5 minute read
EXISTÊNCIA - ___________________________________________ Ana Luiza
EXISTÊNCIA
Ana Luiza Gomes
Advertisement
Ana Luiza Gomes
EXISTÊNCIA
Maria de Lourdes, mãe, avó, bisavó, viúva e devota. Quem vê aquela senhorinha de baixa estatura e expressões fortes, sentada em sua cadeira de secretária escolar, não imagina as histórias que carregam cada uma de suas rugas. Mas se você quiser descobrir um pouco dessas histórias, só se achegue e esteja disposto a ouvir, porque quando a veinha começa a falar ela tem história o suficiente para uma vida. Apesar do passado difícil, Lourdes não fala sobre sua vida com tristeza e sim com um brilho de sobrevivência no olhar: - O nome da minha mãe era Edite Gomes de Souza, e do meu pai eu não vou falar não, porque nunca tive pai. Ela conta essa história hoje no conforto de sua casa, na sua sala, mas lembra que nem sempre foi assim: - Eu morava lá em Quixadá, bem após Morada Nova, em um bairro chamado Lagoa Nova, numa casinha bem pequena e simples, hoje vocês reclamam de barriga cheia numa casa dessa em que cada uma tem seu quarto.
- Foi lá que perdi minha mãe, eu tava indo lavar roupa com ela no açude e veio um boi mascarado tão rápido que a bichinha não conseguiu escapar.
Com o falecimento da mãe, os irmãos e irmãs ficaram na responsabilidade da filha mais velha, Francisca Amaro, mas ninguém chama ela assim, pode chamar Teté. Teté cuidou de seus irmãos, dos filhos dos seus irmãos, e dos filhos dos filhos dos seus irmãos. - Teté sempre cuidou da gente, a sopa dela é melhor que a minha, por isso que peço sempre para ela fazer. - Mas ela está ficando cansada, também com aquele filho dela que só dá trabalho para ela. - Nem quando se aposentou teve paz. Lourdes nunca teve a oportunidade de ser criança, estudou em escola particular até -como antes era conhecido- a 8.ª série paga pelos seus patrões da casa onde trabalhava, mas a realidade dela fora dos portões da escola era outra, enquanto as outras crianças iam de barriga cheia, sua merenda antes de ir costumava ser café com farinha. - Meus filhos, eu sempre fiz questão que eles tivessem uma educação e tá aí, tudin de barriga cheia, já ficamos em situação difícil aqui em casa, mas nunca ninguém passou fome.
- Sua mãe diz que eu sou mão de vaca, mas não é não, as coisas estão cada vez mais caras e todo dinheiro que eu pego é para comer.
Conta agora da sua vida em Morada Nova em sua adolescência era toda espilicute, trabalhava muito e estudava, namorava também e diz ela que seus vestidos eram da melhor costureira de Fortaleza. Terminou o ensino pedagógico com 22 anos e só fez faculdade lá com seus cinquenta e poucos anos. - Com um sorriso no rosto ela fala- Depois que casei minha vida mudou, mas nós brigávamos igual dois cachorro, ele queria mandar em mim, onde já se viu? Homi mandar em mim. - Se separamo um monte de vez, mas ele era meu parceiro, e ficou do meu lado até seu último dia, para tudo que eu precisava ele tava lá.
Nesse meio tempo ela ia com suas lembranças, podia jurar que mesmo após tantos anos ela ainda às vezes parecia ver sua mãe pelos cantos, nas esquinas, na saída da escola, porém dizia ser só a saudade lhe pregando peças. - Teve um dia já no final do ano, estava eu e as minhas amigas, aquelas que tu sabes serem minhas amigas até hoje, então eu podia jurar que vi minha mãe franzina lá na esquina e ela olhava para na minha direção. - Na época eu pensava ser a saudade que era grande demais e eu ficava imaginando coisas, mas você acreditando em mim ou não, uma coisa eu posso afirmar agora, aquela era minha mãe.
Quase ninguém sabe que quando sua mãe morreu Lourdes tava do seu lado ajudando a levar as roupas que elas iriam lavar no rio, é vivido em sua memória o olhar de perturbação do boi indo na direção de sua mãe, e o animal seguiu reto depois, sem a consciência do que acabou de fazer.
Mais tarde naquele dia, já na hora da novela, minha vó me chamou para rede e me fez prometer que eu iria acreditar em cada palavra que saísse da boca dela. - Minha filha, o boi, eu vi aquele boi outra vez. Assim como vi minha mãe outra vez. Eles estavam conectados, conectados pela morte, e não tem jeito para morte não viu!
- No natal eu reconheci aquele olhar, por trás da máscara, não era mais tão perturbado, mas eu reconheci.
Ela passou o natal em uma pracinha pequena que uma vez me mostrou, e foi naquela praça que começou. - Eu tava com Pacifal, namorando na época, imagina como ele ia ficar se eu falasse que ia atrás de um homem lá na noite de natal? Então eu inventei uma desculpa que ia comprar comida e fui tentar achar o homem com olhar de boi.
- Eu tava conseguindo chegar perto, tava quase lá, quando algo me parou. Minha mãe, distante, do mesmo jeito que eu lembrava, eu congelei e ela sumiu assim na minha vista, quando voltei o homem boi já foi embora. Depois dessa noite, eu só conseguia pensar nisso.
Minha vó é uma mulher amável, sim, ela é, mas também não gosta muito de mostrar vulnerabilidade, por sobrevivência. Mas naquela rede, ela tava sem nenhuma barreira, completamente aberta. O fato de sua mãe ter visto ela feliz, bem vestida e viva mesmo depois de tudo mexeu com ela. E também, claro, ver o espírito da mãe não é fácil. Mesmo o assunto sendo pesado, ela começou a rir e se balançar com um brilho infantil nos olhos.
36