Zau-Évua

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Zau-Évua terra de ninguém, sítio de vivências


Título Zau-Évua ~ terra de ninguém, sítio de vivências Autor José Manuel Martins 1ª edição 500 exemplares Depósito Legal 195671/03 Execução gráfica Costa & Duarte, Artes Gráficas, Lda Tel.: 21 254 298 Editor Pedro Miguel Martins Rua Jorge de Sena, 38 Paivas 2845-374 Amora Tel.: 91 484 70 55

Todos os direitos de autor reservados Maio de 2003


Lembra-te do teu Criador, enquanto fores jovem, enquanto não vierem os tempos difíceis e os anos em que vais dizer: não sinto gosto em viver. Da Bíblia, Livro de Eclesiastes, 12:1



José Manuel Martins

PREFÁCIOS

I William Law, no seu livro El Espírito de Amor, disse: “Os dez mandamentos não foram dados pela primeira vez ao Homem quando foram escritos em tábuas de pedra; começaram a existir como semente escondida no interior da alma humana quando foi criada”. As vivências particulares e colectivas do ser humano fazem-no mais ou menos experiente de acordo com a maneira como procura viver e gerir o seu tempo. Não tenho dúvidas - até porque tenho falado, durante anos, com muitos ex-combatentes - que, na maioria dos casos, a prestação do serviço militar no tempo da guerra colonial chegasse a dar origem a traumas psicológicos e fobias de variadas índoles, tanto mais que existia o sentimento, em determinado momento, de que exerciam a sua missão para manter o status quo num território que se pretendia autonomizar, rumo à respectiva independência. Cada rapaz, nos melhores anos da sua juventude, era desgarrado do seu meio social de vida e colocado longe do aconchego e amor próprios do lar, das comodidades a que estava habituado, e durante anos ficava privado dessa dádiva, que é a família. Isso fazia com que o embrutecimento humano, em alguns momentos, provocasse exaustão. É nesses momentos difíceis que o calibre dum homem é provado. Creio que, para um cristão de matriz evangélica, educado nos princípios morais respectivos e que os assume em cada momento, o tempo prestado no serviço militar foi muito difícil e só mesmo com a preciosa ajuda de Deus é que o autor deste livro e muitos outros soldados, puderam sobreviver, mantendo firmes as suas convicções. A sua leitura trouxe-me à memória o exemplo de Daniel - jovem da elite hebraica, da linhagem real, feito prisioneiro e deportado para a Babilónia, com outros amigos, por Nabucodonosor - que “propôs no seu coração não se contaminar” (da Bíblia Sagrada, Livro de Daniel 1:8). “Zau-Évua ~ terra de ninguém, sítio de vivências” deve ser lido e analisado também nessa perspectiva pois é patente que o autor, em partes substanciais dos seus relatos, sempre vivos, atentos e emocionados, muitas vezes influenciados pela vontade determinada de não desistir, procurou honrar a sua fé e manter as convicções que lhe impunham

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atitudes e comportamentos, muitas vezes diferentes do que era usual ou aceite, sem reticências, pela maioria dos seus companheiros. Tenho para mim que são os princípios morais e espirituais que fazem, muitas vezes, com que um homem tenha atitudes diferentes perante os mesmos problemas e situações. Apesar do livro do autor consubstanciar uma parte da sua própria vida e experiência, ela, em muitos aspectos, não deixa de ser comum à vida e experiência de milhares de outros soldados que serviram nas forças armadas portuguesas durante um período difícil da nossa história como Nação, com oito séculos de existência. Pena é que outros desses muitos milhares - que adoptaram para si o propósito de Daniel - não tenham tido, até ao presente, vontade de partilhar connosco as maravilhas que Deus operou nas suas vidas, o que significa que se perderá esse “património” com o qual nos enriqueceríamos. O tema é actual porque, além do que acima sinteticamente refiro, continuamos, como seres humanos, a experimentar hoje outro tipo de dificuldades mas que, na essência, são semelhantes. Mais do que nunca, hodiernamente, os valores morais e espirituais são colocados de lado ou pura e simplesmente relativizados. Por isso, é imperioso lutar contra essa filosofia de vida, quase sem referências, que pretende alterar aquilo em que acreditamos e por que temos pugnado como modelo de vida pessoal, nos aspectos espiritual e social. Só coesos e disciplinados - condições para qualquer exército sair vitorioso podemos alcançar sucesso nas batalhas que se avizinham, nas quais serão postos à prova os valores que sustentam a nossa vida cristã. Sem qualquer dúvida, é importante ter convicções se queremos resistir e agradar a Deus na nossa acção diária e concreta, como cristãos. Sabemos que Aquele que nos criou, também nos providenciou um escape, uma saída, um REFÚGIO E FORTALEZA, onde todos e cada um podem encontrar verdadeira segurança e Paz! O livro - cuja leitura recomendo vivamente, em particular aos jovens - é de leitura fácil, interessante, às vezes emocionante, recorda-nos a nossa história de ligação secular a África, e enriquecerá o espaço reservado aos livros de “Memórias” nas nossas bibliotecas. Pr. Paulo Branco


José Manuel Martins

II Conheci o Dr. José Manuel Martins nos bancos da Faculdade de Direito de Lisboa, já na parte final dos nossos cursos. Fiquei a saber, então, que, para além de ambos termos tido um percurso africano, trabalhávamos na mesma instituição bancária, tendo ambos, mais tarde e no mesmo dia, ingressado, como Advogados, no quadro técnico daquela. Era no curto tempo do horário do almoço, onde, por dever de ofício, quase só se falava de questões de direito, que, de vez em quando, abordávamos, com outros colegas, eventos relativos ao tempo das nossas vidas militares e foi, numa altura dessas, que o Dr. José Manuel Martins me manifestou a sua intenção de, um dia, quando o tempo o permitisse, escrever um livro onde relataria os factos mais marcantes da sua vida militar, que, como afirmava, ajudaram, de certo modo, a moldar a sua personalidade. No escrito que me apresentou, para além das vivências, que eram lugar comum de todos os militares, que, ainda jovens, por dever à Pátria, foram arrancados dos braços da família e dos amigos e lançados noutras terras, muitas vezes, em locais ermos ou perigosos, está vincada a ideia de que tais jovens, por ausência de notícias dos entes queridos, transformavam-se em autênticos “desertos de solidão”. No seu livro, ressaltam os dramas vividos, no quotidiano, consubstanciados, por “dever de ofício”, não só no acompanhamento de camaradas, feridos ou doentes, a quem, após longo tempo de convivência e relacionamento, estava ligado por razões de afecto ou sincera amizade, mas também por causa das injustiças praticadas, por aqueles que, na altura, eram os detentores do mando. Marcante para o futuro do Dr. José Manuel Martins foi a consciência, adquirida naquele período de serviço militar, de que sentia um profundo amor, permanentemente afirmado no seu livro, pela mulher, que preenchia todos os seus sonhos e anseios futuros, a qual viria, depois, a tornar-se na esposa, e na mãe dos seus filhos, mulher a quem devota, ainda hoje, trinta anos passados, uma grande paixão. Na tropa, o Dr. José Manuel Martins ganhou consciência da essencialidade de que se revestia a disciplina, para quem, como ele, já tinha projectos firmados para o futuro e queria ser um vencedor. O livro que o Dr. José Manuel Martins nos dá, relata as suas vivências no

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aquartelamento em Zau-Évua, sito no Norte de Angola, onde, para bem dos residentes, a guerra mal se sentia, descrevendo, até ao pormenor, os factos então vividos, a lembrar-nos a forma, inigualável, como o fazia um dos nossos mais ilustres prosadores, que foi o Padre António Vieira; o autor sempre foi, como continua a ser, um Homem determinado nas suas aspirações, sempre foi possuidor de uma grande afectividade, a transbordar de paixão e de fé inabalável, sendo, ainda, comprovadamente, detentor de grande integridade moral e profissional, qualidade esta que, nos dias de hoje, vai rareando, perante a materialização concreta de determinadas ambições, hoje perseguidas por muitos dos chamados "homens de sucesso", que, em muitos casos, nem sequer se preocupam em disfarçar os meios ilegítimos, utilizados para alcançar os seus fins. Sempre me senti honrado, por ter tido a sorte, suprema, de ter o Dr. José Manuel Martins, como um grande amigo, como um colega e um companheiro de trabalho, que sempre me emprestou todo o seu saber, sem nada pedir em troca, e, intimamente, sinto, mas Deus sabe, que está ao alcance da sua mão, todo o resto das ambições, por ele sonhadas em Zau-Évua. Celso Brás de Almeida

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MISTURANDO O PASSADO E O PRESENTE... Durante cerca de vinte e cinco anos interroguei-me sobre o interesse em manter, quase na íntegra, a minha correspondência relativa ao tempo em que prestei o serviço militar no Norte de Angola. Por norma, respondia a essa interrogação afirmando que tal correspondência constituía o repositório de grande parte das minhas experiências, enquanto militar e relativas àquele período, e que, por isso, valia a pena preservá-la nem que fosse para ter sempre presente o modo como soubera lidar, nas circunstâncias concretas respectivas, com os problemas que foram surgindo. Ademais, ela trazia-me permanentemente à memória a minha juventude e o processo contínuo do meu enriquecimento pessoal em resultado da convivência com outros jovens de várias origens geográficas, sociais e culturais, que o cumprimento do serviço militar juntara, e a maneira extraordinária como recebera apoio humano e espiritual das pessoas que estimava, as quais procuravam não me esquecer ou desiludir, apesar da enorme distância geográfica que nos separava e da ausência ter sido tão prolongada. E dava essa resposta com absoluta sinceridade pois, por várias vezes, durante esse quarto de século, relera, sempre com o maior e renovado interesse, uma parte significativa dessa correspondência, em especial aquela que integrava as cartas que recebera, mantendo, assim, sempre vivos e presentes factos e pessoas que, doutra maneira, o decurso do tempo obscureceria. Depois de ter participado num encontro de ex-militares da companhia de infantaria, realizado já no declinar da década de noventa, na cidade de Coimbra - Companhia onde fomos integrados e com a qual estivemos no Norte de Angola, primeiro em Zau-Évua, depois em Benza - senti necessidade de relembrar, com maior rigor, alguns episódios dessa experiência comum, em particular porque, nesse e nos outros encontros, que se concretizaram posteriormente, ouvia relatos de factos de interesse geral, sempre efectuados oralmente, sem o mínimo suporte documental e com apelo exclusivo aos registos memorizados, nalguns dos quais, por causa da erosão provocada pelo tempo, entretanto decorrido, vislumbrava naturais lacunas e imprecisões, e noutros não me revia, parecendo-me inclusive que algumas das experiências relatadas com abundância de pormenores também não fariam parte da nossa vivência colectiva. A deficiência era, no entanto, minha em absoluto porque não partilhara algumas das situações de referência para essas experiências e delas nunca ouvira falar. Essa conclusão extraí-a do facto de grande parte desses relatos, feitos sempre com grande convicção pessoal, intensidade evocativa e emocional surpreendentes, poderem ser confirmados por diferentes protagonistas e observadores. Para mim, apesar da riqueza e abundância desses relatos orais, repetidas vezes reafirmados, alguns sobre pessoas e situações que de todo não me lembrava ou já se mostravam na minha memória totalmente desfocadas pelo decurso do tempo ou que em absoluto ignorava, a fonte disponível para recordar o passado de vivências comuns foi sempre constituída por essa

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correspondência, devidamente conservada. Reli, recentemente, como maior cuidado e atenção, todas as cartas que escrevera e aquelas de que fora destinatário, correspondentes ao período iniciado exactamente no dia em que cheguei a Zau-Évua e terminado quando dela definitivamente me despedi para ir ao encontro do Benza, onde a Companhia fora entretanto colocada, em continuação dessa experiência de juventude ao serviço do exército. Nelas encontrei relatos de factos que me recordaram coisas boas e outras menos boas, vividas por mim ou das quais tive conhecimento directo ou indirecto. Fiquei surpreendido e também frustrado porque nessa correspondência não identificara os meus companheiros de experiência pelos seus nomes próprios, apelidos ou alcunhas. Só uma ou outra referência mais particular permitiria saber a quem me referira. Não consigo, a esta distância no tempo, encontrar satisfatória explicação para essa omissão. Talvez porque no conteúdo das cartas não coubessem referências nominativas, além das que fazia a mim próprio e ao respectivo destinatário ou talvez porque este não tivesse particular interesse em ler referências a pessoas com quem nunca se relacionara. A excepção que encontrei nessa correspondência justificava-se porque a destinatária de uma das cartas conhecia, pessoalmente, o nomeado. Tinha-lho apresentado numa ocasião especial em Luanda, ainda antes de nos encontrarmos, novamente, em Zau-Évua. Proponho-me, tendo essencialmente por base esse acervo documental, reconstituir algumas situações reconhecíveis por todos os participantes dessa nossa experiência mas também relembrar, com recurso aos elementos de facto que a memória ainda regista, à distância de trinta anos, aspectos da nossa vivência colectiva, os quais alguns protagonistas ou observadores ainda referem, em relatos informais, mas como “coisa” própria, sujeita à deterioração que o decurso do tempo sempre implica. Estas minhas “memórias” abrangerão dois períodos diferentes, interligados pela minha condição de militar incorporado em obediência às leis da época (eu cumpri o serviço militar para dar satisfação a um dever legal pois não deixei tudo, voluntariamente, para servir a Pátria, como, aliás, aconteceu com a generalidade dos militares com quem partilhei as mesmas experiências), e que têm, geográfica, social e emocionalmente, por matriz axial Luanda - Ambriz, Zau-Évua - Luanda. Não se trata de um texto de história, tanto mais que não foram consultadas todas as fontes de informação disponíveis, mas de um documento com o qual pretendo, antes de mais, estabelecer laços mais fortes de amizade e são convívio entre todos aqueles que vão recordando, pelo menos anualmente, os locais e o tempo em que o cumprimento dos deveres para com a Pátria, coevos do início da década de setenta, nos juntou. Será certamente pretexto para novas recordações, tão lacunosas são as que constam deste registo. Não sendo pretensioso a esse ponto, quem sabe se este texto não constituirá o primeiro e modesto contributo para a “história da companhia” que outros ex-camaradas de armas, mais habilitados, ajudarão a realizar. Embora, verdadeiramente, três décadas após a ocorrência dos factos, essa história


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tenha diminuto interesse militar e cultural, podendo, quando muito, constituir fonte de informação para duas linhas de prosa dum manual de história da saga dos militares portugueses em consequência do “vamos para Angola e em força”. Mesmo que quisesse, como é evidente, e decorrerá do próprio texto, não tenho as mínimas condições para escrever essa história: primeiro, porque não fui agente das decisões que nos compeliram a agir no “teatro das operações”; depois, porque não disponho de elementos, além dos referidos, que me permitam ultrapassar o mero esboço das minhas recordações pessoais, a maioria das quais reavivadas recentemente, por via da leitura da dita correspondência, como anteriormente anotei, mas sujeitas a imprecisões sempre possíveis, embora sinceramente não desejadas. Esta é também uma oportunidade de envolver os nossos familiares, amigos e conhecidos na nossa história, que muitos só conhecerão de acordo com a perspectiva dos seus próprios sofrimentos, a que se sujeitaram por causa da nossa ausência forçada, e da alegria de nos terem visto regressar. Que vivamos ainda o tempo suficiente para fruirmos, com emoção, o tempo da nossa “juventude perdida” (um dos “poemas” de despedida, não anónimo, certamente, mas cuja autoria não posso confirmar, dizia assim: “Matas traiçoeiras, Juventude perdida, Orgulho incontido, Missão cumprida”) evidenciando tudo quanto, hoje, na nossa memória serve de estímulo para que sejamos mais felizes! Destas “memórias”, isso é óbvio mas justifica-se realçar, não posso excluir as minhas convicções, as minhas referências ideológicas ao tempo, que no essencial preservo, as quais, aliás, explicam muitos dos meus comportamentos na vivência comum a que estivemos submetidos por tanto tempo. Muito menos posso nelas omitir factos ocorridos fora do âmbito da estrita vivência militar, mas que influenciaram decisivamente a forma como encarei esse período da minha juventude, especialmente porque estando longe estava perto, ou seja, fui recrutado no meio luandense, onde tinha raízes familiares e sociais. Afinal, quando pensava em regressar a casa fazia-o como um natural da terra, um “angolano”; para mim, o berço me-tropolitano estava cada vez mais distante. Tudo o que se passava em Luanda, no seio fami-liar, no círculo social que frequentava, na Igreja a que pertencia, com os meus amigos e co-nhecidos, implicava directa e imediatamente comigo. O tempo que agora vivemos é diferente. Muitos não compreenderão grande parte das dificuldades por que passaram os jovens militares, há trinta anos atrás, quando foram mobilizados para prestar serviço em regiões desconhecidas, inóspitas e perigosas. Em particular, os jovens de hoje não as entenderão. Podem, porém, aproveitar-se das nossas experiências e da forma como enfrentámos as situações novas e difíceis, quase sempre em ambiente de grande adversidade, como reagimos às contrariedades, como preservámos as nossas convicções, como testámos a nossa fé, para enriquecimento pessoal. Há valores morais e cívicos, muito subestimados no começo deste milénio, que fizeram

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parte do nosso ideário de juventude e do nosso código de conduta. De alguns darei nota nestas “memórias”, assinalando a importância que pode ter a sua apropriação e vivência nos tempos que hoje também são nossos. A família, que nos amparou e foi razão da nossa permanente esperança de retorno às origens, os amigos, que viveram connosco, de multifacetadas formas, as dificuldades da separação do nosso meio social, as Igrejas, cada qual a seu modo e com capacidade e instrumentos de intervenção diferenciados para garantirem apoio moral e espiritual, os movimentos cívicos e organizações de natureza diferente, que colocaram ao dispor das forças armadas e dos seus soldados apoios significativos para minimizar os transtornos do isolamento, são referências que importa destacar, agora num contexto sociocultural novo, como esteios que ainda podem suportar o peso das exigências das gerações presentes e vindouras, às quais devemos, pelo menos, o testemunho das nossas experiências juvenis, que pode, agora, ser transmitido à luz da sabedoria, que o decurso dos anos nos trouxe.

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À minha mulher, aos meus filhos, a todos os que se deram por Portugal, aos que servem a causa da liberdade e convivência pacífica dos povos.



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DO MELHOR PARA O PIOR... Cheguei a Zau-Évua no dia quatro de Fevereiro de mil novecentos e setenta e três e fui recebido como “maçarico” pelos restantes camaradas, chegados antes de mim, apesar de integrar a Companhia de Caçadores 105/73 desde a constituição do escalão “C”, a que pertencia, em cumprimento da Ordem de Serviço nº 15, de dezoito de Janeiro desse ano, do Regimento de Infantaria 20 de Luanda. Na tropa, a antiguidade em qualquer coisa (no tempo de serviço prestado, no tempo de permanência no quartel, na Companhia, no pelotão, na localidade onde se chegara antes dos demais) conferia sempre um “estatuto de superioridade”. Era banal dizer-se: “A antiguidade é um posto”! Eu acabara de chegar e, por isso, para aqueles camaradas, era legítimo invectivarem-me: “maçarico!” Em boa verdade, porém, como no íntimo todos sabíamos, éramos todos maçaricos, novatos, acabados de chegar para viver muitas experiências comuns, de cujo conteúdo concreto não tínhamos perfeita noção, algumas das quais deixariam marcas cinzeladas no corpo e no espírito para não poderem ser olvidadas. A cena repetiu-se sempre que chegaram outros elementos para completar o quadro de pessoal da Companhia, com cerca de 120 homens, e que, por esta ou aquela razão, se apresentaram em Zau-Évua mais tarde: ”Maçarico, maçarico, maçarico...!” Não deixei de integrar o coro, com a alegria própria de que quem festeja um acontecimento importante e livre de quaisquer sentimentos de culpa por causa da “infelicidade” alheia... A minha condição de “maçarico” ficou a dever-se ao facto de ter ficado retido no Ambriz, e depois em Luanda, por mais alguns dias, para fazer exame de condução automóvel. Antes de ser incorporado, já estava habilitado a conduzir motos de cilindrada superior a 50 cm3, mas, no Ambriz, decidira ter aulas de condução de veículos ligeiros e pesados. A grande maioria dos militares habilitava-se com a carta de condução de veículos automóveis, alguns, inclusive, com vista à sua realização profissional, após a conclusão do serviço militar. No meu caso, procurava ocupar o tempo com actividades interessantes e eminentemente úteis. As aulas teóricas e práticas na escola de condução correspondiam à ocupação de algumas horas semanais do meu tempo livre, que era muito. No Ambriz, a preparação para o exame de condução estava mais facilitada porque aí existia uma delegação duma escola de condução luandense. A minha mobilização para Zau-Évua ocorrera mais cedo do que o previs-

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to, pelo menos para mim. Contava, porém, com o apoio do Comandante do Centro de Instrução do Ambriz o que me permitiu fazer aquele exame em Luanda, numa sexta-feira de manhã. Nunca tinha conduzido um veículo automóvel na capital. Fiz exame em pleno centro citadino, nessa sexta-feira movimentadíssima, ao volante de um camião! Correu-me bem a prova, embora tivesse feito toda a aprendizagem prática na avenida principal da Vila do Ambriz - recta, com boa visibilidade e sem obstáculos! - e nalgumas veredas adjacentes, onde praticamente não circulavam outros veículos. Grande parte das artérias da capital ainda evidenciavam os efeitos das chuvas torrenciais, que desabaram durante seis horas consecutivas no último domingo de Janeiro. Nalgumas, as correntes de água cavaram profundas valas, impedindo a circulação automóvel normal. Nalguns bairros, cujas ruas não tinham asfalto (Bairro da Terra Nova e Salazar, por exemplo), os automóveis circularam com água pelas portas. Os sinais da calamidade eram evidentes nas vias em que realizei o exame, tornando-o ainda mais difícil. Fiquei, por isso, orgulhoso com o meu desempenho e feliz, particularmente, com o resultado. Disse ao examinador, ironizando, pois estava plenamente convencido que tivera mérito bastante para o resultado alcançado, que no dia seguinte rumaria ao Norte de Angola pelo que podia ficar descansado: com toda a probabilidade, não me encontraria, nos tempos mais próximos, a conduzir veículos em Luanda! Fiquei habilitado para conduzir motos, ligeiros e pesados com a carta número 88811, passada em dois de Fevereiro de mil novecentos e setenta e três pela Direcção de Viação de Luanda, como consta da minha caderneta militar. Na tropa era assim mesmo: tinha obtido autorização superior para frequentar a escola e para fazer exame em circunstâncias especiais, mas também fiquei obrigado a comunicar o resultado para ser averbado naquele documento, no capítulo das “ocorrências extraordinárias”! Depois de ter concretizado esse objectivo, estabelecido logo no início da minha estadia no Ambriz, em Abril de mil novecentos e setenta e dois, praticamente ocupei o resto do dia de sexta-feira a festejar o sucesso e em “cerimónias” de despedida. Só iniciei a preparação dos meus pertences na madrugada de sábado para seguir viagem no MVL (Movimento de Viaturas Logísticas), que se formava na Manutenção Militar, na Estrada de Catete, em Luanda, quase junto ao cemitério novo. Munido da guia de marcha respectiva, não me foi difícil encontrar transporte para Zau-Évua. De sábado para domingo, pernoitei em Ambrizete, no “Hotel Praia Sol”, onde aluguei um quarto asseado e com ar condicionado. No quartel, situado mesmo junto à praia, dormiria outras vezes, mais tarde, numa cama sem roupa


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e povoada de insectos hemípteros e dípteros (percevejos, pulgas...). Nessa cama dormiam os passantes, com destino a vários lugares do Norte de Angola, quando viajavam isolados das suas Companhias. Era o meu caso, no dia em que pela primeira vez passei por Ambrizete. Na altura, ainda tinha recursos financeiros para dormir fora desse antro! Aliás, tive também dinheiro suficiente para jantar nesse Hotel mas foi a primeira e única vez que tal sucedeu! Todos quantos estavam limitados ao magro montante mensal, auferido a título de pré, não tinham escolha: ou a cama dos viajantes ou a esteira na sanzala! A noite foi muito curta e mal dormida. Às quatro horas e trinta minutos já as viaturas começavam a movimentar-se o que implicou que tivesse de deixar o confortável quarto do hotel sem gozar a noite por inteiro. Talvez por causa da forma apressada como tudo se passou, foram poucas e insignificantes as lembranças que me ficaram dessa primeira passagem por Ambrizete. A viagem para Zau-Évua, a partir de Ambrizete, especialmente, foi muito cansativa e pouco interessante. Fizeram-se muitas e sucessivas paragens (mais tarde tive a mesma experiência várias vezes) ficando o comboio de viaturas retido por muito tempo. Até Ambrizete, foz do rio M´Bridge, o caminho era de asfalto e o movimento das viaturas sereno, sem grandes contratempos; depois de deixarmos a vila, o trajecto fazia-se por picada onde apenas cabia um veículo, a descer, a subir, às curvas, enfim, um caminho muito sinuoso, onde a condução era perigosa, tornando muito incómoda a viagem. Para quem parti-cipava naquela aventura pela primeira vez, o próprio percurso parecia infin-dável. A viagem terminaria, para mim, cerca de doze horas depois. Em Zau-Évua já se encontravam alguns militares - oficiais, sargentos e praças - que conhecia relativamente bem, visto que também haviam estado no Ambriz durante muito tempo. Esse conhecimento facilitou a minha integração. Os que tinham chegado antes conheciam os cantos à casa e inteiraram-me de imediato do essencial: onde ficavam a caserna e a cantina, o horário do funcionamento desta, a forma como se ocupava normalmente o dia-a-dia naquele lugar ermo, habitado apenas por homens, a grande maioria militares (no aquartelamento trabalhavam, como contratados do exército, uns poucos civis que conheciam o terreno e desempenhavam o papel de guias, entre outros). Não foi fácil a transição para o ambiente de Zau-Évua, mesmo tendo em conta que, na altura, já estava a cumprir o serviço militar havia cerca de dezoito meses e praticamente nada me era estranho ou desconhecido.

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EVIDÊNCIAS DA GUERRA...

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Fui alistado no dia vinte e três de Julho de mil novecentos e setenta e incorporado, precisamente um ano depois, no RI 20 (Regimento de Infantaria número vinte), em Luanda, para aí concluir a recruta. Iniciei a instrução especial e estágio no dia vinte e três de Novembro de mil novecentos e setenta e um no Hospital Militar de Luanda, onde estive colocado até onze de Março de mil novecentos e setenta e dois, data em que voltei ao RI 20. Esse período foi interessante para mim, pois estava praticamente em casa. Inclusive, aproveitei para fazer a preparação académica para o exame do terceiro ciclo dos Liceus. Não houve qualquer espécie de rotura com o meu meio familiar e social. Com excepção do período da recruta, nada de importante se alterou; mudei apenas a minha actividade principal que era frequentar a formação no Hospital Militar, experiência de que sempre guardei muitas recordações, quase sempre relacionadas com eventos desagradáveis. Foi aí que tive contacto com a realidade mais dramática da guerra: doenças várias, em regra de origem tropical, se assim se pode dizer, ferimentos de diversa natureza e gravidade. A toda a hora chegavam sinistrados das várias zonas militares, umas vezes por via aérea, outras por via terrestre. Os helicópteros, no seu movimento vertical descendente e ruidoso para contactar o solo, chamavam a atenção de todos os residentes no Hospital, em especial quando transportavam feridos de grande gravidade. Contactei muitos militares internados, vindos de todas as zonas militares de Angola. Alguns tinham ficado feridos em acção de combate; a maior parte deles sofrera acidentes, designadamente com veículos de transporte e manuseamento de armas de guerra. De certa maneira, eu já conhecia a “guerra” antes de ter saído de Luanda. E sabia em que circunstâncias ocorriam os acidentes, que vitimavam tantos jovens militares. Normalmente estavam associados a muita imprudência e desleixo, em especial quando o serviço militar estava quase a terminar, ou em fim de comissão para aqueles que eram oriundos da Metrópole. Durante esse período de formação hospitalar, registei para sempre a morte de um militar, ocorrida em Luanda. Ia o homem num carro militar, no sentido Luanda - Grafanil, sentado, com outros camaradas, nos bancos de trás. Uma rajada de vento ou um simples movimento da cabeça ter-lhe-á atirado a boina à estrada e enquanto o condutor travava o veículo, aos gritos de “pára”, “pára”, o militar saltou do veículo para a faixa de circulação contrária e foi mortalmente colhido por outro veículo que circulava no sentido Grafanil - Luanda. Desta maneira, a “guerra” eliminou mais um dos combatentes alistados! Este exem-


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plo serviu-me de referência, durante todo o período da vida militar, embora nem sempre o tivesse na devida conta - importava circular com cautela, tomar todas as precauções e não desvalorizar o risco. Infelizmente, nem todos os militares condutores de veículos, mesmo os da Companhia de Caçadores 105/73 em Zau-Évua, como vim a constatar no decorrer da comissão, conduziam de forma cautelosa e prudente os respectivos veículos, sem prejuízo, obviamente, daqueles que, em todas as circunstâncias, se comportavam de forma absolutamente responsável, acautelando as próprias vidas e as daqueles que transportavam. Aliás, ocorreram acidentes perfeitamente evitáveis, desde que tivesse sido mais cautelosa e sensata a condução. Não se podia ignorar, todavia, que eram muito jovens e quase todos aprenderam a conduzir no cumprimento do serviço militar. A vontade de ultrapassar limites, própria da juventude, e a inexperiência, associavam-se, normalmente, para justificar os graves acidentes de viação de que resultavam ferimentos graves e mortes. MILITARES NA ANIMAÇÃO SOCIAL... O período de serviço militar, passado em Luanda, durou cerca de nove meses e terminou com a minha ida para o Ambriz, onde fui colocado. Depois de concluída a especialidade, ainda permaneci na capital angolana, no Regimento de Infantaria 20, até quatro de Abril de mil novecentos e setenta e dois, data em que cheguei àquela vila do Ambriz. Tive, nessa altura, a primeira experiência de viajar sob forte e bem organizada escolta militar. A seguir à Fazenda da Tentativa, no Caxito, cerca de sessenta quilómetros para norte de Luanda, já não se circulava livremente nas estradas que ligavam os distritos. Para a vila do Ambriz podia-se ir de avião, sem limitações, ou, por via terrestre, sob forte escolta, em coluna militar. O Ambriz, vila de que só conhecia a situação geográfica, surpreendeu-me muito positivamente, em especial porque lá era possível o convívio com a população civil e também porque os militares aí colocados não executavam actividades operacionais propriamente ditas, uma vez que se limitavam a fazer trabalhos de escolta à circulação de veículos entre a vila e a capital e de protecção às actividades económicas, que se desenvolviam nas redondezas (plantações de algodão, por exemplo). A criação do Centro de Instrução do Ambriz, por parte do Regimento de Infantaria 20, nunca me pareceu justificada - a distância de Luanda era muito grande e implicava a deslocação de pessoal e meios logísticos significativos, com custos enormes para o orçamento militar.

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O certo é que a presença dos recrutas dava grande animação à vila. Os militares enchiam o cinema, o ringue de futebol de cinco, o café, sito na rua principal, os muceques e... a praia! A praia, para mim, era tudo o que de melhor havia no Ambriz. ABRIR OS CAMINHOS DO PROGRESSO...

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Nas doze casas de comércio do Ambriz, nelas se incluindo duas padarias e um talho, os melhores clientes eram os militares colocados na vila e arredores, principalmente os do Centro de Instrução. A situação do concelho, apesar dessa movimentação social, por via da presença dos militares, não satisfazia os representantes dos interesses económicos e sociais da região. Face ao seu passado recente, o Ambriz era uma “terra imobilizada”. Antes do início das hostilidades militares na região, em mil novecentos e sessenta e um, a vila servia de porta de penetração do noroeste angolano e também de saída produtos agrícolas das regiões do Uíge e do Zaire, através do seu porto de mar. Não sendo possível a livre circulação terrestre na estrada Ambriz - Quibala Norte - Toto - Vale do Loge - Nova Caipemba - Songo, os produtos agrícolas, especialmente o café, cuja marca “Ambriz” era conhecida no mercado internacional, deixaram de ser escoados pelo seu porto de mar, facto que implicou o completo declínio económico e social daquela vila. Além disso, a estrada do Norte, que fazia a ligação a Ambrizete, para quem vinha de Luanda, deixou de passar pelo Ambriz, por causa do desvio efectuado a cerca de vinte quilómetros. Antes desse desvio da estrada do Norte, a circulação de pessoas e mercadorias era efectuada junto à costa, marginando o Atlântico, o que proporcionava viagens mais agradáveis e aprazíveis, por Capulo e Tabi. À revitalização da economia local não bastava a presença dos militares. Importava, pelo menos, construir o porto de pescas - ou, numa visão mais ampla do futuro, um porto que servisse a pesca da região e que também permitisse o escoamento futuro dos produtos agrícolas das regiões do noroeste e a reabertura, com melhoramento do respectivo piso, daquela estrada até ao Songo, bem no interior do distrito do Uíge, abandonada havia doze anos, em razão das acções militares levadas a cabo por grupos armados, que persistiam, embora com frequência esporádica. Para os representantes da comunidade local, essa estrada fora outrora e poderia voltar a ser a via de penetração do litoral para o interior, constituindo o caminho mais curto entre Carmona, Songo, Bembe, Damba, Maquela do Zombo e o mar. Reabri-la à circulação implicava, porém, um grande esforço


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militar, em ordem a garantir a segurança das pessoas e bens. Embora fosse essa a vontade de todos os que queriam a retoma da actividade económica da região, não seria fácil, nos tempos próximos, torná-la realidade, por óbvias razões de segurança. FÉRIAS EM MISSÃO... O quartel do Centro de Instrução ficava mesmo junto ao mar. Era só passar o arame e já estávamos na praia. Que dias extraordinários de lazer passei no Ambriz! A actividade era intensa nos meses em que havia recrutas. Vacinação, injecções, consultas, tratamentos, acompanhamento de doentes ao Hospital Militar em Luanda, enchiam a nossa rotina diária. Mas sobrava muito tempo para fruir aquele mar límpido, de águas mornas, areias selvagens, quase desertas!... Em regra, a praia era frequentada por militares; na altura das férias escolares, apareciam por lá estudantes que vinham passar as férias com as famílias. Muitos comerciantes e fazendeiros residiam aí, mas tinham os filhos a estudar em Luanda, no Liceu Salvador Correia, na Escola Industrial ou até na Universidade, inclusive na cidade de Sá da Bandeira, mais lá para o sul de Angola. Não era fácil para esses estudantes relacionarem-se com os militares, na praia. Eram mais abertos ao convívio nos círculos sociais da vila. Relembrei continuamente esse período do cumprimento do serviço militar com enorme saudade. Que tempo extraordinário foi esse! Tinha acabado de chegar e já me esquecera, com relativa facilidade, apesar da pequena dimensão da localidade e da impossibilidade de nos deslocarmos para fora do seu perímetro urbano sem escolta militar, da situação anterior em Luanda, onde dispunha de quase total liberdade de movimentos, apesar da minha condição de simples soldado. Nessa vila acolhedora, de gente autóctone generosa, a actividade militar, que contava a cem por cento de aumento no tempo de serviço, não podia ser melhor! A sensação primeira que tive quando cheguei foi a de que, apesar de tudo, ali ia passar um período da minha juventude muito agradável e feliz. A disciplina não era apertada - não falo obviamente da que era imposta aos recrutas! -, podia-se usar barba crescida, desleixar o cabelo, vestir roupa civil, sair do quartel sem controlo, sempre que se desejasse, sem prejuízo, obviamente, do serviço que nos estava confiado, na dependência directa do primeiro-sargento. Podíamos, se tivéssemos para tanto possibilidades económicas, almoçar e jantar fora ou petiscar umas boas e descomunais ostras - apanhadas no mar do

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Ambriz, na zona baixa da enseada, que se comiam depois de abertas numa chapa quente, bem regadas com sumo de limão e com tempero de gindungo comer peixe de qualidade e sempre fresco e carne excelente, muita dela de animais selvagens. Tínhamos até lavadeiras que nos iam buscar e levar a roupa ao quartel. Por mim, teria feito todo o tempo de serviço militar no Ambriz! Até a caserna onde dormia tinha janela virada para o mar e havia condições para combater eficazmente as hordas de mosquitos que, apesar de tudo, apareciam com frequência. A saída pela retaguarda do quartel era directa para a praia, bastando percorrer para lá chegar cerca de trezentos metros, de toalha ao ombro e de fato banho vestido. Era normal, nos dias menos trabalhosos, quando o primeiro sargento estava em Luanda a tratar dos seus interesses, o médico não dava consultas ou não havia recrutas em instrução, irmos para a praia depois do pequeno-almoço e regressarmos por volta da hora do almoço. A parte da tarde desses dias iniciava-se com o ajuntamento habitual para tomar café e, de seguida, voltar ao quartel para dormir a sesta ou, de novo, para a praia! Tempo fabuloso e gratificante foi esse, especialmente para mim que nunca tivera, até então, oportunidade para gozar um período de férias prolongado! Que boa maneira de cumprir o serviço militar aquela, que me estava reservada no Ambriz! Tive tempo, inclusive, para manter a minha preparação académica, reiniciada após o período da recruta. Muitas das leituras obrigatórias, particularmente as dos respectivos manuais, foram feitas na praia ou nas zonas de costa rochosa, ao cair do sol e fruindo da brisa refrescante, que vinha do mar; algumas vezes, nas zonas rochosas da costa e na enseada, onde antes tinha existido um porto marítimo - o qual fora saída de escravos até meados do século dezanove e depois se tornou escoadouro do café - e aonde o mar, tão bravo, revolto, com seis ondas em formação ao mesmo tempo, estava ali tão à mão... A vila dispunha de estação de Correios com serviço de telefone público e era servida por transporte aéreo regular, que fazia a ligação com a capital, o que se mostrava muito importante para quem queria, como eu, comunicar com a família, mesmo que ela estivesse na Metrópole. As idas a Luanda eram frequentes, quer em fins-de-semana autorizados, quer em execução de tarefas inerentes à enfermaria - acompanhamento de doentes e recrutas acidentados ao Hospital Militar de Luanda, especialmente. Ao Ambriz chegavam os “rumores” da guerra, uma vez que, essencialmente, ali se preparavam militares para ela, em particular para saberem o que era necessário em termos de instrução militar básica. Praticamente todos os recrutas, que por ali passavam, “destinavam-se” à guerra... cuja existência


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ninguém ignorava. NEM TODOS TINHAM VOCAÇÃO... No que concerne à formação militar e a uma boa parte dos formandos, a experiência deixou-me algumas marcas, que relembraria, apreensivo, quando me iniciei nas lides militares em pleno mato, já em Zau-Évua. Por causa delas, sempre procurei analisar o comportamento dos que comigo partilhavam o “ambiente de guerra”, para descobrir qual tinha sido a sua formação militar e se lidavam com as armas de forma eficiente e responsável. À recruta chegavam indivíduos oriundos de muitas partes de Angola, dos sítios mais recônditos e ignorados. Muitos não sabiam ler nem escrever e, alguns, mal sabiam comunicar na língua portuguesa. Eram militares forçados aliás, essa era a condição de praticamente todos os incorporados! - e não tinham a mínima apetência para a instrução e formação militares. Com esses recrutas aconteciam mais facilmente “acidentes” na instrução. Em dezassete de Abril de mil novecentos e setenta e dois, em plena carreira de tiro, um recruta “levou” um balázio no abdómen. De lá, foi evacuado directamente para o Hospital Militar de Luanda. O acidente aconteceu porque o recruta não tinha percebido nada, até ao momento, do que era a instrução militar e da necessidade de respeitar regras mínimas de segurança, quando lidava com armas de fogo. Esse recruta era casado, tinha um filho e já me habituara a vê-lo na enfermaria para receber tratamento às mazelas físicas resultantes dos rigores da instrução, que considerava excessiva e muito violenta. Apesar de se tratar dum acidente com arma de fogo, durante os exercícios, fiquei chocado e antevi situações difíceis noutros cenários potencialmente mais adversos e com a presença de inimigos reais. Fiquei a gostar ainda menos da tropa! Noutra ocasião tive que prestar cuidados primários, na enfermaria, a um recruta que deixou explodir uma granada na mão direita quando, depois de descavilhada, a tentava colocar no chão. A explosão arrancou-lhe literalmente a mão direita e a perna esquerda, num ápice. O mais grave, daí a evocação do sucedido, é que esse recruta não queria aprender a lidar com armas de fogo, por se sentir absolutamente incapaz. Na sua expressão de dor, enquanto não era evacuado para o hospital, ele dizia, alto e a bom som, que queria ser “básico” e comunicara-o antecipada e reiteradamente ao major, que comandava o centro de instrução. Em termos práticos, esse recruta nem sequer conhecia a língua portuguesa mas queriam fazer dele

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recruta aplicado e...soldado! Ele desejava apenas que lhe confiassem tarefas para as quais estivesse habilitado... Queria ser “básico”, apenas! Fiquei receoso por saber que, no futuro, poderia partilhar situações de risco com pessoas menos habilitadas ou mesmo totalmente incapazes para a lidar com armas de fogo de repetição automática, granadas ou morteiros.

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ADAPTAÇÃO PRAGMÁTICA À REALIDADE...

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Foi desse ambiente privilegiado, onde estive desde quatro de Abril de mil novecentos e setenta e dois até um de Fevereiro de mil novecentos e setenta e três, que me arrancaram, abruptamente. A surpresa foi enorme, no momento da chegada a Zau-Évua. O lugar que se apresentava diante dos meus olhos, abismados e incrédulos, era completamente diferente daquele que deixara. Que experiências me reservaria o futuro naquele lugar às primeiras impressões tão inóspito? Viajara apreensivo quanto à forma como decorreriam os meses mais próximos e o meu moral não era, por isso, elevado. Desejava terminar o meu serviço militar naquela precisa altura: no meu íntimo sonhei com a possibilidade de nem ter que desfazer as mochilas! Já bastavam os longos meses que tinha dado ao exército. Só que isso - sabia-o muitíssimo bem! - não se afigurava concretizável, pelo que o melhor, até em termos psicológicos, seria dar provas de coragem e enfrentar a realidade, integrando-me, rapidamente, no seio da Companhia, aproveitando toda a experiência já adquirida por aqueles camaradas, que conhecia e tinham chegado antes de mim. A primeira conclusão, retirada à chegada, de que aquele lugar, em todos os aspectos, se apresentava muito diferente da Vila do Ambriz, resultou da simples e elementar análise visual do local e das instalações: estava num deserto, num quartel cujas instalações se apresentavam com carácter definitivo, rodeado de montanhas e capim! Embora o isolamento parecesse absoluto, de imediato fiquei ciente de que dali se chegava com relativa facilidade a S. Salvador, a capital do distrito, pois entre esta e o aquartelamento de Zau-Évua a distância não excederia sessenta quilómetros. Do largo portão de entrada alcançava-se, olhando em frente, à esquerda e à direita, o essencial das edificações do aquartelamento, com a sua capela e torre de vigia lá bem no alto e a bandeira portuguesa hasteada na parte mais elevada do outeiro, situado no centro do espaço rodeado de arame farpado. Ainda de bornal às costas, após centenas de quilómetros percorridos, o meu


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destino “materializou-se”, tornou-se palpável, quando descobri, na estrada, no sentido Ambrizete - São Salvador do lado direito, uma placa rectangular, de cerca de oitenta por quarenta centímetros, em cimento, branca, colocada sobre uma base com mais de um metro e vinte centímetros de altura, mesmo defronte do quartel, onde estava escrito, em maiúsculas: ZAU-ÉVUA. Essa sinalização justificar-se-ía à entrada duma cidade, duma vila, talvez duma simples aldeia, não para assinalar as simples instalações militares onde “morava” a minha Companhia, com a qual tinha um encontro marcado e a que não podia faltar. Compreendi, mais tarde, que aquele era o único mundo de muitas dezenas de pessoas e por isso valorizavam-no através desses elementos representativos dos muitos mundos, alguns verdadeiramente urbanos, que haviam ficado para trás. A placa, pintada de branco, na qual ZAU-ÉVUA, em letras cavadas no cimento e destacadas a negro, implicava, pelo menos, uma paragem obrigatória a todos os que, sem alternativa, circulavam nessa via, civis e militares, como único local habitado naquela imensa terra vazia, em tempos não muito remotos centro doutras gentes e doutras vivências. Recebi uma arma nova para o tempo de “comissão” da Companhia de Caçadores 105/73. Todos tínhamos arma para uso pessoal, mesmo os militares de formação especializada, como eram quase todos os do Serviço de Saúde, os mecânicos, os escriturários, os radiotelegrafistas e os de outras áreas. Nunca senti especial predilecção pelo manuseio de armas de fogo (em tiro de carreira, com a espingarda automática G-3, apenas logrei classificar-me na terceira classe!...), mas não era inconsciente ao ponto de dizer que a arma não era necessária! Embora, muitas vezes, tivesse dado provas da relação difícil que mantinha com a G-3 - não cuidava dela tão bem quanto o exigiam as regras mais elementares de segurança - a probabilidade de ter que usá-la, pelo menos em defesa pessoal e do grupo, existia. E não se tratava de simples hipótese académica - a “lei” aplicável, dita natural, é que se devia estar preparado para não se deixar morrer, ainda que isso implicasse matar - uma vez que havia notícia de que nas redondezas se movimentavam grupos de homens armados hostis. Além da espingarda G-3, levantei também as respectivas cartucheiras com cem balas, das quais depois usei umas quantas em situações diversas, não em combate; aliás, nenhum camarada usou, em todo o período de tempo operacional da Companhia, a espingarda em acções de combate, o que constituía um evidente sinal da “paz reinante” na zona. O equipamento operacional incluía, ainda, um pano e os apetrechos necessários para levantar uma tenda, quando estivéssemos na mata, e um cantil. Esse equipamento operacional foi usado logo no dia sete de Fevereiro desse

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