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Flores na Abíssinia Carla Coelho

FLORES NA ABISSÍNIA

Carla Coelho

Revejo de tempos em tempos A Grande Beleza. O desejo de o fazer veio durante o período de confinamento, mas, como não tinha o filme, nem modo de o adquirir, tive de esperar pela oportunidade certa. A espera em si mesmo tem uma quota parte de prazer como sabemos e foi esse o pensamento que me consolou.

Depois, o filme surgiu-me por um preço módico e tudo se conjugou para a desejada revisão da matéria dada. Porquê este filme, interroguei-me. Precisamente este que não tenho, enquanto tantos outros também amados aguardavam a oportunidade de serem revisitados?

Talvez, por um lado, precisamente o facto de não o ter o tenha tornado mais desejado. Depois, Roma é, de facto, uma das minhas cidades. O Coliseu, as múltiplas fontes que se espalham pela cidade, umas mais conhecidas do que outras, mas todas belíssimas, a Boca da Verdade, a Vila Borghese e, claro, o Vaticano que se alberga dentro da capital italiana são apenas alguns dos motivos para ir e voltar à cidade.

Nunca é sem emoção que vejo Jep Gambardella o protagonista, passear-se por locais que são também os meus, como a Villa Giullia. Em particular porque aí se confronta com o trabalho de um artista norte-americano que durante décadas se fotografou todos os dias, oferecendo-nos um registo subtil, mas indelével, de como os dias passam e a vida se escoa.

Por isso, sei que o que me conduz a rever periodicamente este filme é mais do que a recordação de momentos felizes na cidade que me convocou a revisitar este filme, melancólico e intrigante.

Jep celebra os seus sessenta e cinco anos e com isso entra num momento reflexivo. O que fez da vida que passou? Gastou-a bem? Intui que não, mas a pergunta é como poderia despendela melhor. Para essa reflexão todos convocamos elementos distintos e Jep não é excepção. Mergulhado no turbilhão mundano de Roma tem algumas amizades seguras, sabe distinguir o essencial do acessório, é realista sem ser cínico. Consegue agarrar a oportunidade de amar. Tem uma alegria de viver que não passa ao lado da tristeza existencial. É isto que torna o filme tão maravilhoso e ao mesmo tempo

GAMBARDELLA GAMBARDELLA

tão terrível. Para onde vai a vida, o que acontece ao tempo? Parece que temos tanto tempo e afinal tudo se esgota tão rapidamente. Esfuma-se.

Não acredito em milagres e não creio que desta pandemia vamos sair globalmente melhores. Parece-me que sairemos mais ou menos na mesma, o que é uma pena. Vejo com apreensão o apelo para o regresso à normalidade ou, mais modestamente, à nova normalidade. Não encontro, a nível global, um questionamento sobre as origens deste vírus e de que forma podemos evitar a repetição de situações como a presente. É seguro que elas surgirão. Não identifico uma reflexão sobre a facilidade com que a nossa população se adaptou ao confinamento. Talvez andemos todos demasiado cansados, talvez o ritmo de vida que levamos seja extenuante. Talvez. Um outro italiano Tiziano Terzani deixou uma frase que se tornou um dos meus mantras. Desiludido com as utopias políticas que viveu intensamente disse “a única revolução possível é a revolução interior”.

Vi e revi Jep Gambardella passeando-se pela madrugada romana, respirando o ar matinal cheio de promessas que o correr do dia acaba por não confirmar, imerso em sinais de eternidade que apenas reforçam a natureza efémera de quem somos e do que vivemos. Gambardella tinha uma mensagem para mim e creio que a percebi. Procuro adaptar a minha vida, tão crivada de compromissos e concessões, ao que pretendo que seja a minha nova normalidade. Por via das dúvidas vou por o DVD na minha mesa de cabeceira. Posso precisar do conselho de Jep a qualquer momento. Aconselhovos, se me permitem, a que façam o mesmo.

Tempus fugit.

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