Rumo ao Palácio

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Rumo ao Palácio Sarah Catarino Direitos Reservados © Letras d’Ouro, editores, 2012 Editores Letras d’Ouro, editores Preparação do Original e Revisão José Manuel Martins Direcção de Arte e Design Pedro Martins Impressão e Acabamento www.artipol.net 1ª Edição, Março de 2012 ISBN 978-989-8215-33-8 Depósito Legal 340404/12

Letras d’Ouro, editores Sede Rua Quinta da Flamância, n.º 3, 3º Dt.º Casal do Marco 2840-030 Paio Pires, Portugal Tlm 914 847 055 Email livros@letrasdouro.com Web www.letrasdouro.com Blog letrasdouro.blogspot.com FB facebook.com/letrasdouro

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com a indicação da fonte.


Prefácio Bertina Cóias Tomé

Ao ler este livro, tive o privilégio de uma viagem única para mim. Senti-me transportada aos palácios dos tempos bíblicos. Subi as escadarias de mármore e deslumbrei-me com tronos, cortinas pesadas, tiaras de esmeraldas e dançarinas. Apreciei o odor fumegante das tisanas, os banhos preparados em tinas de prata, os unguentos. Impressionei-me com o toque solene de trombetas e o rufar imponente de tambores. Deliciei-me com o aroma quente do pão acabado de sair do forno e da carne assada. Depois corri ao campo. Escutei o balido suave das ovelhas e o dedilhar das harpas e das cítaras. Deixei-me embalar pelo chilreio das aves. Aos lábios chegou-me o sabor das uvas e das tâmaras. Percorri pomares e jardins. Senti a fragrância dos lilases, dos óleos e das essências perfumadas. Encontrei mulheres, muitas mulheres. E, embora cronológica, geográfica e culturalmente distantes, percebi-as tão próximas… Afinal, os sinuosos caminhos do seu íntimo, onde as alegrias, os momentos ternos e os sonhos contrastavam, por vezes, com a decepção, a tristeza, as explosões de quem chegou ao limite, assumiam tonalidades semelhantes às que reconheço em mulheres de hoje. Ouvi gargalhadas, vozes que sussurravam, gritos. Descobri beijos em lábios que se uniam sôfrega e apaixonadamente. Observei

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olhares tímidos inexperientes ou chorosos, na surpresa ou no embaraço de uma situação nova. Encontrei corpos femininos que se moviam em sedução. Homens de braços musculosos e cabeleiras fartas. Crianças que riam. Cavalos a galope, numa nuvem de poeira. Tudo isto, tendo como cenários de fundo as batalhas, as refeições, tempos de lazer e o repouso. Fugas, vinganças, recompensas. Sedução, paixão, revolta. A leitura deste livro transportou-me ainda a um tempo mais próximo. O meu marido e eu fazíamos uma viagem breve, como breves são todos os percursos no pequeno território de Macau. Na 6

nossa carrinha, passávamos a ponte que ligava a península de Macau à Ilha da Taipa. E conversávamos, animadamente. Dentro de nós, um entusiasmo saltitante, deixava-nos inquietos, quase eufóricos. Dirigíamo-nos ao aeroporto, onde a nossa amiga de muitos anos estava prestes a chegar. Sim, Sarah Catarino vinha a Macau, determinada em iniciar ali o ministério AGLOW, que já então liderava em Portugal. Um ministério apostado em alcançar mulheres com o amor de Cristo. A presença de Sarah foi marcante! Com ela percorremos ruas estreitinhas, entrámos em lojas de artesanato, fomos à China, que ficava mesmo ali ao lado. Tivemos eventos para casais, para senhoras, para toda a igreja. A mensagem que nos ofereceu, no domingo de manhã, centrou-se na história de uma mulher que quebrou um vaso de alabastro e derramou o unguento de nardo puro aos pés de Jesus. E, mesmo ali, ela quebrou, diante de todos nós, um pequeno vaso chinês que comprara uns dias antes. Observar os cacos pelo chão trouxe-nos, de forma vívida, o que significa a entrega a Deus! Sim, esse era o seu lema de vida.


Poder abraçá-la e tê-la connosco naqueles dias foi um refrigério, uma inspiração difícil de descrever. Ela trazia consigo o aroma doce do Amor do Pai, um dinamismo vibrante, uma determinação contagiante de ser bênção onde estivesse, junto de quem estivesse. Quando nos despedimos, de novo no aeroporto, entendemos que ficáramos muito mais ricos. Sim, ela fora bênção de Deus sobre as nossas vidas. É esta a mulher que escreve o livro que agora temos ocasião de ler. Por esse motivo, em cada página se reconhece uma sensibilidade incomum face aos dilemas que mulheres enfrentaram naquele tempo e que não estão tão distantes, assim, de nós. Mesmo sendo rainhas. Todas nos deparamos com circunstâncias de vida que parecem maiores do que nós, que não sabemos como alterar. Umas vezes socorremo-nos de uma força e de uma coragem imensas, que nem sabíamos que possuíamos. Noutras alturas, sentimo-nos vencidas, quase resignadas. Às vezes percebemos Deus tão perto, como um Pai que nos pega ao colo, nos limpa as lágrimas e afaga os cabelos. Ocasionalmente, o chão que pisamos parece arenoso, desértico, sem caminho definido nem oásis à vista. Deus continua a ser Deus, imutável, feito de Amor, Omnipotente, independentemente daquilo que ocupe o nosso dia de hoje ou do que o nosso olhar consiga divisar numa longínqua linha do horizonte. A leitura deste livro oferece-nos o sentido desta Presença, na forma hábil como Sarah foi capaz de nos transmitir. Deslumbra-me, particularmente, a última rainha. É uma noiva perfeita e apaixonada! Obrigada, Sarah!

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Introdução

Histórias de rainhas e palácios são parte do imaginário das crianças, especialmente das meninas. Crescemos lendo livros sobre príncipes e princesas, sem entendermos que eles são iguais a toda a gente. Descobri isso bem cedo, nas grandes páginas da Bíblia. Ao ler a história dos reis de Israel e Judá, percebi também que, apesar das mulheres daqueles dias não viverem ao abrigo de direitos e privilégios, como hoje, ainda assim as rainhas e princesas daqueles dias exerceram sobre a sua família e o seu povo uma enorme influência. Muitas delas tiveram vidas difíceis e finais nem sempre felizes. Enquanto as descobria no livro sagrado, imaginei-as, vesti-as e dei-lhes voz. Bem sei que muito do que escrevi será pura ficção, mas não deixa de ser verdade histórica o que aconteceu a cada uma dessas mulheres. O meu desejo é que cada uma destas personagens traga momentos de reflexão, mudança, talvez até arrependimento. Porque a vida é tão preciosa e passa tão depressa, as nossas acções e influência têm que ser cuidadas e corrigidas. Se porventura alguma daquelas acontecer, ficarei muito feliz. Não escrevi apenas para mim, mas para um mundo de mulheres que precisam saber que o seu destino final é grandioso!

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No final deste pequeno livro, há um apêndice, com as referências bíblicas de cada episódio, que poderá ser utilizado para estudo e reflexão pessoal ou partilha com outras mulheres e, juntas, aprenderem um pouco mais sobre o «que foi escrito para o nosso bem».

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Ainoã Deleite de irmão

Sentou-se no seu coxim preferido, estendeu as pernas esbeltas e suspirou… Lá fora, ouviam-se os pássaros a recolher ao seu descanso nos ramos das árvores. Naquele momento, só havia sossego, languidez e uma sensação única de bem-estar. Recostou-se numa almofada e fechou os olhos. Há quanto tempo não gozava de uns momentos tranquilos, de silêncio e recolhimento… Parecia que tinha sido ontem quando os pais a levaram a conhecer o seu futuro marido e a sua família. Era ainda uma menina mas, curiosa, tinha levantado a cabeça assim que entraram na casa. Ali estava ele, Saúl, o homem mais belo em todo o Israel. Já o vira antes, pois não era possível passar despercebido. Havia nele algo terno e ao mesmo tempo feroz. Seriam os seus olhos, a maneira como sorria ou o jeito com que cruzava os braços como se não soubesse o que fazer com as mãos? De vez em quando, durante a conversa, deu uns passos pela casa, impaciente, como se o que decidissem fosse perfeito para ele. Ela espreitou mais uma vez por detrás do véu e estremeceu… como era alto e esbelto! Ainoã ouviu os pais estipularem o contracto com a outra família. Ficou tudo tratado, sem falhar nenhum detalhe. Dentro de pouco tempo seria a esposa daquele homem garboso e atraente. As bodas aconteceram como era a tradição e Ainoã tomou o

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seu lugar na casa de Saúl, como esposa, companheira e mãe dos seus filhos. Cada um deles tinha sido um dom de Jeová. Quando o primogénito nasceu, como se sentira orgulhosa de ter dado ao seu marido um menino, como ele tanto desejara. Por isso lhe deu o nome de Amnon, o que significava que um dia ele seria o sucessor de seu pai, o chefe da sua família. Os outros quatro vieram naturalmente e o seu papel como mãe tornou-se a missão da sua vida. Ensiná-los a ser homens e mulheres tementes a Deus, era o que mais a fascinava. O próprio Saúl tinha tido grandes experiências com Deus e 12

uma delas tinha mudado o curso calmo das suas vidas. Um dia o profeta de Deus tinha-se chegado a ele, com um recado vindo do Senhor, dizendo-lhe que iria ser o rei pelo qual a nação ansiava. Saúl não queria acreditar, achava-se despreparado, inadequado para tal responsabilidade, e Ainoã fez tudo o que estava ao seu alcance para dar-lhe no lar o conforto e a segurança necessários, para que o seu equilíbrio mental e emocional o levasse a decidir obedecer a Deus. Ainoã ergueu-se sobre um cotovelo e abriu os olhos. Tudo fora tão rápido. Não podia esquecer o dia da coroação, quando todo o povo de Israel se juntou para proclamar rei o seu marido, Saúl, o jovem inexperiente e inseguro com quem casara. A roupa especial que usara, o banquete prolongado por muitos dias, a música, as danças e os folguedos de um povo feliz por ter alcançado o seu objectivo ainda estavam bem presentes na sua memória. A partir do dia em que mudou para o palácio, a vida ficou diferente. Tinha agora servos e servas para o trabalho que até aí era sua responsabilidade fazer e supervisionar. Tinha pessoas a


dizer-lhe o que fazer nesta e noutra ocasião especial, tarefas a cumprir, para as quais nunca se preparara, mas Ainoã aceitou o desafio. Quantas vezes não errou nos passos, nas entradas e saídas da sala do trono… tantas vezes sorriu quando não lhe era permitido e falou quando o seu papel era estar calada e tudo porque nunca tinha aprendido a ser rainha. Era a primeira, não havia outra para instrui-la no que fazer! Levantou-se. Os passos incertos que deu pela sala eram como se estivesse encurralada, apertada e sem saída. Passou a mão pelo cabelo e os olhos pararam na distância das colinas. O coração doía-lhe dentro do peito. Como Saúl estava diferente! Aliás, desde a sua subida ao trono, as responsabilidades de monarca e de guerreiro tinham tomado conta do seu tempo e do seu coração. A ferocidade que havia no seu rosto acentuara-se e, agora, ela já descobrira que era nos seus olhos que dor, desespero, incerteza e orgulho se misturavam, numa dança infernal. Ainoã queria continuar a ser o suporte da sua família, a educadora dos seus filhos, a esposa que Saúl precisava. Lembrou-se que um dia o pai lhe dissera que o seu nome significava «deleite de irmão». Passara toda a sua vida tentando ser um deleite para a sua família, aceitando o desafio enorme de ser a primeira rainha de Israel, mas, apesar de saber que tinha feito tudo ao seu alcance, a dor de ver Saúl cada vez mais distante, mais irado e mais violento era como um espinho na sua alma. O futuro parecia-lhe bem difícil, incerto e sombrio. Sem saber, a primeira rainha de Israel caminhava para um destino totalmente diferente daquele que sonhara.

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Mical Semelhante a Deus

A picada da agulha fê-la dar um pequeno grito de dor. O bordado escorregou-lhe do colo e o novelo rolou pelo chão polido. Mical seguiu-lhe o movimento como se ele fosse o mais importante do mundo. Mas a sua atenção estava concentrada noutra coisa. Lá fora, ouviam-se corridas e gritos de crianças. A rainha levantou-se e deu uns passos até à janela. Lá estavam eles, os pequenos príncipes, enchendo o jardim de gargalhadas que lhe feriam o coração. A sua boca fechou-se numa expressão de raiva e as suas mãos apertaram-se contra o cinto que lhe cobria as ancas esguias. Ela nunca teria filhos. Uma das suas servas mais antigas entrou com uma tisana de ervas. A escrava sabia que aquele era o único remédio que a acalmava. Mical pegou na taça e levou-a à boca. Os seus olhos estavam parados, mas o coração batia acelerado. Enquanto a escrava esperava num canto, deu outra volta pelo quarto e, por fim, num gesto insano, atirou a taça contra uma das paredes. Os braços foram caindo e os soluços rebentaram-lhe no peito. O corpo envolto em brocado foi escorregando, até cair como folha despegada de uma árvore. A serva deu um salto e pegou nas mãos crispadas da sua senhora, acariciando-as suavemente. Mical foi sossegando, lentamente, até conseguir deitar-se sobre a cama.

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Fechou os olhos. Tudo rodopiava na sua mente. A dor, as lembranças, o desespero sem fim, o abandono, a solidão, o desamor… Puxou a pele de leopardo dobrada sobre a cama e tapou-se. Dormiu? Sonhou? Tudo era igual, o sono, o sonho e a realidade, eram sempre os mesmos… As notícias vinham regulares do campo de batalha. Os exércitos de seu pai Saúl pareciam não estar a conseguir pôr fim a um conflito que durava há anos. No palácio quase não havia homens. Um dia entrou um soldado a correr. Os seus gritos chamaram a atenção dos poucos guardas que restavam: os filisteus tinham sido 16

derrotados! Saúl era o vencedor. Quando foi possível acalmar os ânimos, o homem contou que David, um jovem pastor, tinha derrotado o gigante filisteu, proporcionando assim o livramento que as tropas de Israel precisavam. Mical, escondida atrás de uma tapeçaria, ouvia o relato e o seu coração voava atrás da história, até chegar junto do herói do seu coração. Sim, porque ele já pertencia a David, que costumava entrar e sair do palácio com a sua harpa, numa tentativa de trazer alguma paz à alma atormentada do rei Saúl. Depois de as tropas terem entrado vitoriosas na cidade e os ânimos parecerem mais calmos, correu o boato que Saúl prometera dar a mão de sua filha ao jovem herói. Mical não se conformava pois, segundo a tradição, a sua irmã, mais velha, tinha o direito de casar em primeiro lugar. E Mical deixou o ciúme agarrar a sua alegria e transformar os seus dias em desespero. Antes do casamento, quando Merabe se preparava para a boda, num acesso de insanidade, Saúl decidiu dá-la em casamento a outro homem da corte. A jovem não teve escolha, tudo foi feito


segundo a tradição, que ordenava ser o pai o único com todos os direitos sobre a sua pessoa. Mical viu a irmã sair do palácio, para uma vida que não entendia, e a esperança tremulou outra vez na sua alma. David enchia-lhe o pensamento, os sonhos e a fantasia. Via-se já envolvida pelos seus braços fortes e beijada pela sua boca que parecia nunca deixar de sorrir. Ouvia dentro de si a música suave da sua harpa e a poesia das suas canções. Quando o sol enchia o céu de tons de vermelho, via nele as mesmas cores dos cabelos do soldado-poeta. Os seus dias e horas eram passados num mundo irreal, onde a paixão era uma constante absoluta. Quando o pai a chamou, para informá-la que ia dá-la em casamento a David, pensou que ainda sonhava… Nos olhos do rei, ela não viu o carinho de um pai que entrega a filha para a felicidade, mas o esquema de um homem, possuído pela inveja, desejoso de dar um fim a alguém que o incomodava e perturbava. Mical conhecia o pai. Sabia do que era capaz. Mas o mais importante é que ia casar com o homem do seu coração. Ser mulher de David era mais do que ela podia ter imaginado. Havia dias em que ele ficava sentado, horas a fio, dedilhando a harpa, cantando louvores a Jeová. Mical não entendia muito bem o que se passava no íntimo de David, mas contentava-se com o facto de ser sua mulher. À medida que os meses passavam, a perseguição que Saúl fazia a David era cada dia mais forte, mais insistente e apertada. E uma noite alguém veio dizer à princesa que o rei intentava acabar com a vida do genro. Mical correu para avisar o marido que já se recolhera. Em gestos frenéticos, ela, que não podia imaginar viver longe dele, empurrou-o até uma varanda

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e, enquanto as lágrimas saltavam dos seus olhos negros, as mãos ajudavam os servos a descer David pela muralha do palácio. Tinham passado cinco longos anos, sem vê-lo, sem sentir o seu cheiro a estevas e pinho, sem saber se, por onde andava, ele ainda se lembraria da sua existência. Mical sofria como louca. Algumas vezes dava consigo agarrada a uma das poucas túnicas que ele deixara, na ânsia de sentir, ao menos, o cheiro do seu corpo forte. Mas o seu tormento não ia acabar por ali. Mais uma vez o rei brincou com a sua vida e deu-a como esposa a outro homem. Afinal o que era ela? Apenas moeda de troca na loucura dos projectos do 18

pai, peça de um jogo que parecia não chegar ao fim… O novo marido amava-a, mas o coração de Mical fechara-se para o amor. Em lugar de alegria, sentia apenas ódio pelo pai, pela vida, pela sua sorte. A saudade foi dando lugar a uma amargura sem nexo e os seus olhos, outrora apaixonados, eram agora frios e distantes. Quando o pai e os irmãos morreram na batalha, não teve lágrimas para chorá-los. A dor ficou apenas mais profunda. Jónatas, o irmão mais velho, tinha sido seu confidente, amigo de David, o único que sabia o quanto sofria pela loucura do pai. Mais um elo quebrado na sua vida. Agora sim, estava mesmo só. Os dias arrastaram-se numa rotina sem sentido e sem nexo até que a notícia da volta de David a Hebrom encheu as conversas e as canções dos trovadores. Mical escutava tudo e todos, num torpor. O reboliço no pátio da casa foi aumentando e Mical chamou uma escrava para saber o que acontecera. Os criados corriam de um lado para o outro para atender homens e montadas em espera. Do cimo da escadaria, viu o seu marido argumentando com um


soldado. A única palavra que o seu coração conseguia entender era «David». Daí a instantes, o marido chamou-a e, com o rosto vincado de dor, ordenou que se preparasse para viajar até Hebrom, pois David iria ser coroado rei e exigia ter Mical de volta, como sua mulher, sua rainha. Mais uma vez Mical não teve escolha. Os pertences foram arrumados em cima dos cavalos e, sem uma palavra, cobriu-se com uma manta, para uma viagem de regresso aos braços do único homem que amara e para um futuro que lhe parecia bem duvidoso. Dentro dela tudo era escuro. Quantas vezes sonhara vê-lo, senti-lo, estar ao seu lado e, agora que caminhava ao seu encontro, só havia nela revolta e um misto de indiferença e cinismo. Até as lágrimas do marido rejeitado, que a seguira até não poder mais, encontravam uma muralha de indiferença… À medida que se aproximava do palácio, o seu coração batia mais descompassadamente. Nos aposentos preparados com esmero, havia tudo o que lhe fora familiar. Nada tinha sido esquecido. Passou a mão pelos longos cabelos e aproximou-se da janela. Viu um grupo de crianças que saltavam e corriam livremente pelo jardim que rodeava a casa. Perguntou a uma escrava, que entrara com água para o seu banho, quem eram as crianças e a resposta não poderia ter sido mais cortante e mais pungente: «São os filhos de David, o rei!» Filhos? Então o seu amado tinha outras mulheres, dividia o seu carinho com outras? A escrava nomeou-as, uma por uma. Ligou cada criança que corria e brincava a cada uma das cinco mulheres do rei. À medida que a descrição era feita, o coração de Mical tornou a apertar-se e, naquele momento, prometeu a si

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mesma que ninguém, nunca mais, brincaria com os seus sentimentos. Ainda não tinha visto David, mas, fosse o que fosse que ele lhe desse, a partir daquele dia era como se estivesse morto. Quando o monarca a chamou aos seus aposentos e lhe estendeu os braços, num gesto de desejo, Mical já não existia. O rei apertou contra o peito forte uma sombra, a estátua de alguém que um dia fora fogo e paixão mas agora não tinha mais razão para viver… Os olhos negros da rainha abriram-se escancarados, como se despertasse de um sonho ruim. A sua vida era isto, pesadelo e 20

realidade e cada um pior que o outro. A escrava aproximou-se, solícita. Os soluços desenfreados sacudiram outra vez o corpo da mulher mais importante do reino de Israel, mas a mais infeliz de todas — Mical. A mãe tinha decidido dar-lhe esse nome, por causa da sua beleza e pela vivacidade e inteligência do seu olhar; um nome belo e cheio de significado: «parecida com Deus». Mas, nesse momento, a mulher que poderia ter-se assemelhado ao Altíssimo arrancava com os seus gritos de raiva e desespero as últimas virtude do seu coração. Daí em diante, a vida seria um arrastar de dias e noites, sem mais nada a enchê-los a não ser o riso dos meninos do rei e o seu ventre vazio e seco para sempre…




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