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Título Recantos do Mundo (O pentecostalismo em Angola - subsídios para a história das Assembleias de Deus) Autor José Manuel Martins Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com a indicação da fonte. Dezembro de 2004 Pedro Martins, edição e comércio de livros Rua Quinta da Flamância, Nº3 - 3ºDtº Casal do Marco 2840 - 030 Aldeia de Paio Pires Telefone: 210 878 323 livros@pedromartins.com
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Capa Marialinda Martins Regresso ao entardecer, 2004 Óleo sobre tela, 24 x 30 cm Colecção particular
ISBN 972-99047-3-1
José Manuel Martins
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O pentecostalismo em Angola - subsídios para a história das Assembleias de Deus
"Ide e fazei discĂpulos de todos os povos" (Da BĂblia, S. Mateus 28:19)
Prefácio Joel Alexandre Seabra Melancia
Quando o Senhor JESUS chamou os Seus doze discípulos, e os enviou a pregar as Boas Novas do Reino, dando-lhes poder para operarem toda a sorte de prodígios e maravilhas (Mat. 10:1), concluiu com uma série de recomendações que, ao longo dos séculos, têm servido de guia e esteio para todos os cristãos que querem, de facto, seguir O Incomparável Mestre de Galileia e obedecer-Lhe. De entre essas recomendações uma há que bem pode ser emblematicamente aplicada às personagens que, ao longo das páginas que se seguem, nos fazem reviver o passado mais ou menos distante – quer no tempo quer no espaço em que a acção decorre. E nessa ‘revisitação’ do passado, o texto que agora nos é dado a conhecer bem pode ser fruído na sua dupla dimensão de texto histórico-narrativo, caso o leitor esteja a tomar conhecimento pela primeira vez das realidades que aqui se contam; ou então, como texto do género memorialista – se, como é o caso do signatário destas linhas, servir para recordar certas realidades do passado que, de uma forma ou de outra, fizeram com que os nossos caminhos se cruzassem com alguns dos protagonistas destas Memó-
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JOSÉ MANUEL MARTINS rias. Na verdade, “quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; (...) Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida por amor de mim achá-la-á.” (Mat. 10:37, 39). Em todo este texto, minuciosamente ‘revelado’ pelo seu autor e abundantemente suportado com a documentação em que se fundamenta (e desde já, declaradamente e sem rodeios, forçoso é lavrar uma nota perene de saudação com um Bem-Haja ao seu autor, pela paciência e minúcia com que nos conta tudo aquilo que deve ser contado – para que não fique esquecido...), nós nos deparamos, constantemente, com a atitude própria a que a Mensagem de Cristo nos conclama: estes vultos de homens e mulheres, nossos coevos, e que muitos dos leitores, por certo, reconhecerão quanto ao múnus exercido, como sendo credores de toda a nossa estima e consideração, deixaram-nos um legado moral e espiritual que deve ser digno de todo o nosso afecto e que perdurará para nosso exemplo e nosso modelo pelos anos afora. Na história do Pentecostalismo dos nossos tempos (entendido este não como uma ‘seita’ ou um ‘culto esotérico’ – preconceito pelo qual muitos ‘analistas’ se deixam vencer, – mas antes como uma (re)visitação Divina às nossas almas, com o Poder e o Fogo que caracterizaram os primitivos cristãos, e enquanto sinal indiscutível da confirmação da promessa anteriormente feita pelo próprio Senhor JESUS) cabe, sem dúvida, um lugar de destaque para a forma, o modo, os meios e os instrumentos utilizados no cumprimento da Grande Comissão – “ Ide...” – tal como ela ocorreu pelas paragens desta parte da, então, África Ocidental Portuguesa. Neste livro é-nos apresentado de modo singular e simultaneamente apaixonante o que foram as vicissitudes e as lutas, mas ao mesmo
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tempo a determinação e a convicção inabalável de que eram senhores todos aqueles que em Angola fizeram seu o lema que proclama “maior é O que está em nós do que o que está no mundo” – I João 4:4. Não é por acaso que é reconhecido, por todos os organismos de pesquisa e documentação, sejam ou não do chamado ‘campo evangélico’, que, nos nossos dias, as comunidades cristãs que, em valores absolutos, demonstram maior robustez e solidez espiritual no que à doutrina e à vivência cristã respeita, são as que se situam, precisamente, na área do pentecostalismo. Tal como em Portugal, também em Angola essa marca indelével foi levada para lá ficar e produzir o seu fruto – a trinta, a sessenta ou a cem – consoante as condições objectivas de frutificação que se proporcionavam. Na viagem pelo passado recente que estas páginas evocam, talvez seja com um sentimento de nostalgia por um certo passado, que não mais voltará, que o leitor mais saudosista se apropriará do conteúdo que as mesmas encerram. Os mais novos, porém, têm aqui um farto manancial de inspiração para, aprendendo com os exemplos do passado, ainda melhor e mais afincadamente se devotarem à Nobre Causa da Pregação do Evangelho de Cristo. Sim, que as Boas Novas são para ser proclamadas por todos aqueles que já viram e experimentaram que Cristo tem as Palavras da Vida Eterna (João 6:68). De facto, mais do que nunca, no sentido que a perenidade do Evangelho em si encerra, ontem como hoje, a nossa atitude deve ser a mesma do grande Apóstolo dos gentios ao exclamar: “...e ai de mim, se não anunciar o Evangelho!” – I Cor. 9:16 “Porque, os que isto dizem, claramente mostram que buscam uma pátria” – Heb. 11:14
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Dedicatória
Aos que estão sensíveis ao apelo dos que, em todos os recantos do mundo, querem ouvir as Boas Novas. Aos que, tendo sido missionários, ainda nos podem legar o testemunho escrito das suas experiências. Aos que precisam de relembrar que o tempo presente tem memória, a qual baliza o futuro em construção. Aos que prometem fidelidade, no discurso e na acção, ao fundamento mais relevante e que dá sentido a qualquer realização humana - o amor.
Apresentação
Para que se não alimentem elevadas expectativas, deixo expressa, aqui mesmo, logo no início, uma indispensável palavra de advertência aos leitores: esta não é uma obra acabada sobre o pentecostalismo em Angola pois de simples apontamentos tópicos ela se constitui e não mais do que isso. Ousadamente, apresento-a, em primeiro lugar, para manifestar a minha ligação pessoal, directa ou indirectamente, à divulgação do Evangelho em Angola, na matriz pentecostal, se me é permitida a qualificação - ligação que, proporcionalmente, se assemelha à gota e a toda a água que há nos oceanos… - e para, em segundo lugar, numa tentativa ponderada, nomear, com maior relevo, aqueles que, com escassez de recursos de toda a ordem, tiveram coragem para se envolver, e às famílias respectivas, na espinhosa e difícil tarefa de anunciar as Boas Novas noutras terras de culturas e línguas diferentes - apesar da reclamada portugalidade imperial, matriz política dos poderes de então - dando-se inteiros a essa Causa, e cujos exemplos, injusta e incompreensivelmente, se vão da memória colectiva esbatendo, tanto mais, quanto é certo, que
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JOSÉ MANUEL MARTINS hoje são substancialmente distintas as condições em que se forjam as vocações para o mesmo fim. Bem sabemos quão pobre é o nosso panorama editorial - refiro-me, obviamente, a obras escritas por portugueses, na língua pátria, com o objectivo principal de analisar e divulgar o trabalho missionário realizado sob a égide dos pentecostais. Vá-se lá saber porquê!? Não há quem escreva por falta de meios para garantir a edição e divulgação, ou não se edita e divulga porque não há quem escreva? Para o caso interessará pouco, diante da situação concreta de deixarmos perecer os obreiros das várias obras missionárias de relevo sem lhes exigirmos, num derradeiro sacrifício, que nos deixem as suas memórias em legado, enriquecendo a nossa história colectiva, que queremos preservar, se possível ditas - as memórias - na primeira pessoa, por cada protagonista em particular. É minha convicção que não estão a ser feitos todos os esforços, ao alcance dos indivíduos comprometidos com o Movimento Pentecostal e das comunidades eclesiais que o representam adentro da lusitanidade, para impedir a ocorrência de lacunas na memória colectiva, que deve ser autêntica, verdadeira, assumida nas suas facetas múltiplas. Porções importantes da história contemporânea perder-se-ão inexoravelmente se não formos capazes de incentivar o surgimento das fabulosas páginas de vida que, de momento, pairam apenas na alma e no espírito de corpos que o tempo entretanto deteriorou… para não suscitar a questão da responsabilidade por tudo o que perdemos sempre que assistimos ao decesso dos que sabíamos ter podido contribuir para o nosso enriquecimento colectivo.
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Da minha parte, como acima referi, pretendo deixar registo de alguns factos, ocorridos durante a minha adolescência e juventude, que reputo de interesse, sem prejuízo, obviamente, da investigação a que procedi, a qual, sem ser exaustiva, me permitiu preencher os naturais e, nalguns casos, profundos vazios nas lembranças das vivências de ocorrência mais remota. Como todos os leitores compreenderão, numa atitude de generosa e esperada benevolência, não me foi possível ir mais longe no aprofundamento de muitos aspectos relativos ao tema porque alguns dos protagonistas ainda estão entre nós - e estarão, querendo Deus, por muitos, felizes e produtivos anos - e quererão presentear-nos com as suas revelações e também porque as fontes de informação não se franquearam, como inicial e legitimamente perspectivei. Não bastam, só por si, essas razões de desculpa para as enormes, visíveis e imperdoáveis insuficiências da obra. Há outras, certamente - algumas das quais assentam em pressupostos exclusivamente pessoais e que agora não vêm ao caso - que impediram que me detivesse em busca de outros materiais, que sei existirem, onde poder encontrá-los e como trabalhá-los, os quais, sem quaisquer dúvidas, enriqueceriam a obra, mais em termos do interesse que ela pode suscitar do que propriamente no número de páginas que lhe teria de adicionar. Ninguém mais do que eu lamenta o facto de apenas agora me ter assomado à consciência, no contexto em que o assunto se coloca, de que não é legítimo apossarmo-nos, em exclusivo benefício, daquilo que aprendemos e vivemos com os outros… No meu encalço virão certamente outros que completarão este
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JOSÉ MANUEL MARTINS esforço com muito mais tempo pela frente, com mais saber e com motivação idêntica, pelo menos. Como, em circunstâncias semelhantes, muitas vezes se afirma, dei o pontapé de saída. Faço votos para que outros - uns com méritos reconhecidos pelo trabalho missionário realizado, outros detentores de saberes académicos específicos, que não me assistem, ou, ainda, por terem simplesmente vontade de partilhar connosco o passado laborioso dos missionários portugueses - me sigam… Na medida em que a envolvência sócio-cultural desta obra está muito marcada pelo tempo, aos leitores mais sensíveis acerca das relações materialmente coloniais pedimos que compreendam que os termos de eventuais citações ou paráfrases devem ser compreendidos à luz dos valores e linguagem da época, onde imperava, pelo menos, um certo paternalismo em relação aos autóctones ou indígenas das regiões das estações missionárias, o que, aliás, também é visível na principal fonte de informação de que me servi, também a mais fidedigna - exactamente o jornal ou revista do movimento pentecostal - e no discurso dos protagonistas da acção missionária. Ficaria de consciência sobrecarregada se não fizesse, nesta nota inicial, referência ao esforço dos evangélicos pentecostais americanos, que tomaram a iniciativa de levar o Evangelho ao Cuanza-Sul, a qual é tratada, em parte substancial, nesta obra. Não é lícito negar o pioneirismo de Edmond e Pearl Stark, tendo aquele dado a vida, ainda tão curta, no campo missionário, que vislumbrava tão promissor. É verdade que, nas condições concretas em que iniciaram o seu ministério, aqueles cidadãos norte americanos não puderem ali ir além da mera indagação da região onde pode-
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riam iniciar, com vantagens imediatas para os povos respectivos, um novo campo missionário, razão que os trouxe das suas terras de origem e motivou os apoios espirituais e materiais que receberam da sua comunidade evangélica. Estava, porém, reservada à viúva de Edmond a missão de atrair os portugueses àquele campo de trabalho escolhido e partilhar a alegria de semear e colher com abundância, mesmo tendo que ceder, devido à sua condição de cidadã estrangeira, o protagonismo aos missionários que vieram ajudá-la a concretizar uma visão evangelizadora antiga e convicta, que antes a levara, com apenas vinte e um anos de idade, a trabalhar num orfanato no interior da China, durante um ano, e, aos trinta anos, à Libéria, como missionária, donde regressou aos Estados Unidos da América, após três denodados anos de serviço, debilitada na saúde por ter sido acometida pela doença da malária. Lograria alcançar o fim de maior significado para mim se, com esta obra, proporcionasse aos leitores razões suficientes para se empolgarem com o trabalho missionário que está por fazer, tomando por fonte de inspiração o exemplo daqueles que deram as suas vidas pela causa da divulgação do Evangelho em longínquas e inóspitas paragens, mas também daqueles que, possuindo muito pouco de seu, contribuíram com os meios materiais para que os primeiros fizessem o que, pelo mínimo, adiante revelarei. Cidade de Amora, Setembro de 2004
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PARÁGRAFO PRIMEIRO
Prólogo
I "Recantos do Mundo" não passa de um simples, sumário e despretensioso memorando de factos sobre a acção missionária dos pentecostais em Angola, que implantaram igrejas e estabeleceram equipamentos de apoio social destinados às populações evangelizadas, em vários locais, no decurso de pouco mais de três décadas, com início nos anos cinquenta do século vinte - dissemo-lo e pedimos permissão para repeti-lo. Aqui ou acolá, atrevo-me a emitir juízos em relação às pessoas visadas mas sempre na perspectiva de que eles contribuem para a melhor compreensão das circunstâncias em que os factos que lhes respeitam ocorreram. Está fora de questão, pelo menos para mim, desvalorizar a acção dos protagonistas, referenciados a propósito de acontecimentos concretos, que se entregaram, sincera e piedosamente, à tarefa primordial daqueles que se arrogam qualificar-se cristãos, filhos de Deus, a qual é, consabidamente, tornar conhecido, universalmente, o Evangelho de Jesus Cristo.
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JOSÉ MANUEL MARTINS Este é um pressuposto que os leitores não poderão olvidar na leitura e interpretação desta obra: eu identifico-me, sem reservas, com a acção daqueles que, deixando para trás ou de lado, definitiva ou temporariamente, a prossecução dos seus interesses, todos relevantes, todos legítimos, material e espiritualmente falando, foram ao Mundo em cumprimento da ordem do seu Mestre, Jesus Cristo, com toda a vontade e determinação, pregando o Evangelho do Reino, fazendo discípulos, baptizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, com vista ao arrependimento e à remissão dos pecados de quantos, como o carcereiro de Filipos, na descrição de Lucas, perguntavam: "Que é necessário que eu faça para me salvar?". Estou certo que os missionários, e aqueles que lhes proporcionaram meios materiais e lhes deram apoio moral e espiritual, os incentivaram e envolveram em "mantos de orações", fizeram tudo quanto a sua capacidade física e mental, os seus conhecimentos teóricos e práticos, as suas competências e experiências, dito doutra forma, lhes permitiu em prol desse objectivo máximo de projectar em vidas concretas, individualizadas, as Boas Novas, o Evangelho que Jesus Cristo a cada um incumbiu de pregar. Essa motivação esteve sempre presente na acção missionária de cada discípulo de Jesus - naqueles que aceitaram a mensagem pentecostal, tal qual ela resulta das evidências dos primórdios do cristianismo, com ponto de partida no próprio dia de Pentecostes, celebrado em Jerusalém pelos discípulos reunidos no cenáculo - e agiram com fulgor e determinação inigualáveis, como verificaremos, em parte, na vida dos que deram substância e visibilidade ao pentecostalismo em Angola.
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Ser testemunha implica, primeiro, fazer uma opção pessoal pela salvação, que é oferta divina, através de Jesus Cristo. Implica também, em segundo lugar, deixar que o Espírito Santo se manifeste com poder de modo a garantir que essa opção é genuína e corresponde a um "modo de vida", que deve e pode ser generalizado. Implica, ainda, em terceiro lugar, estar disposto a pagar um alto preço, que consiste no dever de garantir que a mensagem é genuína, corresponde à verdade revelada, mesmo que tal exija o sacrifício da própria vida. É sob a influência e direcção do Espírito Santo que a acção missionária pentecostal se apresenta distintamente na metodologia de trabalho, na angariação e aplicação de recursos financeiros, no envolvimento eclesiástico dos que aderem, de novo, à fé. O Pentecostalismo é, em si e por definição, um movimento de retorno às origens, se assim se pode dizer. O que importa é levar a cabo a grande comissão estabelecida por Jesus e empenhar nisso todos os recursos disponíveis, em particular os humanos, ou seja, as pessoas vocacionadas e tocadas pelo Espírito Santo. O "plano" é aquele que norteou os primeiros discípulos, que "iam por toda a parte anunciando a palavra". E digo isto porque, nos primórdios do pentecostalismo em Portugal, exactamente por volta do ano de mil novecentos e treze e até aproximadamente ao ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, a grande obra missionária era estender o trabalho evangélico, sob essa matriz nova, inclusive para os portugueses, a todos os recantos do país, com referência ao território peninsular. Aliás, se bem repararmos, os primeiros missionários vieram do Brasil, uns de nacionalidade portuguesa, outros de nacionalidade sueca, e investiram todo o seu
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JOSÉ MANUEL MARTINS potencial evangelístico na implantação de igrejas "Assembleia de Deus" no território continental. Apesar do desenvolvimento que o trabalho logrou obter na Capital do Império, no início da década de cinquenta do século passado, não havia um qualquer plano concreto, estudado, que correspondesse a uma necessidade de estender a acção evangelizadora pentecostal às colónias portuguesas em África, em particular a Angola. Como também não havia esse propósito, inicialmente, em relação aos territórios nacionais insulares. Foram circunstâncias particulares que determinaram que o pentecostalismo chegasse aos Açores e a Angola, por exemplo, muito antes de alcançar os grandes centros populacionais do território metropolitano, onde, ainda na actualidade, existem dezenas de Municípios em que não há uma única expressão institucionalizada do pentecostalismo português, através duma comunidade "Assembleia de Deus". Parece muito claro, como procurarei demonstrar, que o trabalho missionário em Angola, na década de cinquenta, se ficou a dever, em grande medida, à vontade determinada de Joaquim Cartaxo Martins, a quem, de acordo com o testemunho que nos legou, Deus falou para deixar tudo e dirigir-se àquela colónia portuguesa e, pouco tempo após a sua chegada, mais particularmente ao Cuanza-Sul. Inexistia, portanto, qualquer plano para, de forma institucional e organizada, enviar missionários para Angola. No entanto, não ignoro que, antes, a Convenção dos pastores do Movimento Pentecostal escolhera oficialmente o dia de Pentecostes como "Dia da Missão". Tal deliberação foi tomada no início de mil novecentos e quarenta e oito, pretendendo-se que,
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nesse dia, se fizessem orações em todas as reuniões de culto e se levantassem ofertas, com as quais se constituiu o "Fundo Missionário" para atender "às necessidades da obra nos Açores". Foi apenas durante o quarto dia da XIII Convenção, levada a efeito de nove a quinze de Julho de mil novecentos e cinquenta e um, em Lisboa, que se tratou do assunto "Missão", declarando-se que "(…) temos os olhos postos em Angola (…) onde diversos irmãos trabalham na evangelização". Não se fizeram, todavia, quaisquer referências ao trabalho de Joaquim Cartaxo Martins, pelo menos na expressão publicada na revista do Movimento, além da simples menção de que lhe seriam enviadas saudações. (1)
II Independentemente disso, a acção de quem esteve no campo missionário é meritória a vários títulos e deve ser registada. É verdade que, durante dezenas de anos, ouviu-se falar dela e dos seus protagonistas mas trabalho - como em tudo, o trabalho é absolutamente necessário… - para fixação dos factos e respectiva interpretação no contexto em que ocorreram, fez-se muito pouco. Conhecem-se alguns relatos, interessantes, emocionados, nem sempre completamente objectivos e totalmente explícitos quanto ao tempo, ao lugar e às circunstâncias relativas aos factos e às pessoas neles envolvidas, elaborados pelos próprios intervenientes nos referidos eventos, mas não mais do que isso. Faltam-nos, por um lado - e faltar-nos-ão por muito tempo obras de referência nas quais se analisem as motivações, as circunstâncias e os interesses que envolveram os primeiros mis-
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JOSÉ MANUEL MARTINS sionários pentecostais em Angola, e como influenciaram as sociedades locais, fazendo frente a interesses religiosos e económicos instalados (nomeadamente aqueles que dependiam de relações de trabalho injustas, às vezes próximas de relações de servidão) declaradamente desfavoráveis à sua acção; por outro, não é conhecida a forma como foram partilhando o trabalho de evangelização com outras Missões evangélicas, há muito estabelecidas e com estruturas no terreno de referência nas áreas da saúde, da educação e da formação profissional. Os menos atentos, demasiado apegados a orientações denominacionais, tenderão a pensar que a obra evangélica em Angola se iniciou com a chegada dos Pentecostais, tal é a ênfase, nalguns círculos quase exclusiva, que dão à missionação no Cuanza-Sul, em duas épocas distintas. No território de Angola proliferavam, desde meados do século dezanove, dezenas de estações missionárias, com o patrocínio de denominações várias, entre as quais os metodistas americanos com forte implantação, em especial, na cidade capital, Luanda. Por que serão tão escassas as fontes de informação relativas à obra missionária pentecostal em Angola? Não será certamente por ela não ter sido relevante no meio social em que se desenvolveu… Aliás, embora não seja esse o âmbito deste trabalho, é visível, pelo número actual de membros das Assembleias de Deus de Angola, na ordem das centenas de milhar, que a mensagem caiu no coração do povo e frutificou. Podemos apresentar o elenco dalgumas razões, como mera tentativa de explicação do fenómeno. Os missionários portugueses pentecostais não exerciam a sua
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acção espiritual em simultâneo com uma profissão de reconhecido impacto nas sociedades locais, ao contrário dos missionários de denominação baptista, metodista, presbiteriana e outras - especialmente a adventista - que eram médicos, enfermeiros, educadores, e estavam enquadrados e apoiados por sociedades missionárias constituídas nos respectivos países, como os Estados Unidos da América, o Canadá e a Inglaterra. Enquanto estes elaboravam relatórios periódicos sobre o trabalho desenvolvido, que depois eram divulgados em revistas da especialidade editadas nos países de origem, abundantemente utilizadas pelos investigadores do fenómeno missionário, os portugueses limitavam-se a divulgar pequenas notícias, normalmente com referências sobre a adesão de novos simpatizantes, abertura de locais de culto, número de participantes em determinados eventos, realização de actos baptismais dos convertidos, mas sem o rigor formal dum relatório de "prestação de contas", exaustivo e relativo a um determinado período. Provavelmente, saber-se-á mais nos Estados Unidos da América sobre a obra missionária dos portugueses, realizada em Angola, na década de cinquenta, do que em Portugal… Os missionários portugueses pentecostais, no início da década de cinquenta, não contavam com apoios de qualquer estrutura estabelecida no local e começaram tudo de novo, inclusive a edificação de instalações próprias para centralizar a acção missionária. Como é sabido, os recursos humanos - homens e mulheres preparados e disponíveis para o trabalho missionário - eram muito escassos para divulgar o ideário pentecostal em Portugal, onde faltava quase tudo, excepto a vontade indómita dum punhado de homens para comunicar o Evangelho aos seus conterrâneos, duma
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JOSÉ MANUEL MARTINS perspectiva e dinâmica novas, especialmente centradas na evidência da acção do Espírito Santo, com manifestação glossolálica. Sem apoio local e recebendo do exterior de Angola simbólicos apoios financeiros, os missionários portugueses contavam essencialmente com a sua determinação, com os recursos próprios que conseguiam reunir, inclusive com o seu trabalho manual, e a vontade de comunicar. As simples notícias, que faziam publicar na Revista Novas de Alegria, mensário Pentecostal editado em Portugal desde mil novecentos e quarenta e dois, sobre o trabalho missionário, correspondiam a um esforço extraordinário no sentido de tornar conhecida a obra em construção. Aliás, era essa mesma Revista que depois chegava a Angola, circulava entre os simpatizantes e constituía um meio de apresentação e identificação dos próprios missionários. Em geral, desde que os primeiros missionários chegaram a Angola (2) e até à eclosão das manifestações de emancipação política ocorridas em mil novecentos e sessenta e um, os protestantes mereciam grande consideração das autoridades político-administrativas, com excepção dos pentecostais. (3) Não terá sido indiferente a essas autoridades de Angola esta opinião sobre a missão pentecostal, formada nos meios mais evoluídos da sociedade e empolada pelas autoridades religiosas adversas ao progresso e aglutinada às massas populares. Estar conotada com uma "seita" (4) reduzia o campo de acção da Missão Pentecostal e dificultava o seu acesso aos serviços da administração pública e, por consequência, à menção da sua existência em registos escritos que hoje constituiriam importantes fontes de informação.
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Essa escassez de comunicação escrita sobre o trabalho missionário e o facto deste não ter durado, sob a direcção dos missionários portugueses, mais do que oito anos - período tão curto que, não fora a genuína conversão de centenas de autóctones, nem a lembrança restaria do mesmo - justificarão a quase total ausência de alusão substantiva ao pentecostalismo na literatura especializada, bastando referir, a título de exemplo, que em 1969 foi publicada uma obra de investigação, subsidiada com fundos públicos, onde o autor apenas referiu que "no Cuanza-Norte e Cuanza-Sul, entre mil novecentos e cinquenta e mil novecentos e cinquenta e oito sobretudo, trabalharam lá evangélicos da Missão Pentecostal, com sede em Quirimbo: a Sr.ª Stark, missionária americana, e os irmãos 'Cartaxo Martins', portugueses, os quais, no distrito do Cuanza-Sul missionaram nos concelhos de Porto Amboim, Gabela e Cela", (5) informação que contém algumas contradições ou, pelo menos, divergências, como, mais à frente, terei oportunidade de demonstrar.
III É fidedigna a informação que se pode obter nas páginas da revista Novas de Alegria, nas quais os próprios missionários escreveram parte das suas"memórias", em períodos diferentes das suas vidas, bem distanciados no tempo. Infelizmente, durante a sua existência física, não terá sido possível ao missionário pioneiro Joaquim Cartaxo Martins dar a conhecer, com maior detalhe, as suas experiências singulares, apesar de ter afirmado, em Agosto de mil novecentos e noventa e dois, que delas guardava memória para
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JOSÉ MANUEL MARTINS um livro que iria escrever sobre a história da missão pentecostal em Angola da qual, como repetidamente declarava, tinha sido fundador juntamente com Pearl Stark. Estou ciente que essa "memória" preencheria as propositadas lacunas da obra "Protestantismo em África" sobre esse singular trabalho missionário, que nela aparece, de facto, referenciado, mas quase pejorativamente. Dos demais missionários pentecostais portugueses em Angola também não se conhecem contributos significativos, além dos relatos que todos deixaram plasmados naquela Revista - a grande maioria dos quais extraídos da correspondência que mantiveram com o departamento da Missão, em Lisboa - que contêm o que é mais significativo para a compreensão da Missão Pentecostal, incluindo o período em que, formalmente, ela não existia. E essa informação pode e deve ser confrontada e completada com a que está disponível nas obras entretanto publicadas sobre a acção missionária em Angola - trabalho que, nem de perto nem de longe, se pode considerar concluído - e ainda com a informação que, sendo escassa, se pode recolher na imprensa da época e nos documentos oficiais disponíveis.
IV Constitui antecedente desta obra a série de catorze apontamentos que publiquei, mensalmente, entre Outubro de dois mil e dois e Novembro de dois mil e três, inclusive, no Boletim Maranata da Igreja Evangélica - Assembleia de Deus Pentecostal de Almada, sob o título "Nótulas (subsídios para a história do Movimento das
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Assembleias de Deus em Portugal - Da Igreja de Jesus à Assembleia de Deus de Luanda). Esses apontamentos tinham o propósito de dar a conhecer o papel desempenhado pela Igreja de Jesus (Evangélica) no processo de reconhecimento da Assembleia de Deus de Luanda e na afirmação do pentecostalismo em terras angolanas, até à data em que ocorreu a independência do território. Os leitores fiéis desses apontamentos não sairão defraudados porquanto, na sequência de mais desenvolvidas e aprofundadas indagações, pude ampliá-los, em partes essenciais, corrigir alguns lapsos e, até, alterar, em partes significantes, algumas opiniões que se revelaram menos consistentes ou que, à luz da informação entretanto disponível, não podiam continuar a ser sustentadas. Para publicar "Recantos do Mundo", primeiro tive que ser convencido de que não é viável, sem o suporte de obras como esta, levar por diante essa enorme tarefa que é escrever a história do Movimento das Assembleias de Deus em Portugal, na parte em que pode sê-lo, como é desejo de muitos, já manifestado, aliás, por quem, legitimamente, fala em representação dele. Fazem falta, julgo eu, trabalhos de pesquisa, ensaios, memórias, para sustentar aquele de maior fôlego, que um dia certamente será escrito. Não é curial escrever a história dum período relativamente ao qual ainda estão vivos muitos dos protagonistas! Além disso, - não podemos olvidar esse facto! - o Movimento Pentecostal português acaba de fazer apenas noventa anos. Apesar dessas realidades condicionantes, e admitindo contingentemente que muitos outros autores nos premiarão, entretanto, com o manancial rico das suas memórias, as quais, porventura, trarão novas pistas para melhor compreender e interpretar os fac-
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JOSÉ MANUEL MARTINS tos históricos, como referi, considero oportuno lançar este desafio àqueles que viveram intensamente a realidade pentecostal na sua expressão missionária em Angola, convivendo de perto com os missionários das décadas de cinquenta e setenta: divulguem os vossos arquivos, dos quais depende, em grande medida, o conhecimento mais exacto desta parte significativa da história do pentecostalismo português! A comunidade assembleiana portuguesa certamente se congratulará quando puder aceder aos contributos dos protagonistas e das testemunhas de histórias e eventos marcantes nas respectivas épocas e lugares. Com efeito, directa ou indirectamente, tenho constatado, no seio da membrasia assembleiana em geral, que existe um grande interesse em conhecer a origem das comunidades evangélicas do movimento pentecostal e os factos mais marcantes da sua existência. Agora é o tempo oportuno porque a geração que os viveu, durante os últimos cinquenta anos, se extinguirá, naturalmente… Esse interesse é comum à generalidade dos membros das igrejas Assembleianas e dos seus dirigentes, o qual, por exemplo, a Assembleia de Deus de Lisboa materializou numa iniciativa editorial de relevo, em mil novecentos e noventa e nove. (6) Não se fará essa história sem coligir os factos ou acontecimentos do passado relativos ao surgimento, implantação e crescimento das diferentes comunidades evangélicas disseminadas por Portugal inteiro e onde se congregaram portugueses pentecostais para celebrar o culto evangélico na língua nacional. Existe meritório trabalho feito nesse sentido, o qual pode constituir o acervo inicial para a realização dessa obra. Mas há factos de
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interesse histórico que apenas são conhecidos dos agentes que os protagonizaram, que neles estiveram envolvidos ou que indirectamente deles se apropriaram e que não constam de documentos escritos, acessíveis aos investigadores ou interessados na sua sistematização. Tem sentido, por isso, o desafio para que os partilhem com a comunidade. Penso que cada comunidade evangélica, à semelhança da Assembleia de Deus de Lisboa e também, de certa maneira, da Assembleia de Deus do Porto, (7) pode dar o seu contributo para essa iniciativa, fixando a sua própria história, estabelecendo, desde já, objectivos, calendarizando tarefas, designando os redactores e o plano da edição de modo a poder celebrar-se o centésimo aniversário do Movimento com o lançamento da História que o projecte na consciência cultural, pelo menos, da comunidade portuguesa evangélica.
V Tenho observado que perdura uma forte ligação emocional e sentimental, por parte dos evangélicos pentecostais portugueses e das suas comunidades eclesiais, às várias igrejas Assembleianas estabelecidas nas nações independentes, que eram colónias portuguesas. De facto, muitos desses portugueses, por razões diversas, estiveram em contacto com elas (uns, porque nas ex-colónias prestaram serviço militar; outros, porque aí desenvolveram actividades profissionais e, outros ainda, porque lá nasceram e viveram), tendo um número significativo deles contribuído para a sua implantação e progresso antes ou depois da declaração da inde-
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JOSÉ MANUEL MARTINS pendência. Ainda hoje existem múltiplos contactos entre membros das Assembleias de Deus em Portugal e membros das várias Assembleias de Deus implantadas em países africanos de língua oficial portuguesa, atenta a ligação permanente de laços de identificação ideológica e comunhão fraterna, que, apesar de tudo, foram preservados. Decorreu mais de um quarto de século desde a independência dos ditos ex-territórios ultramarinos portugueses. Recantos do Mundo, plasmando vivências reconhecíveis, num acto cultural modesto, é certo, pode ser um elo mais nessa ligação histórica, uma singela maneira de "voltarmos" a Angola, aos campos missionários onde frutificam as sementes espalhadas por homens e mulheres agigantados pelo amor divino, e um meio porque não? - de dar o meu contributo para evidenciar o papel fulcral da Assembleia de Deus de Luanda, enquanto trabalho pentecostal de ligação intrínseca às Assembleias de Deus em Portugal, no prelúdio da dinâmica missionária reconhecida pelo poder colonial, que durou até ao limiar da independência. Sabemos todos que muitos cidadãos de origem europeia, mas também africana, retiraram-se de Luanda e doutras cidades do então Estado de Angola, onde se haviam estabelecido igrejas Assembleia de Deus (Gabela, Novo Redondo, Lobito, Nova Lisboa, por exemplo) e passaram a residir em Portugal, a grande maioria definitivamente, congregando-se em igrejas da mesma matriz denominacional por todo o país (não importa agora dar relevo ao facto de muitos hoje se reunirem sob outra sigla e doutrina, em resultado do fraccionamento ocorrido, em especial na década de noventa do século passado, no seio do movimento assembleiano).
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Desses, muitas centenas têm conhecimento de factos relevantes para a história particular dessas comunidades angolanas pelo que seria interessante coligi-los, para serem, eventualmente, integrados em obras desta ou doutra natureza. Infelizmente, como anotei, muitos que poderiam ajudar na concretização dessa tarefa "retiraram-se de cena", paulatinamente. Precederam-nos em ocupar lugar na casa do Pai… Fomos negligentes ao deixar que isso sucedesse sem lhes pedir, primeiro, o registo testemunhal da fundação e crescimento desses núcleos evangélicos que pontilhavam as florescentes cidades onde fervilhavam populações, em crescente mescla rácica e social, potencialmente agregáveis... Perderam-se definitivamente guiões de mil imagens que nos preservariam substanciais recortes do passado recente! Estou seguro que muitos leitores se lembrarão de factos importantes que não vão querer manter no arquivo das memórias particulares. Daí que, antes de se "retirarem", partilharão connosco as provas respectivas - correspondência trocada, artigos de jornais, fotografias, por exemplo. Se esta iniciativa - que em termos financeiros comporta, para o editor, enormes riscos, penso eu - tiver êxito e muitos colaborarem, estou certo que acabaremos por dispor de elementos interessantes sobre as nossas referências denominacionais (saberemos quem foram os obreiros que Deus usou, como e o que ensinavam, os obstáculos que venceram, os resultados concretos da acção do Espírito de Deus, através dos que se entregaram a Cristo, e muitas outras realizações importantes para melhor identificação do Movimento Evangélico Pentecostal).
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JOSÉ MANUEL MARTINS Muitos ainda não terão avaliado, desse ponto de vista, e a título de mero exemplo, o contributo que dei com o livro publicado em Abril de dois mil e dois, o qual servirá, necessariamente, como instrumento de trabalho para essa tarefa gigantesca que é escrever a história do Movimento das Assembleias de Deus em Portugal. (8) No mesmo sentido, é relevante ter presente o contributo dado por outro autor evangélico conhecido (9) e por todos quantos investigaram e divulgaram porções da vivência eclesial dos Pentecostais portugueses. Referi isso anteriormente - é também à minha própria experiência pessoal que vou recolher elementos factuais para, paulatinamente, introduzir o assunto principal: o movimento pentecostal e a dinâmica missionária desenvolvida em Angola. Muitos factos terão, por isso, esse cunho pessoal; no entanto, por si só, essa evidência não deverá fazer desmerecer o esforço de objectividade com que procurarei expô-los em prol dessa necessidade de "abrir" fontes, donde jorrem correntes de conhecimento que alimentem, também, os investigadores que, no tempo próprio, farão a História. Conheço os riscos de "falar em causa própria", mas, se não me expuser, arrisco-me a integrar a galeria dos que não deixaram obra feita, embora modesta, por entenderem ser ainda cedo ou por quererem deixá-la perfeita…
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NOTAS (1) cf. Revista Novas de Alegria, nº 36, Março de 1948, pág. 34 e nº 104, Agosto de 1951, pág. 88. (2) Sem contar com a presença dos Holandeses em Angola, em meados do século dezassete, que se limitou ao litoral e não deixou quaisquer vestígios do protestantismo professado pelos marinheiros ocupantes, só no final do século dezanove surgiram missionários em Angola. Terá sido em 1878 que alguns pastores protestantes chegaram a Noqui, na fronteira norte do território, e estabeleceram-se, mais para o interior, perto duma estação missionária católica abandonada, em São Salvador do Congo. Esses primeiros pastores eram Baptistas, apoiados pela Baptista Missionary Society, o que lhes permitiu abrir uma escola "que logo se transformou num pólo de atracção para a juventude local" (in Protestantismo em África, 2º Volume, Breves referências históricas à penetração do protestantismo em Angola, pág.27, de José Júlio Gonçalves, 1960). (3) Na obra citada na nota anterior (1º Volume, Movimentos Pentecostais, págs. 57 e 58) o Autor diz o seguinte, referindo-se ao pentecostalismo: "Estes movimentos dissidentes protestantes são muito recentes. Surgiram em pleno século XX, não se afastando muito as suas doutrinas, fundamentalmente, das Igrejas, denominações e seitas protestantes antiliberais. Os membros destas seitas realizam reuniões de evangelização e o baptismo por imersão,
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JOSÉ MANUEL MARTINS fazendo largo uso dos cantos religiosos e aceitando Jesus como Salvador. Os Pentecostais são ao todo cerca de 8 a 10 milhões e encontram-se espalhados por vários países. As comunidades mais importantes situam-se, porém, nos Estados Unidos da América do Norte. Assinala-se a sua presença na África ao sul do Sáara, onde possuem missões, devendo dizer-se que alguns adeptos destas seitas entram em transe, numa agitação quase histérica, o que torna de certo modo prejudicial a sua acção entre os Negro-Africanos (e até os Negro-Americanos), que mercê de tal método vivem por vezes nessas missões um clima malsão que já tem conduzido a resultados pouco desejáveis". (4) O termo "seita" seria utilizado com sentido negativo, até pejorativo, para desvalorizar o trabalho missionário pentecostal e pôr-lhe termo como Missão organizada. Para as autoridades político-administrativas, o trabalho missionário da Vista Alegre estava ligado à seita protestante portuguesa que era, nem mais nem menos, "um grupo de indivíduos que voluntariamente abandonaram as igrejas ou denominações protestantes de que eram membros, por motivos psicológicos, políticos, sociais ou doutrinários, para formarem uma nova comunidade religiosa, com fisionomia própria, mas em que são mantidos alguns traços constitutivos daqueles, podendo, além dos que nela nasceram, novos fieis dar a sua adesão e tal comunidade religiosa, que é susceptível de evoluir e transformar-se em denominação ou igreja" (in ob. cit. 1º Vol. pág. 27 e 28).
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Embora este conceito pareça traduzir, em geral, a realidade cismática que dá origem ao fenómeno da multiplicação de grupos religiosos, de cariz protestante, não significa, realmente, digo eu, a verdade do nascimento do pentecostalismo em Portugal pois este não teve início numa divisão ou cisão duma igreja ou denominação, mas surgiu da adesão, essencialmente nos meios populares, à mensagem de homens e mulheres que foram alcançados pelo Evangelho, com acentuação da acção do Espírito Santo. As Assembleias de Deus em Portugal nunca foram "missões" ou filiais de congéneres estrangeiras. Apenas contaram com a assistência de Missionários na sua estruturação doutrinária e ritual. E a pouca relevância que teve para as autoridades político-administrativas em Angola o trabalho missionário pentecostal revela-se na forma como ele é tratado na obra de referência, acima citada, escrita em 1960, com o apoio da Junta de Investigações do Ultramar: "E, para concluirmos este rápido bosquejo sobre a acção protestante em Angola, só resta dizer que as autoridades portuguesas mandaram encerrar (que se saiba) apenas três missões protestantes: uma foi-o por não ter sido instalada nas condições exigidas por lei: a chamada Missão Evangélica da Vista Alegre (concelho de Porto Amboim) " que "pertencia à seita protestante denominada Church of God". (cf. pág. 105, 2º Vol.). (5) Religiões em Angola, por Eduardo dos Santos, pág. 209, Lisboa - 1969, Junta de Investigação do Ultramar. (6) cf. "Línguas de Fogo - História da Assembleia de Deus de Lisboa", edição da CAPU, obra de grande mérito, que constitui a
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JOSÉ MANUEL MARTINS matriz do que poderá ser a história do Movimento Pentecostal. A Convenção das Assembleias de Deus em Portugal, associação de obreiros e igrejas, deliberou, recentemente, que se justifica editar a "História das Assembleias de Deus em Portugal". Mas essa tarefa, que é morosa, não pode concretizar-se numa atitude voluntarista e sem cuidar das dificuldades a ela inerentes, que o nível atingido naquela publicação ampliou. Por isso, a sugestão feita na respectiva Assembleia-Geral, realizada em Maio de 2003, de se concretizar essa iniciativa editorial, até à data da celebração do nonagésimo aniversário das Assembleias de Deus em Portugal, revelou-se irrealista. A este propósito pode ler-se Revista Novas de Alegria n.º 716, Ano 59, Set. 2002, pág.38. (7) cf. Pequeno Historial da Assembleia de Deus do Porto, de Agostinho Soares dos Santos, edição da Igreja Evangélica Assembleia de Deus do Porto, 1991. (8) cf. Capítulos V e VI do livro "Assembleia de Deus OU Igreja do Jubileu", edição do Autor, 2002. (9) cf. "Pentecostes Un Desafio Al Mundo", Paulo Branco, edição do autor, 1984 e, do mesmo autor, Panorama Pentecostal das Assembleias de Deus em Portugal.
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