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FERNANDO BRAGA

FERNANDO BRAGA

Quem alcunhou Manuel Nunes Pereira, um dos maiores etnólogos brasileiros, de ‘gênio florestal’, foi um homem que tem a poesia na alma e um dodecassílabo no nome: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Manuel Nunes Pereira, infelizmente pouco conhecido pelos nossos conterrâneos e por seus pares da Academia Maranhense de Letras, foi uma das pessoas mais extraordinárias e generosas que tive a felicidade de conviver; nasceu na velha ‘Casa das Minas’, de origem daomeana, com traços da religião ou mitologia jêge-nagô, com culto Vodu, na Rua de São Pantaleão, em São Luís do Maranhão, em 26 de junho de 1893; era filho de Mãe Almerinda e afilhado da velha Nochê, Mãe Andreza Maria; e morreu no Rio de Janeiro, noventa e dois anos depois, em 27 de fevereiro de 1985. Foi muito cedo para Belém do Pará e depois para Niterói e Rio de janeiro, onde abandonou o curso de direito para estudar veterinária, biologia e botânica, especializando-se em etnografia e etnologia, cujas ciências dedicou sua vida inteira até aposentar-se pelo Ministério da Agricultura, possuindo nesse campo cientifico, um dos maiores acervos do país, em livros, documentos, anotações, fitas, filmes e registros das mais variadas espécies. Era um etnólogo do porte de Roger Bastide, de Arthur Ramos e de Levi Strauss, e “um homem de ciência agudamente provido de sensibilidade e visão humanística, eis o que é o caboclo maranhense Nunes Pereira”, na visão sensível, mas objetiva de Carlos Drummond de Andrade. Era membro da Academia Maranhense de Letras, para onde foi eleito duas vezes; a primeira ele não tomou posse no prazo regimental, tendo sido, por isso, passivo de uma nova eleição que o ratificou na cadeira nº 23, patroneada por Graça Aranha, e atualmente ocupada pelo engenheiro e mestre em Desenvolvimento Urbano, Luis Phelipe Andrès; Nunes Pereira é também um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras, onde conheceu e foi amigo de seu conterrâneo Maranhão Sobrinho, um dos maiores poetas simbolistas do Brasil.

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Como prova de sua grandeza em direção do bem, trago a este dedo de prosa o nosso escritor Jorge Amado que assim explana, em ‘Literatura Comentada’, edições Abril [1981-2]: “... Antes de decretarem o Estado Novo cheguei a Manaus e fui preso... Fui colocado numa cela com o Nunes Pereira, o etnólogo, um homem encantador. Eu e o Nunes Pereira passávamos o dia inteiro debaixo do chuveiro porque fazia um calor infernal, e os integralistas desfilavam na frente ameaçando a gente de morte ...” Estas são algumas das publicações de Nunes Pereira: A Casa das Minas: contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos ‘voduns’, do panteão Daomeano, no Estado do Maranhão, Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, 1947 2ª.ed., Petrópolis, Vozes, Rio de Janeiro, 1979; Moronguetá - Um Decameron Indígena. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967 e 1976, 2 vols. [Coleção Retratos do Brasil, nº 50]; Panorama da alimentação indígena: comidas, bebidas e tóxicos na Amazônia Brasileira. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1974; Os índios Maués. Rio de Janeiro, Organização Simões, 1954;’Curt Nimuendaju’, [Síntese de uma vida e de uma obra], 1946; (Opúsculo) [A tartaruga verdadeira do Amazonas] de 17 páginas foi elaborado pelo veterinário Nunes Pereira e trata de uma obra bastante interessante e extremamente difícil de ser encontrada nas bibliotecas e acervos públicos. Dentre as muitas lembranças e saudades deixadas por Nunes Pereira, uma placa de bronze foi inaugurada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, por ocasião de seu centenário de nascimento, cuja confecção foi providenciada pelo último secretário do cientista, o pesquisador ítalo-brasileiro Savério Roppa. Certa vez, no Rio de Janeiro, contou-me Nunes Pereira, procurou o escritor Coelho Neto, nosso conterrâneo ilustre para lhe pedir, dado seu prestígio, uma colocação em qualquer abrigo, desde que o remunerasse,

para que ele, o jovem maranhense, pudesse custear os estudos e pagar em dia a francesa dona da pensão, a qual fazia uma algaravia infernal quando recebia a mensalidade fora do prazo combinado. Numa noite qualquer, em casa de Coelho Neto, o jovem disse ao mestre o prazer que tinha em cumprimentálo e o motivo da visita. Depois de ouvi-lo, o ‘Príncipe da Prosa Brasileira’ levantou-se e se dirigiu à sua escrivaninha, e lá, de pé, como dizem que escrevia, o autor de ‘Rei Morto’ minutou num papel timbrado com seu nome, um bilhete endereçado a um tal Prestes, Diretor das Docas do Rio de Janeiro, que dizia textualmente isto, que me foi ditado pelo velho etnólogo: “Prestes amigo, O portador, Manuel Nunes Pereira é do Maranhão como eu; e em sendo de tal terra é natural que faça versos, pois é filho da ‘Oliveira e da Cigarra’. Ele está precisando de uma colocação aí nas docas do Rio de Janeiro, de cujo parasitário és defensor perpétuo e escarchas contrabandistas. Se deferires este meu requerimento, saberei cantar-te agradecido em rimas d’oiro. Um abraço. Do teu, Coelho Neto”. Essa empreitada infelizmente foi frustrada. O diretor das docas do Rio de Janeiro não atendeu ao pedido do ‘Príncipe da Prosa Brasileira’, resultando apenas desse ilustre pedido, a tomada do bilhete pelo próprio Nunes Pereira que o guardou como lembrança. Parnasianamente, “numa noite assim, de um céu assim...” Nunes Pereira desembarca em Brasília para receber o ‘Prêmio do Mérito Indigenista’ que seria outorgado pelo Ministério do Interior, pela publicação de sua obra em dois volumes ‘Moronguetá - Um Decameron Indígena’, a qual o contemplara com o prêmio ‘Roquete Pinto’, da Academia Brasileira de Letras; e como de costume, e para minha honra, levei-o para nosso apartamento como sempre o fazia. Quando de sua chegada, naquela mesma noite, bebemos uns goles de pinga que ele trouxera de Ji-Paraná, cidade de Rondônia, de onde era egresso naquela noite, e já onde se encontrava por algum tempo a pesquisar indígenas daquela região, tempo em que providenciávamos o preparo de um ‘tambaqui’ que também trouxera carinhosamente consigo. E varamos a madrugada como se estivéssemos à margem do Rio Madeira... No dia seguinte, pela manhã, fomos a uma livraria que distribuía os livros da ‘Civilização Brasileira’, para comprar os dois volumes de ‘Moronguetá, Um Decameron Indígena’, que o velho esquecera de trazer para presenteá-los ao Ministro do Interior; e à tarde foi o evento: justo quando Nunes Pereira autografava os volumes, o ministro, num gesto de gentileza, disse-lhe: “Já li alguns livros seus...” o que fez Nunes Pereira esboçar um sorriso de hiena e devolver-lhe o agradecimento em tom de blague: “Já se vê, ministro, que o senhor anda a ler alguma coisa!...” Chegado o dia de sua volta, fui levá-lo ao aeroporto e, num desses voos que aparecem não se sabe de onde, eis que surge o Fernando Lobo, jornalista, poeta, compositor e, orgulhosamente, como ele mesmo dizia, pai do Edu Lobo. Ao ver o velho Nunes dirigiu-se a ele com carinho e pilhérias bem à moda dos dois, sendo de logo a mim apresentado, tempo em que rumamos para o restaurante do aeroporto, onde nos amesendamos, entre aperitivos, reminiscências e piadas; lá pelas páginas tantas, depois de ter perdido uns três aviões da ponte-aérea, o velho Nunes perguntou-me se eu não queria ir com eles para o Rio de Janeiro, a tirar do bolso do paletó um ‘bilhete’ de passagem a sugerir que eu fosse ao balcão da companhia marcar uma ida, caso tivesse vaga... e sempre tinha...E assim foi! Já no Rio de Janeiro; despedimo-nos do Fernando Lobo, uma pessoa que jamais esqueci pela inteligência e simpatia irradiadas, e seguimos para a Avenida Almirante Alexandrino, em Santa Teresa, endereço que escondia o velho cientista, momentaneamente vazio, vez que seus familiares se encontravam de veraneio em Nova Friburgo, no Estado do Rio. No dia seguinte, o ‘bondinho de Santa Teresa’, cansado de carregar artistas e boêmios, nos deixou quase sem querer no ‘Amarelinho’, na Cinelândia, [donde nunca devera ter saído], e onde gastamos toda tarde daquele dia ao encontrarmos, por feliz coincidência, Nauro Machado, Franklin de Oliveira e Lago Burnett...à noite retornei a Brasília.

Desandando o fio à meada, quis os desígnios de Deus que eu estivesse em Porto Velho, no Estado de Rondônia, antigo ‘Território do Guaporé’, a realizar um trabalho temporário que fui designado a fazê-lo;

lugar em que também, por períodos temporais, era núcleo natural de estudos antropológicos do velho Nunes Pereira, para aonde os ventos da vida nos uniria pela derradeira vez... Algum tempo depois, certa manhã chuvosa, para ser mais triste que de costume, ao atravessar uma praça da cidade onde ele era muito conhecido e querido, um jornaleiro passou a apregoar o ‘Alto Madeira’, o maior jornal da região, com uma voz de lamento: “Atenção! Morreu no Rio de Janeiro, o Doutor Nunes Pereira!” Atenção! Morreu, no Rio de Janeiro, o Doutor Nunes Pereira!”. Comprei um exemplar do jornal, encosteime a mureta da Praça e ali mesmo, antes de ler a notícia, “rezei como o salmista na caverna, e olhei para minha direita e vi; mas não havia quem me conhecesse; refúgio me faltou; ninguém cuidou de minha alma”; e ali mesmo chorei... chorei muito!...

LEONETE OLIVEIRA ou Ângela Grassi brasileira – UMA BRILHANTE E DESCONHECIDA POETA DO ENTRESSÉCULOS XIX – XX

ANTONIO AÍLTON

A grande maioria dos que estudaram o Parnasianismo, desde a escola já ouviram falar, pelo menos, em uma mulher entre os austeros parnasianos, de poemas esculpidos e canção marmórea: a poeta paulista de “Musa Impassível”, Francisca Júlia. Porém, entre os grandes nomes maranhenses que brilham na poesia brasileira na passagem entre o século XIX e o século XX, bem poucos ouviram o nome de Leonete Oliveira (São Luís, 1888-Rio de Janeiro, 1969). Esta, segundo um dos importantes registros daquele momento, do escritor e crítico Antônio Lobo (Diário do Maranhão, 05/06/1898), foi, por sua vez, a primeira poeta maranhense, embora talvez tenha se referido à sua “estatura” poética, não à precedência temporal. Leonete Oliveira ou, conforme assinava em suas primeiras publicações nos jornais maranhenses, Ângela Grassi (escritora romântica espanhola), ganhou o título de “a maior e mais brilhante poetisa maranhense” (M. Nogueira da Silva, Jornal das Moças, 1917, p. 12¹). Leonete Oliveira era também professora e bibliotecária.

LEONETE FERNANDA DE OLIVEIRA Nascida no Maranhão a 14 de julho de 188S. Auxiliar do diretor da Biblioteca Publica do seu Estado. Autora de Flocos; Há realmente vários registros naqueles jornais finisseculares e de entresséculos. Mas quem resgata ultimamente esse nome tão importante, um tanto quanto apagado ou silenciado nas atuais matérias sobre a poesia daquele momento, é o incansável pesquisador Leopoldo Vaz, inconformado enquanto não alcança os últimos registros sobre o assunto que busca. Leopoldo publicou esse “apanhado” na sua Revista do Léo², onde pode ser pesquisado. É somente através das espessuras e cortinas do tempo que podemos ver essa mulher, vivendo num contexto de poetas grandiosos, mas também de uma sociedade que de um modo ou de outro reprimia a voz feminina

nos papeis intelectuais e culturais. O próprio Antônio Lobo levanta essa questão e relata que, infelizmente, e apesar de mesmo escassamente algumas vozes femininas ainda se sobressaírem nos grandes centros, na sociedade arcaica do Maranhão isso era muito mais difícil. A mulher, quando muito, dedicava (ou era lançada) aos conventos. Era a educação familiar e religiosa, e haveria muito mais beatas que poetisas – na linguagem da época. Mesmo através dessas cortinas do tempo, o que podemos encontrar nela é uma mulher forte, que penetrou aos poucos nos meios literários e intelectuais, participava de eventos cívicos e religiosos, viajou bastante (São Paulo, Lisboa, Fortaleza, Rio de Janeiro…), fez-se considerar pelos poetas e críticos até sua morte, inclusive poetas conhecidos no séculos XX que lhe submetiam os textos; deu palestras sobre a condição da mulher na Biblioteca Pública do Estado e na Universidade Popular, deu voz à mulher em seus poemas, e era membro correspondente da Academia Maranhense de Letras. Publicou, além de muitos poemas esparsos, pelo menos três livros de poesia: “Flocos” (1910), “Cambiantes” e “Folhas de outono” (1914-1917[?]). A intenção aqui, obviamente não é fazer um tratado sobre a autora, sua vida e as questões complexas que envolvem seu contexto e obscurecimento. Não é tampouco levantar disputas de se ela foi a primeira, a segunda, ou a terceira poeta maranhense etc, já que há também na pauta outros nomes importantes, como Maria Firmina dos Reis, que tem sido resgatada ultimamente. São coisas e questões que exigem uma pesquisa madura e aprofundada. Creio que ela deve ser valorizada pelo que ela é, pelo seu papel, pela sua figura de poeta do momento, inclusive dentro de um sistema da história da literatura brasileira, que relega tantos autores importantes à marginalidade. Podemos entender a poética de Leonete Oliveira fundamentalmente dentro do espírito do Parnaso, como assim compreendemos, por exemplo, Raimundo Corrêa. Porém, mais acentuadamente que este, a poeta pratica ainda uma experiência romântica patente e se estende até o simbolismo. Seus poemas de tom e teor simbolistas são, a meu ver, os melhores. Ela não deixa também de extravasar em alguns momentos forte erotismo ou de, noutro registro, ironizar a questão masculina. Enfim, uma poeta de alto domínio formal que foi colocando ali, nas chaves parnasianas o seu espírito e sua força. E a força de um poeta pode ser medida pela desejo que outros têm de imitá-lo(a) ou até plagiá-lo(la). Isto é, do impacto que sua poesia causa sobre outros. Foi o que aconteceu com um poema do Flocos, de 1910, de Leonete Oliveira, que foi descaradamente plagiada por Carlos Porto Carreiro em 1924 – talvez por um desses acasos que o autor publica e fica na obscuridade, enquanto outros se aproveitam. Mas a verdade apareceu. Abaixo, escolhi alguns de seus fortes e encantadores sonetos, entretanto há muito mais a ser visto:

SÓ Sempre tiveste um coração vazio ermo de sonhos como um deserdado; nunca um raio de amor, mesmo tardio, pôde dar vida ao teu olhar gelado.

Sempre viveste só, mudo e sombrio como quem traz no peito lacerado, em vez de um coração forte e sadio, um pedaço de mármore guardado.

Mas um dia virá em, que, tristonho, cheio de dor e em lágrimas desfeito, hás de correr em busca de outro sonhos...

Em vão! Que em cada coração, decerto, encontrarás o gelo do teu peito a aridez infinita de um deserto.

Nasci de asas cortadas, no infinito dos meus sonhos de glória e de ventura, tentei em vão subir, no impulso aflito de quase desespero ou de loucura…

Olhando o espaço, o coração contrito, das belezas da vida ando à procura, e penso, e sinto, e sofro, e choro, e grito , no anseio de vencer esta tortura…

Diante de mim os pomos de ouro avisto e querendo alcançá-los fico inerme, sem saber se estou morta ou ainda existo…

E vendo em tudo um luminoso véu, eu continuo qual se fora um verme, rastejando na terra e olhando o céu!

(in: Folhas de outono)

E este jocoso soneto, a nos lembrar o simbolismo irônico:

CASAR É BOM

- “Casar é bom - diz o burguês pacato, Por entre um riso de expressão brejeira - é muito bom ter-se uma companheira Que nos faça a pastinha e escove o fato”.

- “Casar é bom, não com mulher faceira que vive empoada e trescalando extrato; quem tiver senso, o homem que for sensato que procure uma boa cozinheira...

Essa que tem de todos os sentidos somente o paladar, é o que chamamos o lindo ideal de todos os maridos;

não vê, não ouve, indiferente e fria, não pergunta zangada porque vamos todas as noite à maçonaria...”

(O Jornal, de 26 de abril de 1921)

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