Viver a Fé, salvos para (fazer) as boas obras Samuel Alexandre Martins
Direitos Reservados © Letras d’Ouro, editores, 2013 Editores Letras d’Ouro, editores Prefácio Jorge Humberto Posfácio José Manuel Martins Preparação do Original e Revisão José Manuel Martins
1ª Edição, Setembro de 2013 ISBN Depósito Legal Letras d’Ouro, editores Sede Rua Quinta da Flamância, n.º 3, 3º Dt.º Casal do Marco 2840-030 Paio Pires, Portugal Tlm 914 847 055 Email livros@letrasdouro.com Web www.letrasdouro.com Blog letrasdouro.blogspot.com FB facebook.com/letrasdouro
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ÍNDICE
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DEDICATÓRIA
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APRESENTAÇÃO
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PREFÁCIO
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NOTAS INTRODUTÓRIAS
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CAPITULO PRIMEIRO Sabedoria dívina, provações e testemunho
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CAPITULO SEGUNDO Parte I — Não à parcialidade e sim à lei do amor Parte II — Viver a fé
CAPITULO TERCEIRO 87 Parte I — O uso sábio da língua 101 Parte II — Viver segundo a sabedoria de deus CAPÍTULO QUARTO 113 Sujeição a Deus como condição para vencer o diabo, o pecado e viver em santidade 133 CAPÍTULO QUINTO 159 POSFÁCIO 1671 BIBLIOGRAFIA
APRESENTAÇÃO
O texto que o leitor tem agora em mãos é resultado do múnus espiritual que temos o privilégio de exercer na cidade de Paris, entre os falantes da língua de Camões. Durante alguns meses, aprofundámos o nosso conhecimento da epístola de Tiago, meditando nela devocional e sequencialmente e aplicando as suas verdades à nossa vida. Foi fantástico perceber que as lutas, os dilemas e as dificuldades dos crentes do primeiro século não eram muito diferentes das que vivemos hoje e, acima de tudo, é verdadeiramente estimulante e reconfortante saber que os ensinos e conselhos das Escrituras mantêm absoluta actualidade. O nosso desejo é que o leitor faça esta viagem pela epístola de Tiago, cujo ensino prático deve ser vivido (mais do que falado), e reafirme o propósito de viver cada dia mais de acordo com o evangelho de Cristo. Ao longo das páginas deste livro, reflectiremos sobre vários assuntos. Por exemplo, como enfrentar as provações da vida repletos da alegria divina; como viver e praticar a Palavra viva de Deus; como deixar de lado a parcialidade e ver todos os seres humanos como iguais aos olhos de Deus; como a fé não pode ser morta, mas visível, não pode ser só falada, mas vivida; como buscar a sabedoria que vem do alto e ajuda a viver a fé, dignamente. Lembraremos ainda que a chave para uma vida cristã vitoriosa é a sujeição a Deus e que a fé se desenvolve à medida que cresce a comunhão com o Senhor. Estes são apenas alguns dos assuntos que pretendemos abordar em conjunto, usando linguagem simples e explícita de forma a poder-
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mos compreender e viver a mensagem do autor bíblico. Conhecer melhor as verdades divinas que o apóstolo Tiago ensinou permitirnos-á ficar mais perto de alcançar a estatura do varão perfeito que é Cristo. Este livro não pretende ser essencialmente exegético ou manual de teologia bíblica, mas uma reflexão pastoral para aplicação devocional à vida cristã. Por essa razão faremos aplicações constantes das verdades das Escrituras à vivência da fé, pois pretendemos que todo o discípulo de Cristo seja, a cada dia, sal e luz no meio em que vive. Ao terminar esta breve apresentação, deixamos uma palavra de especial carinho a todos os membros e amigos da ADD Paris, pois, sem eles, este trabalho não teria sido possível. Tem sido um gozo fazer esta caminhada em conjunto e estamos muito gratos pelo seu carinho e constante incentivo no desenvolvimento do nosso serviço pastoral. Samuel Martins
PREFÁCIO
Alguém disse que as amizades genuínas dão colorido à nossa vida. O Pr. Samuel Martins é uma dessas amizades que matizam a minha e alguém que considero uma bênção de Deus. Por isso, agradeço a Deus pela sua vida, pela sua família, pelo seu ministério e pela sua amizade. Apresentar mais um livro da sua autoria é, para mim, uma grande honra e estou consciente de que este convite vem na sequência de uma admiração recíproca, consolidada ao longo dos anos. Ele é um jovem escritor que se tornou, sem dúvida, uma das referências incontornáveis da literatura evangélica em Portugal e esse facto está materializado nos vários livros que tem trazido a público. Como leitor e apreciador de boa literatura fui, durante muito tempo, consumido pela tristeza causada pelo que defini como lacuna literária evangélica, consequência da escassa produção de autores portugueses, o que facilmente se poderia constatar pela predominância de livros de autores estrangeiros nas estantes das livrarias evangélicas. Não é minha intenção, obviamente, relativizar ou desvalorizar a importância dessas obras; contudo, é com alegria que verifico a mudança desse paradigma nos últimos tempos em Portugal. Hoje, temos o privilégio de ter diversas obras de referência de autores portugueses e o Pr. Samuel Martins é um dos protagonistas dessa mudança no nosso universo literário. A leitura das diversas obras publicadas pelo autor permite-nos aferir que se trata de um escritor apaixonado pela vertente expositiva do texto bíblico, o que, vindo de um pastor, não nos surpreende. Embora já exista uma grande variedade de obras publicadas que, de modo pertinente e contemporâneo, fazem uma abordagem muita
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diversificada da vida e da espiritualidade cristã, o mesmo não acontece em relação ao comentário bíblico, não se verificando, ainda, muita apetência por parte dos escritores para esta vertente importantíssima de literatura cristã. Contrariando esta tendência, o livro Viver a Fé, que chega agora ao conhecimento do público, é uma exposição notável da Carta de Tiago e será, sem dúvida, uma notável ferramenta para uma melhor compreensão da mesma, bem como um contributo para a diminuição do défice da literatura de natureza expositiva. O autor oferece-nos um comentário de Tiago, enriquecido com dezenas de notas e comentários bibliográficos que, além de revelarem um grande honestidade intelectual, são de grande valor para quem pretende ampliar os seus conhecimentos. É do senso comum os momentos difíceis pelos quais o Cristianismo passa na actualidade. Porém um olhar atento sobre a qualidade do tipo de cristianismo que é vivido pelos cristãos identifica facilmente as suas causas. De facto, há uma tendência generalizada entre os cristãos para evidenciar a fé e a vivência cristã de forma dissonante, o que se torna, lamentavelmente, um dos maiores paradoxos dos nossos dias. Impulsionados por uma mentalidade secular e pela crise de valores, na qual a sociedade está mergulhada, muitos cristãos vivem uma fé e uma espiritualidade sem evidências. Esta realidade faz com que este livro surja num contexto de grande oportunidade, na medida em que um dos maiores desafios, que está diante da igreja ocidental, é o retorno aos princípios básicos da vida cristã, ou seja, o regresso a uma espiritualidade que tenha efeitos práticos. A leitura de Viver a Fé constituiu para mim uma fonte de prazer pelo seu caráter dinâmico, inspirador e desafiante. Através de cada página, revela-se uma escrita eloquente e profunda, que desperta e encoraja investimento na qualidade da vida cristã, no sentido de a tornar cada vez mais consentânea com o modelo por excelência: o nosso Mestre e Senhor Jesus Cristo. Enquanto cristão e pastor, precisava de ler este livro, o qual me fez recordar verdades estrutu-
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rantes da vida cristã, refletir e crescer, o que implica necessariamente a implementação de mudanças. Sei por experiência própria que, na caminhada cristã e existencial, precisamos de fazer reflexões, ajustes e até mudanças. Tenho a certeza de que este livro servirá como ponto de partida na vida de muitas irmãos e irmãs em Cristo, provocando uma reflexão espiritual e uma busca consciente pelo desenvolvimento da fé. Jorge Humberto, Pr.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
A CARTA
A Epístola de Tiago apresenta-se num estilo muito particular. Nela não se encontram grandes discussões teológicas, preferindo o autor escrever sobre os pecados e atitudes que prejudicam a vida, o testemunho dos crentes e da igreja de Jesus Cristo, e como dar-lhes combate, de um modo muito directo e objectivo. Na Carta, o autor dá resposta a várias questões da vida quotidiana, como, por exemplo, as conversas entre crentes, o empreendedorismo e os negócios humanos, a acepção de pessoas, o relacionamento entre empregados e patrões, a boa gestão da riqueza humana e a submissão a Deus no dia-a-dia. E porque foi escrita para circular e ser lida entre as diferentes comunidades cristãs, que existiam, à data, em várias cidades do Império Romano — contrastando, desta forma, com a maioria das Epístolas de Paulo, que eram dirigidas, por norma, a igrejas ou a indivíduos específicos —, integra o conjunto conhecido por Epístolas Gerais do Novo Testamento. O AUTOR
Encontramos referência clara e directa sobre a identificação do autor da Epístola, logo no primeiro versículo: «Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo.» A grande questão é saber quem é este Tiago, que se apresenta como escritor e remetente da Carta, já que nas Escrituras são conhecidos vários discípulos com esse nome.
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Ao que tudo indica, ele é o irmão mais novo do próprio Senhor Jesus Cristo, o qual só se converteu e o reconheceu como Senhor após a ressurreição d’Ele.1 Ele era conhecido pelos conterrâneos de Nazaré como um dos filhos de Maria e José, integrando o núcleo familiar com José, Simão, Judas e as irmãs. (Mt 13:55-56 e Mc 6:3) Decerto integrava o grupo de parentes, que incluía a mãe e os demais irmãos, que foi buscar Jesus a uma casa, onde estava apinhado com o povo, porque o julgavam doente mental. (Mc 3:20-21, 31-35) Após a ressurreição do Senhor, ele estava, com certeza, no cenáculo a orar e esperando o derramamento do Espírito Santo porque aí se diz que os discípulos se reuniam para orar com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus. (At 1:14) Algo de especial aconteceu no seio da família, em particular em relação aos irmãos de Jesus, para que se encontrassem no cenáculo, naquela atitude de oração e súplica com os mais próximos d’Ele. Mais tarde, será o apóstolo Paulo quem esclarecerá a razão dessa mudança em relação a esse filho de Maria, dizendo que Jesus apareceu-lhe, após a ressurreição, ainda antes de manifestar-se aos apóstolos. Desse encontro, à semelhança do que aconteceu com o próprio Paulo, terá resultado a sua conversão (1 Co 15:7)2 e reconhecimento de Jesus Cristo como o Senhor. Foi este irmão do Senhor quem permaneceu em Jerusalém, após a partida dos apóstolos, e quem assumiu a liderança desta igreja local. A ele se referiu o apóstolo Pedro, quando foi miraculosamente libertado da prisão. (At 12:17) Encontramo-lo, depois, no concílio apostólico, referido na capítulo 15 de Actos, a desempenhar um papel de grande relevância e de reconhecida liderança entre os apóstolos, estabelecendo a orientação para as questões em análise — por inspiração do Espírito Santo e através dos dons de palavra e sabedoria — que foi sufragada pelos apóstolos, anciãos e toda a igreja. (At 15:13-31) Ele foi 1
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Cf. João 7:3-5. Neste relato do Evangelho de João evidencia-se na atitude dos irmãos de Jesus um desafio para que se «mostrasse» na Judeia como o Messias, fazendo lá os milagres que fazia na Galileia. Na verdade, para os irmãos, a Galileia era já pequena para tanta fama, tinha que se apresentar ao mundo. O certo é que não acreditavam n’Ele. Davids Peter; Novo Comentário Bíblico Contemporâneo Tiago, Editora Vida; São Paulo; 1997; pág. 17
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ainda referido, quando Paulo chegou a Jerusalém, antes de ser preso e levado para Roma. (At 21:18) Mais tarde, o mesmo Paulo fez referência ao parentesco de Tiago, «irmão do Senhor», ao episódio conciliar em Jerusalém e reafirmou que ele era, entre os dirigentes da igreja, com Pedro e João, dos mais considerados ou «as colunas». (Gl 1:19 e 2:9-12) Pode ser que Paulo também o incluísse quando se referia aos «irmãos do Senhor». (1 Co 9:5) A sua permanência em Jerusalém, o facto de liderar a igreja local, de ser o mentor da solução que vingou no concílio e da linguagem da Carta se aproximar muito da forma como falou, sem grande destrinça entre o judaísmo e o cristianismo, parecem elementos a levar em conta para o confirmar como escritor da Epístola com o seu nome, na linha da tradição mais antiga. De acordo com o historiador Flávio Josefo, este irmão de Jesus foi martirizado no ano 62 d.C: «Em 62 d.C., três anos após haver enviado Paulo a Roma, o procurador Festo morreu no cargo que ocupava. Durante o período entre a nomeação do procurador Albino e sua chegada o Sumo sacerdote Anano, o menor, aproveitou a oportunidade para prender Tiago e outros discípulos, sob a acusação de quebra da lei. Tiago foi condenado e apedrejado (…).»3 4 A DATA
A Carta terá sido escrita entre dez a quinze anos após a morte de Jesus, podendo tê-lo sido entre 45 d.C. e 62 d.C., ano da morte do autor.5 3 4
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Davids Peter; Novo Comentário Bíblico Contemporâneo Tiago, Editora Vida; São Paulo; 1997; pág. 17. Quando governador Festo morreu, o imperador romano, Nero, nomeou para governador da Judeia o cidadão romano Albino. O rei Agripa tirou o sumo sacerdócio a José e deu-o a Anano, o qual era da seita dos saduceus, que «são os mais severos de todos os judeus e os mais rigorosos nos julgamentos». Este Sumo sacerdote reuniu um conselho, «diante do qual fez comparecer Tiago, irmão de Jesus, chamado Cristo, e alguns outros; acusou-os de terem desobedecido às leis e os condenou ao apedrejamento.» Josefo, Flávio, História dos Hebreus, De Abraão à queda de Jerusalém, Obra completa, CPAD, 8ª edição, 2004, pág. 925. Quando à execução do apóstolo, em 62, cf. Pierrard, Pierre – História da Igreja Católica, Planta Editora, 2ª edição, pág. 28. A Epístola de Tiago é, talvez, o livro do Novo Testamento mais antigo, escrito ainda antes da realização do Concílio de Jerusalém, no ano 50 d.C.
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OS DESTINATÁRIOS
A Carta de Tiago é comummente incluída nas denominadas epístolas gerais porque não se dirige a uma igreja local específica, mas foi escrita, com quase toda a certeza, para um público específico. Diversos aspectos da Carta deixam claro que os destinatários eram cristãos judeus: a maneira natural de mencionar o Antigo Testamento, a referência ao lugar onde se reuniam como uma sinagoga e o uso disseminado de metáforas do Antigo Testamento e do judaísmo.6 Eles pertenciam «às doze tribos dispersas» entre as nações — não esqueçamos que existiam diferentes colónias de judeus espalhados por todo o Império Romano e, em muitas delas, existiam judeus cristãos. Assim, pode-se dizer que os visados eram judeus convertidos a Cristo que viviam espalhados pelo mundo romano daquela época. Com efeito, de acordo com o registo de Actos, no episódio da descida do Espírito Santo no Pentecostes, vários judeus vieram de diversas partes do mundo a Jerusalém, os quais eram conhecidos como «o povo da dispersão». Assim, é também provável que Tiago quisesse referenciar a importância espiritual dessas pessoas dispersas. De certa maneira, escrevendo ao «Israel de Deus», ou «às doze tribos que andam dispersas», ele pretendia dirigir-se à Igreja de Jesus.7 8
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Carson D.A., Moo Douglas e Morris Leon; Introdução ao Novo Testamento; Edições Vida Nova; São Paulo; 1997; pág. 460. Shedd Russell e Bizerra Edmilson; Uma exposição de Tiago a Sabedoria de Deus; Publicações Shedd; São Paulo, 2010, pág. 8-9 Na verdade, considerando o sentido da expressão «às doze tribos que andam dispersas», parece que os destinatários eram os cristãos de origem judaica da diáspora, com os quais o escritor teria «uma relação privilegiada». Porém, essa mesma forma de dizer pode ter um sentido mais abrangente, significando que ele se dirigia «a todos os que pertencem ao povo de Deus, disperso pelo mundo», ou seja, a todos os cristãos. Cf. Bíblia Sagrada, tradução em português corrente, SBP, 3ª edição, Novo Testamento, pág. 278.
CapĂtulo Primeiro
SABEDORIA DIVINA, PROVAÇÕES E TESTEMUNHO
1.
SAUDAÇÃO O autor iniciou a Carta apresentando-se apenas como «Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo». O facto de não ter indicado outros dados relativos à sua identidade significava que não eram necessários por ser conhecido dos discípulos de Jesus Cristo e, portanto, os destinatários imediatos da missiva saberiam, sem hesitação, identificá-lo. Como referimos, Tiago, chamado «o justo», meio-irmão do Senhor Jesus Cristo, era o líder/pastor da Igreja na cidade de Jerusalém. Apesar dessa visibilidade à frente da Igreja, ao contrário de outros do seu tempo, não se intitulou apóstolo, o que poderia ter feito, nem se pavoneou com qualquer outro título pomposo, sobretudo o de mestre ou ensinador, que também era, apresentando-se singelamente como servo, sendo essa a declaração mais sublime que podia fazer a seu respeito. A palavra «servo» significa literalmente «escravo», e era nessa condição que ele se queria apresentar aos irmãos que precisavam de receber entusiasmo para prosseguir a carreira da fé. O seu exemplo bem poderia inspirar muitos dos que, nos tempos modernos, preferem apresentar-se com todas as credenciais apostólicas, em prejuízo dessa condição de mero servo ou escravo do Senhor. É fantástico verificar que, por um lado, não salientou a sua posição de liderança na Igreja, nem o facto de ter tido um relacionamento especial com Jesus, como parente tão próximo, mas sim o facto de
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ser, à semelhança de qualquer outro discípulo, que é nascido de novo, um simples servo de Deus e de Jesus Cristo. E, por outro, é interessante referir que nomeou Jesus como o Senhor, salientando o facto d’Ele ser o Senhor exaltado que está nos Céus e que voltará, em glória, para estabelecer o seu Reino no mundo e julgar os homens. Este facto é ainda mais relevante se nos lembrarmos que nem ele nem os irmãos foram seguidores espontâneos de Jesus, tendo-se convertido após a ressurreição d’Ele. Vimos antes que o autor identificava os irmãos, a quem se dirigia, como sendo as doze tribos que «andavam dispersas, ou seja, que estavam fora da cidade de Jerusalém ou do território de Israel. E, em termos judaicos, as doze tribos significavam Israel como um todo. Da maneira como o escritor usou tais termos, referia-se, decerto, aos cristãos judeus; no entanto, parece provável, apesar de ter focado a atenção nos judeus convertidos, que as palavras referentes aos destinatários da mensagem incluíam «todo o Israel espiritual, isto é, os cristãos em toda a parte».9 Os crentes em Jesus são os escolhidos de Deus aqui na terra e constituem um grupo poderoso, que não possui um país terreno, mas está espalhado pelas nações do mundo. É por isso a Bíblia diz que os crentes vivem como estrangeiros aguardando a pátria eterna que está nos céus… A dignidade dos crentes não está nem no poderio físico ou material, nem mesmo no número, mas no facto de pertencerem a Deus e serem seus servos.
2.
ENFRENTAR AS PROVAÇÕES COM GOZO Os destinatários, irmãos do autor, eram os homens e mulheres que, como ele, foram comprados pelo sangue de Jesus e estavam em boa posição espiritual, como membros da Igreja e do corpo de Cristo. 9
Comentário Bíblico Beacon vol. 10; CPAD; Rio de Janeiro; 2006; pág. 153.
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Ele via-os como parte integrante da família de Deus apesar das correcções e críticas que lhes faria ao longo da inspirada missiva. Depois desse envolvimento fraterno e da afirmação inequívoca das razões da sua identificação espiritual com eles, avançou, sem rodeios, para o primeiro assunto que desejava abordar: a questão das provações pelas quais todos passam apesar da posição espiritual mantida como filhos de Deus. Ele dizia-lhes que deviam ter por motivo de grande gozo passarem por provações.10 Era como se o apóstolo estivesse a desejar-lhes um gozo santo, que deveriam sentir quando tivessem de passar pelas situações difíceis da vida, as quais deveriam considerar como razões para se sentirem muito felizes. Então, desafiou-os a ter uma atitude radicalmente diferente em relação aos problemas e dificuldades que teriam de enfrentar, em particular aos que estavam a vivenciá-las nas circunstâncias que eram bem do seu conhecimento. É provável que soubesse que, noutros momentos, a atitude dos irmãos não tinha sido no sentido que lhes queria comunicar — a felicidade, o gozo e alegria pessoal não dependiam das circunstâncias exteriores ou materiais, mas de uma atitude produzida pelo Espírito Santo no coração dos salvos. Todos devem ter em mente que não é por opção que se têm provas ou não, pois elas acontecerão aos que estão no mundo; o próprio Senhor Jesus avisou: «no mundo tereis aflições». (Jo16:33) Porém, 10
No texto da versão João Ferreira de Almeida usa-se o termo «tentações»: «Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações…»; noutra versão JFA o texto diz: «Meus irmãos, tendo por motivo de grande gozo passardes por provações.» (Bíblia de Referência Thompson) Na Bíblia Tradução Interconfessional em português corrente a versão é: «Meus irmãos, devem sentir-se profundamente felizes ao terem de passar várias provações.» Parece inequívoco que a palavra «tentação» não tem o sentido restrito de «acção ou solicitação exterior» ou impulso interior para a prática do mal. Ela refere-se, decerto, a todas as situações em que o crente é perseguido ou afligido por não se conformar com o mundo e resistir a Satanás. Aliás, o Senhor Jesus ensinou sobre isso, dizendo: «Considerem-se felizes quando vos insultarem e perseguirem e vos caluniarem, por serem meus discípulos. Alegrem-se e encham-se de satisfação, porque é grande a recompensa que vos espera no céu. Pois assim também foram tratados os profetas que viveram antes de vocês.» (Mt. 5:11-12). E Paulo exemplificou com a sua própria vida: «Mais ainda, nós sentimos alegria nos nossos sofrimentos, porque o sofrimento produz a paciência; a paciência provoca a firmeza nas dificuldades, e a firmeza produz a esperança.» (Rm 5:3-4) da Bíblia, tradução em português corrente. (Neste sentido, ver também Bíblia de Estudo Pentecostal, pág. 1926)
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todos podem escolher a atitude com que as enfrentam e o modo como querem sair delas — Tiago dizia que o resultado deve ser o «grande gozo pessoal», o que é incompatível com sofrimento, humilhação ou derrota. Que fique claro que não se devem associar necessariamente todas as provações — sofrimentos, lutas, angústias… — a algum pecado que se tenha cometido; isso pode acontecer, e sabe-se por experiência que, às vezes, se sofre porque se peca. Todavia, as provações integram as muitas circunstâncias de cada um ao longo da vida e da carreira cristã que lhes foi proposta. Quando essa perspectiva de vida existe, e sabendo que Deus cuida de cada um dos seus filhos, pode-se ver as provações que se enfrenta como realidades físicas ou espirituais que estão, em contínuo, sob o domínio de Deus e que a todos farão chegar mais perto e depender d’Ele, sendo assim possível, mesmo na dor, vivenciar as situações com gozo, o qual é ainda maior quando se vencem e ultrapassam. No entanto, e é preciso fazer esta advertência, estar alegre, ser ainda assim feliz, no meio da aflição, é uma tarefa difícil que exige coragem e demonstração de confiança absoluta em Deus, que é o Livrador, que tudo pode, inclusive dando consolo a quem chora: «Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.» (Mt 5:4) É a mesma ideia, que está nesta mensagem inicial, de felicidade vivenciada na provação, na adversidade, no drama, no conflito, na angústia, nas situações mais difíceis da condição humana. E era importante saber que a atitude dos irmãos diante da provação falaria muito da condição da sua fé e da determinação em levá-la por diante, mas também dos resultados que ela assegurava no carácter de cada um que a suportava, trazendo-lhes grande benefício (ou fruto), muito necessário para enfrentar novas situações de prova no trajecto da conquista da perfeição: a paciência. — Mas, afinal, a que provações se refere o autor da Carta? Refere-se às situações difíceis pelas quais todos são testados, para que a vida seja aperfeiçoada em Deus, mormente às circunstâncias duras em que
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a fé é provada com dor, às perseguições sofridas pela Igreja, às decisões morais difíceis de tomar, às experiências dramáticas, trágicas, que ocorrem, com mais ou menos frequência, no decorrer da vida. O apóstolo, ao contrário de alguns «mestres» modernos e dalguns que também já proliferariam nesses tempos, não encobriu aos irmãos o facto dos filhos de Deus poderem passar pelo sofrimento, pelas lágrimas, pela dor e pelas lutas árduas. O importante era que compreendessem que, fosse qual fosse a situação pessoal de cada um, deviam ter uma atitude diferente daquelas que eram comuns aos homens e mulheres sem Deus, ou seja, deviam desenvolver essa capacidade espiritual de fruir alegria, apesar das circunstâncias concretas, pois o Senhor esperava deles essa atitude de fé e confiança e não de desespero. Sabe-se que a abordagem que as Escrituras propõem, para enfrentar esses momentos de prova, é oposta às que comummente se constatam. Sem dúvida, essa abordagem trará enorme transformação pois implica aceitar o desafio de ver o que se passa na pessoa em provação, nos outros, afinal no que as rodeia, na perspectiva do resultado que Deus quer produzir nela, e isso é animador, gerando uma santa alegria em Deus, baseada em quem Ele é, a qual inunda os que estão em prova e permite o gozo de que o apóstolo falava aos irmãos que andavam dispersos! A segurança que advém de pertencer a Deus e de ser protegido pelos seus cuidados deve representar uma fonte de alegria e paz em todas as provações da vida. — As provas são, por isso, um meio para o crescimento em direcção à semelhança de Cristo. De mesma forma que o atleta pode encontrar gozo no rigor do treino (enquanto tiver em mente que o alvo final dele é ganhar a corrida e alcançar o prémio), o cristão pode e deve encontrar gozo nas provas, quando compreende que elas são um meio para tornar-se mais semelhante a Cristo, que é o objectivo de quantos são seus discípulos e portadores da mensagem de esperança para o mundo inteiro.
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Este gozo não é apenas possível como também é necessário pois, sem o mesmo, quem está em provação pode ficar de tal maneira atolado nos problemas respectivos, admitindo até, nessas circunstâncias, abandonar a fé e desistir de lutar. Se olhar não somente para o presente, mas também vislumbrar a futura recompensa em Deus, o crente em provação pode manter a fé apesar das grandes pressões da vida. Mas as provações não produzem apenas resultados futuros. O processo de prova da fé é como o do refinamento do ouro: as altas temperaturas, em vez de destruírem o ouro, tornam-no mais puro e valioso. O processo é muitas vezes difícil, mas o resultado é valioso aos olhos de Deus. O facto de se dever ter grande gozo parece não se harmonizar com várias tentações e com a multiplicidade de provações; no entanto, à medida do agravamento da dificuldade, a graça triunfante de Deus será ainda mais abundante, pelo que a atitude cristã não se deve resumir à mera tolerância às lutas — nelas deve predominar a atitude de gozo triunfante. Na verdade, enquanto se levam os próprios fardos de maneira corajosa, pode-se experimentar o gozo do Senhor, apesar do seu enorme peso; pode-se experimentar uma felicidade profunda, à medida que se percebe que tais fardos não podem subjugar; podese ter uma clara percepção de comunhão com Cristo, à medida que Ele carrega a parte mais pesada desses fardos; pode-se ter um gozo real no facto de, por meio dessas provações, se gozar da «comunhão dos seus sofrimentos», (Fp 3:10) estando cada crente a ser moldado à semelhança de Cristo.11 — O apóstolo refere alguns resultados que as provações produzem, os quais muito ultrapassam o custo árduo de passar por elas. O primeiro desses resultados é a perseverança (constância) ou a paciência. Esta é uma virtude que se desenvolve na vida do crente à medida que vai vencendo as provações, as quais acentuam a estabilidade do 11
Comentário Bíblico Beacon vol. 10; CPAD; Rio de Janeiro; 2006; pág. 155
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carácter e a firmeza na fé, que o leva a confiar e a viver com Deus em todos os momentos da vida. É importante ressaltar que é possível alcançar e crescer em perseverança nos momentos de provação se forem encarados como motivos para disfrutar de alegria; a alternativa é trágica e implica deixar crescer as atitudes de murmuração, de lamento, de rancor, de ira, de falta de fé e outras tão ou mais negativas para a saúde espiritual, moral e física. Diante das situações de prova é preciso ser corajoso e aceitar que se trata de fazer «prova de vida», de pôr a luz no velador, de amadurecer e «muscular» a fé, para enfrentar, com paciência, o que ainda há para viver. A recusa priva o crente desse recurso essencial, para avançar no caminho tendo uma vida feliz, que é a paciência. Algo semelhante aconteceu com os israelitas, quando Deus os colocou à prova e eles se recusaram a abraçar aquela experiência, como parte dos testes necessários, antes de entrar na terra prometida. Diante da circunstância adversa, desconfiaram da presença e bondade de Deus. Em vez de agir com confiança diante de tudo aquilo que Deus já tinha feito e prometido, acabaram paralisados pelo medo e o resultado não podia ter sido pior, diante de tamanha murmuração. (Nm 14)12 Nenhum dos dessa geração, com excepção de Josué e Caleb, entraram na terra prometida, pois não enfrentaram as provações com fé, antes murmuraram e descreram, dizendo mal da vida, desvalorizando tudo quanto, de modo miraculoso, já tinham vencido. À frente deles estava a terra que lhe fora prometida, que era muitíssimo boa e nela corria leite e mel. Mas eles não queriam entrar por causa das dificuldades que se avizinhavam, pois era necessário derrubar as muralhas das cidades e vencer os gigantes. O caminho de regresso ao passado, onde foram infelizes, era a solução mais fácil… Esse é um exemplo de fraqueza de quem receia as dificuldades das provações porque lhe falta atitude de gozo. Mas há na Bíblia 12
Shedd Russell e Bizerra Edmilson; Uma exposição de Tiago a Sabedoria de Deus; Publicações Shedd; São Paulo, 2010, pág.16-17
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Samuel Alexandre Martins
exemplos de diferentes personagens que enfrentaram múltiplas provações, que os tornaram mais íntimos de Deus e perseverantes na caminhada espiritual: Abraão, o pai da fé; José, que passou pela fornalha das provações, antes de se tornar governador do Egipto; Job, que suportou, com paciência, todas as lutas sendo por isso galardoado por Deus. São exemplos de grande inspiração que concretizam a exortação de Tiago, mostrando que é possível estar em «processo de provação» e acumular riqueza espiritual — paciência! Importa reforçar a ideia de que a paciência é, sem dúvida, uma virtude muito importante, mas a forma de a alcançar não é fácil nem agradável. No entanto, não importa quão difícil ou desagradável seja a provação porque é por meio dela que Deus quer aperfeiçoar os crentes. E não basta que cada um tenha paciência, mas que tenha «muita paciência» ou, como está escrito, «tenha, porém, a paciência a sua obra perfeita». O segundo resultado que é possível identificar é este: as provas da vida produzem maturidade ou perfeição. A qualidade da perseverança não se desenvolve de um dia para o outro. Mas na formação permanente do nosso carácter cristão ela vai-se aperfeiçoando ao longo da vida, à medida que Deus trabalha em cada um. Este longo e árduo caminho tem por objectivo tornar cada crente uma pessoa madura na fé, cada vez mais perfeita em Cristo. Jesus disse: «Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai que está nos céus.» (Mt. 5:48) A perfeição de que falam as Escrituras está relacionada com o compromisso fiel do crente em seguir Deus e a sua Palavra em todas as circunstâncias da vida, sabendo que Ele está sentado no trono e trabalhando para o bem dos seus filhos. É procurar o caminho da santificação pois Deus chamou-os «para a santificação». (1 Ts 4:7) O maior propósito de Deus para a vida dos seus filhos é que sejam aperfeiçoados de forma que possam atingir a maturidade e a integridade total, ou seja, Deus está a prepará-los para a perfeição. Com efeito, a vida cristã será repleta de dificuldades e de testes, os quais não são para destruir os que crêem nem para destruir a sua fé, mas
Viver a Fé
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para que possam ultrapassá-los de modo triunfante. Não são para lhes roubar energia, mas para revigorar a fé e força naquele que os chamou e os equipou para vencer as lutas. Essas dificuldades ou testes não são para os desanimar, mas para os motivar a prosseguir. Não são para os paralisar, mas para os motivar a continuar no caminho do Senhor. Porque o alvo do Senhor é o seu amadurecimento, a sua integridade.13 O resultado final desse processo permanente de aperfeiçoamento, vivido com muita paciência, é não ter falta de nada, ou seja, é ter um carácter que agrada a Deus, mantendo firme a fé provada nas mais difíceis circunstâncias e apesar delas. Este processo de provação com gozo na manifestação da fé perseverante, em vista ao aperfeiçoamento, aproxima o crente mais de Deus, tornando-o também mais maduro pois Deus está a desenvolver nele todas as virtudes espirituais que o levem a ser completo n’Ele, a não ter falta de coisa alguma. A paciência, como fruto conquistado através das lutas vitoriosas, travadas nas várias tentações, sustentará melhor a atitude de perseverança até cada um dos filhos de Deus alcançar, no seu viver, a imagem de Cristo.