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BATUQUE ANCESTRAL - _________________________________ Mona Lisa da Silva
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Batuque Ancestral
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Mona Lisa da Silva
Mona Lisa da Silva
Batuque Ancestral
Houve um período em que a vida humana jamais poderia ser pensada sem tecnologia, contudo, seu significado estava sendo utilizado de forma errada. Com isso as tecnologias mais antigas e de origens não ocidentais acabaram sendo desconsideradas. Foi quando o Planeta Terra começou a ruir. Me chamo Dala, estou no ano de 2247 e ainda vivemos no planeta Terra, apesar dos grandes desastres naturais e não naturais causados pelos humanos que ocorreram nos meados dos anos de 2055. Moramos em povoados onde somos capazes de produzir tudo o que necessitamos para viver. Pelo que conta nossos mais velhos, era assim também que viviam nossos antepassados negros e indígenas em diáspora pelo mundo: Em aquilombamento. A água, apesar de não ser abundante, vem sendo suplantada através de nossa tecnologia molecular. Que por sinal, é o que nos permite aos poucos prosperar.
Tenho 25 anos e trabalho em uma equipe de exploração terrestre responsável pela preservação da humanidade. Apesar de parecer ser um trabalho extremamente importante, e é, não deve ser encarado como algo extraordinário. Há milhares e milhares de equipe como a minha por todo o planeta. Nossa missão, acima de tudo, é permitir que daqui a cem anos a população volte a ser próspera e farta. Minha equipe em questão, é uma das que estão empenhadas em resgatar, sobretudo, os bens imateriais que dizem respeito as práticas e domínios da vida social e que nossos ancestrais manifestavam através de saberes, celebrações, práticas e modos de fazer. Nosso trabalho se faz necessário porque ainda antes dos desastres ocorridos em 2055, o eurocentrismo e o epistemicídio fizeram com que a história negra, a história de nosso povo e a história dos diversos povos originários fosse apagada, excluída, esquecida e deslegitimada. Além disso, as pessoas estavam conectadas por dispositivos eletrônicos e diziam com isso, serem capazes de se conectarem até mesmo com quem estava fisicamente distante e que futuramente viagens no tempo e viagens intergalácticas seriam possíveis.
No entanto, o que aconteceu foi que acabamos por acelerar o processo de destruição de nosso planeta, já que nossos recursos foram utilizados sem muito cuidado. Frases que afirmavam que a tecnologia movia o mundo era frequentemente utilizada para demarcar a necessidade de evolução e que era necessário abandonar e abrir mão de práticas tradicionais, pois só havia espaço para o novo. Contraditoriamente, foram as práticas dos povos originários, negros e indígenas, que permitiram que a humanidade não fosse dizimada da face da terra. Nossos ancestrais foram os responsáveis por realinhar e repovoar nosso o planeta. Estamos tentando fazer isso ainda hoje, para falar a verdade, mas refazer determinadas coisas é difícil, já que perdemos muito. Muito mesmo. Vó Maria, sempre que está lúcida, conta que agora entende quando sua bisavó dizia que chegaria um tempo em que a roda grande entraria na roda pequena. Enquanto caminhava pelo que sobrou da área norte do povoado de Aruanda eu e Bomani, meu irmão mais velho, encontramos um baú enorme com o símbolo de nossa família falhado no lado superior. Sabemos disso porque o baú possui o mesmo símbolo presente na bengala de Vovó. Lembro de certa vez, quando Vó Maria ainda era lúcida, dela contando sobre a importância e o significado do símbolo presente no topo de sua bengala.
“— Essa bengala, meus queridos, era dos nossos ancestrais mais velhos e um dia será de vocês também. Esse símbolo Adinkra intitulado “NKONSONKONSON” representa unidade e as relações humanas. E deve ser visto como um lembrete para contribuirmos com a comunidade, já que é na unidade que se encontra a força.” Tentamos abrir o baú de várias formas distintas, mas ele parecia ter sido fechado com algum tipo de tecnologia que não conseguimos identificar. Bomani me ajudou a levar o baú até nosso veículo e continuamos a trabalhar como se nada tivesse acontecido, embora eu não fosse mais capaz de me concentrar no trabalho. O que me gerou algumas advertências e promessas de que o Chefe de nosso povoado ficaria sabendo disso. O que não me deixou muito preocupada, já que papai, apesar de parecer rígido, é bom e justo. Como todo chefe deveria ser. Veja bem, não estou me aproveitando do fato de ser filha do chefe do povoado para fazer corpo mole. Apenas reconheço a ternura de papai em resolver qualquer situação. Quando cheguei em casa, Bomani me ajudou a levar o baú até o quarto de Vó Maria. Talvez, em seus 97 anos de vida, fosse capaz de lembrar de alguma coisa.
— Vovó, Vovó, veja o que encontramos. Será esse artefato algo do seu tempo? — Faz dias que não escuto ela minha filha. Faz dias... — Vovó... a senhora reconhece isso? – Voltei a insisti, mas Vovó estava absorta em seus pensamentos e não foi capaz de me responder. Tentei utilizar as ferramentas mais modernas que tínhamos em casa e mesmo assim, nada era capaz de destrancar as travas daquele baú de madeira. Por um instante pensei em quebrá-lo, mas antes que eu reagisse, mamãe, quase como quem é capaz de ler meus pensamentos soltou um “Nem pense nisso!” Continuava examinando o achado quando Vovó começou a balbuciar mais algumas palavras e tive que fazer esforço para entende-las. — Macumba! Tecnologia moderna não vai abrir isso não. – Vovó gargalhou, como faz com frequência, após alguns minutos de lucidez e depois sumiu, novamente absorta e sem que eu tivesse chances de perguntar mais alguma coisa. Bomani e eu ficamos tentando entender o que Vovó queria dizer.
A palavra não nos era estranha, mas tampouco conseguíamos lembrar do que se tratava. Fui perguntar para mamãe, ela sorriu como quem recorda de tempos felizes e me questionou o motivo da curiosidade. Explicada a situação, mamãe pediu que Bomani chamasse papai e que quando ele chegasse, saberíamos o que fazer. Quando papai e Bomani chegaram, contamos sobre o baú e que Vovó tinha falado de Macumba. Papai e mamãe se olharam e em seguida, papai ajoelhou-se aos pés de Vovó, pediu sua benção e agradeceu por ela o fazer recordar a tecnologia mais poderosa que nosso povo já foi capaz de ter. Papai me contou, então, sobre os tempos passados e disse que talvez, se voltássemos mais e mais no tempo, pudéssemos resgatar, novamente, nossa verdadeira tecnologia evolutiva e de transmutação. Papai, juntamente com os outros chefes dos povoados vizinhos começaram a se reunir para rememorar os tempos em que a magia original pairava pelo mundo terreno, no entanto, fazia muito tempo que não se via essa tecnologia por aqui e quase ninguém tinha registro de como suas famílias faziam para se conectar.
Foi quando Bomani e eu percebemos que talvez Vovó sempre estivesse tentando se conectar e por isso, parecia não estar mais entre nós.
Em uma de nossas muitas tentativas, no meio de nossas reuniões, Vovó pegou sua bengala, levantou-se, fez uma espécie de marcação no baú, voltou para sua cadeira, soltou uma gargalhada e então, misteriosamente o baú abriu revelando o que havia lá dentro: um tambor, Cachimbo com maço de fumo, velas, muitas velas, uma bebida alcóolica, copos de cuia de quenga de coco, alguns cordões de contas, a imagem de uma preta velha. Quando os mais velhos viram aqueles artefatos, de alguma forma, todos entenderam o que deveria ser feitos, contudo, não sabiam mais como se conectarem com sua ancestralidade. Em uma de nossas tentativas, papai já frustrado e tentando entender o que aquele baú representava, abriu a bebida alcóolica e tomou alguns goles. Bomani, curioso como bom explorador, começou a brincar com o tambor, até que fez soar batuques com ritmos que meus ouvidos jamais tinham presenciado. Automaticamente, senti as batidas invadirem meu corpo.
O que me fez dançar. Bomani foi tocando cada vez mais forte, os chefes do povoado, bem como papai começaram a acompanhar as batidas de Bomani com batidas de palmas que assim como meu corpo, se movimentavam e aumentavam a velocidade ao ritmo dos batuques. Foi quando Vó Maria sorriu e começou a cantar:
E Oxalá criou a Terra Oxalá criou o Mar Oxalá criou o mundo Onde reinam os Orixás Mas Oxalá criou a Terra Oxalá criou o Mar Oxalá criou o mundo Onde reinam os Orixás
A pedra deu pra Xangô, meu pai é rei justiceiro As matas deu para Oxóssi, caçador grande guerreiro O mar com pescaria farta, ele deu pra lemanjá Os rios deu para Oxum, os ventos para Oyá Grandes campos de batalha, deu para Ogum guerreiro Campinas, Pai Oxalá, deu para seu boiadeiro Jardim com lindos gramados, deu para as crianças brincar Oxalá criou o mundo onde reinam os Orixás
Mas Oxalá criou a Terra Oxalá criou o Mar
Oxalá criou o mundo Onde reinam os Orixás Mas Oxalá criou a Terra Oxalá criou o Mar Oxalá criou o mundo Onde reinam os Orixás
O poço deu pra Nanã, a mais velha Orixá E o cruzeiro bendito, deu pras almas trabalhar Finalmente deu as ruas com estrela e luar Para Exu e Pombo Gira, nossos caminhos guardar
Mas Oxalá criou a Terra Oxalá criou o Mar Oxalá criou o mundo Onde reinam os Orixás Mas Oxalá criou a Terra Oxalá criou o Mar Oxalá criou o mundo Onde reinam os Orixás
Depois de algum tempo, as batidas foram diminuindo e ficando cada vez mais fracas, até Bomani encerrar de vez. Depois desse dia, costumamos nos reunir com frequência para coletivamente, resgatarmos as práticas milenares e os cultos de nossos ancestrais africanos que se espalharam em diáspora – a princípio de forma forçada em decorrência da escravidão
– pelo mundo. Infelizmente, ainda em 2.247 apresentamos dificuldades em conhecer nossos ancestrais e a história de nosso povo. Muito foi perdido antes mesmo dos desastres de 2055 e já naquela época era difícil resgatar boa parte dos ensinamentos que foram passados ao longo dos tempos, mas com a ajuda de todo nosso povoado, estamos prosperando e restaurando, aos poucos, o Axé e a história de nosso povo.
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Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult CE), apresenta:
GESTÃO Instituto Dragão do Mar (IDM) REALIZAÇÃO Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ Camilo Sobreira de Santana Governador do Estado do Ceará
Maria Izolda Cela de Arruda Coelho Vice-Governadora do Estado do Ceará SECRETARIA DA CULTURA DO CEARÁ Fabiano dos Santos Piúba Secretário da Cultura
Luisa Cela de Arruda Coelho Secretária Executiva da Cultura
Mariana Braga Teixeira Secretária de Planejamento e Gestão Interna da Cultura
COORDENAÇÃO Cristina Holanda Coordenadoria do Patrimônio Cultural e Memória – COPAM INSTITUTO DRAGÃO DO MAR Rachel Gadelha Diretora-presidenta Adriana Victorino Diretora de Planejamento e Gestão Elisabete Jaguaribe Diretora de Formação e Criação Lenildo Gomes Diretor de Articulação Institucional CENTRO CULTURAL BOM JARDIM
Marcos Levi Nunes Gestor Executivo
Joaquim Araújo Gerência da Escola de Cultura e Artes
Rúbia Mércia Coordenação do Programa de Audiovisual Assistente Pedagógica do Programa de Audiovisual Nayana Santos Monitoria Wagner Júnior