VASO DE ALABASTRO O
Jorge Pinheiro
1ª Edição Fevereiro de 2016
Título Autor Editores Direcção de Arte e Design Impressão e Acabamento 1ª Edição ISBN Depósito Legal
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O Vaso de Alabastro Jorge Pinheiro Letras d’Ouro, editores Pedro Martins Artipol, Artes Tipográficas, LDA Fevereiro de 2016 978-989-8215-57-4 404509/16 Letras d’Ouro, editores Rua Quinta da Flamância, n.º 3, 3º Dt.º Casal do Marco 2840-030 Paio Pires, Portugal 914 847 055 livros@letrasdouro.com www.letrasdouro.com facebook.com/letrasdouro © Letras d’Ouro, editores, 2016 © Jorge Pinheiro, 2016 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com a indicação da fonte. Por vontade expressa do autor, este livro não obedece à grafia imposta pelo AO90.
ÍNDICE
Prefácio Palavras prévias I Parte
COMUNICAÇÕES 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
A Bíblia e a História O conceito de fé em Lutero Jesus Cristo e as religiões comparadas O diálogo entre o Cristianismo e outras religiões A problemática da emigração Monoteísmos: proximidades e distâncias A herança de Abraão II Parte
REFLEXÕES BÍBLICAS 8. Os sete momentos da Páscoa 9. A Ceia do Senhor 10. Os inimigos do crente 11. As falsas evidências 12. A confissão
13. Adoração é dádiva 14. O vaso de alabastro III Parte
QUATRO ODES PARA O NATAL 15. A solidão do Natal 16. O sossego do Natal 17. O sinal do Natal 18. O segredo do Natal Bibliografia
À minha saudosa Clara que me acompanhou na produção e apresentação de muitos destes textos e que a voragem da vida não permitiu que os visse editados em livro.
PREFÁCIO Horácio, autor clássico latino, dedica a um seu amigo a Ode XIV do Livro II, que inicia com o que sente pelo decorrer inexorável do tempo: Eheu fugaces labuntur anni — fugazes se escapam os anos! Tantos e tão ligeiros, desde a publicação pelo autor de O Messianismo, editado em 1975 pela Pró-Luz, obra ousada no contexto de um tempo marcado por um materialismo militante exclusivo e menorizante do pensamento religioso. Vem agora a público com O Vaso de Alabastro, colectânea de textos que obedecem a uma estrutura densificada, demandando do leitor uma acrescida inquirição do sentido e alcance do pensamento do autor, escritos de forma elegante e exigente, constituídos por comunicações, reflexões, e Quatro odes para o Natal e o texto que titula a colectânea, os quais, embora não tendo entre si um fio condutor que os ligue numa sequência programática, tal como o autor refere nas suas Palavras Prévias, gravitam, contudo, de modo mais próximo ou mais afastado, em torno do mesmo centro inspirador, a Bíblia. Na reflexão dedicada ao tema A Bíblia e a História, o autor confronta-nos com a antiga e continuada tensão em que se move o Cristianismo, numa interacção da história profana e da história sagrada, corolário do conceito aparentemente incompreensível de o cristão não ser do mundo, mas estar no mundo, concluindo que todo o bom obreiro da Palavra só teria a ganhar se conhecesse a História, pela qual conheceria a mente do Homem e a Bíblia, pela qual conheceria a mente de Deus. O conceito de fé em Lutero conduz-nos à revisitação da Reforma e à (re)descoberta da teologia luterana no que toca à centralidade da fides e à sua vinculação à Escritura e à graça. Ao percorrer o texto, o leitor dáse conta, quase sem disso se aperceber, de que está em um local privile-
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giado de onde acompanha a descrição dos acontecimentos reformadores nucleares que mudaram a história da cristandade, complementada pela interpretação dos conceitos que constituíram o cerne dessa mudança. Jesus Cristo e as religiões comparadas é, tal como o autor refere, uma tarefa difícil, comportando logo no título uma ideia que naturalmente não ocorrerá ao tendencial exclusivismo do cristão perante outras manifestações religiosas. Como compatibilizar o conhecimento de Jesus Cristo com outras confissões, se foi o mesmo Cristo que afirmou: «Eu Sou o caminho», inculcando com esta declaração a ideia da exclusão de quaisquer outros? O autor propõe-nos duas hipóteses de trabalho: o cotejo do Cristianismo com as outras religiões e a procura da relevância das religiões para o homem dos nossos dias, aí incluído o Cristianismo, formulando e respondendo à incómoda pergunta para muitos crentes: é a religião relevante? Conclui pela superioridade do Cristianismo, corolário da argumentação que metodicamente expõe à apreciação crítica do leitor. Há duas confissões monoteístas que se reclamam da descendência de Abraão, o Judaísmo e o Islamismo, convivendo numa rivalidade multissecular que perdura até à actualidade. Em A herança de Abraão, o texto que se segue, o autor demonstra-nos como este patriarca, personagem difusa de um passado longínquo, influenciou a história da humanidade, recontando-nos e (re)interpretando-nos uma das mais marcantes e incompreendidas histórias bíblicas. Se a herança de Abraão é reclamada por aquelas duas confissões religiosas, o autor demonstra-nos como o Cristianismo se vai enraizar também nessa herança por meio de uma adopção mística. Em Monoteísmos: proximidades e distâncias, propõe-nos o autor um novo e desconfortável tema para estabilizados conceitos religiosos subsistentes em meios assépticos e não abertos ao diálogo com outras mundividências transcendentais, perguntando: «O Deus dos monoteísmos é o mesmo e as mensagens são verdadeiras complementando-se umas às outras ou Deus não é o mesmo e apenas uma mensagem é verdadeira?», intui o autor uma pergunta que será comum a muitos crentes monoteístas
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e à qual tendencialmente se responderá apenas por meio de uma não fundada convicção pessoal. Este tema é continuado em O diálogo entre o Cristianismo e outras religiões, diálogo que o autor reencaminha para o cristão em concreto, como sendo aquele que o deve promover e não para a abstracção conceptual de Cristianismo, propondo-lhe o dever de «conhecer o universo em que o Outro se movimenta»; «pregue-se o evangelho e pouco nos importe que o Outro viva como um confucionista, um budista ou um sique, desde que ele se permita identificar-se com Cristo e O aceite como único caminho». Sendo este um texto de Outubro de 2001, já antecipa o início de um choque de civilizações ou, pelo menos, de compreensões fundamentalistas de carácter confessional, em que os parâmetros ideológicos de cariz religioso serão dominantes. Ainda na primeira parte, dedicada a Reflexões, suscita o autor a discussão dos efeitos das migrações humanas e da tensão latente ou aberta da interacção de culturas provenientes de outras geografias, indiciando ao leitor vias de compromisso condicionadas pela delicada equação: exclusão — assimilação — complementaridade e que resposta podem e devem dar os cristãos a este fenómeno social. A parte final da obra dedica-a ao estudo bíblico strictu sensu, primeiramente delimitando-a à liturgia nuclear da vida eclesial: a Páscoa, a Ceia do Senhor, a Confissão, como resposta à pergunta: «mas vós, quem dizeis que eu sou?» e a Adoração, no sentido de prestação de serviço a Deus por parte daquele que, voluntas sua, se tornou servo dele. Esta parte é complementada por considerações de carácter prático centradas na tensão a que o cristão está sujeito ao viver no meio de uma sociedade regida pelo conceito organizacional e de valores que o evangelho designa mundo e os elevados padrões éticos que dominam a vida cristã. Nela se inclui a comovente história da mulher pecadora e o seu vaso de alabastro, que inspira o autor a dar o nome à sua obra. Finalizando O vaso de alabastro, mas não nos surpreendendo se constituírem a passagem para uma renovada partilha de reflexões, Quatro odes para o Natal são na realidade cânticos em prosa, que evocam e
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celebram o propósito divino que está na origem do nascimento de Cristo, que o tempo tem delapidado na memória colectiva. O Vaso de Alabastro constitui uma obra de grande utilidade, não só para os que têm elegido a Bíblia como Livro dos livros, mas também para quem quer que se interesse pelas suas respostas às questões transcendentais e à sua influência no indivíduo e na sociedade. Amílcar D. Ribeiro Maio de 2015
PALAVRAS PRÉVIAS A escrita é um encantamento e um enigma. Por ela abrimos ao mundo uma janela do nosso quarto que somos nós. Umas vezes titubeantes, outras ousados, plenos de energia para transformar o que nos rodeia, de circunstâncias ou pessoas, ou ainda de forma serena (ou até subtil), como quem aproveita a calma do dia para um passeio descontraído pelo nosso parque favorito. Pela escrita não apenas revelamos um pouco de nós próprios, mas, para além de corporizarmos o que nos caracteriza enquanto seres pensantes, damos largas ao sopro divino que corre em nós, (re)criando universos que sem serem sempre oníricos são sem dúvida um manifesto pessoal. Toda a escrita apresenta-se como programática, umas vezes como libelo, outras como mero exercício retórico, mas sempre como resultado de uma reflexão consubstanciada numa síntese cimentada quantas vezes em experiências pessoais vividas a sós ou em diálogo com o Outro. A escrita é também diálogo. Diálogo entre nós e a nossa circunstância. Nela se entretecem encontros e desencontros que se transformam em linhas de força numa tessitura que pensamos resistente mas que nem sempre apresenta em si a força que lhe permita manter a coesão que a faria permanecer gerações adiante e enfrentar assim a voragem temporal. A esperança, porém, de que o que se escreve, mais do que aceitação plena desencadeie no Outro o interesse pelas propostas apresentadas, permanece intocável. Toda a escrita tem a sua história. Toda a escrita tem a sua contingência. E por muito que intencionalmente se procure ocultar essa característica, a verdade é que um texto acaba sempre por revelar, bastas vezes de forma discreta, o enquadramento da sua génese. Por isso, toda a escrita
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é um documento. Nem sempre será histórico, no sentido de não contribuir para a compreensão do momento em que foi escrito, mas anistórico exige-se sempre que não seja. Estes textos ora dados à estampa foram sendo escritos ao longo do tempo. Uns resultaram de um impulso de reduzir a escrito uma reflexão pessoal, outros para satisfazerem o pedido de alguma comunicação; uns saíram de um jacto, outros arrastaram-se penosamente, outros ainda foram concluídos a poucas horas da sua apresentação. Depois da sua estreia em público nos diversos palcos, mantive-os na esfera pessoal, apenas interrompida quando, na minha actividade blogueira, decidi publicá-los, a pouco e pouco, no meu blogue pessoal. Desde que me conheço, vi-me rodeado por livros e pelas letras (talvez aí a explicação para as actividades profissionais e de formação em que ao longo do tempo me vi envolvido). Recordo a pequena biblioteca paterna que, aos olhos de uma criança, era imensa, e o encantamento com que admirava as capas dos livros e o entusiasmo com que ia lendo um ou outro. Em adulto, o interesse pelos livros e pela escrita não esmoreceu e, a pouco e pouco, little by little, peu à peu, poco a poco, fui procurando encher as prateleiras das estantes que ia comprando. E nos intervalos, sempre que conseguia vencer a preguiça, ultrapassava a síndroma da página em branco e rabiscava umas linhas, corporizando alguma ideia ou reflexão. Fui assistindo, com grande satisfação, a algo que deveria ser tão corriqueiro como o simples acto de respirar: a publicação de escritos de muitos dos meus amigos, tendo tido o prazer de ir assistir ao lançamento de algumas dessas obras. Sabendo do meu gosto pelas letras, não admira que tanto alguns desses amigos, mas sobretudo as minhas filhas me incentivassem e insistissem para que também desse à estampa «alguma coisa». Eu ia resistindo, dizendo que «sim» por amabilidade (ou talvez para os calar) e regressava à minha rotina. Confesso o meu pecado: sou preguiçoso a escrever e, depois de o fazer, arquivo o que produzo. Mas… (há sempre um mas na nossa vida) um dia pensei: por que não? E sondando o meu amigo Pedro Martins sobre o interesse que
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teria em editar uns textos meus, recebida luz verde, dei-me ao trabalho de reunir alguns e surgiu o presente volume despretensioso. Entre todos eles não há um fio condutor que os ligue numa sequência programática. Cada um é uma unidade independente das outras, embora procurem sempre transmitir uma reflexão de matriz cristã sobre diversos aspectos. Agrupei-os em três conjuntos: Comunicações, Reflexões Bíblicas e Quatro Odes para o Natal. Em Comunicações, estão reunidos textos aqui publicados pela antiguidade da sua apresentação e que em diversas ocasiões me foram solicitados por uma ou outra razão (explicitada no início de cada um). Não passam de pequenos ensaios sobre temas concretos e predefinidos. Em Reflexões Bíblicas, agrupei pregações proferidas durante o tempo em que tive a responsabilidade pastoral de duas congregações da área de Loures, na sua quase totalidade apresentadas no culto de Ceia do Senhor. Finalmente, Quatro Odes contém também quatro pregações que, por serem natalícias, mereciam, quanto a mim, ficar juntas. E como Natal, para além do seu significado teológico, é uma quadra festiva, um verdadeiro hino, optei por designá-las pelo termo Odes. Embora sem pretensão a «fazer doutrina», todos os textos resultam de uma reflexão profundamente pessoal, resultado do meu encontro e assimilação das verdades que, ao longo dos anos, fui bebendo do sapiencial bíblico. Hoje, alguns talvez tivessem sido redigidos de outra forma ou talvez até nem tivessem visto a luz do dia. Optei por deixálos na íntegra, apenas corrigindo uma ou outra situação, nomeadamente nos textos da secção «Reflexões» de que eliminei alguns traços mais característicos de uma exposição hermenêutica. De igual modo, numa ou noutra situação, procurei retirar-lhes a carga coetânea para tornar a situação mais universal e intemporal. Duas palavras a terminar. A primeira em relação ao título do presente livro. A princípio, hesitei quanto ao nome pelo qual passaria a ser conhecido. Avancei com uma hipótese de trabalho, Reflexões, mas optei por O Vaso de Alabastro porque este foi o último texto a integrar a colecção e também porque de certo modo, à semelhança da oferta da peca-
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dora, tudo quanto oferecemos a Deus deve ser não apenas o nosso melhor, mas o melhor e, de momento, estes são, em minha opinião, os melhores textos que tenho disponíveis. Espero que deles possa exalar um perfume que deixe agradados os futuros leitores. A segunda palavra é para agradecer ao meu dilecto e caríssimo amigo de longa data e de longas lutas, Dr. Amílcar Ribeiro, um homem com conteúdo a quem muito prezo, sempre com uma palavra ponderada e a quem se escuta com respeito e interesse e que, sem o ser, considero um irmão de sangue. Honra-me com as suas palavras depois de prontamente ter acedido ao meu pedido de escrever o prefácio da presente obra. Agora que o livro nasceu, mais do que longa vida desejo que as suas páginas possam servir de ajuda, de ensino e de inspiração. E, last but not least, estou grato a Deus por ter-me permitido ir descobrindo um pouco da riqueza que a Sua Palavra contém. Soli Deo gratia.
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COMUNICAÇÕES
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A BÍBLIA E A HISTÓRIA Em 1977, realizava-se em Évora um congresso juvenil das Assembleias de Deus, subordinado ao tema «A Bíblia Hoje». Um dos subtemas era «A Bíblia e a História». Fui convidado para o desenvolver e apresentar uma comunicação à magna assistência. E assim nasceu o texto que aqui publico. A década de 70 foi um tanto conturbada em termos de história das Assembleias de Deus, com várias tensões, umas latentes, outras larvares e ainda outras já declaradas. Quem viveu esses tempos, reconhecerá no texto uma referência quase subliminar aos problemas e choques que então dominavam as preocupações daquela que designo de «geração maldita» e que produziu nomes que, gostando ou não, deixaram marca na história das Assembleias de Deus. Mas não foi um texto circunstancial. Mutatis mutandis, a sua análise, com pequenas adaptações, permanece aceitável ainda nos dias de hoje. Posteriormente, o meu amigo pastor Brissos Lino solicitou-me a sua inclusão num dos seus blogues, a saber https://salmopresente.wordpress.com.
1. INTRODUÇÃO E CONSIDERAÇÕES GERAIS A Bíblia e a História não é um subtema. É um tema! É um subtema relativamente ao tema circunstancial deste Congresso, A Bíblia Hoje. Só neste aspecto se poderá considerar um subtema. É tema e não subtema porque subtema infere em si um aspecto de subalternidade, sinónimo fácil de assunto de menos valor.
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É tema não pela sua vastidão mas pela sua importância intrínseca e pelas suas implicações derivadas de um estar-no-mundo que se reflecte de modo muito premente ao nível do dia-a-dia da vivência humana. A Bíblia e a História é um assunto realmente importante, para o qual chamo a vossa atenção e que merece, pela sua grandeza, que nos debrucemos sobre ele. Bíblia e História. Sublinhemos o e e leia-se o que o tema diz: Bíblia e História e não Bíblia na História. Copulativa «e» de ligação coordenada de duas grandezas do mesmo nível. Em alguns casos, o «e» poderá não desempenhar a sua função estrutural mas, no caso vertente, a sua aplicabilidade é incontestável. Estamos perante duas realidades, duas grandezas que, em si, (e nem sempre por si) contêm as coordenadas do existir humano, que não só e apenas de uma práxis existencial. Assim, vamos tentar analisar estas duas grandezas essencialmente numa visão coordenativa e não apenas — embora o possamos tentar — numa visão de inserção da Bíblia no processo histórico, como decorrente de uma emergência no plano histórico (como algum espírito mais apressado poderia pensar de uma leitura fugidia do tema). Convém — antes de prosseguirmos — reforçar e salientar a noção da importância e universalidade da História. Ela está presente em cada momento do existir humano porque, em certo sentido, vivemos e movimentamo-nos na História, respiramos História. O que nada tem de estranho por sermos nós os fautores da História. Todos nós fazemos História — quando, por exemplo, nos reunimos nesta sala, estamos a fazer História. E todos fazemos análises históricas — quando, por exemplo, analisamos o Livro de Actos dos Apóstolos, para aplicarmos os princípios nele prescritos, estamos, no fundo, a fazer uma análise histórica. Quanto à Bíblia, queria salientar, nesta introdução que já vai longa, dois pontos que reputo de importantes: •
Falar da Bíblia é falar do Cristianismo, é falar Cristianismo. É falar do Cristianismo porque toda a Bíblia, desde Génesis 1:1 a Apocalipse
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22:21, passando pelos Profetas e Salmos, fala do Cristianismo. É falar Cristianismo — e talvez estejamos todos ainda no bê-á-bá desta língua sublime — porque a língua Cristianismo é universal, como universal é a Bíblia e porque essa é a língua que a Bíblia fala.
Assim, referiremos indistintamente a Bíblia e o Cristianismo, numa identificação de juízos de valor salvaguardando, no entanto e naturalmente, os momentos em que quer o termo Bíblia quer o termo Cristianismo e seus derivados tenham uma significação particular e singular. •
A Bíblia — e é preciso que isto seja dito aqui e agora e que nos apercebamos desta verdade — formula uma série de Teorias: uma Teoria da Literatura, uma Teoria Social, uma Teoria do Direito, etc. (Por Teoria entendamos os princípios fundamentais de uma arte ou ciência).
É evidente que a Teoria mais importante e que, com toda a justiça, mérito e necessidade, mais tem sido desenvolvida e estudada pelos Cristãos Pentecostais é — chamemo-la assim, aproveitando a terminologia — a Teoria da Salvação. As outras Teorias — ainda que pouco ou nada estudadas (e quantas vezes positivamente ignoradas por nós) — não deixam de ser importantes e dignas de nos debruçarmos sobre elas. Nesta perspectiva, a Bíblia possui também uma Teoria da História, isto é, ela debruça-se sobre a História e emite a palavra final (porque a Bíblia é final) sobre o sentido da História e é importante e urgente que saibamos e conheçamos o seu conteúdo. Importante porque — como tudo quanto é Bíblia — é uma dádiva de Deus aos homens e tudo quanto Deus nos deu (e nos dá) é importante. Urgente porque necessitamos, neste tempo de crise espiritual e de viragem, de ter uma Teoria bíblica (e não apenas humana, ainda que de origem eclesiástico-cristã) que nos forneça armas para fazermos
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frente às Teorias (da História ou não) diabólicas e humanas que buscam as brechas da nossa ignorância e incúria.
2. DEFINIÇÕES 2.1. Herança Grega Assim, tentemos cotejar a Bíblia e a História e dessa análise extrair o melhor para nosso crescimento e edificação. Mas, antes de mais, precisamos de definir os termos com que vamos lidar e que estarão presentes ao longo desta exposição. Definir significa marcar um fim, indicar um limite. Com efeito, é necessário demarcar um limite ao campo de cada uma das palavras para que elas valham aquilo que são e não aquilo que as pessoas possam entender ou querer que sejam. Ambos os termos são nossa herança grega e qualquer dicionário daria a seguinte definição: • •
História — do grego historia — evolução da Humanidade, narração de factos de um ou mais países. Bíblia — do grego biblion (o livro) — colecção de livros sagrados do Velho Testamento e do Novo Testamento.
A História é uma ciência com método e objecto específicos. Não vamos abordar o problema da Metodologia da História (por nos roubar muito tempo e nos afastar do plano deste trabalho) mas diremos de passagem que, devido às características do facto histórico, que é singular e inobservável pois não se repete nem pode ser observado directamente pelo historiador por já pertencer ao passado, a metodologia histórica é distinta da metodologia das chamadas ciências exactas como, por exemplo, a Matemática. Daí que a História tenha de lançar mão de diversas ciências auxiliares para se poder estudar e compreender o facto histórico na sua complexidade causal. Note-se que muitas das ciências
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auxiliares da História são as mesmas da Bíblia, como a Hermenêutica, por exemplo. Mas a História — cujo objecto, no fundo, é o Homem — não é a simples formulação de factos nem a observação de fenómenos. Ela não se detém na enumeração de factos. Ela analisa-os e interpreta-os e sobre eles emite juízos, procurando destrinçar não só as motivações (as causas que estão por trás deles) mas — digamos assim — as leis que os regem. Desse estudo do passado, podemos compreender melhor o estado do presente e avaliar a extensão de um fenómeno específico e determinar as linhas dominantes que o motivam. A tónica que se coloca sobre a causalidade factual varia de época para época e de escola para escola. É assim que, enquanto para os homens da Idade Média, os factos importantes eram os religiosos, para os do séc. XX, são essencialmente os económicos. Mas não nos esqueçamos de que a História não pode nem deve ter uma visão parcelar dos factos (devido à sua causalidade e complexidade). Quanto à Bíblia, todos sabemos que ela — num paralelismo tremendo com a História — caracteriza-se igualmente pela sua complexidade (que não é sinónimo nem de complicação nem de complexificação), pela sua universalidade, pela sua humanidade, na sua aplicabilidade e pela sua transcendência, na sua origem divina. Ela não se limita a enumerar ou a enunciar os factos mas a abrir caminho a uma interpretação dos mesmos, levantando idênticas perguntas que a História e a revelar, na sua simplicidade de linguagem, as respostas ansiosamente procuradas e indagadas. Dessas perguntas, tentaremos responder a uma que, pela sua premência, reputo de importante — Porquê? Porquê estudar História, porquê estudar a Bíblia?
3. PARALELISMOS CONVERGENTES E DIVERGENTES Porque tanto uma como a outra (a Bíblia e a História) respondem à maior inquietação humana desde sempre, seja qual for a filosofia que
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partilhemos — qual a finalidade do Homem, do existir humano? Que fizemos, de onde viemos, para onde vamos? E aqui, as atitudes de as encarar multiplicam-se, num paralelismo magnífico. Podemos detectar, pelo menos, três atitudes face à Bíblia e à História: informativa, formativa e pragmática. •
• •
Atitude informativa — tanto uma como a outra dar-nos-ia informações mais ou menos úteis que nos elucidassem sobre pontos mais ou menos obscuros. Atitude formativa — vamos extrair ensinamentos úteis para a nossa formação cultural ou espiritual. Atitude pragmática — o seu conteúdo tem peso e devemos pôr em prática esse conhecimento. O pragmatismo consiste na doutrina que defende a utilidade prática do conhecimento, identificando o verdadeiro com o útil.
Haverá uma quarta atitude, fácil e despreocupada — a indiferença — mas, de tão negativa que é, passemo-la de lado. Mas os paralelismos não se quedam pela atitude nossa perante a Bíblia e a História. Elas manifestam-se em outros campos. Ambas não se definem pela negativa pois nem a Bíblia nem a História são a ausência de alguma coisa. Elas são alguma coisa de positivo, real e concreto. Esta é uma tentação sofrida por muitos Cristãos (e a que muitos de nós no nosso tempo têm cedido) — uma definição do Cristianismo pela negativa, traduzida pela elaboração de listas legistas ou legalistas de proibições. Tal definição, além de não fazer justiça quer à História quer à Bíblia (ou Cristianismo) é um insulto à natureza de ambas, especialmente do Cristianismo. Grosso modo, podemos dizer que a Bíblia é a expressão divina através do humano e a História a expressão humana através do humano ou, se quisermos ser mais precisos, a Bíblia vai da transcendência à transcendência passando pela imanência, enquanto a História vai da imanência à imanência passando pela transcendência.
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Isto aponta-nos um terceiro paralelismo: ambas têm o mesmo interesse comum — o Homem. Mas no momento em que se tocam — oh desdita de Tântalo — aí começam as divergências. E podemos sintetizar esta verdade em poucas palavras: enquanto a História é o estudo do Homem pelo Homem, a Bíblia é o estudo do Homem por Deus. E aqui está o drama — a Bíblia é singular, apesar da sua pluralidade de escritores, enquanto a História é plural, apesar da singularidade do seu objecto — com todas as implicações daí decorrentes. Mas na divergência, podemos detectar, no horizonte, um ponto convergente: o futuro e a universalidade. António Sérgio disse: É preciso falarmos da História com um olhar no futuro. E não há contradição porque, embora a História se debruce sobre o passado, ela projecta-se no futuro. Com a Bíblia, passa-se o mesmo. Embora aponte factos do passado, ela deve ser encarada também com um olhar no futuro. O Cristianismo é como o jovem — não tem passado — só tem futuro! E no momento em que, como Cristãos, olharmos para o passado — e não nos referimos ao nosso passado mundano de não salvos — numa atitude de seráfica contemplação das glórias de antanho, estamos plácida e voluntariamente a acomodar-nos na sepultura bonita e magnífica de festas de jubileu mas que não passa de sepultura. A Bíblia não se detém no passado. Ela aponta o futuro que lhe constitui o limite, o horizonte. Esperamos novos céus e nova terra, como dizem as páginas sagradas e, poderíamos acrescentar: num mundo e tempo novos. Mas cometeríamos um pecado de omissão se nos detivéssemos apenas nesta parcela do tempo — é facto que ambas as disciplinas apontam o futuro. Mas esse apontar — e isto é tremendamente importante — é sempre em função do presente. Porquê? Pela simples razão de o Homem ser presente. As coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo (presente). Mas não se pense que a Bíblia defende a imobilização da História, como diria Barth. Não! A História prossegue e prosseguirá mesmo nesse futuro celestial que será o presente eterno. Ali também se fará História. Será das poucas ciências da Terra (se não a única) que se cultivarão no Céu.
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Um último paralelismo — a Bíblia — e perdoem-me os puristas e os extremistas — é, apesar da sua transcendência, um fenómeno histórico. E graças a Deus que assim é. Isso significa que Deus intervém no mundo dos homens, revela-se a si próprio, fala a língua dos homens. Mas ela não é meramente um fenómeno histórico. Dada a sua natureza de transcendência imanente, ela é supra-histórica e até trans-histórica. Está na História mas não é da História. Supera a História, não na finalidade e objecto comuns, mas na essência e destino.
4. HISTÓRIA PROFANA 4.1. Caducidade ou perenidade?1 A História fala de civilizações. Civilizações de homens. Mas poderíamos também dizer civilizações que são homens. E, nesta visão, concluiríamos que todo o drama humano se reflecte no devir da existência que se constitui em drama histórico. Mas haverá realmente um drama da História? O drama da História decorre do facto de o seu interveniente e fautor ser o Homem, com toda a sua fatalidade e contingência, aspectos bem desenvolvidos por Albert Camus, nomeadamente nas suas obras «A Peste» e «O Estrangeiro». E levanta-se obviamente a questão: como se manifesta esse drama histórico? Há um dito que entrou já na cultura popular que nos fornece uma pista objectiva — a História não se repete. Efectivamente, a História não se repete, devido à própria natureza do fenómeno histórico que, à dissemelhança do fenómeno físico ou químico, só é observável uma única vez — no momento em que ocorre. A mesma água não passa duas vezes sob uma mesma ponte. Mas, sem alterar a essência e a natureza do devir histórico, podemos dizer que a História afinal se repete: a primeira vez como drama e a segunda como tragédia.
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Vd. Estudio de la Historia, por Arnold Toynbee.
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E aqui estará o cerne desta marcha evolutiva da Humanidade — na sua dramaticidade, vive-se para se tornar a viver e esta marca da condição humana reflecte-se na obra de que o Homem é autor e espectador — as civilizações. O Homem cria civilizações. Mas civilizações que levam a sua marca. Marca de caducidade emergente da contingência humana, marca de perenidade porque o Homem tem a eternidade da alma espelhada no coração. E é nesta tensão que se movem as civilizações. E é na percepção desta tensão que a filosofia oriental encara como karma que essa mesma filosofia pugna pela libertação do Homem do seu devir existencial. Neste quadro, não nos surpreenderá a trajectória em espiral da obra civilizacional do Homem. Mas pergunta-se: essa trajectória não tem fim? Existirá realmente um karma inelutável? Estas são perguntas que vamos deixar em suspenso para daqui a pouco as abordarmos de novo em tentativa de resposta. Dizia que nos não surpreenderá a trajectória em espiral das civilizações. Como fruto do Homem, vamos encontrar nelas as características inerentes ao Homem. Neste sentido — e apenas neste — a concepção helénica do movimento circular do devir histórico é uma análise definitiva. Esta percepção, de resto, está patente na cultura popular — a Roda da Fortuna — e no pensamento salomónico — nada há de novo à face da terra. Assim, nas civilizações, podemos detectar a sua génese, desenvolvimento, colapso e desintegração, num ciclo aparentemente infindável, segundo a análise profunda e exaustiva de Toynbee em que nos basearemos e de quem, neste passo, seguiremos o raciocínio. Podemos dizer que em todas as civilizações encontramos o mesmo mecanismo de formação, crescimento e decadência e, pela sua análise, acharemos a resposta à pergunta: «serão as civilizações caducas ou perenes?» e acharemos pistas que nos ajudarão no nosso viver de Cristãos. O Homem cria civilizações essencialmente porque soube responder com êxito a um incitamento exterior, realizando um esforço criador até então sem precedentes. E quando, face a um incitamento, o Homem não tem resposta adequada, prestes está a civilização do seu fim.
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Numa sociedade, há assim uma minoria criadora, motor impulsionador que, em contacto com sociedades primitivas, atrai a sua capacidade de mimesis, isto é, a sua capacidade de imitação. Esta mimesis, enquanto se registar a existência da minoria criadora, é provocada pelo encanto que esta exerce sobre aquela. E é na existência desta criatividade (cuja base é a resposta positiva ao incitamento) que consiste o segredo do crescimento e permanência das civilizações. Porque ela atrai, pelo encanto, a mimesis do primitivo que assim se integra no campo da civilização. Enquanto esta situação perdurar, a Sociedade nem se divide se desintegra. Quando há incapacidade de resposta, a minoria criadora tende a transformar-se em minoria dominante que tenta reter pela força uma posição que já não merece há muito. A minoria dominante perde o encanto de minoria criadora o que leva a que os primitivos sejam repelidos e que, de discípulos, se convertam numa poderosa força de pressão externa — aquilo que Toynbee classifica de proletariado externo. No campo interno, o processo é semelhante — a maioria mimética passa também de discípulo a proletariado interno, numa atitude de divórcio da minoria dominante e em rebelião aberta contra ela. Por proletariado entenda-se não uma classificação na base da pobreza, de riqueza ou de origem de nascimento ou de trabalho mas na consciência de se saber que se está na sociedade mas que não se é da sociedade. A razão deste colapso da civilização deve-se ao fracasso da faculdade criadora da minoria criadora, com a consequente perda de unidade social. Que resulta de todo este jogo de forças? Ficamos em presença de três entidades que, uma vez em luta, conduzem à desintegração da civilização. Das cinzas desta desintegração nascerá, qual Fénix renascida, consoante o condicionalismo histórico, uma civilização filha da defunta. Cada uma destas três entidades, no seu processo evolutivo de luta, vai criar uma instituição característica: •
a minoria dominante gera um Estado Universal, o penúltimo estágio da desintegração;
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• •
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o proletariado interno, que se separa da minoria dominante, gera uma Igreja Universal; o proletariado externo gera bandos guerreiros bárbaros que, de ordinário, acabam por invadir o espaço geográfico da civilização em decadência.
Tomemos o caso da civilização greco-romana, para especificarmos: a minoria criadora perde o poder de resposta e, uma vez minoria dominante, cria o Estado Universal — o Império. A unidade social está quebrada e manifesta-se o proletariado interno que arrasta consigo uma Igreja Universal — o Cristianismo, enquanto nas fronteiras, pulula todo um proletariado externo que irromperá violentamente no ciclo conhecido por Invasões Bárbaras. E há aqui toda uma lição a tirar: os Bárbaros irromperam porque, quando deixa de avançar a fronteira entre uma sociedade civilizada e uma sociedade primitiva, a balança inclina-se com o correr do tempo a favor da sociedade primitiva. Como Cristãos, não podemos deixar que a fronteira entre o Cristianismo e o mundo por evangelizar estacione. Ela tem de se estender até que não haja mais fronteira. E teremos encontrado a solução para todas as crises que possam assolar o Cristianismo e muito especialmente para a crise actual que todos sentimos latente. Há que manter a unidade social (em termos de História) através da resposta sempre positiva de todo o corpo social a um incitamento externo e manter vivo este impulso de civilizar (leia-se evangelizar) os primitivos (leia-se os perdidos), através do cultivo daquilo que é essencial no Cristianismo e não daquilo que é conjuntural, para que eles possam ser atraídos pelo nosso encanto, a fim de lhes estimularmos a capacidade mimética. Lembremo-nos de que todos os grandes princípios registados na História para o avanço da Humanidade se encontram na Bíblia: a defesa da mulher, os princípios do liberalismo da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade), os princípios do Socialismo — todos os homens nascem livres e iguais, etc. A Bíblia contém, em todas as épocas, a resposta para os problemas individuais e colectivos do Homem — problemas
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humanos e sociais. A questão está em o Homem se dispor a encontrá-la. Ora, uma sociedade cristã pode e deve manter padrões e princípios, isto é, pode manter a sua minoria criadora que, recorde-se, não é uma minoria dominante e que atrai pelo encanto. A resposta a um incitamento não consiste em levantar barreiras — o progresso (e a Bíblia aponta para o progresso) não se ergue levantando barreiras mas destruindo-as. A solução, dizíamos, a resposta ao incitamento não consiste em levantar barreiras, consubstanciadas em atitudes e normas de «não faças, não digas, não aconteças» mas desenvolvendo os princípios em si, os princípios que informam a sociedade cristã. Princípios esses que não são circunstanciais mas perenes. Mas atenção para não nos determos nas conquistas alcançadas (há que evitar a bizantinização e o sebastianismo espirituais). Assim estará resolvido o problema da actualidade, transformado erradamente em problema número um da sociedade pentecostal — o problema da ética, da TV, etc. A solução para tal problema, que historicamente é um incitamento, consiste em ir à raiz do mal, buscando uma resposta positiva ao incitamento. Mas onde está essa raiz? Será, por exemplo, na TV em si ou nos princípios2? Que importa destruir a TV se os princípios não estão cultivados ou se nem sequer brotaram ainda? É lógico que são os princípios que devem ser cultivados porque eles têm em si a força e a substância suficientes para nos fornecerem uma resposta positiva ao incitamento que enfrentamos. Qualquer solução que não passe pelo cultivo dos princípios que nos informam é uma resposta falhada ao incitamento. E quando isto acontece, perto está a minoria criadora de se transformar em minoria dominante com a criação de um Estado Universal que o mesmo é dizer que tal sociedade está em vias de desintegração. E a História não perdoa. Mas atenção que a História ensina-nos uma lição dramática: em geral, quando um grupo responde triunfantemente a um incitamento, raras vezes 2.
Na época, um dos temas fracturantes das igrejas pentecostais (Assembleia de Deus) era a discussão relativa à televisão: «o crente pecava por ter ou ver televisão?» Hoje a discussão pode parecer-nos bizantina (e era, realmente), mas as correntes conservadoras eram fortes e tentavam impor o seu imobilismo.
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responde com êxito ao segundo. Temos o caso dos Judeus que responderam positivamente aos incitamentos do Velho Testamento mas foram vencidos pelos do Novo Testamento, culminando na rejeição do Messias. Que nos não iludamos, pois, com as respostas aos incitamentos nem receemos enfrentá-los. A atitude cristã decorrente da Bíblia é positiva e não negativa, é positiva, não alucinogénia.
5. HISTÓRIA SAGRADA 5.1. Inserção bíblica na História3 Este problema leva-nos à questão de sabermos qual o lugar do Cristianismo no mundo, qual a visão histórica da Bíblia. Em primeiro lugar, relembremos os 3 modos como é encarado o significado da História: linear, cíclico e caótico. • • •
O linear supõe que os factos se sucedem numa determinada direcção. O cíclico afirma que a História se repete. O caótico nega qualquer direcção aos factos históricos.
À partida, a Bíblia rejeita a interpretação caótica da História, por ela ser contrária à sua essência e mensagem. Com efeito, a Bíblia aponta para um Deus criador pessoal e interessado na sua criação (e tenhamos presente que o Deus da Criação é o mesmo Deus da Salvação). Do ponto de vista histórico, isso implica que a Bíblia relata (e defende) a intervenção de Deus na História. Não é um recurso de solução para explicar miticamente o inexplicável mas a consciência de que não se pode separar o Criador da sua criação e vice-versa. Daqui, podemos inferir que o princípio histórico imanente à Bíblia revela-se por um não à dialéctica em que, à luta dos contrários, opõe a
3.
Vd. Sobre o Mistério da História, por Jean Daniélou.
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acção divina que altera o curso circunstancial criando um processo de acção e interacção decorrente dessa mesma intervenção divina. Nesta atitude, há algo de novo em relação à mentalidade helénica que, como vimos já, concebe o tempo (e por inferência a História) como um movimento circular. Para a Bíblia, o movimento não é cíclico ou circular mas linear. Ao intervir na História da Humanidade, Deus não se repete — a Criação deu-se uma vez por todas, a chamada de Abraão não tem sucessor factual, a vinda de Cristo é um facto definitivo. A História, além de ter um significado, uma finalidade, aponta e segue um movimento linear. Hoje, poderemos não ter dificuldade em entender esta realidade mas a verdade é que esta posição cristã apresentou-se como uma tremenda novidade para a mentalidade helénica. No entanto, a Bíblia verifica e afirma que a História humana se movimenta por ciclos — tenha-se em mente a profecia de Daniel.4 No entanto, nela, o profeta afirma o seu princípio linear — os reinos humanos cíclicos cederão o passo a um reino eterno. E porquê este choque com a mentalidade helénica? Porque os Gregos admitiam apenas dois tipos de realidades: • •
as divinas — sem princípio e sem fim; as corruptíveis — com princípio e com fim.
Mas o Cristianismo anuncia uma terceira realidade •
as coisas que começam e não têm fim.
Logo, na visão cristã, o perfeito não é aquilo que sempre existiu como pretendiam os Gregos. Há assim princípios estabelecidos pela intervenção divina que, pelo seu carácter absoluto, permanecem para sempre adquiridos.
4.
Daniel 7:27.
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No confronto, porém, com a mentalidade hebraica, o Cristianismo aponta uma segunda verdade ou princípio histórico — se as instituições hebraicas são de origem divina — e são-no — então são boas e perfeitas. Mas a verdade é que, com a introdução do Cristianismo na História, elas são abolidas. Haverá então contradição? Não! E, na resposta, encontraremos este segundo princípio de que falamos: é que essas instituições são provisórias. Elas têm um kairos, isto é, um valor temporal que já passou. Assim, com a entrada de Cristo, valor supremo de todas as intervenções divinas, o Judaísmo é declarado anacrónico. E na extensão desta verdade, podemos adiantar o pensamento de que também anacrónico é querer manter qualquer realidade cujo kairos já passou ou está ultrapassado. A mantê-la, estaremos a cometer um pecado de Judaísmo, isto é, pecado de anacronismo. Paulo elabora uma síntese magnífica desta realidade ao declarar que a Lei serviu de aio para nos conduzir a Cristo. Mas a Bíblia aponta um terceiro princípio — Cristo, como dissemos atrás, é o acontecimento definitivo da História. Com Ele, atingimos o fim da revelação divina da intervenção de Deus na História. A visão cristã da História é, pois, escatológica uma vez que o Cristianismo é em si e por si escatológico. Cristo encerra o ciclo da Revelação, mas atenção, repitamo-lo, não encerra nem detém a História. E ao encerrar o ciclo, achamos a resposta para a pergunta da inquietação filosófica oriental quanto ao karma. Há realmente um karma na História mas ele não é inelutável. Com Cristo, chegou o limite desse karma porque n’Ele, com Ele e por Ele, estamos a viver um Reino que não tem fim. Nada mais aguardamos senão o raiar do Oitavo Dia. Deste modo, segundo a visão bíblica, para podermos situar verdadeiramente a História, ela tem de se centrar em Cristo. E a verdade é que a História não ficou insensível a essa verdade e testemunha-a em si mesma, dividindo o tempo dos homens em antes e depois de Cristo. Mas viver num tempo escatológico não é sinónimo de vivermos na eternidade. Porquê? Porque Cristo-facto-histórico não é o mesmo que
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Cristo-fenómeno-histórico. E nisto a História profana falha porque Cristo não é um facto mas um fenómeno. Devido à sua intemporalidade temporal — Cristo é o eterno Eu Sou —, vivemos um tempo presente, qualquer que seja a época em que um Cristão tenha vivido ou viva. Porquê? Porque no tempo dito cristão, vivemos não um facto mas um fenómeno e um fenómeno tal cuja complexidade se revela e se situa entre duas vindas ou Parousias — o Natal e o Segundo Advento de Cristo.
6. INTERPENETRAÇÃO DE AMBAS AS HISTÓRIAS 6.1. Convergência divergente ou divergência convergente? Mas seríamos incompletos se nos não interrogássemos sobre qual o lugar que o Cristianismo ocupa no devir histórico. E esta é uma questão que levanta tremendas e poderosas perguntas. Teremos, para nos guiar, de recorrer ao texto bíblico. E bastar-nos-iam talvez duas ou três palavras que encerram em si toda a grandeza do mistério da História: Não são do mundo5 cujo contexto podemos assim sintetizar: Estão no mundo mas não são do mundo. E esta frase lapidar encerra magnificamente em si o drama histórico e revela toda uma Teoria da História. Estaremos, neste momento, talvez a recordar-nos da definição que Toynbee dá de proletariado: estão em mas não são de e talvez estejamos a identificar o Cristianismo, a Igreja, com o tal proletariado toynbeeano. Mas seremos, realmente, esse proletariado? Somos e não somos. Somos esse proletariado no mundo mas não somos o proletariado do mundo. Não «somos do» porque, para o sermos, teríamos de trazer em nós o kairos do mundo e não teríamos assim conseguido a libertação desse karma considerado inelutável. Não somos porque o kairos do mundo, da Humanidade, passa. Este mundo é transitório (o mundo passa e a
5.
João 17:14-16.
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sua concupiscência mas a minha Palavra permanece para sempre e Sic transit gloria mundi) mas o nosso kairos permanece para sempre porque com Cristo e em Cristo abolimos o karma histórico. Mas somos esse proletariado no mundo porque estamos nele. Mas estamos nele participando de uma realidade superior — como cidadãos de um Reino que não tem fim. Um Reino cujo kairos não passa, um Reino que nunca passará pela desintegração. Somos esse proletariado porque, em termos históricos e sociológicos, estamos aqui para desintegrar as sociedades humanas pois, na visão cristã, há apenas dois tipos de sociedades: a humana e a divina. A nossa é divina e ela será estabelecida, inserindo-se no devir da Humanidade mas sem se deixar manchar pelas gotas desse fatalismo histórico. Há, assim, para já, uma certeza: o Cristianismo não é caduco. Mas esta seria uma análise fugidia se não lhe víssemos as implicações e nos não detivéssemos em profundidade. Teríamos então de voltar à transcendência imanente da Bíblia. E aqui, há que distinguir entre a transcendência da Bíblia (a sua essência) e a historicidade ou imanência de que se reveste — isto é, a sua existência. Este carácter bivalente da Bíblia reflecte-se na sua revelação máxima — o Cristianismo. Uma cultura bíblica, os aspectos culturais da Igreja em determinado contexto social não se devem confundir com o cerne da doutrina. Por outras palavras, não se deve confundir a essência com a existência. Aquela é una e imutável porque é divina, enquanto esta varia porque está no mundo, corporizada por todos quantos a aceitam. E porque será isto assim? Porque, embora não sendo do mundo, o Cristianismo está no mundo. E está no mundo, encarnando-se em diversos espaços civilizacionais, em diversas épocas dessas mesmas civilizações. Há assim toda uma complexidade cultural que, da nossa parte, seria perigoso confundir com a essência do Cristianismo. Há, então, nesta tensão em que se move o Cristianismo, uma interacção da história profana e da história sagrada ou, utilizando a termi-
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nologia do esboço deste estudo, uma interpenetração de ambas as histórias. Podemos afirmar, com Jean Daniélou de quem, de resto, seguimos o pensamento nesta secção do nosso estudo, que a história do Cristianismo é influenciada na sua periferia pelo desenvolvimento das civilizações. Que significa isto? Significa que a história do Cristianismo, na medida em que este se insere na história da Humanidade, apresenta-se como a história de diversas civilizações ou Cristandades que arrastam consigo as características das civilizações que encarnam, possuindo então um kairos caduco. E não há aqui contradição nem erro — o erro estará em identificarmos o Cristianismo com alguma dessas Cristandades. Há, assim, um Cristianismo bizantino, palestino, bem como medieval e até burguês, que não deixam por isso de ser Cristianismo. E há que aceitar cada uma dessas manifestações porque são o fruto da inserção do Cristianismo nos quadros mentais das civilizações que representam. E, citando de novo Daniélou, poderíamos dizer que existe sempre a tentação de reduzir a unidade — uniformidade sob forma de um modo comum de expressão. Ora, a verdadeira unidade é aquela que, dentro da unidade da fé, se exprime através da diversidade de mentalidade das civilizações. Por outras palavras e de um modo muito simples, diremos que não se pode obrigar um chinês a pensar e muito menos a agir como um português ou, se quisermos estar mais perto do contexto civilizacional que nos cerca, não podemos obrigar um português a agir como um americano ou vice-versa.
7. CONCLUSÃO Mas se não podemos obrigar um elemento de uma determinada cultura a guiar-se pelas categorias mentais de outra que lhe é distinta e estranha, podemos, no entanto, esperar que o vínculo de união que liga os
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elementos das culturas mais díspares se manifeste em toda a sua grandeza, realizando a oração de Jesus: Que todos sejam um, como nós somos um. Concluiremos por esta nota de confiança: o futuro pertence-nos! Mas bom seria que não esperássemos pelo futuro para guardar, nos nossos corações e nas nossas vidas, as lições que a História nos fornece. Daí que não é descabida a sugestão e o anseio de que todo o bom obreiro cristão só teria a ganhar se conhecesse a História. Pela Bíblia, conheceria a mente de Deus; pela História, a mente do Homem e no futuro, que é o seu presente, saberia colher o fruto que lhe granjearia o prémio do meigo Nazareno: Bem está, servo bom e fiel — entra no gozo do teu Senhor!6