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Para Sempre Sofia Agostinho
A
SOFIA AGOSTINHO
Para Sempre
As frases mais difíceis e também as mais sentidas são sempre escritas com conhecimento de causa – seja na primeira pessoa, seja por conhecimento indireto mas profundo.
Da violência doméstica todos nós, sem exceção, já ouvimos ou soubemos de alguma situação deste tipo e as perguntas que ficam sempre por fazer são: como é que reagiste? O que fizeste para alterar isso?
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Durante muitos e longos anos, neste país, a violência doméstica foi aceite e até incentivada -era normal o marido “mandar” na mulher como se esta fosse um objeto.
Posteriormente e de forma paulatina, o paradigma societário alterou-se e a violência doméstica em si alterouse também, tornou-se um tema mais falado, mas ainda assim muito pouco porquanto ainda se sucediam os atropelos á vontade e auto determinação feminina, os episódios de violência e os crimes contra as mulheres, embora de uma forma mais velada e menos aberta aos olhos de uma sociedade.
Atualmente a violência doméstica é transversal – contra homens, mulheres, pais, avós ou até tios – apesar de os casos mais divulgados serem os casos de violência doméstica contra mulheres.
Então surgem novas perguntas: qual foi o momento em que nós esquecemos que a figura materna, a figura paterna e a família são a génese da existência humana e de qualquer sociedade? Será que não conseguimos entender que enquanto se perpetuar o ciclo de violência as nossas crianças e o futuro da nossa sociedade continuará enfermo de cicatrizes que não se apagam?
Todos falamos de violência doméstica, atualmente todos pensam, discutem ou conversam sobre este tema, porque todos de forma direta ou indireta tivemos conhecimento desta questão – mas será que temos noção das verdadeiras mazelas ou cicatrizes deixadas em que sofre na pele este tipo de maus tratos? A resposta dada por qualquer vítima será sempre “são cicatrizes que duram uma vida inteira”, ou então “nada apaga o que eu vivi”. E este eco vivencial traumático reflete-se quer no adulto que sofre a violência doméstica, quer na criança que em tenra idade assiste à cena do pai a espancar a mãe, da mãe a agredir o pai com um utensilio doméstico, ou, dos pais a agredirem os avós ou um avô.
Até ao final da sua vida, esse adulto ou essa criança – para lá de todas as mazelas ou marcas físicas – ficará marcado de tal forma que a sua capacidade de se relacionar com o próximo – seja em que contexto for - nunca mais será a mesma.
Preceitua o artigo 152.º do Código Penal que quem “infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, contra cônjuge ou ex cônjuge, namorado ou namorada ou pessoa com relação análoga à dos cônjuges mas sem coabitação, progenitor de descendente comum em 1.º grau ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite, pratica o crime de violência doméstica. Prossegue este mesmo artigo indicando as circunstâncias agravantes da moldura penal abstratamente aplicável.
Apesar da consagração penal, ainda existem no nosso país casos de violência doméstica e o ano que passou apenas trouxe de forma mais nítida, para as vitimas, esta realidade.
O Covid e os seus efeitos entre eles, a quarentena, a perda de postos de trabalho ou a redução das remunerações conduziu a situações inimagináveis de dependência e convivência mais estreita entre agressores e vitimas.
Quantos de nós em quarentena – com mais ou menos conforto - pensamos na segurança e no sossego que temos dentro das nossas casas?
Pois é! Uma vítima de violência doméstica tornase um alvo ainda maior entre portas, no recato do lar, onde ninguém sabe, vê ou às vezes sequer ouve a violência a acontecer. É com a desculpa da frustração e dos eventos que ocorrem – isolamento, perda de remunerações/perda de trabalho, consumo de álcool ou de estupefacientes exacerbados pela pandemia – que o agressor ganha forma, tamanho e peso e que a violência escala.
Quem nos tempos de pandemia ousou pensar nisto – como será viver no terror, de uma violência constante – física ou psicológica - perpetrada por um “ente querido”, 24/h por dia, sete dias por semana e sem aviso prévio?
Como será sentir que não há por onde fugir? Olho para esta situação quase como se fosse estar numa casa a arder com todas as portas e janelas trancadas… Não há por onde fugir, a morte ou os danos físicos são algo inevitável e o fogo e o fumo estão por todo o lado.
Em tempo de pandemia há situações que ganharam novos contornos – e não são só as situações de pobreza – são também as situações de violência doméstica.
Torna-se necessário repensar o atual modelo legal – penal e não penal – aplicável às situações de violência doméstica e garantir que as vítimas têm meios de escapar aos seus agressores de forma eficaz e que não ficam à sua mercê debaixo do mesmo tecto ou facilmente acessíveis.
É necessário interpelar as estruturas governamentais e a sociedade civil para que reequacione a forma como se vê, lida e soluciona as situações de violência doméstica, optando por políticas de prevenção eficazes, mas também por soluções eficazes que não passem apenas por providências cautelares ou pela aplicação de uma sanção penal.
Atualmente a violência doméstica é um crime público, mas antes de ser um crime público é uma questão humana, que transcende género, idade, ou grau de parentesco e que ganha contornos mais gravosos em tempos de pandemia. Se o pilar de qualquer sociedade é a estrutura familiar, urge então, mais que nunca pelos efeitos causados pela pandemia, a necessidade de proteger as vitimas de violência doméstica, para que possamos ter crianças, mulheres, homens e idosos felizes… Porque uma sociedade que não sabe cuidar dos seus idosos, educar as suas crianças e fomentar o crescimento pessoal dos homens e das mulheres – e isso passa também pela erradicação de qualquer forma de violência - nunca será uma verdadeira sociedade. Urge humanizar.