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Infâncias e canções Clarice Bourscheid e Crisley Mesquita

INFÂNCIAS E CANÇÕES

Clarice Bourscheid 13 Crisley Mesquita 14

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A viola quando toca faz o triste se alegrar, quando canta a sereia faz o mar se levantar.

Nossos encontros musicais, ainda no verão, tiveram como um primeiro convite, cantos dos pescadores da Ilha de Santa Catarina. Estávamos quase todos ainda com memórias muito frescas de dias alegres na praia, no mar com a família. Dessa forma, muito contentes em compartilhar este universo da água, do sol, do vento, das canoas, dos barcos, cantamos a rimada “Chamarrita”, recolhida por Alisson Motta em pesquisa com pescadores da região. Percebemos o encanto das crianças por este universo e para além dos elementos reais da praia, havia outros fantásticos como sereias e mares que se movem com seus cantos.

“No meio daquele mar, tem um nó de ta azul, não é ta, não é nada, é o vento que venta sul”. O que seria um nó de ta azul? Como será o vento sul? Será fresco? Será morninho?

Com essas interrogações e o encantamento das crianças, fomos aprofundando nosso olhar, nossa escuta e investigação sobre poesia e sobre a música. Lembramos a música Suíte dos Pescadores, de Dorival Caymmi, a qual cantamos, fazendo nosso arranjo inicial com chocalhos de ovinhos e o tambor do oceano usado na introdução e no nal da música.

Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer. Se Deus quiser, quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer. Meus companheiros também vão voltar, e a deus do céu vamos agradecer!

Após termos cantado a canção, apresentamos um vídeo dessa música, onde apareciam jangadas indo para o mar, ao som de ondas. As crianças caram muito engajadas na canção, apresentando algumas perguntas que consideramos relevantes: Estes são os companheiros? São eles que voltam do mar?

A partir dessas vivências, planejamos a organização dos ambientes para que pudessem conhecer diferentes tipos de barcos: jangadas, canoas de pescadores. Nesses encontros, cávamos impressionadas com as relações feitas pelas crianças sobre a música, sobre a vida de Dorival Caymmi, sobre o universo do mar.

Eu podia car o dia todo fazendo isso (relato de uma criança ao comentar sobre a alegria em brincar com pequenas jangadas de rolha em uma bacia d´água).

As contribuições das famílias também nos ajudaram a enriquecer nossos repertórios como a entrevista feita com pescadores, na praia de Garopaba (SC), pela Betina com sua família. Também tivemos momentos mágicos criados com as crianças como o “correio marítimo”, que trazia diversas encomendas, caudas de sereias, o rei dos mares e alguns barcos.

Buscando ampliar o conhecimento musical das crianças, fomos conhecer outras canções de Dorival Caymmi como “Maracangalha” e “Acalanto”. Do acalanto de Caymmi tantos outros surgiram. Observamos que, ao longo do semestre, as crianças já se organizavam sozinhas para tocar as músicas, demonstrando domínio e apropriação das canções.

Percebemos, a cada encontro, o quanto alguns elementos permaneciam e se ampliavam à medida que promovíamos tempo e espaço para isso. O “tambor do oceano” foi um instrumento que esteve presente e era lembrado em várias dessas ocasiões, fazendo sempre alusão aos sons do mar e da vida: ora calmos, ora mais agitados.

Dessa maneira, observamos a quantidade variada e consistente de possibilidades de aprendizagem na interação com repertórios da música brasileira tradicional, bem como da canção brasileira. Dois universos vastos e repletos de poesia, de harmonia e de ritmos que convidaram as crianças a mergulhar neles de tal forma, que criaram, elas mesmas, suas canções e danças, com especial escolha pelo formato dos acalantos em suas composições e improvisos.

Dos acalantos e da música brasileira começaram a emergir outros desejos musicais nas crianças. Alguns demonstraram a vontade de ouvir, dançar e tocar repertórios de rock; outros, repertórios mais ligados à dança e ao ballet.

Enquanto educadoras, fomos oportunizando repertórios que pudessem atender e instigar mais profundamente esses interesses e investigações sonoras do grupo. Entendemos que a música, assim como as brincadeiras, fala e toca as pessoas, ou seja, nos emociona e nos auxilia na construção de relações e de diferentes formas de expressão.

A canção, por de nição, é uma forma de composição que agrega palavras e música de uma forma quase indissociável. Por outro lado, em alguns casos, nos faz sentir que, mesmo sem compreender as palavras, quando escutamos uma canção em língua desconhecida, podemos nos emocionar e nos sensibilizar com sua harmonia.

A música é nossa primeira língua. As palavras chegam depois. Segundo Ma oletti (2012):

“cantar é uma atividade que amplia a identidade das crianças, pelo alcance da voz em todas as direções. Cantar e ser escutado dá início a uma forma simples de diálogo, que pouco a pouco se transforma em prazer em estar junto [...] Em todas as idades ela cria o elo afetivo que dá sentido à vida” (p.23).

Em alguns contextos, as vivências das crianças, muitas vezes, se resumem às canções ditas infantis como o Mundo de Bita, Galinha Pintadinha ou Bob Zoom. Por isso, reiteramos a a rmação do educador e artista espanhol Laredo que, ao falar sobre as escolhas dos produtos culturais oferecidos às crianças pequenas, aponta a necessidade de criticar e de avaliar se estes não estão simpli cados demais ou se desconsideram a inteligência, a sensibilidade e a complexidade das crianças, ou seja, apresentam sempre as mesmas harmonias, letra musical reduzida e repetitiva. Dessa forma, rati camos nossa responsabilidade em ampliar

e em quali car as oportunidades sonoras das crianças por meio da escolha de músicas contextualizadas, músicas de diferentes ritmos, produzidas em diferentes partes do mundo.

Tantas vezes se submete a criança à redoma protetora do adulto que o conteúdo se recheia de consignas de condutas transmitidas através de “imperativos categóricos” repetidos. Sustenta-se na falta de rigor artístico com técnicas de teatro de participação, de animação, diversão ou ócio, cheio de caricaturas empobrecedoras do espírito humano, e de fórmulas didáticas transmitidas com o sentimento de superioridade próprio do adulto sobre a criança. (LAREDO, 2003, p.4).

Aqui é pertinente lembrar que falar em música é falar em expressão, sons e silêncios. E que a música não está separada da vida. Ainda com Laredo (2003), sustentamos que “a sensação é a gota que perfura a emoção do indivíduo, seja criança, adulto ou ancião” (p. 7). Por isso, é fundamental, na formação da criança, conhecer e viver a música de diferentes culturas e países, pois nos tornamos mais empáticos ao distante ou ao diferente (NUSSBAUM, 2015), compreendendo ainda que a expressão musical é naturalmente humana e se desenvolve de diferentes formas, a partir das características de cada contexto histórico e cultural.

No decorrer do desenvolvimento infantil, é necessário que oportunidades variadas sejam oferecidas, pois desta forma, ampliam-se possibilidades e o apreço musical das crianças vai-se desenvolvendo e se aprimorando. Surge, assim, um grupo que elege suas canções fugindo do padrão comumente dirigido à infância. A turma com a qual trabalhamos neste ano, apresentou-nos questionamentos que nos levaram a um repertório curioso, no qual a Música Popular Brasileira misturava-se com o Rock internacional, num contexto em que todas elas eram do século passado, um período que não vivenciaram.

Por outro lado, justamente através da música e das artes em geral é que se tem a oportunidade de reviver contextos ou de ressigni cá-los no tempo presente, garantindo uma variedade musical para o futuro. Compositores como Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Toquinho faziam companhia a Freddie Mercury, Beatles, Elvis Presley e ACDC nas manhãs da turma, momentos que marcaram a trajetória deste grupo e tornaram-se parte da memória das crianças.

Acreditamos que a educação musical agrega conteúdo ao nosso crescimento, e a história de canções que marcam gerações nos remete a memórias das mais incríveis.

A música vai além de mexer os ombros com a batida da canção ou de bater o pé no chão. A música nos leva às rimas e a seus encantamentos, nos convida a relembrar emoções, histórias e nos transporta para tempos e mundos diversos. Valorizamos nossos encontros, encontros entre gerações, encontros entre repertórios, encontros com diferentes culturas.

Referências

LAREDO, Carlos. La mirada exiliada de los niños. Boletín de la Institución Libre de Enseñanza, [s.l], n. 49-50, maio 2003. MAFFIOLETTI, Leda. O que se aprende com música? In: Pedagogia da arte Vol.2 Porto Alegre: UFRGS, 2012. NUSSBAUM, Martha C. Sem Fins lucrativos: Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

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