1, do CPP, o legislador não consagra qualquer limitação ou restrição quanto ao modo de execução da interceção e, no art. 6.º da Lei n.º 5/2002, vai ainda mais longe ao permitir expressamente o registo de voz e imagem por qualquer meio. Em segundo ligar, quanto à necessidade de prévia instalação do benware, vale aqui mutatis mutandis o que referimos quanto à admissibilidade da vigilância nas fontes. Em terceiro lugar, o recurso ao captatore informatico dispensa a entrada “física” das autoridades nos locais reservados e não

14.Vide os nossos argumentos em DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema…, cit., pp. 298-299. 15. Como refere LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª Edição, pp. 603-604, apenas a confiança que for justificada pelas circunstâncias merece proteção, além de que o princípio da confiança pode colidir com outros princípios jurídicos a que poderá caber a prevalência no caso concreto. 16. Cfr. Acórdão Malone c. Reino Unido, do TEDH e Sentença do Tribunal Constitucional de España n.º 49/1999. Quanto às razões porque entendemos que as exigências de certeza jurídica e de tutela da confiança são diversas, vide DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema…, cit., pp. 290-291. 17. Vide argumentos adicionais (e com maior aprofundamento) em DUARTE RODRIGUES NUNES, Da admissibilidade…, cit., pp. 32 e ss. (com referências doutrinais e jurisprudenciais). 18. Como se viu no recente Caso EncroChat. A respeito deste caso, vide EUROPOL, “Dismantling of an encrypted network sends shockwaves through organised crime groups across Europe” (Press release). 19. No mesmo sentido, Sentença Riley v. California do Supreme Court of the United States (2014). 20. Cfr. HOFMANN, “Die Online-Durchsuchung – staatliches “Hacken“ oder zulässige Ermittlungsmassnahme?”, in Neue Zeitschrift für Strafrecht, 2005, p. 123. 21.Vide argumentos adicionais (e com maior aprofundamento) em DUARTE RODRIGUES NUNES, Da admissibilidade…, cit., pp. 35 e ss. (com referências doutrinais e jurisprudenciais).


A

acessíveis ao público (incluindo o domicílio) em que fosse necessário instalar as câmaras e os microfones (e, por isso, é menos lesivo para os direitos fundamentais e envolve menos riscos para os agentes policiais). E, em quarto lugar, a nossa lei contém suficientes salvaguardas em termos de restrição de direitos fundamentais e, como referimos, as normas relativas aos meios de obtenção de prova não são normas processuais penais materiais e as exigências de certeza jurídica e de tutela da confiança não são as mesmas quando se trate de impor limitações à licitude de condutas e quando se estabelecem os requisitos da utilização de um dado meio de obtenção de prova . �⁹ De todo o modo, para afastar quaisquer dúvidas quanto à admissibilidade do captatore informatico, o legislador deveria prevê-lo expressamente pois, no caso de criminosos particularmente cautelosos, a realização de vigilância acústica e ótica em locais onde os criminosos se sentem especialmente seguros (maxime no seu domicílio) e que poderão utilizar para preparar ou executar crimes, eliminar provas ou partilhar detalhes com pessoas da sua confiança pode ser essencial para o êxito da investigação.�⁰ Ademais, em grupos criminosos “etnicamente fechados” ou assentes exclusivamente em laços familiares, as ações encobertas tendem a ser inúteis ou impossíveis de realizar�¹ e, sabendo os criminosos que as comunicações eletrónicas poderão ser acedidas pelas autoridades, tenderão a confiar mais na segurança que lhes é dada pelo domicílio do que na que lhes é oferecida por uma linha telefónica ou pelo Ciberespaço. E o captatore informatico (1) permite a recolha de som e

imagem sem necessidade de os investigadores estarem no local, (2) não levanta suspeitas�� de estarem a ser recolhidas provas da atividade criminosa, (3) não põe os investigadores em perigo e (4) permite obter informações em locais onde não seria possível colocar agentes policiais sem levantar suspeitas e, pela natureza “itinerante” dos sistemas informáticos da atualidade, os sistemas informáticos podem ser utilizados, pelas autoridades, na execução de vigilâncias “dinâmicas” e não meramente “estáticas” (apenas no local onde os dispositivos foram instalados) e sem necessidade de seguimento “presencial” dos investigados�� .

5. CONCLUSÃO Em conclusão, a utilização de benware no âmbito da investigação criminal, além de muito necessária para a investigação e para a prevenção criminais, é admissível à luz do Direito português vigente. Todavia, porque, como referimos, a utilização de benware restringe o direito fundamental à confidencialidade e à integridade dos sistemas técnico-informacionais, seria preferível que o legislador a previsse expressamente. Desse modo, seriam afastadas quaisquer dúvidas quanto a essa admissibilidade, que podem gerar graves prejuízos em termos de eficácia da investigação e da prevenção criminais e, consequentemente, graves deficiências ao nível da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos face a formas de criminalidade particularmente nocivas e que atentam contra a própria subsistência do Estado de Direito.

22. Cfr. COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado” pp. 166-167. 23. Cfr. HOLZNER, Die Online-Durchsuchung: Entwicklung eines neuen Grundrechts, p. 11. 24. Cfr. BUERMEYER, Die “Online-Durchsuchung”. Technische Hintergrund des verdeckten hoheitlichen Zugriffs auf Computersysteme, p. 161. 25. Cfr. BUERMEYER, Die “Online-Durchsuchung”..., cit. pp. 159 e 161. 26. Cfr. DEVIN M. ADAMS, “The 2016 Amendment to Criminal Rule 41: National search warrants to seize Cyberspace, “particularly” speaking”, in University of Richmond Law Review, Volume 51 (2017), p. 745. 27. Cfr. ROGGAN, “Präventive Online-Durchsuchungen”, in Online-Durchsuchungen, p. 99. 28. Cfr., à luz do Direito italiano, Sentença das Sezioni Unite da Suprema Corte de Cassazione de 28/04/2016-01/07/2016, n.º 26889. 29. Vide argumentos adicionais (e com maior aprofundamento) em DUARTE RODRIGUES NUNES, Da admissibilidade…, cit., pp. 43 e ss. (com referências doutrinais e jurisprudenciais). 30.Cfr. DUARTE RODRIGUES NUNES, O problema…, cit., p. 696. 31. Aludindo à utilidade da vigilância acústica no interior do domicílio para suprir as insuficiências das ações encobertas, KREY/HAUBRICH, “Zeugenschutz, Rasterfahndung, Lauschangriff, Verdeckte Ermittler”, in Juristische Rundschau, 1992, p. 313. 32.Cfr. MONTOYA, Informantes y Técnicas de Investigación Encubiertas, Análisis Constitucional y Procesal Penal, 2.ª Edição, p. 343. 33. Cfr. Sentença das Sezioni Unite da Suprema Corte de Cassazione de 28/04/2016-01/07/2016, n.º 26889.


2020

E O MAR LOGO ALI Ana Gomes Juíza de Direito


Sonhar: exercício que consiste em imaginar o impossível, para depois o realizar. Como voar. José Eduardo Agualusa, A vida no céu, 2013, Quetzal editores

2020 seria cheio como os dois zeros que o compõem, aberto como os dois em forma de cisne que Natália se dedica a desenhar quase de forma obsessiva. Nunca teve grande talento para representar árvores, flores ou casas e, na escola, sem saber porquê, a aluna dedicada nunca desenvolveu essas competências. Por isso, quando deixou de fumar e as pausas deixaram de lhe fazer sentido, descobriu as mandalas com a sobrinha de 8 anos: com a criança, preenchia as linhas e conjugava as cores, sem o preto que usava quando escrevia mais uma sentença no documento word. Ao fim de muitas horas, já uma especialista, aventurou-se a desenhar as suas próprias mandalas compostas de formas que faziam lembrar números muito perfeitos. Foi assim que, no papel de 250 gramas, esculpiu, a tinta da china, a primeira obra de dois mil e vinte, 2020, dois-mil-e-vinte. Ali estava a esperança de um futuro melhor. Uns 10 anos antes, entrara na profissão, como todos, a perder. A perder dinheiro, a perder reputação, numa era em que não é dado a qualquer pessoa o benefício da dúvida, apenas se exige a perfeição.

Começava a conviver melhor com isso, ainda que em cada processo de decisão perguntasse se estava a determinar o que era certo, o justo. Em 2020, o caminho dos homens e das mulheres foi atravessado por incertezas, que também entraram no mundo de Natália. Não era já a incerteza de poder pagar as prestações a que se tinha obrigado antes de ver reduzido o terceiro vencimento, em janeiro de 2011, ou de ter decidido com justiça o caso concreto. Era a incerteza sobre se dali a um ano haveria nova chamada para recolher a casa e as vidas voltassem a ficar suspensas, ou sobre se viria a ser espalhado no ar o antídoto que permitisse a todos o abraço que Natália retrata, entrelaçando os dois 2, como cisnes enamorados. 2020 termina com esse abraço e com dois zeros redondos, cheios de esperança de voltarmos ao passado, como nunca antes se pensou.


PAUSA PARA CAFÉ FG

Sou um homem que confessa que viveu e vive.

Eu já nem me lembro quando conheci o meu Amigo Jorge, não tanto por não saber onde foi, mas mais pelo tempo que já passou ! Jorge sempre partilhou os seus êxitos, dores de cabeça, preocupações, dramas, etc, comigo, mas em nada se justificava que não fosse ele a escrever a sua trajetória de vida. Mas como não gosta de exibições, e depois de muito pressionado não só por mim, resolveu abrir os cordões à memória e propor-me que eu fosse escrevendo, que ele corrigiria o texto, se tal se justificasse. É uma “empreitada”, que tentarei levar a bom termo….. Jorge nasceu em Lisboa, aliás é o único da família que não nasceu nas terras quentes de um Alentejo profundo, raiano, hoje novamente na moda mercê das novas tecnologias. Jorge vê parte dessa transformação com mágoa, na medida em que esses projetos destruíram o chamado “campo de aviação”, que desempenhou um papel fulcral na Guerra Civil de Espanha, como entreposto de abastecimento das tropas franquistas por parte dos alemães, sendo portanto um Marco Histórico Jorge é filho de uma família de classe média, se bem que o Avô materno fosse um latifundiário, que só mais tarde quando precisou, aceitou o casamento da única filha, com um trabalhador rural. Já com uma filha lá nascida e com 7 anos, os

Pais mudaram-se para Lisboa, e foi aqui, que passados alguns anos, quiçá por acidente (é a versão dele….) o Jorge viu a luz do Mundo na Rua do Olival nº 111. Como era preciso alojálo, e a casa era pequena mudaram-se para as Amoreiras, um 4º andar, sem elevador, com uma frente de 4 divisões e uma varanda corrida, que serviu, segundo ele, dado nessa altura ainda não nos conhecermos, de pista de triciclo durante horas consecutivas ! O prédio era rigorosamente em frente da antiquíssima Estação dos Elétricos das Amoreiras, algo que hoje só é identificável em fotografias, no R/C do qual havia um estabelecimento comercial de venda de petiscos e “lubrificantes” estomacais, frequentado principalmente pelas tripulações do “amarelos”. Além desse comercio, viviam no prédio o senhorio no 1º andar, ”alguém” no 2º, no 3º a viúva do famoso piloto Plácido de Abreu, que faleceu num meeting de acrobacia aérea em Inglaterra, e no 4º o meu Amigo Jorge. (Foi prestada homenagem póstuma a Plácido de Abreu, dando o seu nome a uma Rua muito próxima do local onde existiu o prédio em causa). Uma das diversões do Jorge era a de “regar” fisiologicamente as plantas que a vizinha do 3º andar tinha numa varanda similar à dele. Dois problemas essa rega suscitava, para infelicidade da Mãe e da Irmã do “jardineiro”: -muitas das plantas da vizinha foram secando, e/ou, quando o regador não estava bem


A HISTÓRIA DE UMA VIDA ( SEU JORGE)

afinado, eram os trinca-bilhetes & Cia que recebiam o produto…..à porta da tasca…. As reclamações personalizadas eram constantes……. À época era Ministro das Obras Públicas o Engª Duarte Pacheco, que no seguimento da construção da Ponte Marechal Carmona, e para lhe dar acesso e continuidade para a A5, expropriou diversos imóveis, o campo do Glorioso Benfica inclusivamente, a Estação da Carris e o prédio do Jorge ! Com esse ato, os Pais dele tiveram que procurar nova casa, desta vez em Campo de Ourique, e perto da Escola Primária Nº 6, para ele estar sobre controlo……. Foi aí que nos conhecemos e começou a nossa grande e frutuosa AMIZADE. Fomos colegas de carteira, tendo como Prof o Senhor José Maria Alves, Diretor da Escola, ( uma FERA……) mas muito nosso amigo. A Escola nº 6 era exclusivamente masculina, havendo “paredes meias” a Nº 7 que era obviamente feminina. Tudo de Bata Branca !!!!!! Esses 4 anos foram parcialmente tranquilos, mas como a Escola fica entre a R. Pereira e Sousa e a Rua Maria Pia, um sitio chiquíssimo e propício a uns diálogos à pedrada entre grupos entrincheirados no “recreio” da Escola e uns Amigos habitantes de zonas mais populares da Maria Pia, tínhamos espetáculos gratuitos desde que nos blindássemos…… Morávamos

em 2 quarteirões consecutivos, sendo que o do Jorge era mais tranquilo, não fossem uns policias à paisana, que conjuntamente com outros fardados faziam a segurança do Santos Costa, então Ministro da Guerra , e que não admitia ruido nem movimentos anormais quando estava na sua residência. A nossa principal distração eram uns jogos de futebol, de um lado ao outro da rua, com balizas desenhadas nos prédios e bolas feitas com meias de senhora, cheias de papel, trapos, algumas pedrinhas por engano, e tudo isso muito apertado e calcado. Era uma técnica complexa e as do Jorge até “saltavam”. A circulação de viaturas era, olha lá vem um, o que permitia interromper as partidas sem problemas. Nesse quarteirão havia 4 automóveis, 1 (VAUXHALL) do dono da pastelaria BIJOU na Av. Da Liberdade, e que vivia numa moradia, tendo como vizinho noutra moradia um empreiteiro de Construção Civil que tinha um PEUGEOT , e a vizinha do lado do Jorge, professora primária na Amadora, que tinha um FORD ANGLIA porque à época era a única solução para as suas deslocações quotidianas. A 4ª viatura era sempre de uma marca surpresa, dado os seus condutores serem proprietários de uma oficina de bate-chapas e mecânica, que escolhiam a que em cada dia, estava em melhores condições para os transferes.


PAUSA PARA CAFÉ

Mas neste tipo de operações porta à porta, o MÁXIMO era um Capitão que morava no R/C do prédio contiguo ao do Jorge. Ele era um individuo de uns 60 anos, Capitão tarimbeiro, barrigudo, que todos os dias tinha à porta do seu prédio, pelas 09:30 H, um “Impedido” (ordenança) com 2 cavalos, um em que ele vinha montado, e outro que trazia pelas rédeas para o Senhor Capitão. Só que, o Capitão não conseguia montar sem ajuda, e esta era nem mais nem menos do que o impedido agarrando com uma mão o estribo oposto (o do lado direito portanto) àquele onde ele iniciava a “operação”, para a sela não rodar à volta da barriga do cavalo, e com a outra mão agarrando a mão direita do Capitão para o puxar para cima do dito. Era um filme que eu só podia ver nas férias, e da varanda do Jorge, para nos podermos esconder à gargalhada !!!!! Por rir muito, nesse mesmo troço da Rua Azedo Gneco, entre as ruas Correia Teles, a de Sexa Santos Costa, e a Infanteria 16, havia diversões suplementares se os “chuís” deixassem, que eram as dos “ROBERTOS” e as dos “SALTIMBANCOS”, pelo menos uma vez por semana. Como o palco era sempre em frente à casa do Jorge, zona onde havia mais criançada, nós os 2 tínhamos visão de camarote…. Para o “lanche” passava todas as tardes um triciclo com uma vitrina com uns bolos em forma de pássaro, a massa era uma espécie de “croissant” não folhado, com açúcar por cima e que o ciclista apregoava : OLHA O PASSARINHO DE CAMPO DE OURIQUE !!!!! As Férias grandes eram uma chatice, porque tínhamos programas inconciliáveis. O Pai dele tinha comprado um terreno e feito uma casa em plena zona designada por “saloia”, num triângulo Cabeço do Montachique/ Bucelas/Póvoa da Galega, e ladeado pelas ruinas de 2 fortes das Linhas de Torres, num “lugar” chamado” Ribas de Cima. Era aí que ele fazia os seus programas de

“escaladas”, uma extremidade de uma corda amarrada a uma árvore no cento do Forte (havia mais do que uma) e a outra lançada para as ameias, bota cardada, toca a trepar e a esfolar os joelhos. Dado que quem vivia nesse lugar e noutros similares era auto suficiente na maioria dos bens de consumo corrente, nele não existia nenhum comercio onde os mesmos pudessem ser adquiridos. Assim, tornava-se necessária uma deslocação semanal ao Cabeço de Montachique, utilizando como meio de transporte um FOUR BY FOUR, mais conhecido por burro. O Jorge vivia essas as férias num ambiente rural, e à medida que foi crescendo era quem tomava conta das galinhas, apanhava erva para os coelhos, regava a horta, apanhava fruta, pisava a uva no lagar, um lavrador em miniatura. O Pai , (seu ídolo) quando ele tinha para aí 8 anos ofereceu-lhe um borrego acabado de desmamar. Ele conseguiu transformá-lo num cão, aliás até o crismou com nome de gente, que ia sem qualquer trela ou corda ou algo equivalente, para onde quer que o Jorge fosse. Era o espanto de toda a gente. Só que o Jorge, instigado pelo Pai, ensinou-o marrar, donde, quando qualquer estranho se acercava lá de casa, por vezes tinha que saber e poder correr…. Um filme….. Na época da caça, o seu Hobby era acompanhar o Pai que era caçador. Saíam manhã cedo, levavam almoço, e só regressavam ao pôr-do-sol. Estafado mas feliz, sobretudo se a caçada tinha sido generosa. Outra das suas distrações era ir ao moinho (que era do Pai da Beatriz Costa) com um saco de trigo, esperar que o moleiro o moesse, e regressar com a farinha a que tinha direito descontada aquela que era como que uma


taxa pelo trabalho feito. O veiculo utilizado era o burro do caseiro…. Eu tinha um programa bem diferente, que se repartia por um mês no Norte em casa dos meus Avós maternos e um mês de praia no Algarve. A partir dos 15 anos do Jorge, houve

profunda alteração nos seus hábitos de férias, que serão oportunamente descritos de acordo com a cronologia do seu percurso, que foi diferente do meu. (continua)


CORAÇÕES SEM RECHEIO E MR TURNER

Há tantas expressões que usamos e desconhecemos o sentido e a origem. Como sortido húngaro, por exemplo. Todos conhecemos as bolachinhas parcialmente cobertas de chocolate, semeadas de açúcar e recheadas com doce de morango, mas de onde vem a expressão? Os húngaros, ao que apurei, nada sabem sobre a sua origem. O sortido é parte da nossa tradição e um consolo perante bolos maiores para os quais nos falta a coragem. Ou a autorização. Foi esse o caso da menina que entrou na pastelaria. Por mim, estava insuspeita a trincar um sonho e a beber um café, quando ela entrou à frente do homem que, percebeu-se depois, era o pai. Um palmier coberto, uma bola de Berlim com creme ou um mil folhas são escolhas apelativas, mas a proximidade da hora de almoço e a autoridade parental conjugaram-se para que a decisão incidisse sobre uma bolacha das compõem esse só aparentemente banal sortido. No caso, um coração parcialmente coberto com chocolate, sem recheio, como a mesma repetiu ao empregado que, do outro lado do balcão, satisfazia o pedido. E foi ele quem não resistiu ao trocadilho “queres um coração sem recheio? Olha que assim não vais longe”. Disse-o de forma descomprometida, em tom

de brincadeira, sem pensar, claro, no peso imenso da metáfora. Nem a menina cuidou disso. Diferente a reacção da mulher ainda jovem que bebia café perto de mim, observando-se como podíamos as regras do distanciamento social. “Coração sem recheio?, Olhe não me puxe pela língua que hoje se fossemos falar disso …” Não falámos, claro. As regras do decoro adulto impõem que nos calemos perante os assuntos do coração e a menina só queria comer o coraçãozinho em sossego. Fico a pensar nesta ligação entre o coração e o amor. Li algures que data da antiguidade e que estará relacionada com as alterações de bombeamento do sangue decorrentes das sensações amorosas. O sangue a correr mais forte quando vemos o rosto amado ou o aperto no coração perante a desilusão explicam uma metáfora que já se aguenta há mais de 3000 anos. Durante séculos os corações estiveram sempre cheios. De amor, de carinho, de ódio ou de raiva, uma profusão de sentimentos, nem todos belos ou edificantes. Mas que garantiam um recheio consistente e inesgotável. Basta folhear as tragédias gregas para perceber isso mesmo. O coração sem recheio é uma invenção dos nossos tempos. *


FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho Juíza de Direito

Horas mais tarde recebo um link sobre um artigo publicado na Imprensa sobre o ghosting, a arte de desaparecer de conversas e relações sem deixar rasto ou dar explicações. Questiono-me sobre o motivo pelo qual me foi mandado. Talvez apenas vontade informar e partilhar experiências. Ou talvez alguém sinta que lhe fiquei a dever alguma coisa, ainda que eu pense que as contas estão saldadas, sem lucro ou prejuízo de parte a parte. Todavia, como escrevi há uns tempos, sabemos tão pouco sobre o que vai dentro dos outros. O que não impede que por presunção, arrogância ou arte de sobrevivência andemos pela vida como se soubéssemos tudo Fico a pensar no assunto o resto do dia, um factor agravante da melancolia que vai permeando os tempos de confinamento. Ocorrem-me aqueles com quem contamos e nos desiludem, os que põem likes nas redes sociais e não avisam que mudaram de número de telefone, os que prometem que um dia vamos jantar, almoçar, tomar um café, promessa renovada e nunca cumprida, anos a fio. Reflicto também nos que nos deixam sem chão e naqueles a quem, às vezes sem percebermos, deixamos sem chão. Será a mulher da pastelaria um coração com recheio que foi consumido com sofreguidão ou pelo contrário será que é ela que não tem recheio e exige que lhe emprestem o que não consegue ter? O que diríamos se nos

víssemos pelos olhos dos outros? Credores ou devedores de recheio? * À noite revejo Mr Turner, filme de Mike Leigh sobre o pintor inglês que lhe dá título. A obra passa por ser fidedigna à vida e personalidade do mais célebre pintor romântico inglês. A beleza, Turner verteu-a essencialmente nas telas. Fora delas tinha idiossincrasias de personalidade que o tornavam pouco apelativo. Mas toda a sensibilidade de que deu nota na sua obra pictórica tinha-a dentro de si. Prova disso é a frase que dirige a uma compungida Mrs Ruskin num jantar em casa do seu então marido, celebrado esteta e crítico de arte. Love will come, you know diz-lhe o pintor numa frase que interrompe apenas por segundos o longo silêncio em que se encerrou durante o jantar. * No dia seguinte acordo cedo e vou direitinha à Gulbenkian. Vou ver um Turner de que gosto especialmente, Quillebeuf, Foz do Sena. É a vantagem de morar perto de um museu onde que guarda algumas das minhas peças favoritas. Estão à mão de semear sem que tenha quaisquer preocupações de manutenção ou segurança com elas. Saio para o dia de Outono luminoso, atravesso o jardim e entro numa pastelaria. Distraída com um telefonema, deixo à empregada a selecção do sortido húngaro que lhe encomendei. Só em casa abro a embalagem. Verifico satisfeita que não foi incluído qualquer coração sem recheio.


no tempo do gelo ardente na noite de fogo e lobo depois de ter abatido a corça mais inocente com setas feitas de pedra com arcos feitos de pau com força feita de fome o homem se levantou da esteira da solidão e às paredes da gruta traços e voltas lançou e com eles se encantou e os traços multiplicou e os traços deram as vozes e as voltas deram as danças e as danças eram de gente e a gente era igual ao homem que outro homem descobriu nas pedras onde dançavam as voltas que ali traçou e com elas se amigou e ao outro dia chegou uma mulher que passou a mão nos traços e voltas e se aconchegou na esteira com o homem que inventou do amor a carta primeira

Caligrafias

LICÍNIA QUITÉRIO



ERA JOSÉ LUÍS OUTONO Escritor, por vezes fotógrafo ou pintor

ERA U

ERA UMA VEZ... … uma crónica que prometia igualar desigualdades. Nas equações de grau elevado nasciam letras interrogativas, e as contabilidades numéricas oscilavam de acordo com o voltar de página dos votos inseridos. Recontar, um paradigma interessante da geografia sonhadora, onde as cores ditas partidárias, quantas vezes confundidas com fraudes e demais “convites”, escrevem um livro inquieto, onde o posfácio estava excluído por causa das verrugas cerebrais fazerem tropeçar idílicos cantares, ou utopias gestuais capazes de parar o trânsito nos conflitos de contramão, face a enganos hoje ditos normais, e amanhã desditos nos tropeções dos jardins

financeiros, da amálgama em ziguezague orientadora. Nem a falta de oxigénio face aos mascaramentos impostos consegue manipular esboços azedos disfarçados em acrobacias de um “gourmet“ apelativo. Zangai-vos senhores de camisa adoptada, mas isentos de ervas daninhas, e gritai o “slogan” da felicidade efervescente – “Antes tarde do que nunca!”. É tempo de plantarmos verdades, adubadas mesmo com o estrume da idiotice, e rasgar as folhas apócrifas dos livros, outrora algemas dos arrogantes. É tempo de escrevermos mares iodados e firmes, e desinfectar nevoeiros provocantes de contágios ímpios, e disformes … antes que Marte se escreva Morte!


A UMA VEZ... ERA UMA VEZ...

UMA VEZ...


RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira Juiza Desembargadora

A VIDA É UMA LOTARIA DE NATAL ...

( OS ALGORITMOS DECIDEM O RESULTADO ?)

A Vida é mesmo uma Lotaria que nos pode dar o número da sorte grande ou a terminação e, na maior parte das vezes, nem dar nada. Um jogo de fortuna ou azar em que apostamos e não depende da destreza do jogador, apenas da sorte. Será?! Há quem diga que não é uma questão de sorte, que não há destino, que a sorte, essa, fazemos nós, que podemos até “encaminhar” o nosso Futuro.

Futuro que já aí está. Estamos prontos para jogar?! Este ano voltámo-nos demasiado para dentro, não temos tempo nem para sorrir, estamos a desaprender, tornámo-nos mais do que nunca escravos do trabalho, e das ordens e das leis, vindas não sabemos bem de onde nem criadas como. E entregámos as nossas mãos ao Medo... nada pior para quem joga o jogo da Vida. “Entrega as tuas mãos ao Medo e não viverás.”

Será assim, podemos até provocar situações pelo caminho, mas não temos o resultado na mão, nem depende da nossa destreza no jogo. Prova disso é esta Pandemia que por aí circula pela mão de uma qualquer roda da fortuna ou do infortúnio, e que nos manipula, restringe e torna apáticos, antipáticos, rebeldes ou obedientes ou, quem sabe, homens e mulheres do Futuro. Que futuro teremos depois disto? Se depois da queda das torres gémeas o Mundo passou a viver centrado no terrorismo em direto, temos agora perante nós algo bem silencioso a que só o tempo e o passar da história levantarão o véu.

Estamos a esquecer a sensação da liberdade, ou a sentir que estamos a perdê-la e.... isso já percebemos que não é bom. Dizem que se avizinha a Era do Aquário e já Saturno e Júpiter se alinharam numa suposta Estrela de Natal a anunciar...um “Salvador”? Prepara-se um Futuro que não será igual a tudo o que já vivemos. A tecnologia avançará ainda mais, o teletrabalho está só a treinar-nos, a biotecnologia vai soltar-se e libertar-se, e os algoritmos vão ditar as leis.

Estamos no final de um ano que já começou antes de ter começado. Basta dizer que em Novembro de 2019, o Vírus já circulava por Milão e quem sabe por cá também... e nós nem sabíamos, mas circulávamos com ele. Mas o Vírus não é o Futuro, é um teste para o

A Vida continuará a ser uma Lotaria ou apenas um cálculo matemático?

É a Era Biotecnológica.

Descodificando emoções e reações, onde chegaremos?


FOTO DE: FERNANDO CORREA DOS SANTOS JORNALISTA

A ser substituídos por máquinas que criarão padrões depois de nos descodificarem e cometerão menos erros?... Mas,... e se errarem? Será que num Futuro próximo, os nossos filhos, ou os filhos dos nossos filhos, poderão até nem ter trabalho? Ou poderão trabalhar de qualquer parte do planeta e mesmo fora dele? Será que num futuro próximo, criar-se-ão órgãos e seremos meio humanos meio máquinas? Viram o filme Blade Runner? O que será humano e o que será máquina? O que será preferível? Quem decidirá? Se é possível decifrar o meu código genético, se nos laboratórios os cientistas estão a transformar a ficção científica em realidade, então, todas as experiências, esperanças, sonhos, visões, sensações que modelam a imaginação humana podem ser apenas um código decifrável.... E aí, não havendo limite à biotecnologia, à

manipulação da genética... então... mais tarde ou mais cedo será neste planeta que uma máquina me irá descodificar....... isso quererá dizer que...a clonagem do Admirável Mundo Novo está à porta mas não com aquela fórmula... com outra, mais robótica... Provavelmente um admirável mundo novo não virado só para o ser humano mas para outros seres. Poderá ser melhor... Porque a biotecnologia pode criar tudo. Este problema não é de países muito desenvolvidos, é de todos. Já repararam que todos os nossos problemas são de ordem global? Já repararam que enquanto alguns pensam que


FOTO DE: FERNANDO CORREA DOS SANTOS JORNALISTA

a era da globalização “ já era”, o Covid nos veio globalizar?.... ...aquecimento global, desigualdade global,... medo global... Pandemia... As nossas capacidades físicas e cognitivas servem para quê num mundo que nos pede para aderirmos ao teletrabalho e usarmos o mais possível as máquinas? O que faremos com milhares de milhões de seres humanos que não aderirem à resposta rápida e útil de uma máquina? Passarão a ser economicamente inúteis? Trabalharão com as máquinas, para as máquinas, nas máquinas ou controlando as ditas?

Este teste que nos fazem a propósito da pandemia será um teste à nossa capacidade de seres humanos? Um teste à nossa capacidade de vivermos ocupados e desocupados? Um teste à nossa capacidade criativa ou à nossa utilidade económica? Será esta a maior questão económica e política do século XXI? Ou será esta a maior questão da humanidade enquanto “ser existente”? Há que pensar a responsabilidade e o titular da mesma numa era em que, em vez de se ter diluído, se acelera a globalização do Mundo (não escrevi planeta). Estamos perante um conjunto de poderes ligados


A VIDA É UMA LOTARIA DE NATAL

aos mercados financeiros. A gestão individual dos Estados já está a dar as últimas? Ou de repente a ganhar espaço? Estaremos, como diria Habermas perante sociedades onde prevalece ou deve prevalecer a liberdade de escolha ou, o que acontece, é o aumento do jugo Estatal? A Ética não passa pela liberdade individual, mas pelo bem colectivo traçado pelo Estado. Se apelam à nossa opção individual sobre técnicas de reprodução, substituição de órgãos ou morte medicamente assistida, traçam as regras com os cuidados mais calculados e calculistas, ... mas é assim que se faz uma lei, e espartilhamnos aqui e ali. Neste momento não acredito na eugenia liberal a que Habermas aspira embora também eu a deseje. Esta pandemia é o exemplo real de um travão enorme a essa escolha possível a cada indivíduo. Os Estados são chamados a proteger, a decidir, a escolher, a controlar, a criar regras. A Nova Era pode ser fantástica, pode dar-nos anos de vida, mas pode simplesmente despersonalizar-nos. Dependerá de quem decide. Tenhamos cautelas, a Vida é uma Lotaria e eu prefiro a aleatoriedade da fortuna ou do azar, ao jogo falseado e manipulado. A Biotecnologia pode criar tudo, e tirar tudo, como por exemplo a liberdade de decidir, ou de esperar que a roleta da sorte gire. A primazia da Intervenção estatal no corpo e na vida dos cidadãos não é de agora. A História já a viu. O Poder Estatal está a reforçar-se a nível Mundial. Os gigantes económicos hão de fazer parte disto e claro

que o Poder Financeiro será decisivo. Resolver a morte será para todos ou para o Estado? Resolver a morte passa pelo prolongamento da Vida, da beleza, da saúde... Podemos cair numa cidadania biológica ou numa ditadura biológica conduzida pelo poder económico de cada um. Estamos preparados para o que aí vem? Fez realmente Deus o Ser Humano à sua imagem e semelhança? Eu queria acreditar que este Mundo Novo fosse semelhante ao que vivemos apesar de até poder afastar a seleção natural, que fosse próspero e rentável, que os cuidados de saúde fossem melhores mas que em troca me deixassem jogar na lotaria do que é ser-se humana e não saber se vou nascer com olhos zuis ou verdes, simplesmente castanhos e pele morena. Que ensinar aos nosso filhos? Saber comunicar, ser criativo, empreendedor, saber colaborar e! ter pensamento crítico para poder analisar e... obviamente decidir. Lá deixaremos o QI e lá nos relançaremos no QE?! Que teremos daqui a 30 anos? Migrações para o Espaço? Trabalho em estações espaciais? Bem pago? Quais os escolhidos? Os mais saudáveis? Os algoritmos decidem. Ou.... talvez não. A Vida ainda é uma Lotaria de Natal... será decidida por algoritmos ? Vamos onde nos leva o Coração? Ai o Marketing a descodificar o nosso coração. Não durma, medite, conheça-se aposte na eugenia liberal de Habermas.

A VIDA PODE SER UMA LOTARIA DE NATAL ANDA À RODA JÁ AMANHÃ. (ESCRITO EM DEZEMBRO DE 2020 UM ANO BISSEXTO E REDONDO TERMINADO EM 4 COM UMA PANDEMIA À SOLTA TENTANDO ENFRENTAR O ESPÍRITO DO NATAL )


ANA CAMPELOS ADVOGADA . PROFESSORA MESTRE EM HISTÓRIA DA ARTE

Diferente... Aquele dia estava diferente. Porquê, não sabia. Só soube que era diferente. A ténue luminosidade envolveu o seu rosto. A calma e serenidade reinavam. Fios iridescentes de luz deambulavam pelo corpinho seco e mirrado do menino, como perdidos num sonho por sonhar. O menino despertou de um sono de anjos e..., vagarosamente, abriu as pálpebras e olhou em redor. Não reconheceu o sítio em que se deitara na noite anterior. Olhou de novo. O saco de papel, que sempre trazia consigo, apanhado num qualquer sítio que já não se lembrava onde, estava a seu lado. Remexeu nele. Os seus parcos haveres – um canivete enferrujado, um trapo roto, uma maçã roída apanhada no lixo – permaneciam intactos. O que se passava?! - perguntou a si próprio. Aquele local não era o mesmo no qual, na noite anterior se havia deitado, enroscado em folhas de jornal. Mas talvez fosse..., já não sabia. Magicava, ao mesmo tempo que perscrutava tudo à sua volta.

como aquela água que brota no rochedo, lá longe, quase no fim de tudo, onde um dia, perdido, a encontrou, deu-se conta que era a sua barriguita a murmurar por comida. Instintivamente meteu a mão no saco e tirou a maçã. Saboreou gostosa e vagarosamente a textura e macieza da mesma, dando dentadas delicadas, quase a medo, diluindo e prolongando nesse vagar a iminência do fim da sua comida. Mastigando, deu alguns passos e apercebeuse de que, afinal, estava no mesmo sítio em que adormecera. Mas a luz..., o sol..., os pássaros..., as borboletas... e..., até, as gotinhas de orvalho estavam diferentes! Encolheu os ombros, sem perceber. Não conseguia saber o que se estava a passar.

O sol começava a sorrir. Esboçava um sorriso cor-de-laranja lindo, radiante e luminoso, e prometedor de mais um dia muito quente. Pássaros ao longe despertavam e afinavam os seus cantares com melodias desiguais das que antes lhes ouvira. Borboletas policromáticas deambulavam serenamente em redor de tudo e de nada, poisando aqui e beijando ali um malmequer perdido no chão. Gotículas de orvalho escorregavam pelas folhas, saltitando silenciosa e suavemente de folha em folha.

Pegou no saco de papel e começou a caminhar sem rumo nem destino, apenas a caminhar. Deambulou todo o dia. Procurou comida, mas não a encontrou, tão pouco outra maçã roída ou meia podre ou um pedaço de pão ressequido. Nada de nada. A sua barriguita continuava, de vez em quando, a fazer aqueles ruídos clamando alimento. Mas o menino já estava habituado aos mesmos. Era como a sua sombra: às vezes era maior quando o sol, depois de acordar, começava a crescer no céu, outras vezes era mais pequenina quando o sol abria os seus braços e, muito quente, lhe afagava o corpo através da camisola rota e dos calções esfiapados. A fome era como a sombra e o menino conhecia muito bem ambos. Não fazia mal. Mais logo, ou depois, e se não fosse hoje, seria amanhã, haveria de encontrar alguma coisa para comer. Bebeu água de um charco e, apesar de cansado, continuou a andar. Sem saber porquê os seus pés levaramno para a orla da floresta.

De repente, o menino estremeceu ao ouvir um ruído. Afinou os ouvidos e pôs-se à escuta. E..., soltando uma gargalhada cristalina,

Anoitecia já. O sol, atrás dos morros, parecia uma grande laranja, em cor e tudo. Duas nuvens

Lentamente, retesou os músculos, espreguiçouse e bocejou longamente, esfregou com os nós dos dedos os olhinhos verdes meios ensonados e levantou-se de um salto.


A CEIA A CEIA esfarrapadas vagueavam pelo céu e brincavam com os raios de sol que estava já a dizer adeus e se ia deitar, pois também já estava cansado. O menino continuou a pensar que aquele dia tinha sido um dia diferente. Nada era igual. Ou antes, era e não era. Mas tudo tinha uma luz não igual à que tinha antes, tudo parecia ter magia, mesmo sem fadas e sem magos. Até o sol, que conhecia tão bem, teve, naquele dia, um sorriso diferente. Era tudo tão estranho... E, enquanto magicava, de repente, algo aconteceu. Nataall... ouviu, como se fosse um eco longínquo. Nataaallll... ecoou outra vez. O que seria aquela palavra? Seria alguém a chamar? Mas não, não podia ser. Ali não vivia ninguém. Saboreou a cadência do som e a beleza da palavra. Linda. Divinal. Será que havia um anjo escondido na floresta?!, questionou-se. Talvez um dia, pensou, quando fosse grande e crescido, descobrisse o que era, o que significava. Apreensivo, o menino encolheu os ombros e continuou a deambular pela floresta à procura de algum alimento. E, então, junto a um pinheiro, viu o que lhe pareceu ser comida. E era! Hum...que bom, pensou. Sob as agulhas acastanhadas de pinheiro escondiam-se, tímidos e envergonhados, grandes cogumelos. Eram melhores assados, mas hoje teria de os comer assim. Crus. Há muito que não encontrava fósforos que, mesmo quando molhados ele já sabia como fazê-los acender, cogitou orgulho do seu saber. Mas não fazia mal. Assim também eram bons. Pegou no canivete e cortou uma mão-cheia deles e, sentando-se na caruma macia e dourada, começou a comê-los. Hum...! Eram uma delícia! Mas..., franzindo as sobrancelhas, algo lhe ocorreu ser estranho pois, os cogumelos..., os cogumelos não sabiam a cogumelos! E ele

já tinha comido algumas vezes cogumelos. Rebuscou no seu pensamento o sabor que, diferente, já havia degustado. Hum... era isso! Há muito tempo, já não sabia há quanto, apanhou no lixo da cidade um pedacinho de muitas coisas: carne, massa doce, pão frito com ovos e bolo que parecia o céu estrelado, cheio de bocadinhos de coisas de cor, muito docinhas. Era isso!, relembrou. Os cogumelos sabiam-lhe a carne, depois a massa doce, o seguinte a pão frito com ovos e o último tinha o sabor daquele bolo que parecia o céu estrelado. Sentiu-se cheio e saciado. Já não conseguia comer mais. Guardou o canivete e um cogumelo que sobrou no saco de papel. Estava empanturrado e já com a moleza de tanto ter comido, muito ensonado. Reclinou-se encostando-se ao pinheiro. Resvalou e deitou-se enroscado, aconchegando-se à caruma seca que atapetava o chão. Pensou, então, que não se podia esquecer daquela palavra que ouvira. Fez um esforço de memória para nunca a esquecer, mas, já na penumbra dos sono, lembrou-se que sempre se lembraria da mesma, pois sabia que jamais encontraria um dia diferente como aquele e teria uma ceia como a que teve nesse dia em que ouvira a palavra Natal. O menino embalou no seu pensamento a melodia daquela palavra e entrando no mundo dos sonhos dos pequeninos adormeceu e sonhou, outra vez, o sonho dos anjos. O menino que não tinha raça, nem cor, nem credo, nem religião, que não vivia em lugar nenhum e vivia em todos os lugares, o menino que era universal, o menino que também teve um dia a magia do Natal, sorrindo, já no preâmbulo e no limiar do seu sonho, encolheu os joelhos e, encostando-os à barriguita farta, suspirou...


VOCÊ CORTA A ETIQUETA? Margarida de Mello Moser Comunicação e Prótocolo

As letras dançam à minha volta. Tenho dificuldade em juntá-las. Estão atrapalhadas, amontoadas, em plena rebeldia. E caem à minha beira palavras soltas tão misturadas, tão sem nexo, sem sentido nenhum ... A morte aparece tantas vezes, como se fosse coisa banal. É nisso que quase se transformou a morte, um acontecimento banal. As notícias dizem que batemos recordes - de mortos. Recordes? E mesmo com tantas famílias de luto, tanta tristeza espalhada, tanto perigo à espreita, há muita gente a querer atravessar estas festas com absoluta normalidade. Mas vamos poder fazer alguma coisa como é costume? Todos sabemos que não. Afinal estamos em Dezembro e ninguém fala do Natal, do nascimento do Menino que aí vem. Que ano horrível, este de 2020! Sem querer fugir à minha tarefa, levo-vos um pouco à boleia com alguns versos que roubei aqui e ali, a poetas maiores da nossa língua portuguesa, que tão bem escrevem e descrevem esta quadra. Aqui nos deixou, a nossa boleia....

O S N E S M O B OO B S S N N E SSE M O BO OO S B N S E N S E M S OM BO B

Em “(Des)concerto de Natal para Cordas, Sopro, Teclas e Metais”, de Rodrigo Emílio “Vendaval desatado ... - ... E, no entanto, é Natal por todo o lado ... ! Temporal desfeito ... - ... E, contudo, é Natal na gruta do meu peito!... Invernia geral ... - e, todavia, ė dia, ė Dia de Natal! ... ................................ - ... Mas, cá por dentro, há Natal, de verdade. E, a par do Sol de Natal, o Translúcido sinal da meia-noite, e a saudade - esta saudade que a invade e que me invade ... Sim. A saudade .... A saudade ...”

Em “Natal à Beira-Rio” de David Mourão-Ferreir

“.................................. É noite de Natal, que trav depois fui não sei quem qu E quanto mais na terra a E quanto mais na terra fa Vem tu, Poesia, vem, agor à beira desse cais onde Jes Serei dos que afinal, erran Precisam de Jesus, de Mar Em “Dia de

......................... Comove tan É só abrir o como se de a numa toada de violas e b Entoa grave E mal se ext a voz do locu Anuncia o m


ODivino”, S EmN “Natal E S de Miguel Torga Natal divino ao rés-do-chão humano, Sem um anjo a cantar a cada ouvido. Encolhido À lareira, Ao que pergunto Respondo Com as achas que vou pondo Na fogueira. ................................ E neve, neve, a caiar De triste melancolia Os caminhos onde um dia Vi os Magos galopar ...”

”, ra

vo a maresia! ue se perdeu na terra. a terra me envolvia azia o norte de quem erra. ra conduzir-me sus nascia ... ndo em terra firme, r, ou de Poesia?” Natal”, de António Gedeão

............ nta fraternidade universal. rádio e logo um coro de anjos, anjos fosse, a doce, banjos, emente um hino ao Criador. tinguem os clamores plangentes, utor melhor dos detergentes.

Em “Natal ... na Província Neva”, de Fernando Pessoa “Natal ... Na província neva. Nos lares aconchegados, Um sentimento conserva Os sentimentos passados. Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade! Meu pensamento é profundo, Estou só e sonho saudade. E como é branca de graça A paisagem que não sei, Vista de trás da vidraça Do lar que nunca terei!” Em “Consoada”, de Manuel Bandeira “............................. O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar.” E agora? Nada a propósito, mas com todo o propósito: você corta a etiqueta? Pois é, em tão conturbada época, o que manda a etiqueta? Manda bom senso, bom senso e bom senso. Manda cumprir muitas regras e pensar bem antes de agir, antes de falar. Este ano voltei aos cartões e já comecei a mandar presentes pelo correio. Deixo a sugestão. Se queremos evitar contactos, estar mais seguros, o correio é mesmo uma boa opção: Preenchem-se as “etiquetas” e as mensagens chegarão a bom porto. E podemos cantar cantigas de Natal Fazer uns bons cozinhados e estar à volta da mesa Festejar com os que estão ao nosso lado Abrir presentes, dar presentes, Telefonar, telefonar muito, e começar já ... E, sim, esperar por melhores dias.


VOCÊ CORTA A ETIQUETA?


Um Santo Natal E que venha um ano de esperanรงa


EXTRA

Silvia Chueire

PINTURA DE: Oswaldo Guayasamín


entrega as tuas mãos ao medo e não viverás. há um espaço de arbítrio- entre acaso, ética, responsabilidade, dever uma fenda para a coragem. a vida caminha pela terra passos decididos entre tudo e nada, uma brevidade imperceptível a roçar os nossos rostos. nada restará depois que as horas calarem. entrega tua face ao medo e não a verás viva. * (porque o caminho se faz caminhando seja ele qual for)



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