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Histórias do cotidiano Juliana Prudêncio Abulé

HISTÓRIAS

DO COTIDIANO

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Juliana Prudêncio Abulé 24

“Eu fico com a pureza das respostas das crianças: É a vida! É bonita e é bonita! Viver e não ter a vergonha de ser feliz, Cantar e cantar e cantar, A beleza de ser um eterno aprendiz.“

Gonzaguinha

Conviver com a generosidade das crianças e as minúcias dos seus fazeres é uma grande oportunidade de se encontrar com o espontâneo, com o sorriso no canto da boca, com a surpresa, com aquilo que deixamos no meio do caminho.

Resgatar memórias, imaginar, cantarolar, indagar.... Tecer histórias com toda uma lógica cognitiva e afetiva é o que a criança faz para explicar suas teorias sobre a vida! Suas complexas teorias que se transformam em poesias!

Ao re etir sobre os processos progressivos e complexos imprescindíveis de aprendizagem e de construção de conhecimento das crianças, que nos ensinam desde a sensibilidade até um gesto chamado vida, me vi desejosa de compartilhar com os adultos o cotidiano das crianças na escola.

Lançamos o convite aos adultos para escreverem “Histórias do Cotidiano” sobre as sutilezas dos encontros com as crianças e fomos brindados com uma imensidão de teorias acerca do mundo, do valor das pequenas coisas, dos aspectos privilegiados de uma boa conversa, da delicadeza e do cuidado com outro, do perspicaz olhar que captura aquilo que não conseguimos ver.

Estar com as crianças sempre nos situa na perspectiva de outras dimensões, pois elas nos ensinam que, apesar de tudo, a vida é extraordinariamente bela!

Vamos embarcar nessas histórias?

Titols, Alice, Gustavo Luis e Menina Aline: A família de passarinhos da Escola Despertar.

Rhana Santos Rodrigues (estagiária de psicologia)

Em uma manhã ensolarada, as crianças encontram-se no refeitório durante o lanche, até que um conhecido da escola pousa próximo à mesa. Isso mesmo, pousa. É um dos passarinhos que circula livremente dentro da Despertar. Ao percebê-lo, a turma, em um coro, chama: “Titols, Titols”. Pergunto quem era o Titols, e, então, Maria, Laura e Tiago começam a contar a história sobre ele. Assim, as crianças narram: Titols é o passarinho, nós demos este nome para ele. E sabia que ele tem uma irmã? A Alice. Ah, mas tem o Gustavo também. São dois meninos e uma menina. Mas só o Titols e a Alice são irmãos, o Gustavo é o papai. Eles vêm aqui na escola, porque nós alimentamos eles. Olha, eu tiro pedaços de pãozinho do meu bolso para dar para eles: - Titols, vem cá comer, “psiii, psiii” (Laura chama o pássaro, brincando de faz de conta, encena retirar do bolso de seu casaco migalhas de pão). Hoje a Alice não veio. E sabe, o Titols é diferente dela. Porque ele é lilás. A Alice é brilhante, e quando ela toma banho aparece um coração. Já quando o Titols toma banho, o que aparece é um arco-íris. E tem a mamãe deles também. O nome dela é Aline. Não, é menina. E antes que se armasse uma briga para ver quem estava com a razão... É Menina Aline, ela tem dois nomes. O papai é Luís. “Pera”, não era Gustavo? Ah, já sei ele tem dois nomes também. É Gustavo Luís o nome do papai. Neste momento, as crianças encerram a alimentação, e a história? A história, com certeza, continuará junto à criatividade destes pequenos autores que através da imaginação criam e recriam, contam e narram não só um faz de conta, mas suas descobertas, sentimentos, demonstrando suas potencialidades. E ainda há quem diga que “só estão brincando”.

História do Cotidiano: A Geleia de Feijão e o Feijão de Banana.

Vanessa de Vargas

(estagiária de psicologia)

Era um dia atípico na turma, a professora não estava, e outra colega foi auxiliar durante a janta. Na hora de servir, uma das professoras explica para a outra que Ana não comia feijão. As crianças foram servidas, e Ana recebeu seu prato sem o feijão. As crianças começaram a comer e, com isso, também vieram as conversas e trocas comuns a esse momento de socialização e de prazer, que é a refeição no Dudu. Em um desses momentos, Ana falou: “eu não gosto de feijão”. Questionei o motivo, ao que ela respondeu, “na minha família ninguém come feijão”. Eu me dispersei um instante, pensando que a menina tinha uma boa razão para não querer comer a leguminosa. Durante esse tempo, olhei à minha volta. Aí reparei que a maioria das crianças comiam feijão. Isso me forneceu suporte para instigar Ana ao observar o seu entorno, então, disse: “Tudo bem. Mas a gente não está em casa, né? A gente está na escola. E eu estou vendo que aqui várias crianças estão comendo feijão”. Plantei uma sementinha de curiosidade nela: “deve ter um gostinho, no mínimo, interessante para tanta criança estar comendo”. Ana cou em silêncio pensativa. Então prossegui: “você sabe qual é o gostinho do feijão?”. Ela disse que não. Assim, eu a convidei a reparar na colega sentada a seu lado: “você percebeu que a Andrea está comendo feijão?”, regando a sementinha de curiosidade plantada anteriormente: “que gostinho será que tem o feijão dela?”. Ana fez um gesto levantando os ombros e as mãos como que dizendo “não sei”. Então eu disse: “você quer perguntar para a ela que gostinho tem o feijão que está comendo?”. Ana cou pensativa por um momento. Depois, soltou: “que gostinho tem seu feijão?”, olhando para a amiga. Andrea pescou uma colherada de feijão em seu prato e a levou à boca. Tomou uns segundos mastigando, depois engoliu. Tomou mais um tempo analisando cuidadosamente o sabor daquele alimento que acabara de ingerir e só então respondeu “tem gostinho de geleia!”. Eu reparei que Ana parecia bastante interessada, então continuei: “é mesmo, Andrea? Gostinho de geleia!”. Olhei para Ana e perguntei a ela: “você gosta de geleia?”. A menina prontamente respondeu que sim. Então, fui mexendo devagar no feijão, trazendo a colher para cima do recipiente para que Ana pudesse vê-lo e falei: “ hummm. Você quer provar essa geleia de feijão?”. Ana pensou um pouco, então balançou a cabeça com um gesto a rmativo. Questionei o quanto de geleia de feijão ela gostaria, e ela respondeu: “bem pouquinho”.

Servi bem pouquinho, assim como ela sinalizou. Ana deu uma olhada naquela geleia… levantou o dedo mindinho e encostou-o bem de leve no feijão do seu prato. Olhou mais um pouquinho. Então levou o dedo à boca encostando-o levemente na língua. Eu esperei a menina ter aquela experiência com a comida que provava. Ela repetiu o movimento. Dei mais um tempinho para ela poder se concentrar e aproveitar as sensações que aquilo lhe proporcionava. Aí perguntei: “que gostinho tem o seu feijão, Ana?”. Demorou um tempo para sentir e perceber as repercussões daquele alimento que acabara de ingerir. Então falou: “tem gostinho de banana!”. “O feijão da Ana tem gostinho de banana! E tu gostas de banana, Ana?”. E ela disse bem forte: “Sim”! Ali senti que o primeiro passo estava dado. A criança teve uma experiência de foco e concentração na ingestão de um novo alimento. O feijão adquirira um signi cado para ela, um sabor, um gostinho que, inclusive, se relacionava com algo que ela já conhecia, que era familiar a ela e que tinha uma conotação positiva para ela. Pode ser que amanhã ela coma mais um pouquinho, assim como pode ser que ela não queira comer. Mas agora ela tem propriedade para dizer que já provou, que sabe o gostinho e que, inclusive, se parece com banana. Quando ela sentir vontade de comer um feijão de banana de novo, ela já sabe onde encontrar.

História do Cotidiano – Adaptação

Cléo Medeiros

Como se narra uma adaptação? Quando esse processo acaba? O que importa ou interessa relatar? Uma adaptação pode ser totalmente boa ou totalmente ruim? De que forma a criança mostra que está adaptada?

Talvez essas sejam perguntas retóricas, irrespondíveis, ou talvez não tenham respostas simples e absolutas. A verdade é que, em um processo de adaptação, as perguntas vêm em maior quantidade do que as respostas. Para quem procura a rmações incontestáveis, a angústia surge como resultado. Poder perguntar-se sobre aquela criança, sobre as particularidades da sua adaptação possibilita oferecer-lhe um olhar muito mais atento e disponível e criar diferentes mecanismos para facilitar o seu processo. Dito isso, parto para a razão de ser deste escrito: a adaptação de uma menina chamada Maria. Maria, desde o início, mostrou quem era e o que queria. Se isso incluiu momentos de choro e de reclamações? Sim, de fato, mas eles foram entendidos como uma expressão dela mesma, das suas preferências e do seu jeito. Em verdade, que bom que Maria pôde chorar. Que bom que ela se sentiu confortável o su ciente para colocar para fora aquilo que lhe era mais difícil no momento. Que bom que ela não aceitou passivamente toda aquela novidade que mexia com a sua vida de uma hora para outra. E escutamos atentamente seu modo de expressar seus sentimentos e seus desejos. Partindo dessa escuta, fomos elaborando seu processo de adaptação e de acolhimento, de modo a procurar sempre a melhor forma de proceder, respeitando o seu tempo e o seu espaço, seus “sins” e seus “nãos”. Ainda acostumando-se com o novo ambiente e com a nova rotina, Maria se lançou em explorações. À sua maneira, soltando-se aos poucos, passou a conhecer aqueles espaços, aqueles brinquedos, aqueles colegas. Essas explorações, geralmente silenciosas e pormenorizadas, davam-lhe gradualmente mais e mais coragem para ir mais longe, empreender novas descobertas. Apesar da sua aparente preferência pelos momentos de maior solitude, ela sempre se mostrou atenta ao seu redor, às brincadeiras das outras crianças, aos movimentos do grupo e às mudanças. Cada vez mais ela foi fazendo parte da sua turma, acompanhando sua dinâmica do seu jeitinho de pesquisadora. Hoje, Maria mostra seu modo de pertencimento, seu sorriso ao chegar na sala reconhecendo seus amigos. Não só os reconhece como também reconhece neles diferentes sentimentos. Sem pestanejar e sem dizer nada, Maria dá um abraço apertado em um amigo que lhe parece mais triste e cabisbaixo, sentado no chão da sala. Maria dança, ri e brinca. Sente-se tão à vontade que brinca ao lado de seus colegas sem preocupar-se, pois sabe que será sempre e desde sempre. Maria precisava de tempo, tempo de acolhimento, tempo de entendimento, tempo de compreensão... e tempo lhe foi dado.

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