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Cantinho do João João Correia
A PERSPECTIVA DA BALEIA
Há um ano Luís Sepúlveda deixou-nos, vítima da pandemia e sobre a qual eu não tenho paciência para escrever pois, muito sinceramente, estou farto dela. E ainda, tenho mais do que fazer do que falar do vírus. Pelo contrário, sobre Sepúlveda haverá sempre muito que dizer, e por vezes, mais do que dizer, haverá que sentir.
Sou a crer que li todos os seus livros, mas sinceramente não me recordo, por vezes, em que livro concreto é que li certa história ou, em que momento me apercebi de certa passagem, mas seja como for, com ele aprendi que não se deve romantizar a caça à baleia quando descreveu, num dos seus episódios, um rapaz, que depois de ler o Moby Dick, ficou convencido que a caça à baleia envolvia aventura, adrenalina, nobreza de carácter, espírito de missão, entre outras coisas que, afinal não se revelaram reais quando o mesmo optou por embarcar num baleeiro com vista a apreender a verdadeira experiência relatada por Herman Melville. Também conheci um caracol que se chama “rebelde” o qual, com a ajuda de uma tartaruga chamada “memória” não só conseguiu ir muito longe na vida como ainda conseguiu salvar toda a sua comunidade. Mas, sempre muito devagar, como é próprio dos caracóis.
Sobre um cão chamado “fiel”, e após a sua leitura, fiquei um bom par de horas perturbado pois, só me apetecia abraçar o cão a que Sepúlveda se refere na sua obra muito embora, por experiência própria, saiba que os cães não apreciam abraços, ou pelo menos, nos termos em que os humanos os sentem.
Há ainda uma gaivota e o gato que a ensinou a voar, um gato e um rato que se tornaram amigos numa referência a amizades impossíveis ou, pelo menos improváveis tornando-as não só possíveis como igualmente frutíferas.
Há sempre uma consciência ecológica de referência, em que a ligação humana aos animais é carregada
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CANTINHO DO JOÃO
João Correia
NÃO É FÁCIL FALAR DE ESCRITORES POIS, TUDO O QUE SE POSSA DIZER FICARÁ SEMPRE AQUÉM DO QUE ELES SÃO OU DO QUE ELES REPRESENTAM NO NOSSO IMAGINÁRIO.
de equívocos que se procuram esclarecer. Ou com o esforço dos animais ou com o esforço dos humanos que vivem nas suas histórias, pois, o velho que lia romances de amor bem sabia que a onça era mais dotada que qualquer humano e que, se não o matou quando teve oportunidade foi porque assim optou por não o fazer. Muito embora o pudesse, se o quisesse.
Há ainda uma baleia branca que habita os mares do sul e que se expressa numa antiga linguagem do mar, em que a sua memória fala do homem e do seu mundo, do que aprendeu com o homem, do encontro com outras baleias, dos motivos dos homens e do seu primeiro encontro com os baleeiros. Fala também, dos seus eternos confrontos com estes, da violência que lhes reservava em jeito de retribuição, das dezenas de arpões que colecionava nas suas costas como memória dos seus encontros com os humanos. Ela enquanto maldição que havia de os perseguir sem tréguas, com a força daqueles que já não têm nada a perder. Em jeito de curiosidade, diz-nos Sepúlveda que na costa do Chile, em 1820, um grande cachalote branco atacou e afundou um navio baleeiro porque os seus tripulantes mataram uma baleia fêmea e a sua cria. Dá-nos assim o Moby Dick mas agora na prespectiva da baleia. Nas palavras do seu autor, ela, a justiça implacável do mar.
Não é fácil falar de escritores, como já referi, mas há escritores, sonhadores e contadores de fábulas como ninguém e sobre estes, muito embora não seja fácil de falar, sempre nos restam os animais que, de uma forma ou de outra, nos dizem muito sobre quem os criou.
Sobre Sepúlveda, o escritor, sonhador, o contador de fábulas que nos deixou. Deixando-nos também e, porém, as personagens sobre as quais ninguém pode deixar de se apaixonar pois, se um gato pode ensinar uma gaivota a voar, tudo o resto apenas depende da nossa vontade de sonhar.