5 minute read

Criança versus Abeas Corpus Lara Roque Figueiredo & Isabel Malheiro

Next Article
Enredos

Enredos

LARA ROQUE FIGUEIREDO &

Se o século XX ficou conhecido como o século das crianças, o século XXI será certamente o século da efetivação dos direitos que lhes foram reconhecidos.

Criança ISABEL MALHEIRO versus Habeas Corpus

A evolução jurídica mundial permite afirmar que, à ideia de direitos humanos subjaz a ideia de que todas as pessoas, incluindo as crianças, gozam dos direitos consagrados para os seres humanos e que é dever dos Estados promover e garantir a sua efetiva proteção igualitária. Assim, e em nome do princípio da igualdade reconhece-se já em todo o mundo a existência de proteção jurídica e direitos específicos de certos grupos de pessoas, entre os quais estão as crianças. Toda a pessoa individual ou coletiva é suscetível de ser sujeito de direitos ou obrigações jurídicas, tendo por tal personalidade jurídica. Este conceito de personalidade está intimamente ligado com o princípio da dignidade da pessoa humana que tem fundamento constitucional. Assim, podemos também dizer que todo o ser humano, incluindo as crianças, tem personalidade jurídica.

A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo , tal como o próprio nome o refere, visa proteger a criança, mas também garantir que o seu passado familiar não tem de condicionar o seu futuro, pelo que é função do Estado garantir que a criança ou jovem possa crescer com direito à sua autodeterminação, à vinculação afetiva, ao são desenvolvimento da sua personalidade. Por isso qualquer providência neste âmbito, está sujeita aos princípios enumerados no art.º 4.º, nomeadamente da proporcionalidade e atualidade, da intervenção mínima e da prevalência da família. De entre as várias medidas de proteção existentes, surge o acolhimento que pode ser residencial ou familiar.

Segundo o último relatório CASA , em 2019, encontravam-se em regime do acolhimento 7.046 crianças e jovens. E tendo em conta o mesmo relatório, as 7.046 crianças e jovens em acolhimento a 1 de novembro de 2019, representavam 0,26% da população residente até aos 24 anos (2.719.644 crianças e jovens dos 0 aos 24 anos em Portugal, censos 2011).

O mais comum, pelo menos até ao final de 2020 pois só em 4 de Dezembro foi publicada a famigerada regulamentação do acolhimento familiar constante da Portaria 278-A/2020, é o acolhimento residencial, medida em aplicação à larga maioria das 7046 crianças e jovens acolhidas.

A qualquer criança ou jovem que se encontre em acolhimento residencial, tal como refere o n.º 2 do art.º 49.º da LPCJP, tem de ser garantido um efetivo exercício dos seus direitos. Assim, cada criança deverá ter o tratamento específico que a sua particular situação requer tendo sempre como princípio norteador o do superior interesse da criança, ou como a doutrina tem vindo a defender, o do MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA .

Os Direitos das Crianças consagrados pela Convenção Sobre os Direitos das Crianças são direitos extra-

constitucionais, com a mesma força dos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição (arts.16.º, 17.º e 18.º da CRP). A própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, protege também os direitos das crianças ao estabelecer no art.º 24.º, que as crianças têm direito à proteção e que todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses. Assim, em todos os processos que respeitem a crianças, quem tem de ser o principal protagonista é a criança. Ora, um dos direitos das crianças ou dos jovens, tal como de qualquer ser humano, é o direito à liberdade. E quando o Tribunal priva a criança ou o jovem acolhido da liberdade, excedendo aqueles princípios do art.º 4.º da LPCJP, nomeadamente da proporcionalidade e atualidade, da intervenção mínima e da prevalência da família, impedindo-o de, por exemplo, de visitar a sua família? Quid iuris?

Privar uma criança ou um jovem da sua liberdade não respeita a sua individualidade e principalmente não respeita a Constituição da República Portuguesa, como decorre do artigo 27.º, nem a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como decorre da alínea d) do n.º 1 do seu artigo 5.º. O Estado tem obrigação de assegurar que todas as crianças tenham uma vida digna, que adquiram valores sociais e não pode hipotecar definitivamente as relações pessoais no seio da família biológica, em conformidade com a Convenção sobre os Direitos da Crianças, com o art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e com os art.ºs 36.º, 67.º e 68.º da CRP.

Tal como já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça , apesar de as medidas de promoção e proteção visarem afastar o perigo em que a criança se encontre e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, educação, bemestar e desenvolvimento integral, certo é também que a medida de acolhimento residencial não obstante não caber nos conceitos de “detenção” ou “prisão” a que se reportam os arts. 220.º e 222.º, do Código de Processo Penal, não deixa de configurar uma privação de liberdade merecedora da aplicação, por analogia, do regime da providência extraordinária de habeas corpus. Isto porque a Lei de Promoção e Proteção de Crianças em Perigo não prevê nenhum meio expedito que assegure um qualquer abuso na aplicação de uma medida que restrinja a liberdade de uma criança e, de facto, o Habeas Corpus é a única providência extraordinária e expedita destinada a assegurar o direito à liberdade enquanto direito constitucionalmente garantido (art.º 27º, 28º e 31º da CRP). E de outro modo cremos que não poderá ser. Coartar a possibilidade de a criança ou jovem poder lançar mão dessa providência viola o princípio da igualdade, ínsito no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, viola o art.º 37.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança, que atribui à criança privada de liberdade o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria, viola o art.º 7.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que prescreve a igualdade de todos os seres humanos na proteção da lei e viola o n.º 4 do art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que preceitua que qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegítima.

Não aceitar que uma criança possa recorrer à providência do Habeas Corpus no âmbito das medidas de promoção e proteção, significa um retrocesso na evolução no Direito das Crianças e nos Direitos Humanos, já que perpassa a ideia de criança como um ser menor há muito abandonada pelo Direito.

This article is from: