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Confinados Filomena Lima

CONFINADOS

Filomena Lima

Há quem esteja confinado e há quem esteja confinaaaaaaaaaaado.

Ou seja, confinado dentro do confinamento já que confinado agora é básico e normal. Mas, dentro disso, há o confinamento embirrante dos superconfinados da mente, os que estão confinadamente possuídos. Há ainda os confinados ao silêncio, a uma espécie de jogo do sisudo, confinados e à distância.

Não podemos esquecer que somos latinos e por natureza solares, risonhos, festivos. Mas, por via de termos sido ostracizados, amarfanhados, oprimidos, durante décadas viemos para a luz pálida da cidade cheios de medos e de enredos ocultos. De invejas e más resoluções para o que entendemos serem agora os nossos direitos. Passamos de humildes miserabilistas a cidadãos detentores de direitos, mas ainda continuamos humildes. E continuamos tendencialmente constrangidos ou potencialmente tiranos dos deveres alheios.

Serão precisas décadas para que se faça de nós cidadãos naturalmente educados e livres mas não necessariamente contidos pois a nossa natureza é peninsular, de raiz colorida e falamos com voz colocada e audível, não em sussurros unionistas - palavra que pretende definir características de outros países da UE - e somos naturalmente dados a festas, toques e a sermos solidários.

‘Podem falar mais baixo’ que tenho um bebé a dormir, pede rispidamente a vizinha do rés do chão direito, uma mãe na década dos trinta, típica ansiosa, amarfanhada, mas com face de realizada atinada tecnocrata, a um pequeno grupo de duas adultas e uma criança que, ao passarem no patamar de acesso ao rés do chão, iam rindo de qualquer peripécia do momento, numa travessia de cerca de 9 metros quadrados.

As condições acústicas do lugar são péssimas, é certo. Em Portugal não se vive só pobremente, também se vive pobrezinhamente, má construção, fraco aquecimento, paredes meias, etc. Do nosso lado do prédio, o rés do chão esquerdo, dormia, nesse momento, uma criança habituada a risos e a trinados. Pergunto se a ternura é quente ou fria, se é silenciosa ou estrondosa. Pode ser ambas mas não pode é ser tão agreste. Tão elementarmente carente. Mas chegou a apetecer-me dar-lhe um abraço.

Não houve pior década, para mim, do que a dos 30. Só deveres e responsabilidades sem o dom da competência serena que, ela a competência, estava ainda a caminho de ser adquirida. Apenas a competência desgrenhada, carregada daquilo a que chamo a ira da rectidão, de mãe, mulher, profissional algures.

A alegria alheia ofende se estamos tristes e descompensados? Uma mãe recente não pode/não deveria estar triste e cansada. Apenas feliz e realizada. A culpa não é dela mas de alguém que exige demais e se calhar dá de menos. Deveria pensar ‘Que pena tenho de não conseguir rir assim e de não conseguir que o meu filho durma regalado no meio de sons e gargalhadas e principalmente que durma de noite.’ Cuidado, mãe, o seu filho é português. Não o sobrecarregue com hábitos ‘polite’. Basta que seja educada, que respeite que seja gentil. Hoje quando vejo jovens de 30 e picos ao volante lembro me de mim aos 30 e picos ao volante, completamente focada em chegar a algum lado, no auge da minha carreira de ansiosa e de supermulher tcharan, cheia de certezas e pressas e compromissos e tão pontual e idealmente serena como os demais que não tinham de deixar os filhos na escola.

Para dormir, o melhor engenho é possuir uma alma feliz e adocicada. Gostaria que alguém dissesse a essa jovem mãe desesperada que a perfeição pode matar. Basta ser tri-S, ou seja, simples suave e suficiente. E que ser mãe não é desculpa para a vida. Relaxe e goze. Mas depois penso como é difícil ser mãe, responsável por uma família e ter uma carreira ou uma missão ou uma profissão e ainda ser mulher com toda a carga de exigência que subliminarmente nos foi imposta ainda antes de nascermos.

O meu avô fez-me desejar ter uma profissão para ser independente e realizada. Mas pensou que o meu mundo estaria habitado só por pessoas como ele que vivia para ser solidário com as mulheres da casa e as respeitar. E lembro o avô recordado por Valter Hugo Mãe que lhe pedia que não se desiludisse. ‘Quem se desilude morre por dentro’ e que dizia ‘ é urgente viver encantado.’

Por isso, compreendo a vizinha do lado, exausta, quem sabe se sozinha na sua responsabilidade, desencantada talvez, e tudo farei para que mulheres na década dos trinta não se sintam tão cansadas e fustigadas pela vida.

A única coisa que poderei dizer a quem tem menos três décadas do que eu é ‘não te subentendas’. Há uma vida completa que te espera mas principalmente há um mundo de gente que precisa de mulheres inteiras e não subentendidas, que tenham encontrado o seu ponto neutro ideal, sem mais-valias nem sobrecargas e, muito menos, sem heroísmos.

Não gosto de ouvir falar em mulheres guerreiras (incomoda-me pensar num mundo de guerreiros, prefiro um de parceiros). Apenas idealizo mulheres com o encantamento e leveza de não terem de pagar o custo das suas próprias vidas e ainda o das vidas dos que deveriam ter do seu lado. Viver em equipinha faz bem a todos.

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