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ARDOREM FLAMMA - ______________________________________ Mari Ellen
ardorem flamma
Mari Ellen
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Ilustração; Amanda Aguiar
Mari Ellen
Ardorem Flamma
No mundo de Cristina, algumas características físicas são aleatórias e não biológicas, e com isso o Governo se utiliza de um sistema que determina a vida das pessoas e sua posição social baseado em nessas características físicas, tanto aleatórias (como a cor dos olhos) quanto biológicas, como cor da pele, mantendo então uma segregação racial implícita.
Cor de pele é o primeiro fator a ser considerado na posição social, este ainda mantido pela biologia. Depois são traços étnicos ou a ausência destes, também passado pela genética. Por último, o fator decisivo nas escolhas de vida individuais, a marca genética aleatória de cada cidadão: a cor dos olhos.
Pessoas de mesma marca genética, aleatória, tendem a ter um estilo de vida parecido, no que se diz respeito ao acesso à educação e saúde, por exemplo, para manter a aparência de imparcialidade, mas se suas outras características forem muito distintas, estas pessoas podem seguir caminhos e carreiras muito diferentes. Quando ainda assim, se por algum motivo o indivíduo não conseguir ou não gostar da forma de vida que lhe é imposta, você vive à margem, como uma classe 0. Boatos de que os classe 0 negociam suas vidas com os laboratórios do Governo, ajudando assim com o avanço da medicina e se libertando do sistema de castas.
As classes mais altas são as mais restritas e imutáveis, responsáveis por governar o país e a economia, funcionam quase que como num clã e a forma de sucessão dos cargos públicos geralmente acontecem por decisão do atual encarregado. São geralmente pessoas com pele clara e o mínimo de traços étnicos.
Cristina vive num mundo em que aqueles no poder se protegem e se mantêm, enquanto os outros são cada vez mais jogados para as margens, sem oportunidade de protagonismo. Quão distante esse mundo está da nossa realidade?
O que você prefere: ter controle sobre sua própria vida e arriscar ser massacrado por um sistema que não te dá suporte, ou viver uma vida plena assegurada por um sistema que de forma aleatória decide toda sua vida por você, ainda que você não tenha a oportunidade de mudar em nada os planos do governo para você? — Não te assusta que mesmo com esse sistema impecável, a cada ano mais e mais pessoas se tornam classe 0? E que todas as classes estão sujeitas a simplesmente terem seus membros se tornando um 0? — meu pai fala enquanto retira a louça suja da mesa, me ajudando um pouco antes de ir trabalhar.
Seus traços fortes o jogaram na classe 8 antes mesmo que seus olhos abrirem, revelando a cor negra de sua íris. Hoje ele trabalha como faxineiro no centro de eventos próximo ao hotel em que eu trabalho pelo dia. 15
— É assustador pai, mas que outro mundo seria esse que nós viveríamos se não esse mundo que nós já conhecemo? E nós tá bem, não tá? Do nosso jeito a gente está conseguindo viver muito melhor que a maioria da galera 7. — E é exatamente assim que aqueles que estão no poder querem que você se sinta. Confortável demais com essa miséria para querer mudar algo — bufou. — Não é assim paizão, você sabe. Querer mudar é uma coisa, mas tentar fazer algo só iria nos tornar classe 0. Quem é 1 não quer mudar as coisas e eles podem fazer o que quiserem para não deixar que isso aconteça! — Pelo menos eu te eduquei o suficiente para entender isso. — Sim, paizão, você fez um ótimo trabalho — digo me aproximando da feição cansada que me encara como se tivesse sido vencido pelo cansaço, e lhe dou um beijo na testa. Ele me olha nos olhos e retribui o afeto com um beijo de boa noite nas minhas mãos. — Vejo você pela manhã. — Bom trabalho paizão, se cuida.
Quando meu pai se retira de casa, ligo a pequena TV que fica próxima à mesa de jantar e começo a lavar a louça, pensando nas minhas tarefas do dia seguinte e na conversa que tive com papai.
Meus pensamentos param de vaguear quando a chamada na tv, puxa-me a atenção: novas prisões preventivas são feitas na Capital, sob a suspeita de levante de movimento anti-patriota. Os jovens, João Lucas e Álvaro Alberto, ambos de 17 anos, são suspeitos de tentarem acesso aos e-mails e outras contas pessoais do atual Reitor Nikolas Martins. A condenação de suspeitos desse crime geralmente é a expulsão de classe e redistribuição de serviços…
Dezessete anos… Ambos tem 17 anos e estão prestes a conhecer a miséria de uma forma inexplicável. O tremor na espinha que sinto me faz desligar a tv, e as luzes e ir para a cama. Amanhã tenho que dar o meu melhor para me manter na classe 6.
Ninguém realmente muda. Penso nisso enquanto caminho para o hotel escutando um ‘podcast’ motivacional. A fumaça ainda cobre a cidade fazendo parecer que nunca amanheceu, ou seja, ninguém sairá hoje, ou seja, mais um dia de trabalho pesado por aqui.
Ninguém realmente muda ou apenas não se dá a oportunidade de mudar? É fácil vender essa categoria de filosofia ao ter um sistema completamente construído para você, seu trabalho não te exige mais que 3 horas por dia, e você tem condição para uma boa saúde e um bom acompanhamento psicológico ou espiritual. A vida foi inteiramente construída para você poder progredir, então se você não muda, a culpa é inteiramente sua.
Mas não para nós que somos desfavorecidos, penso enquanto Robi entra com as vassouras e afins. — Bom dia Cris, dia lotado hoje, não? — a voz suave de Robi contrasta com seus braços fortes, que se desenvolveram muito cedo, por conta do trabalho braçal que exercia desde pequeno. — Boa sorte para nós, te vejo no almoço — passo por ele apressada, sem nem mesmo lhe dar um abraço, e retorno para meus pensamentos.
Eles dizem que a escolha de classes é feita de forma aleatória, mas quão aleatória é a genética? Em todos esses anos ninguém nunca conseguiu subir mais que 2 classes, mesmo aqueles que se casam com pessoas muito superiores à sua classe. Confirmo a reserva de Elizabeth e volto a me perder em meus pensamentos.
Paro de pensar no “podcast”, quando escuto o primeiro interfone tocar, Elizabeth do quarto 027, jornalista que fica apenas por mais 2 dias me pede para aumentar seu pacote, já que a fumaça atrapalhou seu ritmo de trabalho. Sua pele clara e seus olhos pretos a permitiram escolher essa profissão. Não é ruim.
Ligo para Robi e pergunto se ele e meu pai vão chegar logo. — Pensei que você já estivesse com ele, eu ainda vou trabalhar uns 10min e ele disse ir te entregar nosso almoço pessoalmente, já tem muito tempo, já deveria estar aí.
— Estranho. — digo enquanto sinto um arrepio na espinha como quando você está sozinha à noite e escuta passos apressados atrás de você. Meu pai tem seus problemas com o sistema, porém nunca o desrespeitou, sabe que todos temos horários a cumprir. Talvez tenha ido ao banheiro, penso, mas logo sou interrompida por Robi. — Cris, não quero te preocupar, mas algo aconteceu aqui na rua de trás, tem uma multidão aqui gritando com um carro classe 4, esses bastardos devem ter feito mais um escândalo contra alguém de classe menor, não sei, mas talvez seu pai tenha parado para ajudar ou entender a situação, ou só não conseguiu passar para o beco. — Talvez ele tenha tentado entrar pela entrada principal sido barrado. — suspiro ansiosa já procurando acesso aos arquivos de câmera. — Obrigada Robi, já te chamo para comer, ok?
Assim que guardo o telefone junto às minhas coisas, interfono para a equipe de segurança. — Olá Zeke, é a Cristina da recepção, acredito que meu pai passou por aí a alguns minutos tentando trazer meu almoço, poderia liberar a entrada, por favor?
— Ele te disse estar aqui fora? Não tivemos nenhuma tentativa de entrada. Na verdade, todos os portões estão fechados e a equipe foi conter uma multidão na parte de trás do Hotel, você realmente devia ligar para ele. — Tá bem! Obrigada.
Mesmo pensando que assim que a multidão se dispersar, meu pai talvez consiga entrar. Começo, então, a abrir os arquivos de vídeo do prédio procurando saber que caminho meu pai fez.
Por volta de 30 minutos começo a acompanhar a movimentação da rua de trás, tudo parecia tranquilo pelos primeiros minutos, nada da multidão que Robi e Zeke contam.
Então vejo meu pai acenando para Robi, como uma despedida e seguindo até o meu prédio. Mudo o arquivo para outra câmera e sigo os passos de papai em direção à porta do beco nos fundos. Exceto que ele não está lá. Volto e adianto alguns minutos da gravação tentando encontrá-lo, e então retorno para câmera da rua, dessa vez, prestando atenção em todos os detalhes da cena.
Antes que ele chegue na calçada do La Vista, um carro classe 4 estaciona um pouco próximo. Meu pai sai de quadro por alguns segundos, provavelmente ficando no ponto cego entre as câmeras. Ele retorna com as mãos levantadas e já não está mais segurando nosso almoço.
Sinto minhas pernas tremerem. Ele recua assustado conforme os classe 4 o intimidam. Ele está de joelhos no chão quando um deles começa a chutá-lo. Meu estômago embrulha. A cena continua na tela do computador embrulhando meu estômago mais ainda. Presto atenção no que acontece a seguir.
Os dois homens de classe 4, a classe policial. Seus olhos castanhos esverdeados os tornam responsáveis pelos assuntos militares e interesses da classe 1. Conforme algumas mulheres se aproximavam, eles se afastaram do corpo caído de meu pai e se direcionaram a elas, eis que a multidão se forma, assim como Robi me alertou. Geralmente a classe 4 anda fardada e raramente usam suas armas, mas estes dois usavam óculos escuros e seguram suas armas nas mãos, mesmo que não a utilizem em meu pai.
Sigo olhando as imagens, os pulsos levemente doloridos da força que faço contra a escrivaninha para me manter de pé. Os homens avançam sobre a multidão, que recua, e voltam a atacar meu pai na entrada do beco. Tento prestar atenção nos detalhes, mas tudo acontece num piscar de olhos: um deles grita com a multidão, que está tentando falar com a equipe de Zeke, enquanto o outro arrasta meu pai, quase desacordado, para o camburão, e o algemam. Mudo o arquivo das câmeras na tentativa de pegar algum detalhe escondido, mas só tenho acesso às câmeras do meu prédio.
Corro para a porta de trás do La Vista, clientes e funcionários passam por mim e eu mal os noto, minha cabeça só está em um lugar: a cena daqueles homens em cima do meu pai. Saio pelo beco procurando no meio da multidão que se dissipa pelo carro que levou meu pai. Vários rostos me olham assustados, mas nenhum deles tem a feição que procuro. Não. Não pode ser. Digo para mim mesma tentando não pensar que todo o tumulto era em torno de papai. O chão derrete em meus pés enquanto não consigo me segurar em algo que me dê senso de realidade. Estou caindo no buraco do coelho, tal qual Alice, porém não acredito que esteja rumo a um país de maravilhas.