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Com base na ignorância Pedro Álvares de Carvalho

Pedro Álvares de Carvalho

COM BASE NA IGNORÂNCIA

Estamos em guerra.

É certo que não temos tropas portuguesas, de qualquer exército da União Europeia (EU) ou de qualquer país da NATO, de armas em riste no espaço territorial da Ucrânia (descontando, aqui, black ops, que podem, ou não – não temos, por definição, forma de saber –, estar a operar naquele território, mas oficialmente inexistentes). Mas estamos em guerra.

Porque fazemos parte de um determinado bloco de países que tem uma determinada forma de organização política interna, que faz parte de, pelo menos, duas organizações (UE e NATO) que partilham não todos, mas um determinado conjunto de interesses geopolíticos e geostratégicos, estamos inseridos, gostemos ou não, concordemos ou não, cada um de nós e as nossas famílias, num bloco relativamente uniforme de interesses que se contrapõe a um outro que, neste momento no tempo, é corporizado pela Rússia.

Existe, portanto, uma clara oposição entre a comunidade em que nos inserimos e a Rússia. E essa comunidade não só decidiu essa oposição, como tomou parte efectiva pelo outro interveniente, a Ucrânia, proporcionando-lhe ajuda não só humanitária, mas, sobretudo, para o que ora releva, militar, quer sob a forma de entrega directa de equipamento militar, quer sob a forma de “empréstimos” de dinheiro para aquisição desse mesmo equipamento, quer, ainda, atacando os interesses russos pela via económica e financeira das mais diversas formas, tanto a nível estatal como pessoal.

Não ocorreu, no entanto, de que eu tenha conhecimento, qualquer declaração de guerra dirigida à Rússia por qualquer dos membros desta comunidade. Seria mentira, porventura, afirmar que estamos em guerra. Mas, claramente, essa mentira é verdade, porque, se é uma verdade que «[a] guerra é a continuação da política por outros meios» (von Clausewitz), não é menos verdade que mediante a política se podem desenvolver e concretizar guerras. Quer as clássicas “guerras por procuração”, quer as guerras comerciais e financeiras.

Este é o primeiro tropo – A verdade da mentira de que estamos em guerra.

Mas, estando em guerra, impõe-se a pergunta – porque estamos em guerra?

Uma resposta simples seria esta – a Rússia invadiu um país soberano, em violação do direito internacional.

A questão é que o Direito Internacional Público vale, em boa e crua verdade, aquilo que os Estados, quiserem, sobretudo os Estados que detêm um poder bélico que lhes permite, na prática, ditar as regras de engajamento.

De todo o modo, existe, é certo, um “Direito dos Conflitos Armados”, também designado por “Direito Internacional Humanitário” (DIH).

Uma vez que o Direito Internacional Humanitário é parte integrante do Direito Internacional Público, as suas fontes correspondem, naturalmente, às deste último. O Artº 38.º, do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, define essas fontes, sendo que, de acordo com o artº 38.º, nº 1, als. a) a d), do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, considerado uma declaração oficial sobre as fontes do Direito Internacional, o Tribunal deve aplicar: a) Convenções internacionais (observe-se que “convenção” é outra palavra para “tratado”); b) Costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como lei; c) Os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas; e d) As decisões judiciais e os ensinamentos dos publicitários mais qualificados, como meios subsidiários para a determinação das normas de direito.

Com base na ignorância

Pedro Álvares de Carvalho

Os tratados e os costumes são, assim, as principais fontes do Direito Internacional. Em relação ao DIH, os tratados mais importantes são as Convenções de Genebra de 1949, os Protocolos Adicionais de 1977 e as chamadas Convenções de Haia. Embora os tratados vinculem apenas as partes de um tratado, os Estados também podem estar vinculados às regras do direito consuetudinário internacional. A esse propósito tem-se considerado que tais regras «são estabelecidas por meio da prática repetitiva e uniforme de Estados envolvidos em conflitos armados ou de terceiros Estados em relação a conflitos armados, na convicção de que comportamento praticado é obrigatório. Dois elementos são considerados para determinar a existência do direito consuetudinário: prática e opinio iuris. A prática refere-se à conduta do Estado que é consistente (mas não necessariamente uniforme por completo) ao longo do tempo. Opinio iuris é um elemento subjetivo, ou seja, a crença de que esse padrão específico de ação é exigido por lei. Na área do DIH, exemplos de prática incluem expressões em declarações oficiais, manuais militares e também podem ser encontrados em alegações de violações de um estado contra outro estado, ou em defesas contra violações» (“Direito Internacional Humanitário Consuetudinário”, CICV, 29 de outubro de 2010. Disponível em inglês: https://casebook.icrc.org).

Este Direito Internacional humanitário consuetudinário é de importância crucial nos conflitos armados de hoje porque preenche lacunas deixadas pelo direito dos tratados em conflitos internacionais e não internacionais e, assim, fortalece a proteção oferecida às vítimas.

Repare-se que estamos no Século XXI e não no Século XIX ou na primeira metade do Século XX. Na época em que o jus ad bellum admitia a licitude do recurso à força, era necessário um acto formal dos Estados para que fosse desencadeada a aplicação do jus in bello, consistindo este acto numa declaração de guerra ou num reconhecimento de beligerância. No entanto, a declaração de guerra corresponde a uma mera «cortesia» de uma época extinta. O jus ad bellum (regulamentando o recurso à força armada) refere-se ao princípio de travar uma guerra com base em causas precisas, como a autodefesa. Nos referidos e passados tempos, os Estados não eram proibidos de fazer guerra nem quando tinham o direito de fazer a guerra (jus ad bellum).

Actualmente, no entanto, o uso da força entre os Estados é proibido por uma regra de Direito Internacional (o jus ad bellum mudou para um jus contra bellum) [expresso nas Nações Unidas, Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Capítulo I, Artº 2.º. 4, determinando que «[t]odos os Membros devem abster-se em suas relações internacionais de ameaças ou uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer estado, ou de qualquer outra forma inconsistente com os Propósitos das Nações Unidas», disponível em: https://www.unicef.org/brazil/carta-das-nacoesunidas].

São permitidas exceções a essa proibição geral em casos de autodefesa individual e coletiva (reconhecido na ONU, Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Capítulo VII, Ar.º. 51: «Nada na presente Carta deverá prejudicar o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se um ataque armado ocorrer contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício deste direito de legítima defesa devem ser imediatamente comunicadas ao Conselho de Segurança e não devem de forma alguma afetar a autoridade e responsabilidade do Conselho de Segurança nos termos da presente Carta de tomar, a qualquer momento, ações como esta considerar necessário para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais»); medidas de fiscalização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (estabelecido no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas) e, admite-se, para fazer cumprir o direito dos povos à autodeterminação (guerras de libertação nacional) [A legitimidade do uso da força para fazer cumprir o direito dos povos à autodeterminação (reconhecida no Artº 1. de ambos os Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas)

foi reconhecida pela primeira vez na resolução 2105 (XX) da Assembleia Geral da ONU, adotada em 20 dezembro de 1965, disponível em inglês: https:// undocs.org].

Mas, como é lógico, pelo menos um lado de um conflito armado internacional contemporâneo está, necessariamente, a violar as regras de jus ad bellum, apenas pelo uso da força, por mais respeitoso que seja o DIH, e nenhuma das excepções acima apontadas se aplica à questão ora versada.

Ora, uma das alterações introduzidas nas codificações normativas internacionais foi precisamente o abandono da expressão “guerra” pela de “conflito armado”.

A este propósito, escreve-se no Comentário sobre as Primeiras Convenções de Genebra de 1949, que: «A substituição desta expressão muito mais geral (conflito armado) pela palavra ‘guerra’ foi deliberada. Pode-se argumentar quase que infinitamente sobre a definição legal de ‘guerra’. Um Estado sempre pode fingir, quando comete um acto hostil contra outro Estado, que não está fazendo guerra, mas apenas se envolvendo em uma ação policial ou agindo em legítima defesa. A expressão ‘conflito armado’ torna esses argumentos mais difíceis. Qualquer diferença que surja entre dois Estados e leve à intervenção das Forças Armadas é um conflito armado...mesmo que uma das Partes negue a existência de um estado de guerra» (Jean S. Pictet, Comentário da Primeira Convenção de Genebra para a Melhoria das Condições dos Feridos e dos Enfermos das Forças Armadas em Campanha ,Genebra: CICV, 1952, 32. Disponível em inglês: https://ihl-databases. icrc.org/ihl/COM/365-570005?OpenDocument).

Esta constitui a segunda verdade da mentira, no caso, narrada pela Rússia, quando alega que está a realizar uma “operação especial”. Trata-se de um mero jogo de palavras, que só engana os mais crédulos, ou quem quer ser enganado.

A este propósito recorde-se que O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (ICTY) desenvolveu a primeira definição abrangente do conceito, nos termos da qual «existe um conflito armado sempre que há recurso à força armada entre Estados ou violência armada prolongada entre autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre esses grupos dentro de um Estado» [(Sassòli, Bouvier e Quintin, “ICTY, The Prosecutor v. Tadić, Jurisdiction” em HDLPiW Vol. 3, 7. Veja: ICTY, ICTY Prosecutor v. Dusko Tadić, IT94-1- AR72 (1995)]. Em forma de codificação temos a Primeira a Convenção de Genebra, “Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949 para a Melhoria das Condições dos Feridos e dos Enfermos das Forças Armadas em Campanha”, 12 de agosto de 1949, Capítulo I, Artº 2.º

(disponível em http://www.direitoshumanos.usp. br/index.php/Table/Conven%C3%A7%C3%A3o-deGenebra/)

Torna-se, para mim, neste quadro, evidente que:

1.º Estamos perante um conflito armado internacional;

e 2.º O fautor desse conflito é exclusivamente a Rússia, país ao qual se devem imputar todas as responsabilidades pelo despoletar do mesmo.

Encontramos, a este propósito, o segundo tropo:

“a verdade é a primeira vítima da guerra”.

Esta é uma realidade inescapável. A partir do momento em que todos os países da NATO e da EU tomaram o partido da Ucrânia e se decidiram a ajudála directa e indirectamente, criaram-se dois blocos comunicacionais, impermeáveis e contraditórios, relembrando que, cada um de nós vive no primeiro dos referidos blocos. De um lado temos a narrativa (termo propositadamente aqui escolhido) noticiosa que nos é fornecida pelos outlets mediáticos dos países da comunidade em que estamos inseridos. Do outro teremos a narrativa noticiosa da Rússia.

Lamentavelmente, diria mesmo inexplicavelmente, a EU – e Portugal – decidiu proibir a difusão de meios noticiosos directa ou indirectamente detidos pela Rússia (estatal ou privadamente).

Não estando nós em guerra declarada, inexistindo, que eu conheça, qualquer decisão tomada por qualquer órgão representativo eleito, no sentido dessa proibição (e mesmo que existisse) entendo que estamos perante um claro acto de censura e violação dos diretos à informação, em clamorosa violação do direito fundamental à liberdade expressão e informação,

Com base na ignorância

Pedro Álvares de Carvalho

consagrado no artº 35.º, da nossa Constituição, e em violação igualmente do artº 11.º, da Carta Dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2016/C 202/02).

Para além de objectivamente censurável, esta opção, ao não permitir o acesso à narrativa noticiosa russa, amputando o direito cívico à autodeterminação informativa e à apreciação crítica e racional de ambos os lados da narrativa, permite, ao invés, o florescimento de passarinhos (não lhes chamos pombas porque a essa qualificação não chegam) da paz, portadores de narrativas putinescas, com inspiração em espaços informativos marginais, sem fontes confiáveis e confirmáveis de informação, uns mais “maluquinhos” que outros, todos lutando contra moinhos de vento mais ou menos imaginários e apressando-se em qualificar todos os outros de “carneiros” ou “mentecaptos”.

No fundo, esta muito criticável opção, fez mais mal do que bem na medida em que uma sociedade só parcialmente (isto é, só em parte e sempre parcial e enviesadamente) informada é uma sociedade agrilhoada a uma verdade, impossibilitada do exercício cívico da apreciação crítica e criteriosa da realidade alcançável.

Falam-nos, bastas vezes, os tais “passarinhos” das razões primordiais e profundas do conflito, sempre com a intenção não só de compreender (o que seria aceitável, na medida em que compreender não é aceitar ou concordar, mas, tão só, empaticamente reconhecer a alteridade do outro) mas, sobretudo, de justificar a agressão russa e criticar a actuação do bloco de interesses em que, como disse e repito novamente, cada um de nós, goste ou não, está inserido.

Sucede que, pela minha parte, não vejo como se funda racional e pragmaticamente, esta segunda narrativa, dos “passarinhos da paz”.

Em primeiro lugar porque a justificação russa para a agressão armada à Ucrânia (a toda a Ucrânia, recordo, e não apenas ao leste da mesma) é caricata, sobretudo vinda de quem vem. Putin preside a um país que mais não é do que uma autocracia autoritária oligárquica, sem liberdade de expressão e informação, desde há muitos anos. E inspira-se muito em Ilan Ilyn cuja obra foi ressuscitada, na Rússia, na última década do século passado, tendo sido toda republicada e distribuída, por todos os funcionários públicos do país, tendo o centésimo aniversário da Revolução Bolchevique (imaginese, conhecendo a obra de Ilyn!) sido comemorado na televisão Russa com um documentário que apresentava este filósofo como uma autoridade moral (ver, a este propósito, com abundantes indicações de fontes primárias pesquisáveis, Timothy Snyder, “Rússia, Europa, América – O caminho para o finda da liberdade”, Edições 70, 2019, págs. 26 a 46, notas 6 a 47). Putin citou, amplamente, em várias intervenções e/ou discurso, Ilyn, quer directamente, quer invocado o seu pensamento.

E qual era esse pensamento?

Era – é – o de um fascista autoproclamado, vendo o fascismo como a política do mundo vindouro, admirando Mussolini e manifestandose impressionado com Hitler; defendendo que o comunismo havia sido imposto à Rússia pelo decadente (nas suas palavras) Ocidente; ansiando pelo dia em que a Rússia se libertaria de si própria e libertaria os outros com uma espécie de fascismo cristão (antinómico que nos pareça tal conceito); Cioram, o autor romeno fascista, acompanhou Ilyn nestes pensamentos; no essencial, e para o que ora interessa, do pensamento de Ilyn, no que conflui com os interesses de Putin, resulta que há que retornar a uma Rússia íntegra, pura e virginal, para que será necessário retornar a um passado mítico e fantasioso.

No fundo, não estamos senão perante um conservadorismo reacionário, inaugurado por Josephe de Maistre, que escreveu o “Considerations on France” (Cambridge Texts in the History of Political Thought). Apresentando-se, De Maistre, como fortemente crítico da Revolução Francesa ou, melhor dito, dos seus desenvolvimentos, o mesmo via a Revolução Francesa como um mero interlúdio, defendendo o retorno a um passado que via como idílico e totalmente virtuoso, tenho sido o gérmen dos autoritarismos não

comunistas e fascismos do século XX, ao não admitir a possibilidade de que as pessoas, em liberdade, fossem capazes de reconhecer as regras do bom viver e de confiar que as outras as seguiriam, reconhecendo-as. Apenas Deus podia ser a fonte dessa possibilidade. Por isso, o conservadorismo sucedâneo de De Maistre é reaccionário, no sentido em que está sempre com o pensamento num passado que desenha como idílico, perfeito, ao qual quer retornar.

Neste pensamento não há lugar para o indivíduo, nem sequer, como deve ser, para o indivíduo, para a Pessoa, social e culturalmente integrado. Não há lugar para a comunidade, para a família, mas, tão só, para um Estado totalitário.

É esta – mitigada, ou até desvirtuada, pelo venalismo típico das autocracias oligárquicas – a proposta que a Rússia da actualidade traz ao mundo, e é essa mítica cruzada pela recuperação de um passado que o é irremediavelmente, que, bem lá no âmago da escuridão da mente de Putin, a invasão da Ucrânia pretende concretizar.

Em segundo lugar, porque, entre este bloco – por ora, pelo menos de forma desbragada e evidente, constituído pela Rússia – e o bloco que àquele se opõe, em que Portugal está inserido, inexistem quaisquer dúvidas, para mim, sobre a opção a tomar. Não só porque penso que a democracia demoliberal – por muitos defeitos que tenha e tem (veja-se o exemplo acima, relativo à censura dos meios de comunicação russos – constitui a melhor forma de governo das sociedades, mas porque prezo a minha liberdade, a liberdade da minha família e da minha comunidade.

Neste perspectiva, como não tomar as dores da Ucrânia como nossas?

Como não a apoiar na luta pela sua própria sobrevivência?

Como não contrariar o agressor – a Rússia – de todas as formas possíveis que não impliquem, por ora, um claro engajamento militar armado directo?

Desejarão os “passarinhos da paz”, ficando toda a comunidade Ocidental numa posição de mero observador imparcial e não interveniente, que a Rússia prossiga com os seus planos imperialistas e chegue a pontos (não só de acção, mas de extensão geográfica) que implicariam, inevitavelmente, a destruição de liberdades que esses mesmos “passarinhos da paz” têm por seguras e que lhes permitem, apesar de tudo, explanar e publicitar livremente as suas ideias e convicções?

É que, parecem esquecer que essas suas liberdades, num regime como o do tipo russo, de imediato, violenta e irremediavelmente, seriam reduzidas a pó no exacto momento em que o seu exercício contrariasse ou sequer colocasse em causa o pensamento oficial e autorizado. Ou seja, ou bem que gostariam disso, e partilham das convicções ideológicas do regime russo, constituindo, por isso, uma verdadeira Quinta Coluna no nosso meio, ou bem que padecem de uma ingenuidade patológica.

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