Perdão Radical

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BRIAN ZAHND

APELO AO AMOR INCONDICIONAL

Tradução Jorge Pinheiro | Prefácio Miroslav Volf



Índice

Prefácio..........................................................................9 Prelúdio........................................................................ 15 1. A Questão do Perdão ................................................... 21 2. A Possibilidade do Perdão ............................................45 3. A Imitação de Cristo.................................................... 71 4. Nenhum Futuro Sem Perdão ........................................99 5. Perdão Que Transcende a Tragédia............................... 121 6. Perdão e Justiça.........................................................145 7. Matando a Hostilidade................................................167 8. A Regra de Ouro e a Porta Estreita ...............................193 9. A Beleza Salvará o Mundo ...........................................219 10. O Príncipe da Paz .....................................................245 Notas...........................................................................271

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Prelúdio

O Cristianismo ocidental precisa de uma actualização. Diria mais que a necessidade é desesperada. O Cristianismo, termo pelo qual me refiro à experiência de viver a mensagem de Jesus, deveria caracterizar-se sempre por ser vibrante e refrigerante. Mas o que hoje passa por mensagem cristã surge como algo de decrépito e desgastado. Receio que o Cristianismo, tal como é presentemente compreendido, corre o risco de se converter numa espécie de relíquia. Isso já aconteceu antes. Se o Cristianismo quer ser uma voz vibrante e relevante no século vinte e um, necessita de uma mensagem cheia de frescura — não uma nova inovação ou uma reinterpretação mas de um retorno às suas raízes. E quais são as nossas raízes? Até certo ponto é disso que trata este livro. A principal experiência e ênfase central do Cristianismo gira em torno do tema do perdão. Se o Cristianismo tem a ver com alguma coisa é com o perdão. Não o perdão apenas como um fim em si ou como um meio legal de escapar à punição, mas perdão como reconciliação e total restauração. O Cristianismo apresenta o perdão como

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Perdão Radical

a restauração da relação perturbada entre Deus e a humanidade. O perdão é também aquilo que tem sozinho a capacidade de alcançar paz e reconciliação nas relações humanas — sejam pessoais, sejam globais. Mais importante ainda, este é um livro que aborda o modo de Jesus perdoar e o modo como Ele nos chama a imitar a sua prática do perdão radical. E radical é a palavra adequada porque, quando se trata da proclamação e da prática de perdão, Jesus foi o inovador mais radical da história. Quando Jesus ensina sobre o perdão, leva8

-nos ao extremo. Jesus parece estar a indicar que a nossa prática de perdão deve ser incondicional. Mas perdão incondicional é uma ordem pesada e exige que pensemos seriamente nele. Podemos perdoar sempre? Devemos perdoar sempre? Se perdoarmos sempre não estaremos a dar força ao mal? Se perdoarmos incondicionalmente, não estaremos a sacrificar a justiça? Estas são algumas das questões que procuro explorar neste livro. Ao escrever, tenho principalmente em mente uma audiência cristã, pois assumo que os cristãos constituirão a maioria dos meus leitores. Mas aos que não se identificam como cristãos, quero dizer que também penso em vós. Convido-vos a encararem este livro como uma sinopse do que penso ser o Cristianismo em toda a sua essência. E aos críticos do Cristianismo gostaria de reconhecer que estou tristemente consciente de que nem sempre o Cristianismo tem sido muito agradável. Com demasiada frequência, a mensagem de Jesus foi erradamente representada pela face feia do legalismo, do triunfalismo e do ódio de inspiração religiosa. (No livro, abordo


Prelúdio

algumas destas questões.) A minha esperança é que me permita apresentar-lhe o maravilhoso rosto do Cristianismo — o rosto do perdão. Talvez este tenha sido o meu principal motivo em escrever este livro — ajudar a recuperar a verdadeira beleza do Cristianismo como a encontramos no perdão. Ao entrarmos na segunda década do terceiro milénio cristão, somos uma igreja necessitada de renovação — uma renovação de que estou convencido poder ser alcançada por meio de uma recuperação do maravilhoso evangelho cristão do perdão. Num mundo em que a fealdade da raiva e da retaliação conduzem a história do século vinte e um, a beleza do autêntico perdão cristão é a alternativa que se impõe.

— Brian Zahnd

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Perdoa os nossos pecados, como nós próprios perdoamos quem está em dívida connosco. JESUS, DA ORAÇÃO DO PAI-NOSSO

Pai, perdoa-os. JESUS, SUPLICIADO NA CRUZ

Se perdoardes os pecados a alguém, eles são perdoados. JESUS, AOS SEUS APÓSTOLOS, NO SEU PRIMEIRO APARECIMENTO PÓS-RESSURREIÇÃO

Creio no perdão dos pecados. CREDO DOS APÓSTOLOS



A Questão do Perdão

Deveria ser óbvio que o perdão se encontra no cerne da fé cristã pois, nos seus momentos mais cruciais, a graciosa melodia do perdão ouve-se como o tema recorrente do Cristianismo. Considere-se a prevalência do perdão nos momentos do nascimento do Cristianismo e seus textos sagrados: quando Jesus ensina os discípulos a orar, eles são instruídos a dizer: «Perdoa os nossos pecados, como nós próprios perdoamos quem está em dívida connosco» (Lucas 11:4). Pregado na cruz, ouvimos Jesus orar, de forma quase inacreditável: «Pai, perdoa-os» (Lucas 23:34). No seu primeiro aparecimento ressurrecto aos seus discípulos, Jesus diz: «Se perdoardes os pecados a alguém, eles são perdoados» (João 20:23). No Credo dos Apóstolos, somos instruídos a confessar: «Creio no perdão dos pecados». Quer analisemos a oração do Pai-nosso, quer a morte de Jesus na cruz, quer a sua ressurreição, quer os grandes credos da igreja, nunca ficamos longe do tema do perdão — porque se o Cristianismo nada tem a ver com o perdão, então não tem a ver com nada. De tudo quanto se possa dizer sobre os cristãos, deve dizer-se de nós que

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somos pessoas que crêem no perdão dos pecados — cremos no perdão dos pecados tão seguramente quanto cremos na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Muitos de nós aderem à fé cristã motivados, pelo menos de algum modo, se não de todo, a encontrar perdão para os nossos próprios pecados. Ao crescermos na fé cristã, é fundamental tomarmos consciência de que somos chamados para alargar o perdão aos outros, tornando assim o mundo um lugar com mais perdão. Se abraçamos a fé cristã para encontrar perdão, temos de continuar na fé de nos tor14

narmos pessoas que perdoam porque, para sermos autênticos seguidores de Cristo, temos de abraçar a centralidade do perdão. Essa é a teoria. Mas no mundo real de crime, estupro, abuso infantil, genocídio e atrocidades horríveis, qual a viabilidade do perdão? O perdão não passa de uma ideia piedosa que pode florescer no interior de santuários forrados a vitral, apenas para fenecer nas duras realidades de um mundo secular onde o vitral não consegue ocultar a fealdade da atrocidade humana? Uma vítima de violação pode ter aprendido em criança o Pai-nosso na Escola Dominical, mas a parte relativa a perdoar os que nos ofendem tem alguma relevância na sua situação? É de esperar que ela perdoe quem a violou? Evidentemente, o perdão é bom no domínio das transgressões relativamente menores, mas haverá um limite ao perdão? Haverá crimes que ultrapassem a capacidade do perdão? Haverá algum pecado tão hediondo que perdoá-lo seria em si um acto imoral? O perdão é sempre possível? Ou mesmo sempre justo? Estas não são questões teóricas; são questões reais


A Questão do Perdão

que temos de enfrentar num mundo em que o mal é com tanta frequência inaceitável. Para as pessoas modernas, a imagem icónica do mal e o candidato máximo do imperdoável é o Holocausto e o malvado arquitecto dessa atrocidade, Adolfo Hitler. Na verdade, o Holocausto lança uma extensa sombra sobre muitos aspectos da fé cristã e desafia a validade cristã em vários níveis. Ao considerar o tópico do perdão, temos de perguntar: o conceito cristão de perdão tem alguma coisa a ver com o Holocausto ou o genocídio constitui o domínio do imperdoável? Quando o Cristianismo fala de perdão, deveria haver um asterisco colado à palavra para indicar que o perdão não se aplica em situações extremas como os campos de concentração da Alemanha nazi, a limpeza étnica na ex-Jugoslávia e os massacres tribais do Ruanda? Já houve pessoas que me disseram que não me preocupasse com estes casos extremos, porque já chega ensinar as pessoas a perdoarem-se no curso normal da vida. Mas discordo. Se se pode mostrar que há situações em que o convite de Cristo de amar os nossos inimigos e perdoar os nossos ofensores não se aplica, então descobrimos a brecha por onde escapar a toda a obrigação cristã significativa de perdoar os outros. O perdão então passa a ser um mero ideal de piedade restrito a um mostruário de vitral. As questões respeitantes à extensão da aplicação do perdão são questões reais apresentadas por pessoas reais — talvez de modo mais notável por Simon Wiesenthal.

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«O QUE ESTOU A PEDIR É DEMASIADO» Simon Wiesenthal tem uma história assustadora e formula uma pergunta ainda mais assustadora. Conta-nos a sua história e apresenta a sua pergunta no seu famoso livro The Sunflower [O Girassol]. Simon Wiesenthal foi um judeu austríaco preso num campo de concentração nazi durante a Segunda Guerra. Em The Sunflower, Simon Wiesenthal conta-nos a sua história e depois faz ao leitor uma per16

gunta difícil. No início do livro, Wiesenthal faz parte de um grupo de trabalho a ser levado do campo de concentração para fazer a limpeza de um hospital perto da frente oriental. Ao marcharem do campo-prisão para o hospital, atravessam um cemitério de soldados alemães. Em cada sepultura está um girassol. Wiesenthal escreve:

Invejei os soldados mortos. Cada um tinha um girassol a ligá-lo ao mundo vivo e borboletas que visitavam a sua sepultura. Para mim não haveria girassóis. Seria enterrado numa vala comum, onde os cadáveres se acumulariam por cima de mim. Nenhum girassol traria luz às minhas trevas e nenhuma borboleta iria dançar sobre o meu desgraçado túmulo. 1

Enquanto trabalhava no hospital de campanha, uma enfermeira alemã ordena a Wiesenthal que a siga. É levado até uma sala onde jaz moribundo um guarda SS. O soldado é um alemão de vinte e um


A Questão do Perdão

anos, natural de Estugarda, e chama-se Karl Seidl. Karl pedira à enfermeira que lhe «levasse um Judeu». Karl fora mortalmente ferido em combate e agora quer fazer uma confissão no leito de morte — e quer fazê-la a um judeu. O rosto do SS está todo envolto em ligaduras, apenas com aberturas para a boca, nariz e ouvidos. Durante algumas horas, deixa-se ficar sozinho, sentado em silêncio, enquanto o soldado SS moribundo Karl conta a sua história. Em criança, Karl fora educado num lar cristão. Os pais frequentavam com ele a igreja e nunca haviam sido partidários do nazismo nem apoiaram a subida de Hitler ao poder. Mas, aos quinze anos de idade, contra os desejos dos pais, Karl aderiu à Juventude Hitleriana. Aos dezoito, Karl juntou-se às infamantes tropas SS. Agora que se encontrava moribundo, Karl queria confessar as atrocidades que testemunhara e em que, como soldado SS nazi, participara. O mais horrível é o seu relato de ter feito parte de um pelotão de soldados SS enviados para capturar os Judeus na cidade de Dnepropetrovsk. Trezentos Judeus — homens, mulheres, crianças e bebés — foram reunidos e a golpes de chicote conduzidos até uma pequena casa de três andares. A casa foi incendiada e Karl recordou por estas palavras ao seu confessor o que acontecera:

Ouvimos gritos e vimos as chamas abrirem caminho andar após andar... Tínhamos as espingardas engatilhadas, prontas a serem disparadas contra quem tentasse fugir daquele inferno ardente... Os gritos vindos da casa eram horríveis... Por trás das janelas do

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segundo andar, vi um homem com uma criança de colo nos braços. As roupas estavam em chamas. A seu lado, uma mulher, sem dúvida a mãe da criança. Com a mão livre, o homem cobria os olhos da criança... depois saltou para a rua. Segundos mais tarde, a mulher imitou-o. Depois, das outras janelas, saltaram corpos a arder... Disparámos... Oh meu Deus! 2

Karl está muito atormentado com a visão do rapaz contra quem 18

disparou, um rapaz com «olhos escuros» que Karl achava deveria ter cerca de seis anos. A descrição que Karl faz deste rapaz recorda a Simon Wiesenthal um rapaz que conheceu no gueto Lemberg. Nas várias horas em que o judeu Simon ficou sentado perto do nazi Karl, Simon nunca falou. A pedido de Karl, Simon segurou a mão do moribundo. Simon afastou as moscas e deu água a beber a Karl, mas nunca falou. Durante a longa provação, Simon nunca duvidou da sinceridade de Karl nem de estar verdadeiramente arrependido dos seus crimes. Simon disse que a forma como Karl falara era prova suficiente do seu arrependimento. Por fim, Karl disse:

Estou aqui com a minha culpa. Nas últimas horas da minha vida, estás aqui comigo. Não sei quem sejas, apenas sei que és judeu e isso me chega… Sei como é terrível tudo quanto te contei. Nas longas noites à espera de morrer, mais do que uma vez desejei falar disto a um judeu e pedir-lhe que me perdoasse. Só que não sabia se ainda havia sobreviventes judeus… Sei que o que estou a


A Questão do Perdão

pedir-te é demasiado para ti, mas sem a tua resposta não posso morrer em paz. 3

Com isso, Simon Wiesenthal decidiu-se e abandonou a sala em silêncio. Durante todas aquelas horas em que Simon Wiesenthal esteve sentado junto de Karl, Simon nunca pronunciou palavra. Nessa noite, Karl Seidl morreu. Karl deixou os seus bens a Simon, mas Simon recusou-os. Contra todas as probabilidades, Simon Wiesenthal sobreviveu ao Holocausto. Oitenta e nove membros da sua família não escaparam. Mas Simon Wiesenthal não conseguia esquecer Karl Seidl. Após a Guerra, Simon visitou a mãe de Karl para confirmar a história. Tudo se passara como Karl contara. A mãe de Karl garantiu-lhe que o filho era um «bom rapaz» e que nunca poderia ter feito nada de mau. De novo, desta vez por gentileza, Simon permaneceu silencioso. Simon acreditava que, na sua juventude, Karl poderia na verdade ter sido «um bom rapaz». Mas Simon também concluiu que um período infeliz da sua vida o transformara num criminoso. Simon Wiesenthal concluiu a sua assustadora e terrível história com uma pergunta igualmente assustadora e terrível dirigida ao leitor:

Devia tê-lo perdoado?... O meu silêncio à beira da cama do nazi moribundo foi certo ou errado? Esta é uma profunda questão moral que desafia a consciência do leitor deste episódio, tanto quanto desafiou o meu coração e espírito… O cerne da questão é, natu-

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ralmente, o problema do perdão. Esquecer é algo de que apenas o tempo se encarrega, mas perdoar é um acto volitivo e apenas o sofredor está qualificado a tomar a decisão. Tu, que acabaste de ler este triste e trágico episódio da minha vida, podes mentalmente mudar de lugar comigo e responder à pergunta crucial: "Que teria eu feito?" 4

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O PERDÃO É SEMPRE POSSÍVEL? E somos assim confrontados com um desafio dramático das possibilidades do perdão. O perdão é sempre possível? Há algumas situações em que o perdão é impossível? Esta será uma delas? Pode um nazi, moribundo, aparentemente arrependido, encontrar perdão para os seus pecados? Pode um soldado SS, moribundo, que participou nas atrocidades do Holocausto, receber o perdão de Deus? E, talvez ainda mais desafiador, poderá ele receber o perdão dos outros seres humanos? Seria mesmo permissível oferecer perdão, neste caso, ou seria uma traição à justiça? Este é o tipo de perguntas levantadas pelo The Sunflower de Simon Wiesenthal. A segunda parte de The Sunflower é um simpósio de cinquenta e três pensadores proeminentes — judeus, cristãos, ateus, filósofos, professores, rabis, pastores e outros — que respondem à questão de Wiesenthal. Os inquiridos compreenderam assim a verdadeira questão: haverá maneira de uma pessoa na posição de Simon Wiesenthal


A Questão do Perdão

poder oferecer o seu perdão ao nazi moribundo? Pela minha contagem, vinte e oito dos inquiridos responderam não, que oferecer perdão nesta situação não é possível. Dezasseis dos inquiridos disseram sim, que o perdão de algum modo poderia ser oferecido. Nove dos entrevistados não foram claros na sua posição. O interessante é que os dezasseis a favor de alguma forma de perdão eram todos cristãos ou budistas (treze cristãos e três budistas). Entre judeus, muçulmanos e ateus que responderam parece ter havido unanimidade em concordar que a concessão de perdão nesta situação era impossível. Inversamente, muitos dos inquiridos cristãos disseram haver uma maneira de o perdão ser concedido. Significativamente, nenhum cristão declarou que o perdão nesta situação seria categoricamente impossível. Não se pode deixar de notar que na aparência uma cosmovisão cristã influencia radicalmente o modo como a pessoa aborda as possibilidades do perdão. E deve reforçar-se que o perdão aqui não tem o significado legal. Se Karl Seidl tivesse sobrevivido, teria sido sujeito às exigências da justiça legal apesar de qualquer concessão de perdão pessoal. Aqui, o perdão deve ser compreendido não como um perdão legal mas com um convite de regresso à comunidade humana. Mais tarde, exploraremos a relação entre perdão e justiça. Depois de sobreviver ao Holocausto e de publicar The Sunflower, em 1969, Simon Wiesenthal levou uma vida nobre e humanitária. Morreu em 2005, aos noventa e seis anos de idade. Em The Sunflower, o Sr. Wiesenthal realiza uma obra-prima, contando a sua história e a sua pergunta sobre as possibilidades de perdão é importante

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para todos os seres humanos, mas de modo supremo para os cristãos, porque o perdão está no centro da fé cristã. Na capa do meu exemplar de The Sunflower está esta pergunta: «És um prisioneiro num campo de concentração. Um soldado nazi moribundo pede-te perdão. Que deves fazer?» Senti ser importante que eu tentasse compor uma resposta. Assim, embora Simon Wiesenthal nunca me tenha colocado pessoalmente a questão, eis a resposta que eu daria: 22

Prezado Sr. Wiesenthal, Em primeiro lugar, gostaria de dizer que não tenho a presunção de julgar as suas acções. O senhor foi amável com um soldado nazi moribundo quando lhe segurou na mão, afastou as moscas e lhe deu água para beber. Mostrou grande bondade à mãe dele, ao não destruir a memória que ela guardava do filho. E concordo com o teólogo luterano Martin Marty que disse: «Os não judeus e talvez especialmente os cristãos não deveriam dar conselho sobre a experiência do Holocausto aos seus herdeiros nos próximos dois mil anos. Então não teremos nada a dizer. Conselhos impensados de um cristão banalizam a vida e a morte de milhões». Contudo, uma vez que levanta a questão, gostaria de tentar responder. Não sei o que eu teria feito, apenas o que espero que poderia ter feito. Como cristão, espero que a minha resposta ao inimigo moribundo fosse algo do género:


A Questão do Perdão

«Não posso perdoar-te em nome dos que sofreram os monstruosos crimes às tuas mãos e às mãos dos que voluntariamente alinharam contigo; não tenho o direito de falar em nome deles. Mas o que posso dizer-te é que o perdão é possível. Há uma maneira de te reconciliares com Deus, cuja imagem manchaste e há uma maneira de seres restaurado à raça humana, da qual caíste. Há uma maneira porque Aquele que nunca cometeu um crime clamou na cruz, dizendo: "Pai, perdoa-os porque não sabem o que fazem". Como creio na morte, sepultamento e ressurreição de Jesus Cristo, creio que o pecado não tem de ser um beco sem saída, que há um caminho para a reconciliação. O perdão de que falo não é fácil. Não é fácil porque não foi fácil para Jesus Cristo sofrer a violência da cruz e não retaliar, mas amar e perdoar. Não é um perdão fácil porque exige de nós um arrependimento profundo, incluindo um compromisso com a justiça reparadora para com os que prejudicaste. Não é um perdão fácil para os teus pecados, mas há um perdão dispendioso. Se em verdade abandonares os teus pecados e olhares em fé para Cristo, há perdão — um perdão dispendioso que pode reconciliar-te com Deus e restaurar-te à raça humana. Não posso perdoar-te em nome dos outros, mas, em meu próprio nome e no de Jesus Cristo, digo-te que os teus pecados estão perdoados. Bem-vindo à comunidade perdoadora dos pecadores perdoados. Que a paz de Jesus Cristo esteja contigo.»

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É isto que espero que dissesse. Mas, tanto quanto sei, poderia ter tratado um inimigo moribundo com muito menos simpatia do que o senhor. Com profunda admiração pela sua dignidade,

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Ao ler as respostas dos cerca de vinte e oito que argumentam contra a possibilidade de perdoar o nazi moribundo, considero muito 24

relevantes muitos dos seus argumentos. Apesar de tudo, estou convencido de que se o perdão é impossível para um criminoso de guerra arrependido, apenas porque os seus pecados são demasiadamente terríveis, então o evangelho cristão é um conto de fadas e todos podemos abandonar a charada. Mas como diz o Credo dos Apóstolos: «Creio no perdão dos pecados». O Cristianismo é uma fé de perdão.

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A vida cristã é uma oração de perdão: «Perdoa-nos como os perdoamos.»

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A vida cristã é um grito sofredor de perdão: «Pai, perdoa-os.»

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A vida cristã é uma ordem de perdão: «Se perdoares alguém, ele será perdoado.»

Assim, mesmo perante a questão desafiadora de Simon Wiesenthal e a simpatia que eu possa sentir pelos que defendem que não é possível um judeu perdoar um nazi moribundo, estou plenamente


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convicto de que negar a possibilidade de perdão é negar o próprio cerne do evangelho cristão. As muito citadas palavras de Jesus, «com Deus todas as coisas são possíveis» (Mateus 19:26), não só incluem perdão mas dizem especialmente respeito ao perdão. E a chamada de Cristo para tomarmos a nossa cruz e segui-lo é muito especificamente uma chamada a amar os nossos inimigos e a terminar o ciclo de vingança, respondendo com o perdão. Claro que há um perdão fácil que é indigno e uma afronta à justiça. Essencialmente, a posição budista diz que o mal é uma ilusão não existente, pelo que nada há a perdoar. Isto nada tem a ver com a posição cristã. O perdão cristão não é uma negação fácil da realidade do mal ou o slogan banal do «perdoa e esquece». Isso pode ser suficiente para afrontas pessoais menores, mas é oco e mesmo insultuoso quando aplicado a crimes como homicídios, violações e genocídios. Não, o perdão cristão não é fácil. Pelo contrário, é muito difícil, porque ele flui a cruz — o local onde a injustiça e o perdão se encontram numa violenta colisão. O perdão cristão não nos convida a esquecer. O perdão cristão permite-nos recordar, mas convida-nos a terminar com o ciclo da vingança.

LIÇÕES DO MESTRE Achei muito interessante perguntar a não cristãos o que Jesus ensinou. Quase sem excepção mencionaram que Jesus ensinou-nos

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a amar os nossos inimigos. Entre os incrédulos, Jesus parece ser famoso por ensinar que os seus discípulos devem amar os seus inimigos. Contudo, quando pergunto aos cristãos o que Jesus ensinou, muito raramente referem este mandamento. Mas penso que a intuição dos não cristãos está correcta — a ênfase de Jesus em amar os inimigos é central no seu ensino e especialmente proeminente no Sermão da Montanha. A ordem de amar os nossos inimigos é memorável, por ser radical. Mas o mandamento de amar o nosso inimigo é 26

uma ordem que nós, que somos seguidores de Cristo, tendemos a esquecer, por ser tão difícil observá-la. Contudo, o Cristianismo do Sermão da Montanha é o que pode mudar o mundo. O amor semelhante, que absorve o golpe e reage com o perdão, é a única esperança real deste mundo numa mudança verdadeira. Responder ao ódio com ódio ratifica o status quo e apenas garante a vitória do ódio — é o que mantém o mundo tal como ele é. Tendemos a pensar que o nosso ódio contra os nossos inimigos se justifica porque podemos apontar os seus crimes óbvios e, segundo a lógica, se fôssemos nós a mandar e não os nossos inimigos, as coisas seriam diferentes. Mas a história conta-nos uma narrativa diferente. O ódio, por mais justificável que seja, apenas alimenta o ciclo infindável da vingança. Nada de facto se altera pois tudo fica na mesma. O novo senhor não faria esquecer o antigo. O Cristianismo tem mais a oferecer ao mundo que a vingança reciclada.


A Questão do Perdão

11 de Setembro de 2001 é o testamento do poder do ódio. Nesse dia, dezanove homens cheios de ódio e armados com xis-atos mudaram o mundo. Dá que pensar.

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Dezanove homens

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Xis-actos

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Ódio

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Mudaram o mundo 27

Parece incrível, mas parece ser verdade. Porém, como seguidores de Jesus Cristo, somos chamados a crer na proposição radical de que o amor é mais poderoso que o ódio. Somos chamados a crer que, embora o ódio possa ser muito poderoso, é o amor que nunca falha e que o amor é a maior de todas as coisas. Se odiarmos os nossos inimigos porque primeiro nos odiaram e pagarmos o ódio com ódio, porque é isso o que o ódio faz, continuaremos a viver no hediondo mundo do ódio e no seu ciclo infindável de vingança. Mas, quando o amor entra no mundo do ódio e está disposto a amar até os seus inimigos, um tipo novo e real de mudança entra no mundo — uma mudança onde o ódio não tem a última palavra. Sim, dezanove homens cheios de ódio e armados de xis-atos mudaram o mundo. Mudaram mesmo? O mundo mudou ou esse dia não passou da adição do mais recente capítulo do longo legado do ódio? Talvez o mundo não tenha mudado sequer; talvez seja a mesma coisa que tem estado a acontecer desde que Caim matou Abel.


Perdão Radical

Jesus Cristo ensinou-nos a amar os nossos inimigos e a orar pelos que nos fazem mal. E modelou-o ao extremo. Carregou a sua cruz até ao Calvário e ali perdoou os seus inimigos. Como cristãos, cremos que o Calvário é o tempo e o lugar onde o mundo começou a mudar. Dezanove homens cheios de ódio e armados de xis-atos mudaram o mundo? Que dizer de doze homens cheios de amor e armados com o perdão? Sim, no cenáculo na noite da Ressurreição, Jesus soprou sobre os seus discípulos e disse: «Recebam o Espírito. 28

Se perdoarem a alguém os seus pecados, eles serão perdoados» (João 20:22–23). Amar e perdoar os nossos inimigos — é assim que podemos mudar o mundo! Durante o genocídio arménio de 1915–1917, um milhão e meio de Arménios foram mortos pelos Turcos otomanos e outros milhões foram violados, brutalizados e deportados à força. Do genocídio arménio vem uma história famosa de um oficial do exército turco que levou a cabo um raide contra a casa de uma família arménia. Os pais foram mortos e as filhas violadas. As raparigas foram então entregues aos soldados. O oficial conservou para si a mais velha. Eventualmente, esta rapariga conseguiu escapar e mais tarde tornou-se enfermeira. Numa irónica reviravolta da história, foi trabalhar numa ala hospitalar para oficiais feridos do exército turco. Certa noite, à luz mortiça de uma lanterna, ela viu entre os seus pacientes o rosto do homem que lhe matou os pais e abusou de forma tão horrenda das irmãs e de si própria. Sem um tratamento excepcional ele morreria. E foi isso que a enfermeira arménia fez — tratou-o com todo o cui-


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dado. Quando o oficial começou a recuperar, um médico apontou para a enfermeira e informou-o: «Se não fosse esta mulher, o senhor teria morrido». O oficial olhou para a enfermeira e perguntou: «Já nos conhecíamos?» «Sim», respondeu ela. Após um longo silêncio, o oficial perguntou: «Porque não me matou?» A cristã arménia respondeu: «Sigo aquele que disse "Ama os teus inimigos"».

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Ela limitou-se a dizer: «Sigo aquele que disse "Ama os teus inimigos"». Para esta cristã, não era necessária mais nenhuma explicação. Para ela, o perdão não era uma opção; era uma exigência. Somos movidos pela mesma convicção? Vemos a prática do perdão como sinónimo de ser cristão? Ao lidar com a questão do perdão, acabamos por ter de enfrentar a questão do que significa ser um seguidor de Jesus. É demasiado fácil reduzir ser-se cristão a um dado estatuto — o resultado de ter «aceitado Jesus como seu Salvador pessoal». Mas esse tipo de abordagem minimalista é uma grave distorção do que os primitivos seguidores de Jesus entendiam o que significava ser-se cristão. Os cristãos originais não se limitavam (nem mesmo ao de leve) a verem-se como os que receberam de Jesus um cartão confirmador de terem sido libertos do inferno, mas como seguidores, estudantes, aprendizes e discípulos daquele a quem chamavam Senhor e Mestre. Jesus era o mestre e eles os discípulos.

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SER UM DISCÍPULO DE JESUS Que significa ser discípulo? Se alguém fosse discípulo do mestre de sitar Ravi Shankar, seria de esperar que aprendesse a tocar sitar com grande mestria. Se alguém fosse discípulo de kung fu, seria de esperar que acabasse por se tornar mestre da arte de kung fu. Assim, se nos chamamos discípulos de Jesus, o que se espera que aprendamos? O que é que Jesus se oferece para nos ensinar quando obede30

cemos à chamada de o seguir? Do que é que Jesus é mestre e que procuramos aprender? A resposta é «Vida». Jesus é o senhor de viver bem, de viver rectamente, de viver em verdade. Jesus é o senhor de viver uma vida humana conforme a intenção de Deus. E no centro do ensino de Jesus sobre o modo como devemos viver está o tema recorrente do amor e do perdão. Para os que querem mesmo ser discípulos de Jesus, que querem mesmo aprender a viver conforme Ele ensinou, o Sermão da Montanha é de suprema importância. Foi nele que Jesus explanou a sua visão radical de como devemos viver. Não nos iludamos a este respeito; é radical — tão radical que, em grande parte da história cristã, a igreja tem ocupado teólogos a descobrir formas de lhe dar a volta. Alguns teólogos sugeriram que Jesus de facto nunca esperou que aplicássemos o Sermão da Montanha; antes, foi um ensino dissimulado de «nos conduzir à graça». Segundo este argumento, ao tentar viver o Sermão da Montanha, acabamos por descobrir que é inaplicável e depois olhamos para a graça, como uma alternativa para obe-


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decer a Cristo. Não a graça para viver o Sermão da Montanha, mas a graça para não o viver. Esta interpretação é bastante rebuscada, para dizer o mínimo, mas surpreendentemente comum. Outros teólogos defenderam que o Sermão da Montanha deveria ser encarado como atitudes do coração, mas não como mandamentos para serem de facto observados. Assim, enquanto tivermos a atitude de amor no coração, não temos de facto de percorrer a segunda milha ou oferecer sequer o rosto. Suponho que isto significa que, quando somos tratados injustamente, podemos retaliar como todos os outros, mas devemos fazê-lo com uma «atitude justa» no coração. Claro que isto transforma o Cristianismo em nada mais que uma bonita religião de piedade privada — algo que tem sido praticado com regularidade ao longo dos séculos. Mas devemos ter presente que Jesus não foi crucificado por ensinar as pessoas a terem uma atitude alegre. Jesus foi crucificado por ensinar que havia uma outra forma de viver do que aderir à religião farisaica de Israel ou ao império brutal de Roma. Deveria ser óbvio, por uma leitura honesta dos evangelhos, que Jesus esperava que os seus discípulos aprendessem e aplicassem as lições que ensinou e que de facto levassem uma vida centrada no amor e no perdão. E Jesus espera que os seus seguidores hodiernos façam o mesmo — tornarem-se discípulos do amor que domina a arte do perdão. Jesus não estava de modo nenhum iludido que tal vida fosse fácil. No seu sermão, chamou-o um caminho apertado e difícil, mas também disse que é o caminho que conduz à vida.

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Perdão Radical

O protesto mais comum e vigoroso contra qualquer tentativa séria de viver o Sermão da Montanha é não ser «prático». Não é prático? Prático é uma palavra muito utilitária (e por vezes feia). Neste caso, representa cumplicidade com o status quo e aceitação do mundo tal como é como a única visão legítima para a humanidade. Antes de podermos sequer tentar viver o Sermão da Montanha, primeiro temos de experimentar a libertação da nossa imaginação. Se 32

apenas ouvirmos os homens «práticos», que dirigem o mundo como o conhecemos, acabamos por aceitar a interpretação anémica de que o Sermão da Montanha tem a ver com atitudes privadas do coração e não com a visão radical de Jesus sobre o amor e o perdão. Devemos ter presente que quem nos diz que o Sermão da Montanha não é prático são os que estão profundamente comprometidos (e talvez com interesses ocultos) em perpetuar o status quo. Estes homens práticos procuram controlar não apenas a forma como o mundo é dirigido mas mesmo as nossas imaginações. Dizem-nos: «É assim que o mundo real funciona»; e assim procuram confinar Jesus a um reino «celeste» enquanto eles se preocupam com a tarefa prática de dirigir o mundo «real». Mas o Espírito Santo é um libertador da imaginação e devemos rejeitar a pretensão arrogante dos principados e das potestades juntamente com o seu irritante pragmatismo. A igreja, com uma visão inspirada por Cristo e uma imaginação liberta pelo Espírito Santo, deve ser o domínio em que os seguidores de Jesus demonstram o erro dos homens práticos


A Questão do Perdão

vivendo de facto o Sermão da Montanha. Para viver o Sermão da Montanha, primeiro temos de nos rebelar contra os poderes existentes. Temos de crer que há uma outra forma de se ser humano. Temos de crer que Jesus ensinou e viveu segundo esse modelo. O século vinte foi um dos mais sangrentos e mais cheio de ódio de toda a história humana. Foi um século definido pela guerra, especialmente as duas guerras mundiais — a Guerra para Acabar com Todas as Guerras… e a que veio a seguir. Quando as crianças, que nasceram no culminar da Segunda Guerra, atingiram a maioridade, começaram a imaginar uma alternativa ao ódio e à guerra que haviam definido a geração dos seus pais e assim cantaram e falaram de «amor e paz». O problema foi que ninguém de facto conseguiu viver isso. Como observou Larry Norman: «Os Beatles disseram que só precisávamos de amor e depois desfizeram o grupo». 6 A geração do «amor e paz» dos anos sessenta não estava errada ao tentar imaginar algo melhor que um mundo cheio de ódio e guerra — estava errada ao não encontrar um messias melhor que os Beatles. Jesus não se limitou a falar de amor e paz; Ele viveu-os ao extremo. Quando Jesus orou para que os seus inimigos fossem perdoados quando lhe cravaram os pregos nas mãos, estava a viver o seu próprio sermão e a validar o seu direito de o pregar. Depois disso, ninguém podia ousar afirmar que o ensino de Jesus não era «prático». Jesus vivera-o, morreu por ele e fora vingado por Deus na ressurreição. A sua chamada é tão vibrante e excitante hoje como foi há dois mil anos, quando, pela primeira vez, se dirigiu aos pescadores galileus: «Sigam-me». Foi

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Perdão Radical

um convite para seguir Jesus na sua forma radical de amar os inimigos e da dificuldade do perdão. Se a única forma de responder ao mal da injustiça é a retaliação e a vingança, conspiramos com os poderes das trevas para que o mundo continue a ser um lugar feio. Foi por isso que Jesus (com a sua própria autoridade!) se atreveu a contradizer a Torá e a alterar a lei de «olho por olho e dente por dente» com o seu mandamento radical de não resistir a quem é mau e a oferecer a outra face. Um 34

mundo em que a regra é a retaliação do olho por olho continua a ser um lugar feio em que a demasiadas pessoas falta um olho ou um dente. Ora, como observou Mahatma Gandhi: «Um olho por olho deixa todo o mundo cego». A visão de Jesus é acabar com a fealdade da vingança e tornar o mundo belo através da graça.

GRAÇA — A ALTERNATIVA CRISTÃ À RETALIAÇÃO Graça é a alternativa distintivamente cristã ao esgotado sistema da retaliação que perpetua a dor e deixa cego todo o mundo. Graça é a ideia de Deus de tornar novo o mundo. Graça é a razão pela qual podia chamar os pobres e perseguidos… os choroso e os mansos… abençoados. Toda a vida e mensagem de Jesus foram a encarnação da graça que triunfa sobre o frio pragmatismo de um mundo em que o forte domina o fraco. A mensagem de amor e perdão de Jesus não está enraizada num optimismo ingénuo mas na graça que assume a


A Questão do Perdão

culpa, cobre a vergonha e remove a mancha e o ciclo infindável da vingança. Graça é o antídoto para o conceito oriental do karma. Karma é a antiga ideia de que tudo se paga nesta vida, a que não podemos escapar e que a retribuição tem sempre a palavra final. Mas a graça ultrapassa as regras do karma e apresenta uma palavra final diferente. Claro que a própria base do evangelho cristão é que, por causa do que Cristo realizou na cruz, há uma maneira de os pecadores serem salvos das consequências (karma) destrutivas dos seus pecados. Mas os cristãos não são apenas os receptores da graça perdoadora; somos também chamados a ser os que alargam aos outros a graça do perdão. Os cristãos devem ser portadores da graça a um mundo amaldiçoado pelo karma e pelos ciclos infindáveis da vingança. Graça é o grande tesouro do reino de Deus ou, como Jesus a descreveu na sua parábola, uma pérola de grande valor. Essa pérola é o evangelho do reino do céu. É a pérola do evangelho da graça que torna belas as coisas feias. É o que a graça faz. O karma não tem a palavra final e a fealdade da vingança não é a marca final deixada na humanidade. O que pode ser mais feio que o homicídio e a violação de uma família arménia impotente às mãos de soldados turcos? Porém, desse feio episódio emerge uma bela história de graça e perdão. Assim, em última análise, para um seguidor comprometido de Cristo, a questão do perdão não é uma questão de saber se o perdão é possível, mas uma questão de saber como podemos encontrar a

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Perdão Radical

graça para oferecer perdão. Podemos descobrir que oferecemos perdão a transgressores e ofensores da mesma maneira como Jesus agiu — no meio de grande sofrimento. Na nossa cultura, centrada nos sentimentos, é fácil identificar o perdão com experimentar certos sentimentos. O perdão não é um sentimento. O perdão é uma opção para terminar o ciclo da vingança e entregar a justiça nas mãos de Deus. Com demasiada frequência, perdoamos os nossos inimigos entrando nos sofrimentos de Cristo que perdoou na cruz. 36

Como diz Dietrich Bonhoeffer em The Cost of Discipleship [O Custo do Discipulado], «A chamada para seguir Cristo significa sempre uma chamada a partilhar a obra de perdoar aos homens os seus pecados. Perdão é o sofrimento semelhante a Cristo que é dever do cristão partilhar». 7 Dietrich Bonhoeffer não era nenhum idealista irrealista que nada sabia da realidade do mal. Ele escreveu estas palavras durante a ascensão do Nazismo na Alemanha e acabaria por morrer às mãos dos Nazis. A teologia do perdão de Bonhoeffer foi forjada no cadinho do sofrimento real e doloroso mas, para Bonhoeffer, o custo do discipulado resolveu a questão do perdão.


Incondicional?



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