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Grupo Palavra: uma experiência de constituição de memórias

GRUPO PALAVRA: UMA EXPERIÊNCIA DE

CONSTITUIÇÃO DE MEMÓRIAS E IDENTIDADE PROFISSIONAL

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Juliana Prudêncio Abulé 16

“As palavras denotam o pensamento e, por sua vez, marcam nele um caminho. As relações entre falar e pensar são complexas, e uma delas é a reciprocidade: pensar faz falar e falar faz pensar. E, também há a possibilidade de que falando surjam novidades por acréscimo.” (Isidoro Berenstein, 2011)

A formação continuada de educadores denominada “Grupo Palavra”, que acontece há cinco anos na escola Despertar, centra-se numa perspectiva de educação como experiência de encontro, de afetação e de construção de con ança.

Nesse sentido, lança-se um grande desa o em busca de uma concepção formativa que re ita a peculiar relação adulto- criança, criança-criança, adulto-adulto. Uma sensibilização para uma escuta atenta a m de que se possa ouvir o outro. Rinaldi (1996 apud ANDREETTO, 2014) refere que o principal é estar aberto a ouvir legitimamente o outro, tanto o adulto quanto a criança, porque a comunicação é um dos meios fundamentais para se dar forma ao pensamento. Segundo a autora, o ato comunicativo realizado através do ouvir produz signi cados e modi cações recíprocas que enriquecem a todos os participantes neste tipo de troca.

Em 1946, Emmi Pikler, uma pediatra Húngara, foi responsável no pós-guerra por organizar e dirigir um orfanato - Instituto Lóczy - em Budapeste, e tornou-se referência, em todo o mundo, com relação aos cuidados da primeira infância. A abordagem Pikleriana é fundamentada a partir de quatro princípios centrais mutuamente inter-relacionados e inseparáveis: o valor da atividade autônoma; a relação afetiva estável e privilegiada mesmo em uma instituição; a necessidade de favorecer a criança na tomada de consciência de si e do seu entorno; a saúde física e emocional da criança (DAVID & APPELL, 1973/2013).

Os adultos que se ocupavam desse orfanato, aprenderam e entenderam que, como disse Emmi Pikler, a criança que atinge algo a partir da experiência adquirida conquista conhecimentos de natureza completamente diferentes do que aquela que recebe uma solução pronta. Porém, realizar uma atividade de forma independente não signi ca abandonar a criança: requer uma troca de olhares, algumas palavras, ajuda para aqueles que precisam, alegria compartilhada, en m, sugerir à criança que ela é uma pessoa importante e apreciada e que ela é levada em consideração.

Emmi Pikler não utilizou em seus livros e escritos a palavra respeito. Apesar disso, re ete em cada pensamento o seu reconhecimento e a apreciação em direção ao outro, em seu relato enquanto cuidadora no Instituto Lóczy, Judit Kelemen nos deixa uma grande lição nesse sentido:

‘”Acredito que transmito o respeito à criança não somente com as minhas palavras, mas também com as minhas ações. Se quero lhe pedir o copo, além de minhas palavras, meus gestos também têm que pedir. Minhas mãos esperam o momento em que a criança aceita e me entrega. Para mim, respeito signi ca que sempre e quando for possível farei as coisas com o consentimento da criança. Levo em consideração as suas ideias também. Foi difícil aprender isso, tive que mudar. Tive que aprender a controlar meus gestos, fazê-los mais lentos. Recordo quando me observei em uma gravação e me dei conta da rapidez com que limpava a boca de uma criança com babeiro. Vi que isto lhe pegou de forma desprevenida, não teve tempo de se preparar. Me senti mal. Comecei a observar a mim mesma. Comecei a esperar, conscientemente, dei tempo para que as crianças pudessem se preparar, a nei meus movimentos e os z mais devagar. Hoje, o gesto amável já é para mim natural, inclusive em uma situação difícil.””

O princípio formativo do Grupo Palavra está pautado na experiência de escuta e de se fazer perguntas. Perguntas que chegam ao adulto perante o encontro com as crianças. No cotidiano da escola, a criança constrói o sentimento do que é vida. Como as crianças tomam o sentido de tudo o que acontece ao seu redor? Como acontece o processo de incorporação de responsabilidades e de respeito à vida? À convivência? Às regras? Pensar um sistema de atitudes no adulto que espelha a coerência entre o que dizemos e vivemos nos impõe uma responsabilidade ética.

O que consideramos fundamental na abordagem metodológica do Grupo Palavra? Quais os aspectos que permitem a continuidade de um processo de transformação num sistema de atitudes dos adultos?

A possibilidade de compartilhar signi ca mais do que ensinar. Re etir sobre reciprocidade permanente, sobre o que fazemos para que possamos compartilhar juntos é o que nos propõem as quatro participantes do Grupo Palavra, relatos sensíveis sobre suas experiências de constituição de memórias e identidade pro ssional.

PRIMEIRO RELATO Jéssica Eufrasio17

Contar um pouco sobre percurso pro ssional não é algo fácil quando se trata de educação, mais ainda quando se trata de uma formação continuada através do Grupo Palavra. Preciso, antes de iniciar, convidá-los a pensar nas estações do ano. Não sabemos exatamente quando elas mudam, mas percebemos, ao longo do processo, que as árvores já não estão cheias de folhas, não precisamos mais usar tantas roupas como antes, sentimos em nosso corpo a temperatura aumentando ou diminuindo, percebemos as mudanças mais marcantes ao longo do tempo e, então, percebemos que mudou, passamos a viver outro momento de nossas vidas.

Estar presente no Grupo Palavra, ao longo desses quatro anos, é passar pelas estações por dentro de si mesmo, pois, a meu ver, para que haja uma base da prática pedagógica, é fundamental entender que ela se dá na relação que se estabelece primeiro nas escolhas de compreender e de ver a primeiríssima infância como um lugar de estar e de entrar em relação com as crianças de forma sincera.

Quando cheguei ao grupo, estava nalizando o magistério e iniciando a Pedagogia, minha prática se resumia a teorias e repetições de ações que ouvi, li e discuti. Cada novo dia em sala era um dia de me questionar e de buscar entender: A nal, de tudo oque vi até aqui, pergunto, de que as crianças precisam? De que forma, enquanto professor da educação infantil, posso, de fato, proporcionar às crianças um lugar, mesmo

diante da rotina, em que elas consigam ser elas mesmas? Um lugar de aprendizagem que não seja apenas do professor para o aluno, mas que seja uma construção contínua e saudável?

Foi quando ouvi pela primeira vez que os bebês deveriam e são capazes de alcançar posições por eles mesmos, foi a primeira vez que ouvi que deveríamos perguntar às crianças bem pequenas e esperar a resposta, foi a primeira vez que ouvi falar sobre antecipação dos acontecimentos, foi a primeira vez que compreendi que estar em relação mais vale do que muitas atividades com as crianças. Foi a primeira vez que ouvi falar de Emmy Pikler e de Myrtha Chockler. Mesmo ainda jovem na educação, precisei me desconstruir para me reconstruir. A relação de tempo e a não preocupação excessiva com ele nos faz pro ssionais melhores, pois o nosso tempo é diferente do tempo das crianças pequenas. Com alguns conceitos entendidos, buscamos viver na prática. Cada semana, reunimo-nos para conversar e para entender mais sobre nós mesmos, sobre as crianças, sobre os contextos e histórias que se encontram em nosso cotidiano, pouco a pouco fomos tecendo os entre a teoria e a prática.

O Grupo Palavra trata de assuntos sobre relações. A relação com os colegas, relação com as crianças e consigo, percebi que era fundamental estar ali todas as semanas, um espaço de formação continuada que me convida a me revisitar continuamente. Escolher as palavras, buscar a sinceridade e a verdade com as crianças, en m, ouvir as crianças tornou-se para mim uma prioridade.

A construção de conhecimentos ocorre quando entramos em con itos de opiniões, em divergências de hipóteses e, por meio de perguntas, vamos re etindo e pensando sobre as situações, sobre a relação, sobre o tempo e a espera, sobre as intervenções e sobre nossas escolhas. Depois de alguns anos, apenas se ouvindo e ouvindo os colegas, passamos a analisar e re etir sobre nossas práticas por meio de vídeos e de áudios. Confesso que foi um momento difícil, porém genuíno, pois em qual lugar se para, para se ouvir e se ver junto às crianças?

Entendo hoje que somente dessa forma podemos ver outras possibilidades de ações, e escolhas, ainda é um processo pelo qual estamos passando, no qual crescemos pro ssionalmente e entendemos que as escolhas das palavras deveriam entrar no planejamento da educação infantil.

O Grupo Palavra é um espaço onde se pensa a relação, o afeto, o vínculo; um espaço onde se pensa na VIDA.

Tenho como missão interna continuar e disseminar o que aprendi a todos que desejam falar, ouvir, desconstruir-se e reconstruir um pro ssional re exivo. Como as estações do ano, fui alterando meu modo de ser e de atuar, transformando meu olhar, agregando capacidades e re exões, sentindo as emoções e sentimentos decorrentes em cada mudança, constituindo-me e consolidando outros modos de ser pro ssional na educação infantil.

SEGUNDO RELATO Yascara Marina Ferreira Alves 18

Trabalhar na Despertar, além de me abastecer como pessoa e como pro ssional, me fez desacomodar as meias verdades que eu acumulei durante toda a minha trajetória acadêmica e ainda me faz questionar e repensar, a cada dia, o meu real papel enquanto educadora de infâncias.

Um dos momentos de maior “desacomodação” apareceu quase como um suspiro de alívio, quando, com poucas palavras, a psicóloga descreve uma das maiores sutilezas do nosso trabalho, mas, com toda a responsabilidade de um olhar atento e sensível, a rma: “quando eu peço autorização para limpar o nariz de uma criança, eu a estou ensinado que uma pessoa só pode tocar no corpo dela se ela autorizar”. Nunca havia pensado sobre esse modo peculiar e minucioso de ver a criança, o mundo e as relações e,a partir daí, também me transformei. Para tocar no corpo de alguém, precisamos pedir licença.

O convite para participar do Grupo Palavra veio logo após minha entrada na escola. Quando aceitei o convite, pensei que iria participar de um grupo que me daria as respostas para vários questionamentos, que seria um lugar para ouvir a psicóloga falar de maneira tão incrível sobre as sutilezas das infâncias. No entanto, este espaço formativo se constituiu de modo diferente, a cada questionamento do grupo, uma provocação: vamos observar! A cada encontro, um novo questionamento, e o ciclo parecia não fechar!

As dúvidas aumentavam, as repostas (prontas) não vinham (nem nunca vieram) e a infância foi-se tornando cada vez mais complexa, mas, ao mesmo tempo, tão incrivelmente encantadora de uma forma que talvez eu nunca tivera visto, talvez de uma forma que a criança que eu fui nunca tivesse sido vista.

E, por falar nas coisas que nunca foram vistas, eu peço licença para apresentar a nossa psicóloga, já que seria impossível falar da minha trajetória no Grupo Palavra sem mencionar uma das pessoas mais incríveis e sensíveis que eu tive o prazer de conhecer.

De fala calma e ao mesmo tempo tão potente, capaz de acalmar e desacomodar um pensamento; ela, que mesmo com tanto conhecimento, nos aproxima e nos convida a pensar, juntas; que olha no olho e nos mostra na prática o que signi ca a “mão da educadora” que acolhe e que conduz; encanta e nos faz encantar, não só pela maestria ao apresentar os princípios da abordagem pikleriana, mas por mostrar que é possível ser sensível, e não só possível, é necessário ser sensível e acolhedor.

É com esse olhar para a criança em sua singularidade que os estudos no Grupo Palavra são ministrados. E é nesse espaço onde até mesmo a criança que fui pode ser acolhida, que eu vou “crescendo lentamente”,aprendendo a procurar muito mais perguntas do que respostas e dividindo com o grupo os encantamentos que só um olhar sensível pode perceber. Percebo, a cada dia, quão privilegiada sou, em poder estar com as crianças e com elas aprender e me construir enquanto educadora e ser íntima das infâncias.

TERCEIRO RELATO Jéssica Fontela 19

Tenho um encanto particular por participar do Grupo Palavra, sobretudo pelos assuntos que são abordados e discutidos. O grupo existe antes da minha chegada na Escola Despertar. Em março de 2017, passei a fazer parte da escola. Minha chegada foi regada de muito encanto pela proposta pedagógica inspirada nos pressupostos teóricos de Lóris Malaguzzi e Aldo Fortunati, pela estrutura física da escola, pelas formações continuadas, mas principalmente pelas pessoas que faziam tudo aquilo acontecer.

Dentre algumas possibilidades formativas, comecei a participar do Grupo Palavra, o nome já identi cava seu propósito: neste espaço, educadores e educadoras falam, expressam suas ideias, formulam perguntas compartilhando o que vivenciamos com as crianças em sala. Neste percurso, fomos estudando e conhecendo sobre os cuidados de uma grande pediatra e cuidadora da Hungria, Emmi Pikler. Fomos aprofundando nosso conhecimento sobre a primeira infância estabelecendo um diálogo coerente e intenso com nossa prática, a importância do respeito ao outro, do cuidado, da antecipação e da seguridade nas relações e situações do cotidiano com as crianças.

As temáticas sobre o desenvolvimento infantil levantam boas discussões no grupo e ajudam a enriquecer meu olhar e abastecer minha curiosidades e compreensão sobre a educação das crianças. Aprendo a cada dia a formular perguntas, a colocar meu pensamento em ebulição, a estar aberto para entender as crianças e seus processos de aprendizagens na vida.

A possibilidade de parar para pensar e para discutir sobre questões como adaptação, acolhimento, desfralde, entre outros assuntos pertinentes ao desenvolvimento infantil, nos dão segurança na prática e na busca constante de garantir o desenvolvimento integral das crianças.

E, por falar nas coisas que nunca foram vistas, eu peço licença para apresentar a nossa psicóloga, já que seria impossível falar da minha trajetória no Grupo Palavra sem mencionar uma das pessoas mais incríveis e sensíveis que eu tive o prazer de conhecer.

De fala calma e ao mesmo tempo tão potente, capaz de acalmar e desacomodar um pensamento; ela, que mesmo com tanto conhecimento, nos aproxima e nos convida a pensar, juntas; que olha no olho e nos mostra na prática o que signi ca a “mão da educadora” que acolhe e que conduz; encanta e nos faz encantar, não só pela maestria ao apresentar os princípios da abordagem pikleriana, mas por mostrar que é possível ser sensível, e não só possível, é necessário ser sensível e acolhedor.

É com esse olhar para a criança em sua singularidade que os estudos no Grupo Palavra são ministrados. E é nesse espaço onde até mesmo a criança que fui pode ser acolhida, que eu vou “crescendo lentamente”,aprendendo a procurar muito mais perguntas do que respostas e dividindo com o grupo os encantamentos que só um olhar sensível pode perceber. Percebo, a cada dia, quão privilegiada sou, em poder estar com as crianças e com elas aprender e me construir enquanto educadora e ser íntima das infâncias.

QUARTO RELATO Lindsay Guimarães Uellner 20

Pare por um instante e olhe em volta: o que as crianças nos dizem? Pare por um instante e olhe em volta: o que os educadores nos dizem?

Pois bem, este constante exercício de olhar ao nosso redor é o que, para mim, resume a experiência no Grupo Palavra. Olhar para o que realmente está sendo dito, que, aliás, muitas vezes, não é dito com palavras, mas sim de outras tantas formas. Olhar para si, olhar para o outro, olhar para cada um na sua singularidade. O que nos toca? O que toca o outro? Aguçando nosso olhar, passamos a olhar com o coração. Um coração aberto para entender as relações, os vínculos que criamos e as marcas que deixamos na vida de cada criança que conosco está aqui. E, claro, não podemos esquecer das marcas que elas também deixam em nós.

Nesse exercício de pensar sobre a prática, passamos a nos escutar, a escutar o que nossos gestos querem dizer, escutar o ambiente, escutar o silêncio. O que tudo isso nos conta? Muitas histórias! Vive-se muito dentro de uma escola de Educação Infantil, e é fundamental que possamos compartilhar o que nós vivemos aqui, o que as crianças vivem aqui, assim como o que acontece nestes encontros de formação.

Sentir, Pensar, Escutar e Falar

Verbos carregados de signi cado e que fazem parte por inteiro da experiência deste grupo.

Verbos que pedem conexão com a gente mesma, no mais íntimo de nós. Verbos que pedem conexão de uns com os outros, de forma tão sensível e particular.

E entre essas conexões, esses verbos se fazem muito presentes na relação com as crianças.

Portanto, quando penso no Grupo Palavra, penso na Arte do Encontro. Quando contamos ao outro, também nos escutamos e novas re exões são feitas. Quando escutamos as experiências dos outros, surgem em nós outras tantas re exões. Arrisco-me a dizer, que nunca sei como sairei dos encontros, só sei que um pouco mais transformada, talvez essa seja a única certeza. Transformada, porque sei que me conectarei muito mais com cada um dos educadores que compõem esse grupo, me conectarei muito mais com as crianças que dão vida à Despertar e, me conectarei muito mais comigo, com a minha criança interior, com o adulto que sou, com meu jeito de ser ao entrar em contato com tantos jeitos de ser. Acredito que é assim também que acontece na relação com as crianças, não sabemos o que se passa dentro delas, é apenas no encontro com elas que isso vai-se dando, a partir da observação, da escuta, do diálogo.

Penso que quando garantimos a escuta, garantimos o lugar de cada um. E penso que o Grupo Palavra abre muitas portas para a escuta tanto das crianças quanto dos educadores.

E assim, nesses encontros, vamos parando e olhando: de instante em instante, de detalhe a detalhe. Como a rma Pizzimenti:

Sou feita de retalhos. Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou costurando na alma. Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou. Em cada encontro, em cada contato, vou cando maior... Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade... Que me tornam mais pessoa, mais humana, mais completa. E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de outras gentes que vão-se tornando parte da gente também. E a melhor parte é que nunca estaremos prontos, nalizados... Haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma. E que, assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de "nós".

E assim, vamos tecendo uma rede de histórias pautadas pelo respeito à infância.

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