![](https://assets.isu.pub/document-structure/210524184710-f565ebf147a4b06f46a242576fdfb86a/v1/62887ee192dc692d667a6e70ef1cd430.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
9 minute read
A “TORTUOSA” DIALÉTICA DO EXTERIOR E DO INTERIOR DO SER ESQUARTEJADO JOÃO BATISTA GOMES DO LAGO
ROGÉRIO ROCHA
Quantos livros morreram no prelo? Quantos poetas morrem inéditos? Quantas obras sequer encontraram as retinas dos leitores? Trata-se de uma realidade que se tem manifestado durante toda a história da literatura, para não dizer da própria história da arte. Hoje escrevo a partir da ausência do homem a quem este pequeno texto –que tem caráter de mera apresentação – busca alcançar. Falo da figura de Manoel Serrão da Silveira Lacerda, nascido em São Luís (MA), advogado e professor de direito, descendente de espanhóis e portugueses judeus, que partiu do plano terrestre em 26 de dezembro de 2019 sem deixar sequer um livro publicado. É importante frisar, incialmente, um esforço hoje em curso para não o condenar ao solo frio do ineditismo –que, nesse caso, equivaleria não ao puro esquecimento, mas ao estado de eterno desconhecimento do poeta pelo público de hoje e talvez de amanhã. Tal iniciativa vem sendo levada a cabo pelos mais íntimos amigos, dentre os quais cito dois, para fazer-lhes justiça: os escritores João Batista do Lago (por meio de quem pude conhecer a obra de Serrão) e Mhario Lincoln (grande divulgador da cultura brasileira e maranhense). Neles deposito a esperança de ver realizado um sonho do falecido escritor: o da publicação de sua obra. Ainda que póstuma, merece publicação. Manoel Serrão é um poeta não lido, por isso não conhecido. Digo é (e não foi) pelas razões conexas às respostas que poderíamos oferecer aos questionamentos que fiz logo no primeiro parágrafo. Poeta Serrão. Não o pude conhecer, é verdade. Chegaram a mim, contudo, seus poemas, apresentados que me foram por um amigo do homenageado, o já citado poeta João Batista do Lago, que os tem disseminado em vários sites de literatura na rede mundial de computadores. Alguém que reconheceu nos versos daquele ser humano a força abrangente de um autor que, no recolhimento de sua timidez, praticou muito boa poesia, como a que encontramos na belíssima “Ses’sen’ta”: Ó qu'eu por amor à ti vida, não fiz! / Se por ti me fiz o sono leve, o sonho, e o pesadelo/ a luz e a sombra./ Se me fiz pouco a pouco a paz e a escuridão/ sem medo da noite;/ Se me fiz o Sol, o céu preclaro, o sal, o cio, dias rútilos/ –, sementes;/ plantei-me em ipês de floradas amarelas./ Se me fiz o modular do bem-ti-vi cantador,/ e o revoar do colibri beija-flor. Serrão, que foi um escritor prolífico, estruturava suas criações dentro de um vasto repertório de signos, com riqueza vocabular e uma gramática de extensas raízes, fazendo excelente uso dos recursos estilísticos disponíveis a sua lírica, geralmente concretizada em versos longos, quais os que temos no poema “D’osgemeos”, reproduzido abaixo em excerto: Ó tu imortal que ao sal das vagas emerge das entranhas líquidas,/ que desaba em fúria severa sobre o tombadilho,/ e quão um punho em brasais, esbatia-se contra o rochedo do "Náutilos"/: arremessa-o contra o tempo pelo eterno;/ desafia-o num só gesto à morte;/ e, atormenta-o nos interiores pelos seus contrários o mundo ao redor. Manoel soube, contudo, expressar-se também em poemas curtos, como em “Água benta”: Dessedenta/ A língua/ E o céu da boca!/ Cospe o velho/ Saliva o novo. Ou em “Delirium”: Distorce-me/ O real pelo avesso.../ Ó delusão? Mentir para o/ Meu ‘eu’ não!/ Nunca fui (ao) mundo oposto. Com versos livres ou rimados, com métrica ou não, através de aforismas, pensamentos, prosa poética e, às vezes, filosófica, apresentava, em seu temário, assuntos como a relação do homem com o Divino, a religião, o misticismo, a existência, os sonhos, o amor, a morte e a psique. É possível notar também conteúdo e formas absorvidas de autores da antiguidade ocidental, como Homero e Horácio, por exemplo. Percebi, contudo, logo ao primeiro contato com a poesia do desconhecido maranhense, influências de Rimbaud, William Blake e Sousândrade. Posteriormente, em exercícios mais ousados, também presentes na
Advertisement
sua obra, ecos de Leminski e Pignatari. Para além disso, a tentativa de construção de um percurso baseado na não-linearidade e na versatilidade, ambas demonstradas num estilo poético carregado de ecletismo e que tinha em vista, ao que me parece, a universalização das suas muitas vozes. Sim. Serrão foi dono de múltiplas vozes. Nelas havia beleza e solidão, intimismo e exterioridade, amor e vida. Ademais, vi também um criador de versos, poeta com pê maiúsculo, que, infelizmente, nunca gozará da possibilidade de celebrarmos juntos a amplitude monumental da sua escrita, no rastro de uma obra quase invisível e capaz de realizar o milagre do enclausuramento de todo um cosmos na casca de uma noz.
ILHOSES
MANOEL SERRÃO DA SILVEIRA LACERDA
Escrita - Biblioteca Virtual de Escritores
Feito corpo. Feito alma. Feito espírito. Feito [os] nós infestos de agruras abstêmias, Idem inglórios epítetos insultuosos.
Destapas d’alma a fenda ó bardo? Azo a sós, dê-se em essência parida, Opila, tece pelo bico da Parkinson odes diversas das que vós alinhaveis tecidas a ponto perfeito?
Não o ranço? Nem o vil escárnio que escoado pelo o esfínque, vazam rimas quão em escarros.
Oh! A de não tê-las n’outras cartilhas o verbo ser-dor, Sido purgado, alma para ser carne? Vês?! Vês que dor se for [do que duvido!] não é verbo para sê-lo, Porque a dor do Deus criador, É dor à sós do ser sentir - quase, dor sem fim, dor que não se faz.
Feito dor. Feito verbo. Feito carne. Feito nós infestos de agruras abstêmias, Idem inglórios epítetos insultuosos. És preciso tu, ó Narciso, ó vão além útero, fragma de um Eu despedaçado, venera estampa da própria carne.
És preciso tu, que os pensas sê-lo, Mais que tudo: o Deus, o Verbo e o Nada? Sido purgado, verbo ser-dor, alma para ser carne. Sede vós mais que os ancestrais avós dos vossos ilhoses.
Então, ousas à ti dizeres? Ou é-me essência parida? Ou de fenestra a ambrósia dos mortais.
MANOEL SERRAO
Ver Perfil - manoelserrao1234 Nasceu a 19 Abril 1960 (São Luis - Maranhão)
Perfil Nome completo: Manoel Serrão da Silveira Lacerda. Idade e naturalidade: Nasceu em São Luís [Atenas Brasileira] capital do Estado do Maranhão, na Santa Casa de Misericórdia, em 19 de abril de 1960. Filiação: Filho de Agamenon Lucas de Lacerda e de Oglady da Silveira Lacerda. Neto paterno de Manuel Lucas de Lacerda e Maria Antônia Lucas de Lacerda; neto materno de Hidalgo Martins da Silveira e Maria José Serra da Silveira. Ascendência geral de espanhóis e portugueses judeus.
Profissão: Advogado e Professor de Direito, formado pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE
![](https://assets.isu.pub/document-structure/210524184710-f565ebf147a4b06f46a242576fdfb86a/v1/c06fd81cec2db3b427f58643ae425ac1.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
ToRtA. AsSimÉtRicA. I n c
l
i n a
d A... A culpA dEsconstrói A verdAde, E constrói A desculpA.
É O desconstruir-do-mais-que-perfeito!
Comentário: A “Tortuosa” dialética do exterior e do interior do Ser esquartejado Por © DE João Batista do Lago:
![](https://assets.isu.pub/document-structure/210524184710-f565ebf147a4b06f46a242576fdfb86a/v1/d2039b30883fd715574abea3a6efc2df.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
Comentário de João Batista do Lago [“João Batista do lago, maranhense, pode ser considerado, atualmente, um dos mais completos poetas e cronistas do Brasil, haja vista a consciência plural e significativa de sua intuição cultural, fato que o faz passear entre musgos históricos gregos e o modernismo clariciano, espargindo
o pensamento poético alemão, americano ou inglês, sem esquecer das taças saboreantes dos vinhos que enebriaram o cismar dos poetas franceses como BAUDELAIRE (Charles Baudelaire), MALLARMÉ (Stéphane Mallarmé), FRANÇOIS COPÉE (François Édouard Joaquim Copée) e MUSSET (Louis Alfred de Musset) – o poeta do amor. Como eu, o Maranhão e o Brasil também, creio, se orgulham de João Batista do Lago, uma das maiores expressões literárias do mundo moderno. Fato que, realmente não deixa a desejar se comparado a nenhum dos franceses acima citados”. Marconi Caldas Poeta, escritor e advogado São Luís –Maranhão – Brasil 2007]. A inserção do poema, ou do poeta, num determinado campo literário é algo complicado, posto que, quando o Poeta produz o faz a partir da sua - e somente sua - cosmovisão, ou ainda, da sua mundanidade ou mundidade representacional, ou mais especificamente, do seu universo holístico. Contudo, por mais que não queiramos, a literatura exige que encaixemos o texto num determinado discurso. Apesar disso, ouso aqui não intentar, para esta belíssima obra de Manoel Serrão, uma Escola Literária para, assim, fixá-lo nela.
"Tortuosa" é um poema que traduz uma carga de significados excepcional. Mas não só isto: o poema traz, em si, ainda, o conteúdo de seus significantes (também!). Ao inferir este pensamento quero, desde logo, chamar a atenção para o campo teleológico, ou seja, do argumento, conhecimento ou explicação que relaciona um fato com sua causa final. E o que é que se relacionam neste poema? Ouso responder: a dialética dos universos "externo" e "interno", que se traduzem e re-traduzem na concretude de entes que se digladiam na extensividade da dialética do sim e do não, aqui entendidos como a construção e a descontrução do discurso do poema-de-si. É muito interessante, e salutar, perscrutar este poema mínimo porque, de cara, ele nos revela e desvela uma questão fundante: não é preciso um trem de palavras para se atingir o fato com sua causa final. Neste caso, por exemplo, Manoel Serrão não precisou mais que dezoito palavras para atingir, belíssimamente, a causa final: a tortuosidade assimétrica da “verdade” E essa constatação se torna efetiva na mesma proporção em que o sujeito que fala no poema se internaliza tanto no espaço externo quanto no espaço interno, dialetizando a verdade pelo viés da culpabilidade. E de posse da "culpa", uma característica da essencialidade da "verdade", produz-se o processo da construção e da desconstrução do Ser e do não-ser: não é à-toa que a palavra "inclinada" vem grafada verticalmente. Ora, isso nos sugere uma tipologia de torre (seria a Torre de Babel?) construída e desconstruída assimetricamente, isto é, há uma relação de correspondência desse corpo, seja na forma, seja na grandeza, assim como na localização entre as partes existentes de um lado e do outro de determinada linha, plano ou eixo. "O exterior e o interior formam uma dialética de esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialética nos cega tão logo a introduzimos em âmbitos metafóricos. Ela tem a nitidez crucial da dialética do sim e do não, que tudo decide. Fazemos dela, sem o percebermos, uma base de imagens que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo" - (BACHELARD, Gaston, in A POÉTICA DO ESPAÇO, P. 215). Porventura, não é de fato um esquartejamento visceral dessa verdade "inclinada" se movimentando de um lado para o outro como se fosse um pêndulo sustentado por um fio metafórico ou a representação pessoal da mente do sujeito que fala no poema? É claro que sim! Mas, quem é que está sendo esquartejado, construído e desconstruído, na verticalidade “inclinada”? É o “O” do último verso. Eis, pois, aqui e agora, o Ser da construção e da desconstrução. E quem é esse “O”? É exatamente o Homem (homem/mulher), que se auto constrói e se auto desconstrói, numa tentativa desesperada de se fazer sentido, de se dar sentido como o Ser de significados e significantes.
_________ Curitiba – Paraná 11/fev./2009