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CAMINHE COM MAIS LEVEZA - ________________________ Regilene Alves Vieira

DALJI CAMINHE COM MAIS LEVEZA

Regilene Alves Vieira

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Dalji Caminhe com mais leveza

Regilene Alves Vieira

Apesar de não querer abandonar aquela casinha simples que seus pais haviam construído para sua família depois de uma vida inteira de trabalho, Dalji se mudou do interior porque não fazia mais sentido ficar ali esperando o retorno dos que não vinham. Dalji contou sem expressar sentimento algum — mesmo que ela sentisse demais — que foi só seu pai que se chamava Dolado e sua mãe Abayomi morrerem, coincidentemente no mesmo ano por um vírus que assolava a humanidade, que seus irmãos Fayola e Jafari deram fim em tudo, até na bicicleta quebrada que seu pai usava para deixar ela e seus irmãos na escola desde quando todos eram crianças. Deram fim também na roça que eles plantavam todo inverno para no verão comerem feijão e milho maduro, na hortinha do lado de casa que sua mãe Abayomi semeava suas ervas e verduras para temperar as panelas, no jardim que ficava exposto e só faltava entrar pelas portas da casa de tanto que florescia e no fogãozinho a lenha que Abayomi fazia questão de ter mesmo os tempos sendo outros, quando quase ninguém mais cozinhava em fogão a lenha. Ela vivia dizendo: — Agora esse povo tem uma “estória” de cozinhar nesses caixotes grandes. Onde já se viu isso? A comida fica com gosto ruim e eu tenho é medo de acender e tacar fogo na casa, prefiro ir à mata pegar meus paus de lenha e fazer meu fogo para cozinhar o que eu quiser e fazer meu peixe assado na brasa.

Dalji vivia dizendo que ela gosta de complicar a vida e de trabalhar, mas hoje ela entende que não era só o cozinhar sem sentido, ali tinha toda uma tradição do “fazer”, do “Ser” e do afeto que aquela prática milenar carregava. Ver o fogão a lenha ser destruído pelos novos moradores para Dalji foi a última gota. Era como observar a história dos seus antepassados e suas práticas ancestrais se esvaindo em sua frente. Então ela decidiu se mudar para a cidade, mesmo não gostando de todo aquele movimento sem sentido, dia após dia, e principalmente das pessoas que mal se olhavam na cara umas das outras. Parece que todo mundo que vive em cidade grande não vive de verdade, só existe no automático, diferente de quem mora no interior. No sítio Camará, ali até o tempo é diferente e às horas passam devagar, nós conseguimos fazer as coisas com calma, olhar para as pessoas, abraçá-las, criar afetos e ter uma boa conversa regada com café, pensava Dalji.

Na cidade, Dalji sempre teve a sensação de não lugar, mas também voltar para casa já não era mais uma opção, pelo menos não naquele momento.

Também prometeu para si mesma que jamais perdoaria ou voltaria a gostar dos seus irmãos novamente, por tudo que fizeram, não a ela, mas a história de seus pais, era imperdoável! E repetia diariamente quando a saudade dos seus apertava: — Eu prometi não perdoar, não esquecer! Não esquecer! Jamais esquecer! E fez disso o seu mantra diário. Dalji começou a trabalhar em uma lanchonete durante a noite, vivia correndo de um lado para o outro, cozinhando, lavando louça, servindo, parecia que o trabalho não tinha fim. No seu único dia de folga ela só conseguia dormir e nada mais, não levantava nem para comer, só comia um biscoito que sempre deixava em cima da mesinha velha próxima de sua cama, comia ali mesmo sentada na cama e não se dava nem o trabalho de abrir os olhos, só mastigava e voltava a dormir novamente. Acredito que essa foi a personagem zumbi que ela adquiriu após alguns anos morando na periferia de Fortaleza. Mas, a vida — quer dizer, a vida não, a falta dela!

— Daquele jeito para Dalji estava ótima, porque ela não tinha tempo e nem ânimo para pensar em muita coisa, principalmente na dor que carregava no peito. Às vezes, Dalji sonhava com Abayomi cozinhando no seu fogão a lenha e seu pai Dolapo voltando das quebradas com milho maduro nas mãos sorrindo e agradecendo Abayomi por fazer o fogo. Dolapo sorria dizendo: — Hô beleza mulher, vou já despalhar o milho para assar nesse fogo! E todos se juntavam ao redor do fogão para despalhar os milhos e colocá-los para assar. No final era aquela festa de todos comendo, conversando e sorrindo. Chegavam até esquecer por alguns instantes que não era sempre que tinham comida na mesa e a vida não parecia tão dura. Dalji parecia absorta, quando despertava nunca sabia se de fato sonhou, lembrando ou se isso algum dia existiu. Ela já não se reconhecia mais, nem sequer se olhava no espelho. Só vivia para trabalhar, pagar o aluguel e o que sobrava do seu salário colocava em uma caixa sem intuito algum, nem sequer contava o que sobrava ou fazia planos com aquele dinheiro.

Não existiam planos para o futuro, não queria que existisse um futuro, não que desejasse morrer até porque não sentia como se estivesse viva então era um grande “tanto faz”. Não existia mais ninguém na sua vida, irmãos, amigos ou qualquer familiar com quem tenha mantido contato desde a morte dos seus pais. Após os 10 anos de muita angústia e sem caminho Dalji sonhou com seu Zé Pilintra dizendo: — Pequenina você está perdida no seu caminho. Volte para casa e caminhe com mais leveza. Imediatamente ela acordou assustada e se recordou do tempo em que seus pais eram vivos e iam todos para o terreiro do Pai Zé. Foi quando ela se deu conta que em meio a tanto caos e sofrimento ela havia esquecido de sua ancestralidade, dos ensinamentos, da Umbanda, de seus caboclos, Pombas Giras, dos Erês e dos Orixás, ou seja, daqueles que a protegiam e a guiavam.

Dalji nunca soube ao certo que caminho seus irmãos seguiram ou se algum dia se arrependeram do que fizeram, muito menos se eles sentiam falta dela. Mas gostava de sentar-se na sua varanda e pensar que um dia foi feliz ao lado deles. Nunca os procurou mesmo sabendo onde eles estavam, porque eles também sabiam onde ela estava e nunca a procuraram,

não se sabe se foi por vergonha ou por não se importarem mesmo. Mas desde o dia que Dalji voltou a frequentar o terreiro do Pai Zé soube que, na verdade, nunca esteve sozinha. Dalji conseguiu recomprar o terreno antigo de seus pais, todo o dinheiro que ela guardava sem propósito no final tinha um propósito que nem mesmo ela sabia. Depois ela se tornou Mãe de Santo e agora a casa vive cheia de filhos, filhas, filhes e Axé. Hoje, sentada em uma cadeira de madeira olhando suas galinhas ciscarem, com um turbante amarrado na cabeça e fumando seu cachimbo, no seu interior onde tudo começou, Dalji canta:

Tantas batalhas venci. Muitas ainda vou enfrentar. Muitas vezes vou cair. Mas sempre vou levantar. Meu escudo é minha fé Minha espada é o Orixá Tenho meu corpo fechado. Nas rezas do Jacutá.

Quando eu caí, Pai Ogum me levantou. Quando eu sofri, mamãe Oxum me amparou. Me vi perdido, Exú veio me guiar Estava com fome, Oxóssi me ensinou caçar. Fui humilhado, e Xangô me defendeu Fui perseguida, Oyá com os ventos me escondeu. Cai doente Omulu quem me curou Estava sujo, Iemanjá quem me banhou. Eu vi a morte, mas Nanã me afastou Cuidou de mim e o meu pranto ela secou. Desesperada, vi minha fé vacilar. Fui renovada com as palavras de Oxalá. Se eu fosse só, já não estaria mais aqui Meu Orixá, me ajudou a persistir Na noite escura, nos caminhos me guiou E na Umbanda eu retribuo seu amor.

______________ Ponto de Umbanda/ Compositor: Henrique de Oxóssi

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